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FRAGOSO, Suely . Redes Urbanas e Redes Digitais: considerações sobre a governança eletrônica.

In: Ângela Prysthon;


Paulo Cunha. (Org.). Ecos urbanos: a cidade e suas articulações midiáticas. 1 ed. Porto Alegrte: Sulina, 2008

Redes Urbanas e Redes Digitais: considerações sobre a governança eletrônica


Suely Fragoso
Unisinos
<suely@unisinos.br>

Este texto discute o potencial da internet no fomento de formas


participativas de gestão urbana. Para isso, aspectos de natureza técnica,
estrutural e contextual da rede global de comunicação são contrapostos
às necessidades de estratégias de aplicação das tecnologias digitais à
reestruturação da relação entre o Estado e a sociedade civil. A
argumentação é organizada pelo reconhecimento de três níveis de ação,
aqui associados às noções de governo eletrônico, democracia eletrônica
e governança eletrônica.

1. Introdução

O século XX marcou a transformação do Brasil num país predominantemente


urbano: entre 1940 e 2000, passou-se de 31,3% para 81,2% da população brasileira
vivendo em cidades (IBGE, 2007). Ao mesmo tempo, a população total do país
quadruplicou e, em todo o planeta, as dinâmicas sociais tornaram-se mais complexas e
mais aceleradas. Com isso, aumentaram também a escala e a intensidade dos problemas
urbanos.
No cenário de uma economia informacional global, o futuro de cada cidade
depende de sua capacidade de tornar-se competitiva em comparação a outros pólos
urbanos, nacionais e internacionais (Castells, 1999, p. 406-407), o que está além das
capacidades orçamentárias de boa parte dos municípios brasileiros. Embora a situação
seja mais aguda nas pequenas cidades (Wzorek, Ramos e Rezende, 2005), muitas
metrópoles também se encontram encalacradas em um círculo vicioso de carência de
serviços públicos essenciais, baixos níveis de escolaridade, altos índices de desemprego e
orçamento municipal insuficiente. Esse quadro inviabiliza a atração de investimentos do
capital privado, desenhando um círculo vicioso cuja superação tende a depender de

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indução externa, muitas vezes a fundo perdido – ou seja, é preciso contar com o apoio
financeiro do Estado.
O Estado encontra-se, no entanto, diante de sua própria crise – uma crise que
extrapola a esfera das cidades e remonta ao esgotamento do modelo Keynesiano de
crescimento capitalista nos anos 19701. Ao longo dos anos 1980 e 1990, tanto o setor
produtivo quando o poder público viram-se às voltas com processos de reestruturação
caracterizados por um conjunto de medidas usualmente identificado com a globalização e
o neo-liberalismo (em que pesem as muitas imprecisões na aplicação desses conceitos),
que Frey (2001, p. 32) sintetiza em três frentes “(1) as políticas de austeridade
implementadas pelos Estados-nação, envolvendo desregulamentação, estratégias de
privatização e redução de serviços públicos, (2) a retração do Estado da esfera
econômica, reduzindo as possibilidades de intervenção estatal, e (3) um aumento da
dependência do setor público das decisões tomadas por agentes econômicos privados”.
No final da primeira década dos anos 2000, é evidente que os resultados desse programa
de ajuste estrutural estão muito aquém do esperado:
Depois de um quarto de século sob a agenda da ‘Reforma do Estado’, de um
modo geral os resultados deixam muito a desejar. Na América Latina e na África
(...) continua precária a habilidade do Estado para prover os serviços públicos
básicos e os bens coletivos dos quais dependem os cidadãos comuns. Em muitos
casos, a capacidade de provisão de bens coletivos está se deteriorando (Evans,
2002).
Resta uma crise de governabilidade que parece vinculada ao esgotamento da
própria noção de Estado Moderno, ou pelo menos à sua tradução em um modelo de
administração pública cuja estrutura é rigidamente hierarquizada e cuja operação é
baseada na diferenciação clara entre as atribuições políticas e as técnicas e na
normatização. Nessa configuração, as tensões entre as esferas político-administrativa e
técnico-profissional favorecem uma polarização interna que acaba por alijar
definitivamente a sociedade civil dos processos decisórios.

1
Para um desenvolvimento do raciocínio por trás desta afirmação, ver por exemplo Castells, 1999.

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A artificialidade de uma concepção que define responsabilidades e atribuições


independentes e hierarquizadas ao Estado, ao corpo técnico, à iniciativa privada e à
sociedade civil ignora que o espaço urbano é resultado de uma dinâmica complexa e
contínua, que envolve toda sorte de atores. Já que não se pode esperar que a cidade se
ajuste à rigorosa divisão e estratificação dos diferentes agentes na criação e apropriação
do espaço urbano, é preciso integrá-los em um novo arranjo, mais compatível com a
realidade dos processos. Vêm nessa direção as propostas de aumento da participação dos
cidadãos na formulação e implementação de políticas públicas, a chamada governança
democrática2.
O movimento em direção a formas participativas de gestão requer alguns
deslocamentos importantes na forma de conceber as estruturas governamentais.
Fundamentalmente, trata-se de abandonar a idéia de que o bom exercício do poder
público depende de uma estruturação centralizada e rigidamente hierarquizada, para
abraçar a proposta de um formato policêntrico e horizontalizado de organização. A
convivência com as tecnologias digitais de comunicação tem sido um importante
facilitador da aceitação dessa mudança, já que a internet tem na estrutura de rede sua
característica mais proeminente – para o senso comum, trata-se inclusive de uma rede
horizontal, igualitária e essencialmente democrática, na qual todos os nós têm a mesma
importância3. Por causa disso, a convivência com a internet – em especial com a web, que
é sua faceta mais conhecida4 – ajuda a aceitar a viabilidade de hierarquias não verticais.
Mais ainda, a experiência com uma rede na qual ‘todos podem publicar o que quiserem, a

2
Apesar de diferenciar governança – a capacidade operacional do governo – de governabilidade –
dimensão política da legitimidade do governo, este texto adota a perspectiva de que ambas são esferas
indissociáveis para a superação da crise do Estado (Ribeiro, 2005, p. 75).
3
Essa concepção é equivocada e será problematizada mais adiante, o que não compromete o valor da
popularização da noção de estrutura de rede, que é a questão em pauta a esta altura do texto.
4
A indiferenciação entre internet e web é um erro comum. Internet é o nome da rede mundial de
computadores que transmitem dados uns para os outros graças a um protocolo padrão (Internet Protocol,
ou IP). A internet teve início em 1969 e dá suporte a uma série de aplicações, inclusive a World Wide Web,
ou simplesmente web, que foi criada em 1989 e é um conjunto de documentos interconectados por
hiperlinks e identificados por endereços denominados Uniform Resource Locators, ou URLs.

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qualquer momento’5 e que, apesar disso, não descamba para a entropia, ajuda a
compreender o tipo de equilíbrio possível nos sistemas dinâmicos e abre caminho para a
percepção da existência dos chamados processos emergentes, em que a ordem é instituída
‘de baixo para cima’. Essa dinâmica é fundamental para a superação do receio de que o
aumento do número de atores que influenciam os processos decisórios da gestão urbana
implique o desmanche do Estado em favor de uma multiplicidade de organizações pouco
preparadas e com interesses conflitantes entre si, o que conduziria ainda mais
rapidamente ao caos urbano.

2. