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A construção do antitruste no Brasil: 1930-1964
A construção do antitruste no Brasil: 1930-1964
A construção do antitruste no Brasil: 1930-1964
Ebook663 pages8 hours

A construção do antitruste no Brasil: 1930-1964

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Neste importante trabalho, Mário expõe em uma pesquisa inédita os debates e interesses em torno da implantação da legislação de defesa da concorrência no Brasil. O leitor tem em mãos um livro fundamental que traz luz para todo um período da história brasileira que não pode ser esquecido ou menosprezado. Gilberto Bercovici (Professor Titular da Faculdade de Direito da USP)
O livro tem duas grandes virtudes: relevância e rigor analítico. Traz pesquisa inédita de história legislativa do direito concorrencial brasileiro e questiona o que se costumou chamar de "revolução do antitruste" dos anos 90. Leitura obrigatória tanto para operadores do Direito quanto para economistas que atuam na área. Ana Paula Martinez (Advogada)
Ao recuperar a trajetória do antitruste no Brasil entre as décadas de 1930 e 1960, Mário Cabral evidencia que a compreensão das inovações institucionais deve ser mediada pelo mercado de ideias econômicas internacionais e pelo ambiente da economia política nacional. O antitruste no Brasil não foi formulado num vazio teórico, mas sim no embate das ideias jurídicas e econômicas de seu tempo. Alexandre Macchione Saes (Professor do Departamento de Economia da FEA/USP)
LanguagePortuguês
Release dateOct 2, 2020
ISBN9786586352160
A construção do antitruste no Brasil: 1930-1964

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    A construção do antitruste no Brasil - Mário André Machado Cabral

    A CONSTRUÇÃO DO ANTITRUSTE NO BRASIL:

    1930-1964

    Mário André Machado Cabral

    A CONSTRUÇÃO DO ANTITRUSTE NO BRASIL:

    1930-1964

    1.ª edição

    São Paulo

    2020

    À memória de Agamemnon Magalhães

    A revolução aconteceu para mim cedo demais, ou talvez não, depende da perspectiva.

    José Eduardo Agualusa

    Antitrust has always been closely tied to prevailing economic doctrine.

    Herbert Hovenkamp

    Agradecimentos

    Este trabalho é uma versão revisada da minha tese de doutorado Estado, Concorrência e Economia: convergência entre antitruste e pensamento econômico no Brasil, defendida em 2016 na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Agradeço inicialmente a meu orientador, prof. José Maria Arruda de Andrade, ao meu co-orientador no exterior, prof. Herbert Hovenkamp, e ao prof. Gilberto Bercovici. As falhas desse trabalho são minhas; suas eventuais virtudes, fruto da orientação desses brilhantes professores.

    Devo também agradecimentos aos membros da banca que generosamente aprovaram a tese com distinção e recomendação para publicação: além dos professores José Maria e Bercovici, Alexandre Saes, José Francisco Siqueira Neto e Vicente Bagnoli.

    Ao Departamento de Direito Econômico, Financeiro e Tributário da USP, pela indicação da tese para representar a Faculdade de Direito no Prêmio CAPES de Tese 2017 (Edital CAPES 18/2017) e no Prêmio Destaque USP 7ª Edição (Edital PRPG 02/2018).

    Aos professores, pesquisadores e amigos que colaboraram direta ou indiretamente com a pesquisa: Gustavo Cabral, Luiz Ramos, Luiz Bruzzi Curi, Alexandre e Flávio Saes, Fábio Mascarenhas, Iagê Miola, Gustavo Onto, Gabriella Guimarães, Martonio Mont’Alverne, Alessandro Octaviani, Maria Aparecida Aquino, Celso Campilongo, Mariana Zago, Weimin Jake Wu, Adriano Camargo Gomes, Ana Paula Martinez, Vinicius Marques de Carvalho, Marcio Diniz, Mariana Rodrigues, Heloisa Santos e Rafael Maia.

    Às instituições que possibilitaram a pesquisa: USP, CAPES (que me concedeu bolsa de doutorado), Universidade de Iowa (onde passei uma estadia de pesquisa sob orientação do prof. Hovenkamp) e CPDOC/FGV (onde consultei vasto acervo histórico).

    A todos da Advocacia José Del Chiaro, especialmente José Del Chiaro, Guta Fidalgo e Ademir Pereira, que me ensinaram a importância da prática antitruste e me deram todo o apoio para a realização da pesquisa. Minha amizade e meu agradecimento também aos demais advogados, estagiários e funcionários.

    Aos amigos: Clarisse Aires (Lila) e a pequena Melodia, Alexandre Sales (Saúde), Isabela Bosi, Vitoria Peres, Thiago González, Walgoni de Souza (Neguim) e a linda Íris e Vitor Bizerril; minhas irmãs e meus irmãos de tambor; Gabriel Tonelo, Ivan Angeli, João Victor Kosicki, Pedro Hartung, André Oliveira (Bré), Bruno Novo e Pedro Batista; Luiz Ramos, Caio Santiago, Murilo Vannuchi, Amadeus de Paula e Igor Machado; Danilo Tavares, Adilson Moreira, Eduardo Ariente, Rodrigo Salgado, Alessandro Soares e Walter Marquezan Augusto.

    Finalmente aos mais importantes: minha mãe, Carla, meu pai, Silvio (in Memoriam), minha tia, Andréa, e minha avó, Augusta; Nem e Lúcia; meu irmão, Gustavo, meu melhor amigo, meu mais generoso crítico e minha inspiração intelectual; Vanessa e Érico, com afeto.

    Sem vocês não teria conseguido. Obrigado.

    Apresentação

    Conheci Mário André Machado Cabral há muitos anos, na querida cidade de Fortaleza. Eu começava uma nova fase de minha carreira acadêmica, participando, pela primeira vez, de uma banca de arguição de doutorado. Reencontrei amigos queridos de docência, e um deles levou vários de seus alunos da Federal do Ceará para nos conhecer, após aquela sessão de julgamento.

    À minha frente, sentou-se, justamente, o então aluno do terceiro ano do bacharelado. Conversamos bastante naquela noite, desde as dificuldades no aprendizado da língua alemã, até os desafios na pesquisa em história do direito.

