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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECONCAVO DA BAHIA RerTOR Paulo Gabriel Soledade Nacif iz de Oliveira Soglia PRO-REITORIA DE ADMINISTRAGAO Rosia TORIA DE GESTAO DE PESSOAL RESTORIA DE GRADUAQAO Luciana Ala Alves Santana PESQLISA, FOS.GRADUAGEO, CRIAGAO E INOVAGOES ‘Ana Cristina Fimnine Soares ORV DE PLANEJAMENTO ie Carvalha Conceigso 1 POLITICAS AFRMATWAS E AQOES ESTUDANTIS Ronald Crispin Serra Barros EDITORA DA UFRB CONSELHO EDITORIAL DO RECONCAVO DA BAHIA INEAB-AECONCAVD) Ges Pires ides Pires (UFRB- Presidente) (UFBA) Cuiz Felipe de Alencastro (SORBONNE IV - Franca) Ms aguim Maciel de Carvalho (UFPE| y Priore THISE-) Pares (URA) Fa) as UNIVERSIDADE DE COIMBRA ~ PORTUGAL} CENARIOS DA SAUDE DA POPULACAO NEGRA NO BRASH. DIALOGOS E PESQUISAS Organizador Regina Marques de Souza Oliveira Organizador Coleco UNIAFRO « Antonio Liberac Cardaso Simées Pires S NTR) A SANDE PSIQUCA DA POPULAGAO NEGRA Isidinne Baptista Nogueira “ser negro’ corresponde a uma categoria incluf igo social que se expressa dentro de um campo etnossema ante “cor negra” encerra varios significados. O signo “negro” remete nao 56 a posigoes es, mas também a caracteristicas biolégicas supostamente aquém do valor das propriedades bioldgicas atribuidas aos brancos. Seo que constitui o sujeito é 0 olhar do outro, como fica o negro que se confronta com o olhar do outro, que mostra reconhecer nele o significado que a pele negra traz enquanto significante? E evidentemente confuso esse processo psicolégico da ordem do incons- ciente pelo qual os negros passam; ser sujeito no outro significa ndo ser real do seu préprio corpo, que deve ser negado para que se possa ser o outro. Pode haver algo mais complexo do que ser portador de um corpo negro, marcado pelos significados a ele associados? ‘Transportados para o Brasil, ne segunda metade do século XVI, os negros provenientes de varias regiées da Africa, falando, portanto, diferentes lin- guas, séo enviados ao trabalho escravo nas fazendas, Por mais de trés séculos, as principais atividades econémicas marcantes brasileiras basearam-se no trabalho do negro escravizado. A historiografia oficial nos conta que a substitui¢do do braco escravo in- digena pelo do negro se deu por este apresentar maior resisténcia e por ser mais décil. O que essa historiografia néo nos conta é que os negros resisti violenta e sistematicamente & escravidéo. Entre escravizados e mortos a Africa perdeu setenta milhées de pessoas do século KV ao XIX (ALENCAR 2001, p.24). Evidentemente, era mais facil submeter alguém a escravidao num meio geogréfico e cultural desconhecido, Capturado no continente e transportado ja na condicéo de escravo, sofrendo todos os horrores, o negro era, assim, *preparado” para ser escravo; o tréfico vergave-Ihe fisica e moralmente. ‘A distribuicdo dos negros era feita de maneira tal que num mesmo am- biente de trabalho eram reunidos negros com linguas, culturas, tradigées e religiGes diversas, dificultando a comunicacao entre os semelhantes. A Vv wrago era uma consequéncia normal entre culturas diferentes, obri- gadas a conviver. Perderam progressivemente as identidades originais, mas, esse processo de transculturacéo, surgiu nova identidade negra, resultado tanto da transculturagio, como da existéncis ecriagao de novas Formas ée Da perspectiva da psicandlise, a identidade ¢ de especial importancia, esce termo designa um processo psicolégico central, realizado ativamente pela parte inconsciente do ego, pelo qual o sujeito se constitui e se transforma, assimilando ou se apy ido, parcial ou totalmente, dos aspectos atri ou tragos das pessoas mais intimas que o ceream. (ZIMERMAN, 2001} Raquisicdo de um sentimento de entidade coeso © harmonioso resulta doreconhecimento e da elaboracéo das distintas identificacdes parciais que. desde os primérdios de seu desenvolvimento, foram se incorporando ao sujeito pela introjecio do cédiigo de valores dos pais e da sociedade. Esse processo complica-se na medida em que cada um dos pais mode- ladores das identificacées do filho, por sua vez, também esté identificado com os aspectos parciais ou totais dos seus respectivos pais, num importante -vezes, atravessa sucessivas geracies s tres niveis RMAN, op. cit 5 com 05 pais, permite & crience 2 como um objeto de amor, entéo sad. A transformagao do estado de rigem na confianca bésica, permitindo ual agra ea social (i Dessa forma, as experiéncias pos: construir a crenca de que, se ela é ¥! {estaveis, coerentes, consistentes e com capactdade de continente), 4 dificuldade de formar um sentimento de identidade estaval” *sujeito MER- ppapeis e os lugares que ele ocupa nos vineulos grupais e socials, o que e aser e de como se sente visto pelos demais, (ZIMERMAN, Ou soja, esse processo de identificacao fice comprometido porque io em péssimas condic6es nas senzalas, brutalizados ¢ animalizados am destituidos da sua condicéo de humanos; justificando assim as quando da promulgacao da “Lei Aurea’ continuaram, porém, exeluides, despossuidos. Os abolicionistas most grande indig fades, sem 18 condicées para seu auto-sustento e sem trabalho no campo, que comecava entéo a ser feito pelos imigrantes que eram remunerados, Dadas suas condigées de vida, os negros sao comparados a animais e vvistos como incompetentes, preguigosos e indolentes, quando comparados 2cs ‘europeus que pera cé vinham para trabalhar; restava aos negros 0 trabalho doméstico, situacdo que perpetuava a imagem anterior em que o negro, tal como uma besta fera domesticadz, trabalha om troca de racéo. Embora juridicamente capazes de ocupar um espago na 5 ; negros eram, de fato, dela excluidos, ¢ impedidos de desfrutarem de qualquer boneficio social, Foram marginalizados, estigmatizados, marcados pela que os diferenciava e discriminados por tudo quanto essa marca pudesse representar, “Como qualquer outra reatidade do mundo, o corpo humana é s mente concebido” (RODRIGUES, 1983, p. 44). 0 corpo humano para seu cardter bic é afetado pela religiéo, grupo familiar, classe, cul e outras intervencSes sociais. Assim cumpre uma funcao ideclégica, isto 4 a aparéncia funciona como garantia ou nao da intogridade de uma pessoa, em termos de grau de proximidade ou de afastamento em relagéo aa con- junto de atributos que caracterizam a imagem dos individuos em termos do espectro das tipificagdes. E assim que, em funcdo das aparéncias (atributos iisicos), alguém é considerado como ui individuo capaz ou nfo de cometer uma transgressio atributes morais), por exemplo, Q corpo funciona como marca dos valores sociais e nele a sociedade fixa seus sentidos ¢ valores. Socialmente o corpo é um signo: a utilidade de corpo come sistema de expressao nao tem limites. (RODRIGUES, op. cit. p. 97; O negro, no entanto, é aquele que traz a marca do “corpo negro", que expressa, escatologicamente, o repertério do execravel que a cultura afaste ura, negro trava uma luta infinde na tentativa de se configurar como individuo no reconhecimenta de um “nds” Seu corpo negro, socialmente concebido como representando o que corres- ponde ao excesso, a0 que # outzo, ao que extravasa, significa para o negro, & marca que, a priori, o exclui dos atributes morais e intelectuais associados a0 outro do negro, ao branco; 0 negro vive cotidianamente a experiéncia de que sua aparéncia pée em risco sua imagem de integridade essa dimensio singular que torna a condicao de negro imposstvel de ser simetrizada a condisSo de branco, que produz para o negro a experiéncia de sofrer 0 préprio corpo. Esse experiéncla, portanto, a meu ver, iré determinar formas particulares na constituicéo da dimenséo psiquica, envolvendo certas configuracdes de sentido, que caracterizam, para onegro, a condicao subjetiva Os negros néo eram persona, néo eram cidadaos nascidos livres, como pessoas juridicas; na condicao de escravos, eram uma pega, vendidos no mer’ cado, ndo cram pessoas; seus estatuto era 0 de objeto, nao 0 de sujeito © corpo negro, historicamente destituido de sua condic&o humana, coisi- ficado, alimentava toda sorte de perversidades, inclusive sexuais, praticadas a a Ee ee pelos seus senhores. As mulheres negras eram abusadas sexualmente, deseja~ das para satisfazer 0 apetite sexual dos senhores. Etam por eles repudiadas, pois as viam como criaturas repulsivas e descontroladas sexualmente, Nao podiam, pela condicdo de mercadoria, se vincularem afetivamente, apenas funcionavam como maquinas reprodutoras; seus filhos nao Ihes pertenciam, quase sempre eram vendidos, o que era determinado pelo interesse do senhor. Tinham como possibilidade de exercer sua funcdo materna, quase sempre enquanto amas de leite do filho do senhor. Isto é, a mulher negra é histo- ricamente desinvestida de qualquer possibilidade que a permitisse exercer sua femninilidade. ‘Toda essa heranca deixou pouca escolha & mulher negra que, como mos" tram alguns estudos sociol6gicos, quando lhe foi permitido ficar com os seus filhos, no periodo do ventre livre (fase pré-abolicéo), foram elas que funciona- ram como polo organizador da famflia, exercendo ao mesmo tempo a funcéo