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O que engendra Athos Bulcao EvANDRO SALLES uando pensamos uma obra, insinu- am-se simultaneamente dois cami- nhos: 0 poético e o analitico. No primeiro, abdicamos de nossa propria maneira de estruturar cultural e racional- mente o significado da criagao, entregando- nos & obra e ao seu arrebatamento, No segun- do, impomos essa maneira egocéntrica de estruturar ao sentido da obra. Em sua frui- fo, a critica opta, as vezes, por uma aparente alternancia emocional, de acordo com suas necessidades estratégicas, intercalando segmentos de uma ou outra opcao. Assim, um critico se emociona e imediatamente ex- plica porque se emocionou ou, ao contrario, interpreta e automaticamente se emociona com a interpretagao. Outras vezes, a critica é “gravitacional” e tende a acentuar ou exclusivizar uma das opgdes ou um dos mo- delos construidos circunstancialmente que caracterizam seu estilo, imputando obra sua tendéncia Entretanto, existem obras que problema- tizam esse sistema da critica. Exemplos his- tricos e definitivos sao a obra de Duchamp, em uma diregao, e a de Malévitch ou Mon- drian, em outra So obras que possuem um paralelismo na maneira pela qual se oferecem a aborda- gem do pensamento; a medida que penetra mos 0 enigma da obra através de uma das chaves que ela oferece, vemos nossa expec- tativa linear de anilise diluir-se ante 4 vari- agio brusca de significacao. Se a abordarmos do ponto de vista formal, este se obscurece, delineando-se um universo metafisico; se do ponto de vista metafisico, delinea-se, repen- tinamente, um universo formal. So obras que nao permitem uma apro- ximacio unilateral, impondo ao espectador um desmembramento de sua logica seja ela qual for. (A tinica légica nao desmembravel 2, por enquanto, indestrutivel é a légica do mercado que engoliu toda a altivez orgulho- sa das vanguardas, transformando tudo em mercadoria indiferenciada.) Além das ques- tes formais, um observador que olha o va- zio de um quadrado branco sobre outro quadrado branco perde, subitamente, sua capacidade de projecao e de inferéncia de significados. £ obrigado, por instante que seja, a observar o seu proprio vazio (expres- so por uma incapacidade de projecao) e ser observado pela obra numa formidavel transformagio dialética. Provoca-se um “es- vaziamento” interior do observador através de qualquer ponto que se escolha para observacao, como se sujeito e objeto se fundissem através de um vazio que os en- globa e unifica we ‘Aobra, inviabilizando cada passo da ana- lise, cria, por assim dizer, uma negagio inte- gral do conceito em fungao de uma abran- gencia mental completa e absoluta. ‘Accritica deveria ter sido desintegrada por este sistema mas salvou-se pela mitifi- cagao da obra, tornando-a inacessivel a0 envolvé-la em discurso, de modo que quan- do o espectador “culturalizado” a v8, vé ape- nas 0 discurso com que a obra foi vestida. (O outro fator desta contradigao é 0 pré- prio mercado, que usa a critica para eleger a ‘obra como “obra de arte”, uma entidade abs- trata, esvaziando sua forca de transformacao do pensamento. Entretanto, além de penetrar as contra- digdes latentes nas relagées artista-obra- consumidor, 0 trabalho de construir a obra implica também voltar-se para a direcao oposta: o artista torna-se leitor de sua pro- pria obra e esta reveladora de seu universo interior, submetido ao obscurecimento oce- nico: ao inconsciente. Faca de dois gumes, este “viver artistico” serve tanto para justificar as concessies co: merciais em nome de uma suposta “liberda- de criadora” como para salvar os calculistas do formalismo absoluto Nao ha concretista ortodoxo que agiien- te incélume, no tempo, as pressdes visce- rais de seu inconsciente, exceto aqueles que se refugiam na recriagao maquinal de suas formulas. Da mesma maneira, nao ha expressionis- ta, realista etc. que suporte a sistematizagao de seu estilo. A imobilidade do método, do estilo, torna-se repressao, Cada obra encer- raem si seu proprio tempo, o tempo de sua criagdo. O passado, porém, é irrecorrivel, im: prestavel para o fluxo do presente Ao contrario do que desejariam os parti darios de cada tendéncia, a arte contem poranea € pluridirecional e abre-se tanto para obras monumentais como a de Picasso, como para travestimentos fugazes como os de Rose Selavy; tanto para reflexdes grandi- cosas como as do grande vidro como para gestos intimos do apagar com borracha 0 desenho do mestre admirado. Manipulador, o mercado elege a cada momento uma direcao faz parecer que exis: te unidade no pedaco eleito, faz parecer que existe transformacao radical como se esta fosse possivel sem uma transformacao radi- cal da sociedade A historia tera de ser recontada com 0 instrumental que o distanciamento no tem- po