    Alguns anos após essa passagem, fui procurado por ele no processo seletivo para ingresso na pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

    O jovial candidato já possuía em seu currículo, então, uma premiação nacional por um trabalho monográfico, que, após revisado, deu origem ao livro Subdesenvolvimento e Estado de Exceção: o papel da Constituição Econômica e do Estado no Brasil (Editora Lumen Juris).

    A minha identificação com a sua pesquisa foi imediata, o que me fez aceitá-lo na condição de orientador. Assim como me incomodava a afirmação recorrente de que a economia determinaria o conteúdo das decisões de direito concorrencial, ao então doutorando inquietava a versão predominante de que houve uma revolução antitruste brasileira na década de 90 do século passado.

    Mário confirmou a impressão de pesquisador seríssimo, realizou pesquisa inédita em extensão e profundidade, tendo empenhado vários dias a compulsar a documentação de Agamemnon Magalhães no CPDOC/FGV e havendo feito pesquisa na Universidade de Iowa com o brilhante Herbert Hovenkamp.

    Discutimos por diversas vezes sobre os rumos de sua tese, com ênfase na sua delimitação tão rígida (de 1930 a 1964). Eu o questionava se ele não estaria escrevendo uma biografia de Cristo que se encerraria na adolescência do biografado. Claro que a razão estava com o agora autor, que se armou ainda mais para demonstrar a riqueza das ideias econômicas presentes no período estudado.

    O fato é que, após uma brilhante defesa perante renomada banca, nosso país ganhou um novo professor doutor. Mário tem frequentado com brilhantismo, rigor e erudição diversas bancas de arguição de mestrado e doutorado no Largo de São Francisco; sendo, ainda, autor de diversos estudos importantes em direito econômico concorrencial.

    Eu não poderia estar mais feliz ao constatar junto à comunidade acadêmica o que já se era esperado há muito: o reconhecimento pleno do talento desse ainda jovem jurista.

    São Paulo, junho de 2019.

    José Maria Arruda de Andrade

    Professor Associado de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

    Prefácio

    O Brasil gosta das fórmulas fáceis. Bastam parecer moderninhas ou da moda para afirmações panglossianas tornarem-se verdades absolutas, ignorando ou escondendo décadas de reflexão e debates. Foi isso o que aconteceu com o debate sobre a defesa da concorrência. Alguém inventou que teria ocorrido uma revolução do antitruste na década de 1990, ignorando toda a experiência acumulada até então, e esse passou a ser o novo mantra, cantado em verso e prosa por inúmeros autores do Direito Concorrencial. Parecia que o Brasil nunca tinha tido nada em defesa da concorrência antes da Lei n. 8.884/1994.

    Mário André Machado Cabral não se deixou levar pelos slogans repetidos incessantemente pelo mainstream do antitruste. Pelo contrário. Sua hipótese é justamente a contrária à da revolução do antitruste. Neste importante trabalho, fruto de sua tese de doutoramento na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Mário expõe em uma pesquisa inédita os debates e interesses em torno da implantação da legislação de defesa da concorrência no Brasil.

    Debate este que se inicia com o chamado fomento da economia popular (artigo 117 da Constituição de 1934 e artigo 141 da Carta de 1937), insculpido no Decreto-Lei n. 869, de 1938. O debate não se deu sobre a concorrência em si, mas sobre o controle de preços, a carestia, o abastecimento. Estes temas estarão constantemente presentes nas discussões sobre defesa da concorrência no Brasil até a década de 1960. Enquanto a doutrina antitruste brasileira repete, com base em citações de segunda mão, que essa legislação de combate aos crimes contra economia popular não teria sido aplicada, Mário efetuou verdadeira pesquisa nas fontes e conclui que a lei não só foi aplicada, como existem vários julgados comprovando isso.

    O debate é ampliado nos estertores da Segunda Guerra Mundial com um elemento novo: a proteção do capital nacional em relação ao capital estrangeiro. A ascensão e queda da Lei Malaia (Decreto-Lei n. 7.666, de 1945), elaborada por Agamemnon Magalhães, gira em torno do combate ao poder econômico dos grandes trustes internacionais.

    Mário demonstra neste livro como a questão dos preços, a questão do abastecimento e o problema do capital estrangeiro vão moldar as propostas de legislação de defesa da concorrência entre nós, gerando um debate muito rico e que não pode ser simplesmente ignorado. Afinal, a aprovação da Lei n. 4.137, de 1962, a partir dos projetos de Agamemnon Magalhães do final da década de 1940, deu-se com o discurso da criação de mais um meio de combate ao poder econômico estrangeiro e de garantia contra abusos na formação de preços e no abastecimento. A história do Cade, nos ensina Mário, não é só do Cade, mas da COFAP, da SUNAB e outros órgãos criados dentro da mesma política nacional-desenvolvimentista.

    O leitor tem em mãos um livro fundamental que traz luz para todo um período da história brasileira que não pode ser esquecido ou menosprezado. Da mesma forma que a concorrência não é um fim em si mesma, saber o seu contexto histórico e as especificidades da implantação dos seus mecanismos de proteção é indispensável para um melhor combate aos abusos do poder econômico.

    São Paulo, maio de 2017.

    Gilberto Bercovici

    Professor Titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

    Introdução

    A história do antitruste no Brasil ainda precisa ser mais bem contada. A literatura que se debruçou sobre o tema o fez de modo pouco detido e, na maioria dos casos, introdutório. Em consonância com a história política do País, sugere-se dividir a história do antitruste brasileiro em períodos: (i) um primeiro período, de 1930 a 1964, da Revolução de 1930 ao golpe de 1964, (ii) um segundo, de 1964 a 1985, compreendendo a ditadura militar, e (iii) um terceiro, do fim da ditadura aos dias atuais. Esse terceiro momento englobaria os debates da Constituinte de 1987-1988 que deram ensejo ao art. 173, § 4º, da Constituição Federal de 1988, a lei natimorta de 1990 (Lei n. 8.158, de 8 de janeiro de 1991), a lei de 1994 (Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994) e a atual lei brasileira de defesa da concorrência (Lei n. 12.529, de 30 de novembro de 2011). Sem seguir essa divisão cronológica e com opções metodológicas distintas, pesquisadores envidaram esforços para historiar o segundo e o terceiro períodos¹. Pedro Henrique Navarrete cobre o período 1962-1994, usando como marcos a criação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), pela Lei n. 4.137, de 10 de setembro de 1962, e a promulgação da já referida Lei n. 8.884/1994. Navarrete argumenta que a política de defesa da concorrência foi marginalizada pelos governos militares (1964-1985), passando por uma reestruturação a partir do governo Fernando Collor de Mello (1990-1992) que se consolidou com a lei de 1994, promulgada no governo Itamar Franco (1992-1995)².