materna e paterna, portanto, mulheres fortes, que funcionavam em regime de matriarcado. Os homens, destituidos de sua autoridade na condicao de escravos, eram reprodutores, nao tinham um nome do qual pudessem trans- mitir a uma descendéncia, totalmente destituidos de seu histdrico pessoal, de sua genealogia; seu nome néo o identificava como um descendente, néo constituia um sentimento de linhagem, fator determinante no processo de identificagéo. Tao pouco estabelecia uma relagéo geografica, era dificil para c negro saber de que regiao da Africa era egresso, De onde veio, ou quais caracteristicas fisicas determinavam o pertencimento esta ou aquela tribo, esta ou aquela regiao. ica relagéo que a crianca negra estabelece com a ideia de familia 6 sincrénica, isto €, contemporanea. Hla néo adquire uma nocéo de antepas- sados, nao constréi uma dimensao diacrdnica com a historia familiar, isto é, ela desconhece quem foram seus antepassados. Hé uma ruptura na histéria familiar dos negros, nao hé uma percepeéo de continuidade de heranca fami- liar que possa preencher, imaginariamente, o buraco provocado pela ruptura. Expatriado, sem referéncias pessoais, apartado de sua lingua e alheio aos costumes locais, o negro se via despossuito de sua humanizagéo que somente as estruturas do sistema cultural garantem, um sentimento de pertencimento uma linhagem, fator determinante no processo de identificacdo. O que néo 0s identifica transgeracionalmente com uma origem: o nome dos negros os identificava como pertencentes a este ou aquele senhor, apenas uma marca distintiva de objeto. ‘Ainda que hoje a mulher negra encontre outras condicées de vida, néo 6 facil livrar-se desse lugar, principalmente no que se refere a sexualidade. Mesmo que aparentemente mais assimilados na cultura brasileira, os ne~ gros, em particular a mulher negra, se vém aprisionados em alguns lugares: a sambista, a mulata, a doméstica... heranca desse passado histérico. E re- cente, “historicamente” falando, para a mulher negra, se colocar no lugar de mie, visto que ela era antes, ama de leite, amamentava e cuidava do filho do 20 ceNAAIOg CASAIDE DA FORA senhor; a possibilidade legal de parceria amorosa. casamento, é um advento novo, pois era comum que as familias negras nao se constituissem como é 0 habitual, culturalmente falando, devido a essa heranca historica; o homem negro no podia oficializar o seu vinculo afetivo porque, ao fazé-lo, podia a qualquer momento ser vendido ou sua mulher servir ao senor sexualmente, sem que ele nada pudesse fazer; ndo era dono nem de si mesmo, que dir de mulher e filhos. Nao se casavam, se reproduziam. Sao peculiaridades que, a ‘meu ver, tém implicagées no modo de funcionar a nocéo recente de familia para os negros; ainda hoje encontramos negros que tem sé 0 nome da mae, Acredito que néo se esgota aqui a possibilidade de entender de que maneira se deu e vai-se dando esse processo pelo qual passa 0 corpo com relacao & feminilidade e a masculinidade dos negros, tendo como pano de fundo todo esse passado historico que atravessa, sem sombra de divida, a constituicéo psiquica dos negros. Proponho nesse texto a possibilidade de pensarmos para além da singu- laridade de cada sujeito, como é o habitual na psicandlise, e podermos tambem entremear essas questdes que aparentemente seriam exteriores ao processo de assumir-se sujeito, mas que na verdade faz parte de tudo 0 que é herdado culturalmente e que esta inserido no que entendemos também como proceso de estruturacéo do sujeito. Negar e anular o préprio corpo nos torna.o sujeito “outro" visto que sé existimos como sujeito em relaco ao outro, Aalteridade; portanto, ser sujeito 6 ser outro e ser o outro é néo ser o proprio sujeito, no caso do negro. O que somos nés, os negros? Ser branco significa uma condicao genérica: ser branco constitui o ele- mento néo marcado, o neutro da humanidade. Nasce em nds, portanto, odesejo de “brancura’. A brancura vista da perspectiva do olhar do negro oprimido, ‘transcende qualquer falha do branco; a brancura se contrapée ao mito negro A ideologia racial, portanto, se funda e se estrutura na condicéo universal € essencial da brancura, como tinica via possivel de acesso ao mundo. Embora.o negro saiba que sua condicéo éo resultado das atitudes racis- tas e irracionais dos brancos, o ideal de brancura permanece. A “brancura’ passa a ser parametro de pureza artistica, nobreza estética, majestade moral, sabedoria cientifica, etc. Assim o branco encarna todas as virtudes, a mani- festacéo da razo, do espirito e das ideias: a