nos oferece. O palpavel é a perplexidade, a simultaneidade, a interdependéncia, a fragmentagao dos gestos se superpondo, O artista ao fazer a obra submete sua cons- ciéncia a um transformismo vertiginoso. Ao mesmo tempo que constréi e organiza a lin- guagem, revela o espaco impalpavel de onde cla provém; ao mesmo tempo que expressa, tevela a si proprio, torna-se seu proprio des- cobridor, fundindo-se como mundo no obser- var de si mesmo, abandonando-se na obra, esvaziando-se. Em realidade, a obra habita o exterior de sua concretude na mutacao ver- tiginosa que gera em sua volta. Athos Bulcdo, de dentro da trangiiilida- de que gera a compreensao do vertiginoso, trabalha em sua obra atual a interagao do método e da vertigem, a justaposigao da lin- guagem e do caos. Atravessando em sua trajetoria a expe: vigncia, rara para os artistas desse século, de ver sua obra envolvende todo o corpo de uma cidade, Brasilia, de vé-la atuando soct- almente de forma profunda num momento es. tética e ideologicamente, os anseios de uma vanguarda, Athos segura agora simultane: em que essa obra buscava representar, amente a outra diregao que impée ao artis- ta 9 fazer artistico: o aprisionar-se pelo po- der reveladcr da propria obra. © método de autoconhecimento é ex- posto em suas duas vertentes: a conversio primorose dos elementos constitutivos da pintura, basicamente as relacées de cor, em linguagem, e a conversao ou cristalizagao dessa linguagem pictural na forma de sim- bolos desconjuntivos, desagregadores, di abélicos (a estrela de cinco pontas inverti- da), primais e viscerais (espécie de intesti nos-espirais-galéxias), simbolos e formas inconscientes nao organizaveis mas, a0 con- trario, desorganizadores. Na apolinea e aprimoradissima organi zagao pictural, emerge a dionisiaca e suave Ioucura de Athos, quero dizer, do Athos cés- mico com suas visceras de transformagao de matéria, de desejo e de tempo Na organizagao apolinea da pintura, que 1epousa sobre o conhecimento da cor renas- centista € da absorgao moderna da cor oriental, ou seja, no profundo conhecimento da tradicao ocidental de construgao das re. goes de cor (como poucos artistas brasilei- 10s possuem), na tradigo construtiva que az consigo uma busca da fungao social para a arte, irrompe um desejo de entropia da pré pria pintura, do ato organizacional, que por sua vez advém do proprio sistema de criagdo que obriga ocriador a langar conhecimento de si mesmo, sua fragmenta 1a obra seu des: Gao, sua revelacao de vazio e seu embriagar ou desesperar neste seu nada Esta interagao de opostos é que consti- tui a poética da obra atual de Athos pode ser notada nao apenas em sua pintura, onde é clara, mas também em suas obras recen- tes na arquitetura, que foram invadidas vi- olentamente pela cor. Cor que praticam ente inexistia no passado onde os jogos de luz e sombra eram predominantes. A cor nestas obras cumpre o papel da represen- tacao dionisiaca. Mas é na pintura que sua pottica se faz teveladora, é na pintura que encontra espa- G0 para a pratica do que chamariamos de in- troversao do método criador, ou seja, onde a pratica além do conhecimento 0 autoconhe- cimento, além do expressar o decifrar, além do compor o decompor, além da presenga a auséncia de referenciais. De maneira diferente, este mergulho também problematiza a abordagem critica, pois ao nos oferecer uma pratica dialética nos oferece tambérn seu autodesconheci- mento e a busca interminavel de constru- Gio e destruigao. Seu método nao-linear, com pontos de vista diferentes e simulta- neos, obriga o olhar a fragmentar-se em in- tengdes dispares apesar de unido pelo ob- jeto. Oferece-nos, portanto, seu proprio método de construgao para que com ele construamos nossa abordagem. Pois como compreender 0 incompreensivel sem habita-lo e como habité-lo sem abandonar- se, sem desconstruir-se? Nesse momento em que, com violencia inédita, o circuito de arte impoe um achata- mento dos processos criativos € criticos aos niveis do publicitario, obras como a de Athos Bulcdo séo um exemplo generoso e impor- tante de integridade e profundidade Critica de Arte no Brasil: Tematicas Contemporaneas Copyrigth © 2006, by Fundacao Nacional de Artes - Funarte Giéria Ferreira (Organizagao) Fernanda Lopes e Izabela Pucu (Pesquisadoras colaboradoras) Todos os direitos reservados & Fundagdo Nacional de Artes ~ Funarte Rua da Imprensa, 16 - Centro - 20030-120 ~ Rio de Janeiro ~ Ru Tel: (21) 2279-8053 / (21) 2262-8070 numep @ funarte.gov.br Proibida a reprodugao no todo ou em parte, através de quaisquer meios. 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Inclul indice | ISBN 65-7507-079-7 | 4. chica de ane - Gras. 2, Ane - Aprecapdo - Brasil 1 Ferra, lon | | | 0701.18

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