    Iagê Zenon Miola estuda a reforma na regulação concorrencial ocorrida no Brasil nos anos 1990. Lançando mão de pesquisa que incluiu estudo da trajetória das pessoas envolvidas nesse processo histórico, bem como entrevistas com as mesmas e análise de documentos e decisões do Cade entre 1994 e 2010, Miola entende que a reforma antitruste que se deu no Brasil deve ser compreendida como parte da agenda neoliberal de transformação do Estado e liberalização econômica que predominou no País na década de 1990. Apesar de fixar o ano de 1994 como seu marco inicial para o exame da jurisprudência, o autor inicia sua análise histórica com a Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988, o que o permitiu traçar um quadro amplo das transformações recentes pelas quais passou o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência (SBDC)³.

    Vários outros autores versaram sobre a história do antitruste nacional, mas, como dito, cuida-se de referências en passant. O destaque é Paula A. Forgioni, que dedica páginas relevantes de sua obra – que não tem como foco a história do antitruste, e sim os fundamentos do direito concorrencial em vigor – ao estudo de um largo período que associa ao antitruste. Forgioni trata do que chama de fase fiscalista da nossa história colonial como um antecedente da preocupação com aquele que hoje chamaríamos de ‘consumidor’. Passa pelas medidas econômicas adotadas a partir da vinda da Corte portuguesa para o Brasil em 1808 e tece comentários acerca do Brasil independente. A autora faz esse percurso para finalmente chegar à Constituição de 1934, quando se eleva, pela primeira vez, a nível constitucional, a liberdade econômica, condicionando-a a limites, tais como os impostos pelo fomento à economia popular⁴, conforme o art. 117 da Constituição⁵.

    O que se indicou aqui como primeiro período do antitruste, de 1930 a 1964, em conformidade com a história política brasileira, ainda é pouco conhecido, apesar da contribuição de Forgioni, que, reitere-se, não tem o período como foco de sua pesquisa⁶. Não apenas o período é analisado pela literatura de maneira insuficiente para compreender sua complexidade e importância histórica, como os marcos legislativos são tratados de maneira esquemática. Em geral, diz-se apenas que (i) o Decreto-Lei n. 869, de 18 de novembro de 1938, foi voltado ao fomento da economia popular e não teve efetividade em seus dispositivos antitruste⁷, (ii) o Decreto-Lei n. 7.666, de 22 de junho de 1945 (Lei Malaia), foi fruto da iniciativa do então ministro da Justiça e Negócios Interiores, Agamemnon Magalhães, alguns associando a medida a um certo nacionalismo econômico⁸, e (iii) a Lei n. 4.137/1962 teve a importância de criar o Cade, mas, para os autores mais recentes, foi pouco aplicada pelos governos militares que se seguiram⁹. Com algumas variações, esse costuma ser o cerne das considerações a respeito dos marcos legais. O sentido e o significado histórico desses diplomas e dos contextos em que eles foram gerados não são suficientemente explorados. Salvo exceções, são considerações abreviadas que têm contribuição limitada, embora valiosa, para o entendimento da história do antitruste no Brasil.

    Esse trabalho pretende lançar luzes sobre essa história. No entanto, o impulso inicial da pesquisa foi outro. Tem-se um objetivo delineado: testar uma pressuposição histórica específica. A análise da história do antitruste brasileiro será feita à medida que servir a esse propósito. A referida pressuposição se relaciona com a chamada revolução do antitruste. Segundo os que compartilham dessa tese, uma revolução teria ocorrido no antitruste brasileiro a partir dos anos 1990. Ela teria se dado com o uso alegadamente inédito de elementos de análise da teoria econômica em decisões antitruste. Depreende-se disso que, antes da revolução, antitruste e teoria econômica pouco teriam se relacionado. A incorporação de elementos de teoria econômica na análise antitruste seria, nesse sentido, algo novo, que se deu a partir de meados da década de 1990. Antes disso, o antitruste no País teria sido pautado apenas por vertentes mais populistas. Careceriam, do ponto de vista do fundamento teórico, profundidade e sofisticação ao antitruste nacional, o que só foi conferido a partir da revolução dos anos 1990¹⁰.

    Em verdade, trata-se de tese explicitamente importada do debate norte-americano. Em 1989, foi publicado um livro intitulado The antitrust revolution. Os editores da obra, John E. Kwoka Jr. e Lawrence J. White, advogaram que a influência da teoria da organização industrial, em especial da Escola de Chicago, teria transformado profundamente o antitruste nos Estados Unidos. Antes dessa influência, o antitruste nesse país teria sido informado apenas por correntes populistas. A revolução teria dado ao antitruste, assim, uma aproximação inédita com a ciência econômica¹¹. Observe-se que a referida obra apenas deu maior ênfase a um entendimento que já vinha sendo divulgado por autores ligados à Escola de Chicago, a exemplo de Richard A. Posner, para quem, a partir do final dos anos 1970, o antitruste passou a ser pautado por uma abordagem econômica, o que constituiria uma novidade¹². Desde 1985, porém, consta uma crítica relevante a respeito desse entendimento. Herbert Hovenkamp questionou a percepção de que a influência de Chicago teria sido a responsável por dar à política antitruste uma abordagem econômica. Cotejando a história do antitruste norte-americano com a história do pensamento econômico, Hovenkamp demonstrou que, desde os primeiros tempos da referida política nos Estados Unidos, antitruste e teoria econômica sempre estiveram próximos um do outro. As correntes de pensamento que influenciaram essa política mudaram historicamente, do mesmo modo que se alterou sua forma de aplicação pelos diferentes governos e tribunais. Não se pode dizer, no entanto, segundo Hovenkamp, que foi apenas no final dos anos 1970 que o antitruste se aproximou da teoria econômica e das correntes de pensamento econômico dominantes em cada época¹³.