cultura, a civilizacéo, isto é, 2 propria *humanidade” Todo esse complicado processo psicolégico que se desenrola no incons- ciente dos negros, guardadas as devidas propor¢ées, leva o negro frente a ‘um processo muito préximo do que se conhece por despersonalizacéo, que € vivenciado de uma forma crénica como consequéncia da discriminacao e que estranhamente, nao o leva as suas tiltimas consequéncias, ou seja, & loucura. ‘Ainda que seja muito comum para a psiquiatria a alta quantidade de negros que sofrem de despersonalizacao, em sua maioria os negros ainda que arquem com as consequencias psicolégicas do racismo, mantém sua integridade psiquica. A SAUDE PSIQUICA BA POPUL ena 21 O sujeito, assim fragilizado, envergonhado de si, se vé exposto a uma situagdo em que nada separa o real do imagindrio, as fantasias esto simul taneamente dentro e fora E justamente porque o racismo nao se formula explicitamente, mas antes sobrevive num devir intermindvel enquanto uma possibilidade virtual, que o terror de possiveis ataques (de qualquer natureza, desde fisica a psiquica) por parte dos brancos, cria no negro uma angistia que se fixa na realidade exterior e se impdem inexoravelmente. Ainda que langando mao de um arsenal racional légico o negro possa desconsiderar tais ameacas racistas que parecem grotescas, absurdas, totalmente incabiveis legalmente — jé que criminosas, em termos de “direitos civis" — € mais forte que ele: o negro acaba sempre por sucumbir a todo um processo inconsciente que, alheio & sua vontade entrard em acéo. Ossignificante “cor negra’ esté inserido, evidente, num arranjo semantico, politice, econémico e histérico; como em um ‘apartheid psfquico’, uma forma de racismo, parafraseando o sistema politico que se instituiu e funciona de modo eficiente na psique do negro, por separar ou apartar, segundo a cor € araca. Refiro-me a0 “apartheid psiquico' porque, felizmente, nosso sistema politico nao nos separa socialmente” entre brancos e negros. Oracismo é crime ‘ho Brasil. Nos, os negros, vivemos uma segregacao silenciosa, oque os brancos, classificavam como sentimento persecutério, uma vez que o preconceito ea discriminacio eram negados; o Brasil di o é um pais racista’ Sentia- ‘mos uma perseguicéo sem razéo. Hoje, felizmente, tem se transformado; ha ‘um interesse maior da comunidade cientifica e da sociedade, de olhar para a ctueldade de um sistema que se diz "nao racista’, mas que ainda preserva e mantém atitudes racistas. Analiticamente identificados com o agressor internalizado, a presenca fisica do agressor néo se faz necesséria, o préprio negro se auto-rejeita Do lugar da analista negra/paciente negro, estou sempre atenta para os sentidos de que a cor negra/corpo negro tem como consequéncia no in- consciente; é preciso atentar sobre essas questdes que, inevitavelmente atravessam essa questo e que se presentificam através do meu corpo, um corpo negro. Nessa ténue fronteira da sensibilidade humana fica omedo de me expor como personagem do meu préprio drama pessoal, deixando que me escape a sensibilidade do analista que trabalho com os sintomas que falam do paciente, mas também dele (analista) que escuta Nés, os negros, num eterno devir de alforriados (& mereé do desejo do outro), seguimos cativos da condicao de escravos, num terror interno face @ eficiéneia do terror da ideologia racista, que subsiste ainda hoje no Brasil. Nunca explicitado claramente, esse terror covarde escondido atras do mito da democracia racial que, de maneira eficiente e eficaz, transgeracionalmen- te, tem mantido as geracées no lugar de conforto, supremacia e dominio da populacéo branca desse pais. 22, CENAFIOS OA GALI DA POPULAGAO NEGRA NO BR Nao nos cabe mais sermos cordatos e cordiais com um lugar socialmente marcado onde, por geracées, somos persistentemente identificados. E preciso que busquemos formas de fortalecermos nossas estruturas psfquicas. Que os profissionais da 4rea da psicologia, brancos e negros, se deem conta ‘de que as estruturas de poder e dominacao no séo alheias &s psicandlises ou terapias praticadas nos consultérios”. Penso que cabe aos psicanalistas e aos terapeutas, aos cidadaos, seres politicos e ideolégicos, investidos de crenas, determinacées e convicgées, estarem alertas para suas escutas ese questionarem acerca de como vivem sua inexorével inser¢éo na sociedade brasileira, atravessados que somos por tudo quanto nos implica como uma aco, um povo singular, no modo de fazer histéria, olhar a histéria e viver ahistéria. NEGBA 23

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