    Assim, a presente pesquisa pretende algo simples: questionar a ideia de revolução do antitruste no contexto brasileiro. Isto é, busca-se verificar o acerto histórico de se afirmar que ocorreram mudanças que revolucionaram o antitruste brasileiro nos anos 1990 com base no argumento de que, a partir de então, a política concorrencial passou a contar, pela primeira vez, com elementos de teoria econômica mais sofisticados e mais profundos, em substituição a um antitruste pautado por vertentes mais populistas. O questionamento de fundo é: antes da revolução, mais especificamente nos primeiros anos do antitruste no Brasil, qual era a relação entre antitruste e pensamento econômico ou qual a importância do pensamento econômico para as formulações antitruste do período ou, ainda, qual o nível de convergência entre antitruste e pensamento econômico? Para responder a esses questionamentos, lança-se mão de uma análise que se divide em quatro partes. Na primeira, estabelece-se em detalhes o objetivo do trabalho e seus pressupostos de análise, situando o problema de pesquisa. Na segunda, investiga-se a história do antitruste no Brasil no período 1930-1964, construindo-se um quadro que contemple os aspectos jurídicos, econômicos, políticos e intelectuais subjacentes aos marcos legais. Na terceira, com base na literatura, faz-se um quadro das correntes de pensamento econômico dominantes no ambiente intelectual e nos debates públicos da época. Finalmente, na quarta, cotejam-se os elementos da segunda e da terceira partes, ou seja, verifica-se a convergência do antitruste brasileiro em seus primeiros anos com as correntes de pensamento econômico mais influentes, de modo a observar a relação entre antitruste e pensamento econômico e apurar em que medida a tese da revolução do antitruste é historicamente acertada no que concerne à influência de elementos de análise da teoria econômica na referida política¹⁴.

    A revolução do antitruste

    1.1 A origem do debate

    A partir de meados dos anos 1970, alguns autores passaram a defender que estava em curso uma mudança na aplicação do antitruste nos Estados Unidos. Casos como o Sylvania¹⁵ demonstrariam que uma nova abordagem em casos antitruste estava prevalecendo. Essa abordagem seria marcadamente econômica, focada nos efeitos da prática investigada ou da operação de concentração analisada. Alegava-se que tal abordagem era essencialmente nova, pressupondo que na história do antitruste estadunidense a política antitruste nunca esteve próxima ou em linha com postulados econômicos, tendo se mantido alheia a uma análise pautada nos efeitos econômicos. Três textos que ilustram esse entendimento serão examinados adiante.

    Em 1977, Richard A. Posner publicou um artigo intitulado The rule of reason and the economic approach: reflections on the Sylvania decision. O texto analisa como o caso Sylvania representou uma mudança na forma de análise de casos antitruste pela Suprema Corte norte-americana. A análise antitruste pelas autoridades judiciais teria passado a ser fundamentalmente baseada nos efeitos econômicos da conduta, numa consagração da regra da razão. Assim, segundo Posner, a economia teria ganhado uma importância nova na política antitruste. Caso apartado de considerações de mercado, o antitruste não faria sentido. Dever-se-ia aplicar, a partir de então, uma racionalidade econômica na análise antitruste – racionalidade essa que, para Posner, não vinha sendo tomada em consideração do modo apropriado pelas autoridades administrativas e judiciais em casos anteriores. A constatação da mudança seria reforçada pela frequência com que autores ligados à Escola de Chicago, como o próprio Posner e Robert H. Bork, passaram a ser citados e utilizados nas argumentações das decisões judiciais em matéria concorrencial¹⁶.

    Em 1982, Peter M. Gerhart publicou o artigo The Supreme Court and antitrust analysis: the (near) triumph of the Chicago School. Gerhart argumenta que, desde 1975, em seis diferentes casos, entre eles o Sylvania¹⁷, a Suprema Corte dos Estados Unidos vinha se direcionando para uma nova metodologia antitruste de análise baseada nos efeitos econômicos. Essa metodologia teria sido influenciada por escritos de expoentes da assim chamada Escola de Chicago, como Bork e Posner. Na opinião de Gerhart, adotar uma abordagem fundada na análise econômica deveria constituir o caminho a ser trilhado pela política antitruste. Contudo, a Suprema Corte, em um caso de 1982, conhecido como caso Maricopa¹⁸, teria perdido a oportunidade de consolidar o novo quadro metodológico, fazendo com que a análise antitruste retrocedesse e voltasse a ser, como antes da influência da Escola de Chicago, confusa e pouco consistente¹⁹.

    Em 1993, Bork publicou uma nova edição de seu livro "The antitrust paradox: a policy at war with itself com uma nova introdução intitulada The passing of the crisis. A edição original da obra, de 1978, fazia o diagnóstico de que as premissas da política antitruste dos Estados Unidos eram inconsistentes e as decisões antitruste poderiam comprometer a ordem social do capitalismo liberal"²⁰. Bork reavaliou sua posição em 1993 para concluir que houve, nos últimos anos, uma revolução na política antitruste dos Estados Unidos, causada por uma mudança na composição da Suprema Corte, que passou a ser mais influenciada pelos postulados da Escola de Chicago. Diferentemente do quadro anterior, notadamente da Corte Warren²¹, a Suprema Corte passou a ser alegadamente composta por juízes com uma melhor compreensão do mundo dos negócios e que tiveram à disposição um novo instrumental teórico: os postulados antitruste propugnados pelos autores ligados à Escola de Chicago. Esses autores, segundo Bork, passaram a exercer influência decisiva sobre os juízes da Suprema Corte, o que teria possibilitado a guinada na direção do antitruste norte-americano. Bork assinala que as duas principais proposições da Escola de Chicago de análise antitruste são a defesa do que seus autores chamam de maximização do bem-estar do consumidor e a aplicação de uma análise econômica alegadamente mais rigorosa. Atentos a essas premissas básicas e despojados de um igualitarismo imprudente e primitivo, que teria marcado a Corte Warren, os juízes da Suprema Corte teriam passado a observar mais cuidadosamente os fundamentos econômicos dos argumentos trazidos aos processos, em especial aos efeitos econômicos das práticas e operações examinadas²².

    Posner, Gerhart e Bork partilham da ideia de que, a partir de meados da década de 1970, houve uma mudança significativa na política antitruste dos Estados Unidos, com o início de uma abordagem supostamente nova, fundada em postulados econômicos e pautada pelos efeitos das práticas analisadas. Os três atribuem à Escola de Chicago um papel decisivo nessas mudanças. Argumentando que tais mudanças foram tão significativas, que causaram uma revolução na política antitruste, Kwoka Jr. e White organizaram um livro intitulado The antitrust revolution em 1989. Trata-se de uma coletânea de artigos de economistas, funcionários do governo e outras personalidades que estiveram envolvidas em casos importantes da jurisprudência antitruste norte-americana. O livro se foca em analisar os precedentes e mostrar como a teoria econômica foi aplicada nesses casos concretos. A obra parte de um pressuposto histórico, consignado na introdução ao livro: teria havido nos Estados Unidos, nos últimos anos, uma verdadeira revolução na política antitruste, provocada pela utilização, por parte das autoridades judiciais em casos concretos, da teoria econômica, notadamente da teoria da organização industrial, em particular a Escola de Harvard e, em especial, a Escola de Chicago²³.

    A crítica ao entendimento de que apenas recentemente, e em particular a partir da influência da Escola de Chicago, em meados dos anos 1970, o antitruste dos Estados Unidos passou a contar com influxos da teoria econômica remonta aos anos 1980. Herbert Hovenkamp, em 1985, contestou esse posicionamento com base em uma análise de história legislativa e história do pensamento econômico. Segundo Hovenkamp, a política antitruste nos Estados Unidos sempre esteve próxima da produção intelectual de inspiração econômica, sendo que não se pode dizer que se trata de novidade uma abordagem econômica, como se o antitruste e seus agentes públicos tivessem descoberto a economia apenas à época da suposta revolução da Escola de Chicago²⁴. Nos primeiros anos de aplicação do Sherman Act, de 2 de julho de 1890, a primeira lei federal antitruste dos Estados Unidos, a dificuldade de apontar o influxo da teoria econômica nos julgados antitruste é que a revolução neoclássica na economia se operava justamente naquele momento. Não havia uma definição clara da corrente de pensamento econômico dominante. Confrontos intelectuais, especialmente entre economistas clássicos e neoclássicos, marcaram esse período. Hovenkamp observa que, em verdade, as resistências, por parte de economistas clássicos, foram significativas nesse primeiro momento de aplicação do Sherman Act. A efetividade da lei teria decorrido de que a perspectiva do Sherman Act passou gradualmente a refletir as visões de gerações mais novas de economistas pós-clássicos. Posteriormente, nos anos do New Deal, pôde-se notar uma maior incursão da teoria econômica na política antitruste. De acordo com Hovenkamp, a ideologia econômica dominante de então traduzia reticência e suspeita quanto à desregulamentação dos mercados, expressando também uma crença na necessidade de regulação econômica governamental. Nesse contexto, a partir de 1935, a política antitruste dos Estados Unidos passou a se caracterizar por uma postura agressiva contra as concentrações de mercado e as restrições verticais. Tal posicionamento encontrava na teoria da competição monopolística de Edward Chaberlin forte influência. A reação a essa concepção veio com a teoria da workable competition, nos anos 1940 e 1950, que pregou o dever do governo de fazer com que as indústrias em geral, inclusive as imperfeitas, tivessem algum grau de concorrência, por meio do controle antitruste e da persecução de práticas anticompetitivas. Nos anos 1960, a Escola de Harvard, por meio, sobretudo, da influente obra de Joe S. Bain, fez-se notar como ponto de influência e convergência na política antitruste norte-americana, como se percebe não só nos julgados, mas também nos Merger Guidelines do Departamento de Justiça, de 1968. Ou seja, antes da década de 1970, marco do início da influência determinante da Escola de Chicago, o antitruste nos Estados Unidos já tinha laços próximos com a doutrina econômica prevalecente em cada período²⁵.

    1.2 A revolução no Brasil

    A perspectiva de que houve uma revolução no antitruste foi importada e adaptada ao caso brasileiro. Em 2003, um livro intitulado A revolução do antitruste no Brasil, em assumida alusão ao livro de Kwoka Jr. e White, foi organizado por César Mattos, reunindo artigos que analisavam casos concretos da jurisprudência do Cade, destacando-se os aspectos econômicos presentes em cada caso²⁶. Uma segunda edição desse livro foi publicada em 2008, com novos casos, novos artigos e novos autores²⁷. Em 2018, uma terceira edição foi publicada, dedicada a casos de cartel, mas ressaltando o elemento econômico presente na jurisprudência²⁸. Essas obras partem de um pressuposto histórico em linha com as posições de Posner, Gerhart, Bork, Kwoka Jr. e White, acima examinadas: o antitruste no Brasil, assim como nos Estados Unidos, apenas recentemente passou a utilizar elementos de teoria econômica para fundamentar suas decisões:

    Tal como no Brasil, a centenária história da aplicação da legislação antitruste nos EUA, [sic] só recentemente começou a se utilizar dos elementos de análise da teoria econômica para embasar suas decisões. Mais precisamente, na introdução da terceira edição de 1999, Kwoka e White afirmam que nos últimos vinte anos, teria havido uma revolução na política antitruste americana, resultado da aplicação da teoria econômica no debate judicial dessa área. [...] No Brasil, assim como nos EUA, desde a primeira legislação antitruste de 1962, apenas mais recentemente se passou a incluir uma análise econômica mais profunda na aplicação da política antitruste. Daí, chegamos ao objetivo primordial dessa coletânea de artigos que se pretende constituir o análogo (quase homônimo) do livro de Kwoka e White: uma história da introdução de uma análise econômica mais sofisticada do antitruste no Brasil e sua crescente e decisiva influência sobre importantes casos concretos julgados pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o CADE²⁹.

    De acordo com Mattos, a inclusão de uma análise econômica mais profunda e mais sofisticada no antitruste brasileiro é recente. Antes disso, a política antitruste brasileira – que, conforme o autor, teria contado com sua primeira legislação apenas em 1962³⁰, o que, segundo se verá adiante, é um equívoco – teria sido marcada pela influência de vertentes mais populistas:

    Tal como nos EUA, a orientação da política antitruste brasileira flutuou entre vertentes mais populistas voltadas à chamada defesa da economia popular, menos preocupada com questões de eficiência, e as vertentes mais próximas à concepção mais moderna de defesa da concorrência ³¹.

    À publicação no País de alguns trabalhos acadêmicos de economistas sobre a área, a partir de 1990³², seguiu-se uma nova lei, a Lei n. 8.884/1994, que, nas palavras de Mattos, conferiu muito mais poderes à autarquia, especialmente para a análise e julgamento de atos de concentração econômica³³. A composição do Cade também foi, na análise de Mattos, um importante fator para a mudança no antitruste brasileiro. Em 1996, Gesner Oliveira, doutor em economia e professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas, tornou-se presidente do Cade, e Lucia Helena Salgado, doutora em economia e pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), foi nomeada conselheira. Posteriormente, outros economistas foram nomeados para compor o Cade³⁴. O primeiro grande caso julgado pelo Cade nesse novo contexto foi o Kolynos-Colgate, decidido em 1996, considerado por Mattos como o marco inicial de inserção de uma análise econômica mais sofisticada no Cade³⁵. Importa aqui assinalar que se extrai das assertivas de Mattos a pressuposição histórica de que, de fato, deu-se no Brasil, em meados dos anos 1990, o mesmo que ocorreu nos Estados Unidos ao final dos anos 1970, isto é, uma revolução causada pela utilização alegadamente inédita de elementos de teoria econômica no antitruste, expressando o entendimento de que, antes da década de 1990, o antitruste no Brasil não recebia influxos de teoria econômica, sendo informado teórica ou ideologicamente apenas por vertentes mais populistas, necessariamente menos profundas e menos sofisticadas³⁶.

    Além dos livros organizados por Mattos, existe um trabalho de Luis Fernando Schuartz, de 2009, que endereça o tema da revolução do antitruste. Trata-se do texto A Desconstitucionalização do Direito de Defesa da Concorrência. Para Schuartz, a política antitruste no Brasil ganhou algum significado e aplicação efetiva a partir do fim dos anos 1980 e início dos anos 1990. O momento histórico, na política econômica nacional, era o de liberalização, em que a concorrência deveria desempenhar um papel de maior destaque e o governo, assumir sua promoção e defesa. Foi nesse contexto, sob o governo de Fernando Collor de Mello, que entrou em vigor a Lei n. 8.158/1991 e foi criada a Secretaria Nacional de Direito Econômico, vinculada ao Ministério da Justiça e responsável pela investigação de práticas anticompetitivas, deixando apenas a função decisória para o Cade. O processo de transição para uma política concorrencial efetiva no Brasil teria se completado com a Lei n. 8.884/1994, e seus resultados, na avaliação de Schuartz, foram satisfatórios. Conforme argumentou o autor, três fatores concorreram para esse êxito. O primeiro era político-institucional: entre a Lei n. 4.137/1962, que criou o Cade, e a transição iniciada pela Lei n. 8.158/1991, a defesa da concorrência no País ficou resguardada de um controle intrusivo e estruturante do Poder Judiciário, o que possibilitou a criação de um ambiente teórico que precedeu e antecipou a prática, de modo que, quando as circunstâncias políticas e econômicas se tornaram mais propícias à efetividade de uma política antitruste (o que só teria acontecido nos anos 1990³⁷), a comunidade antitruste (autoridades, advogados e economistas atuantes na área) já dispunha de um ferramental prático tecnicamente consistente e já estava familiarizada com ele. O segundo fator era cultural: quando se iniciou a transição para um período de efetividade da política antitruste nacional, na década de 1990, já havia quase um século de jurisprudência e discussão acadêmica sobre o tema nos Estados Unidos, de maneira que foi importado para o Brasil, sem disputas ou contestações, o referencial teórico dominante naquele país, isto é, o defendido por autores como Posner e Bork como maximização do bem-estar do consumidor. O terceiro fator era mais uma singularidade institucional brasileira: os economistas, como autoridades ou como consultores privados, tiveram influência determinante na formatação da política, implicando a consolidação do antitrust economics como fonte do direito concorrencial brasileiro. Schuartz aponta que, a partir desses três fatores, institucionalizou-se no Brasil uma teoria normativa dominante da defesa da concorrência, que se confunde com a teoria econômica que prevaleceu no antitruste estadunidense de fins da década de 1970 em diante, marcada por uma estratégia top-down de importação dos postulados da ciência econômica para a política e o direito antitruste, bem como pela supremacia, nas decisões em matéria concorrencial, do argumento consequencialista sobre os demais³⁸. A utilização intensiva desse ferramental teórico teria revolucionado o antitruste nacional, segundo o autor³⁹. Desse modo, Schuartz argumenta que a revolução do antitruste teve como resultado no Brasil (ou subproduto, como o autor prefere) a desconstitucionalização do direito concorrencial e, também, sua colonização pela teoria econômica mainstream de organização industrial⁴⁰. Na opinião de Schuartz, a desconstitucionalização e a colonização do direito concorrencial brasileiro, como consequências da revolução do antitruste, foram positivas, pois evitaram uma constitucionalização cínica desse ramo jurídico⁴¹.

    A ideia de que houve uma revolução no antitruste brasileiro nos anos 1990 foi ecoada também por autores como Gustavo Gomes Onto e Ana Paula Martinez. Onto entende que, do mesmo modo que os Estados Unidos no final dos anos 1970, o Brasil passou por uma verdadeira revolução na política antitruste. A principal mudança provocada foi relativa à importância da teoria econômica da organização industrial na formulação e aplicação da política antitruste⁴². Com o objetivo de investigar a relevância da economia e dos economistas na política concorrencial brasileira, Onto lança mão de uma análise histórica que aponta na seguinte direção: (i) até a década de 1990, a política antitruste não teria sido efetiva e não teria gozado de importância; (ii) o foco do antitruste brasileiro nos seus primeiros anos teria sido o controle de preços e, mesmo com a Lei n. 4.137/1962, não se teria constituído um conceito de mercado que se pudesse dizer eminentemente econômico, concluindo que a Lei de concorrência de 1962 não apresenta qualquer utilização de conceitos teóricos da ciência econômica, nem mesmo quando se refere a ideia de mercado. A separação entre antitruste e teoria econômica era, para Onto, total; (iii) na ditadura militar, o controle de preços continuou e se tornou compulsório, com o Decreto n. 61.993, de 28 de dezembro de 1967, e, pelo Conselho Interministerial de Preços (CIP), o Estado passou a organizar as indústrias por meio da formação de cartéis. O paradigma político-econômico do período enfatizava a industrialização, ainda que para isso fosse necessária a concentração de mercado com estruturas oligopolistas; (iv) as mudanças no antitruste só foram possíveis em um contexto de liberalização do comércio internacional e de privatização de empresas estatais, nos anos 1990. Marcos dessa transição teriam sido a extinção do CIP em 1990, a Lei n. 8.158/1991, a Lei n. 8.884/1994 e a nomeação de três economistas para o plenário do Cade em 1996⁴³. A lei concorrencial de 1991, em particular, diferentemente da Lei n. 4.137/1962, apresentou um caráter mais ‘técnico’, nas palavras de Onto⁴⁴. Já o projeto de lei que deu origem à lei de 1994 foi resultado do trabalho de uma comissão nomeada pelo presidente Itamar Franco (1930-2011) e integrada por uma maioria de juristas⁴⁵. Onto observa, porém, que economistas participaram da elaboração do projeto, ainda que indiretamente⁴⁶, e, mais do que isso, que essa elaboração foi influenciada pelo paradigma neoliberal, que foi utilizado como ideologia das reformas econômicas adotadas no período no Brasil e na América Latina⁴⁷. No entanto, a Lei n. 8.884/1994 ainda continha elementos não ‘puramente’ econômicos. Estes começariam a ser extirpados com o tempo, conforme normas internas do Cade iam sendo elaboradas e a jurisprudência evoluía. Com isso, procedimentos e metodologias de análise econômica tornaram-se obrigatórios nas decisões e a teoria econômica tornou-se parte essencial da política antitruste. O antitruste no Brasil passava a ser pautado por uma metodologia de análise mais econômica dos processos. Dava-se a revolução⁴⁸.

    Martinez destaca que os anos 1990 foram fundamentais para o antitruste no País. A política alcançou um patamar nunca antes atingido no Brasil, em decorrência de um ambiente político-econômico propício: o liberal⁴⁹. Para isso acontecer, foi necessária uma evolução histórica: de um antitruste fundado na economia popular para um antitruste voltado à promoção da concorrência propriamente dita (a partir de 1994)⁵⁰. Embora dê mais ênfase ao contexto político-econômico e às mudanças institucionais, Martinez também atribui as transformações ocorridas na década de 1990 à aplicação dos novos conceitos. Esse conjunto de fatores teria gerado "uma verdadeira revolução antitruste no Brasil"⁵¹.

    Conforme constata Iagê Zendron Miola, a narrativa de que, a partir dos anos 1990, notadamente com a Lei nº 8.884/1994, a política antitruste brasileira se tornou mais técnica e despolitizada é comum e reiterada⁵². Tal mudança teria se dado pelo ambiente político-econômico da época, pelas reformas institucionais e, em particular, pelo uso extensivo da ciência econômica no antitruste. Esse último aspecto, especificamente, seria crucial para entender as transformações que se teriam consubstanciado em uma verdadeira revolução no antitruste brasileiro⁵³. Miola elenca quatro mudanças significativas ocorridas na política concorrencial brasileira nos anos 1990, particularmente sob a gestão de Gesner Oliveira, a partir de 1996: (i) consolidação institucional⁵⁴, (ii) articulação com outras políticas econômicas⁵⁵, (iii) internacionalização da política antitruste⁵⁶ e (iv) economicização do antitruste no Brasil. Será destacado aqui, pelos propósitos do trabalho, o quarto aspecto.

    Os indicadores da economicização da política antitruste brasileira apresentam, segundo Miola, três aspectos. O primeiro é a percepção, por economistas como Ruy Santacruz Lima, de que, entre 1994 e 1996, a análise de atos de concentração se baseou em uma teoria antitruste tradicional, isto é, o paradigma estrutura-conduta-desempenho, da Escola de Harvard, que, segundo Lima, seria legalista e não incorporaria uma análise matemática sofisticada⁵⁷. Faltariam aos economistas presentes no plenário do Cade os fundamentos econômicos apropriados⁵⁸. O segundo aspecto apontado por Miola é a elaboração de normas internas pelo Cade, dado já notado por Onto⁵⁹. A Resolução n. 5, de 28 de agosto de 1996, por exemplo, fixou o procedimento de análise dos atos de concentração. A norma estabeleceu as informações que deveriam ser levadas à autoridade para a apreciação das transações notificadas. Com base nessas informações, o Cade teria como verificar com maior precisão a presença de elementos de mercado que justificariam, com base na teoria econômica mainstream do antitruste, a aprovação de um ato de concentração, ainda que aumentasse o grau de concentração no mercado⁶⁰. O terceiro aspecto ressaltado por Miola diz respeito ao conteúdo das decisões em atos de concentração. O percentual de restrições impostas pelo Cade caiu de 77,77%, entre 1994 e 1996, para 8,6%, entre 1996 e 1998, período este em que nenhuma operação foi reprovada⁶¹.

    A partir de 1998, a revolução sedimenta o que Miola chama de credo econômico (economic creed). As quatro mudanças apontadas acima – consolidação institucional, articulação com outras políticas econômicas, internacionalização da política antitruste e economicização do antitruste no Brasil – intensificam-se entre 1998 e 2000. A economicização, em específico, avançou com a elaboração da Resolução n. 20, de 9 de junho de 1999, particularmente. Essa resolução, que dispôs de forma complementar sobre o processo administrativo perante o Cade, trouxe como anexos (i) definições de condutas anticompetitivas em linha com a teoria mainstream e com as práticas estrangeiras e (ii) critérios de análise de condutas, veiculando instrumentos econômicos de cálculo do grau de concentração de mercado, como os índices Herfindahl-Hirschman (HHI) e Ci⁶². Esse processo de economicização dava ao Cade o caráter técnico alegadamente necessário para superar os períodos anteriores da política antitruste brasileira – supostamente menos técnicos – e torná-la moderna⁶³. À indicação de outros economistas para o plenário do Cade nos anos posteriores, após o término do mandato de Gesner Oliveira em 2000⁶⁴, sucederam-se fatos relevantes no âmbito das outras duas autoridades antitruste nacionais, a Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda (SEAE) e a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça (SDE). Essas secretarias elaboraram, em 1º de agosto de 2001, o Guia para Análise Econômica de Atos de Concentração Horizontal, que estabeleceu parâmetros para análise de fusões, aquisições e outras operações entre empresas atuantes em um mesmo mercado. O guia incluiu na análise aspectos que iam além do paradigma estrutura-conduta-desempenho, como o exame de eficiências econômicas decorrentes da operação⁶⁵. A SEAE elaborou também o Guia para Análise Econômica da Prática de Preços Predatórios, de 12 de dezembro de 2002⁶⁶. Adicione-se que o titular da SEAE à época, Claudio Considera Correa, e seu equivalente na SDE, Paulo de Tarso Ribeiro, promoveram mudanças significativas no corpo de funcionários de suas secretarias, cortando pessoal e contratando novos profissionais. Conforme Miola, Correa chegou a afirmar que as mudanças se deram porque os antigos funcionários eram todos viciados em controle de preço⁶⁷. O processo de economicização afetou todas as autoridades antitruste brasileiras no período. A revolução era levada adiante⁶⁸.

    Há no Brasil posicionamentos críticos em relação à assimilação acrítica das percepções da Escola de Chicago e da pregação em torno de uma abordagem econômica no antitruste brasileiro. Calixto Salomão Filho e Paula A. Forgioni têm reservas a respeito da Análise Econômica do Direito, movimento que encarna os postulados da Escola de Chicago no direito. Salomão Filho frisa o caráter redutor das metodologias matemáticas de análise econômica, defendendo sua integração a uma análise jurídica e histórica crítica das estruturas socioeconômicas que conformam a realidade brasileira⁶⁹. Forgioni, embora reconheça que a análise econômica pode ser vista como um importante instrumento para a aplicação do ordenamento jurídico, aponta os riscos de que a utilização dessa análise submeta o direito aos determinismos econômicos⁷⁰. José Maria Arruda de Andrade apresentou uma crítica às consequências e aos riscos da economicização do direito concorrencial alegadamente provocada pela influência dos postulados de Chicago. Andrade não descarta a importância do ferramental econômico na análise antitruste, mas dá ênfase a seu papel instrumental ou descritivo, afastando aplicações normativas e consequencialistas dos pressupostos de uma específica escola de pensamento – no caso, a de Chicago. A importância desse exercício crítico reside justamente na assimilação do dever de observância das garantias democráticas do Estado de Direito quando se trata de aplicar a legislação antitruste, de modo a evitar que uma teoria normativa se sobreponha aos objetivos consagrados na Constituição⁷¹. O presente trabalho, assim como os de Salomão Filho, Forgioni, Andrade e Miola, tenta manter um posicionamento crítico em relação a esses postulados normativos economicistas. O foco aqui, porém, é qualificar historicamente a pressuposição de que a economicização é um fenômeno novo ou, em outros termos, que houve num passado recente uma revolução do antitruste no Brasil.

    1.3 A proposta

    Entendido o que se chamou de revolução do antitruste e de que modo ela teria se dado no Brasil, a proposta deste trabalho é verificar a pressuposição histórica de que essa suposta revolução ocorreu no Brasil nos últimos anos. O posicionamento que se intenta examinar parte do pressuposto de que só recentemente no Brasil – mais especificamente nos anos 1990 – o antitruste passou a se utilizar de elementos de teoria econômica. Como visto, argumenta-se que o uso desse ferramental teórico teria provocado uma revolução na política brasileira de defesa da concorrência. Segundo essa tese, antes da influência da teoria da organização industrial, notadamente da Escola de Chicago, o antitruste no Brasil era influenciado, basicamente, por vertentes populistas, sendo que antitruste, de um lado, e economia – ou análises econômicas mais profundas e mais sofisticadas, como se prefere colocar –, de outro, apenas remotamente convergiriam nos períodos anteriores à revolução. A hipótese que se pretende trabalhar consiste no seguinte: desde as primeiras legislações antitruste nacionais, antitruste e pensamento econômico sempre estiveram próximos.

    A abordagem se dividirá em três momentos. O primeiro consistirá em um exercício de história legislativa, analisando as disposições legais, os escritos e outros documentos referentes aos homens públicos responsáveis pela elaboração das leis em exame e, quando houver, os debates legislativos e os casos de aplicação das leis, além das resistências de diversas naturezas enfrentadas por essas iniciativas legais. Com base nos resultados dessa primeira análise, ter-se-á, de um lado, um quadro do estado de coisas buscado com tais legislações, isto é, do propósito ou objetivo das leis, e, de outro, das ideias que inspiraram a criação dessas novas normas. O segundo momento se dedicará à análise das ideias econômicas em debate no Brasil à época, ou seja, das doutrinas político-econômicas mais influentes ao tempo estudado. Por fim, no terceiro momento, far-se-á um cotejamento entre os dois momentos anteriores da análise para verificar se o antitruste, antes do período assimilado como da revolução do antitruste no Brasil, esteve apartado do pensamento econômico prevalecente no debate público brasileiro, é dizer, se não havia uma convergência entre as formulações antitruste, de um lado, e as correntes de pensamento econômico do período, de outro.

    Antitruste no Brasil: 1930-1964

    2.1 Decreto-Lei n. 869/1938

    2.1.1 Estado pós-1930 e novas Constituições

    As Constituições de 16 de julho de 1934 e de 10 de novembro de 1937 são marcos de uma nova formulação política que passa a ter preponderância no Brasil: o Estado intervencionista. Ocorre que, desde antes de 1934, o Governo Provisório vinha mudando a forma

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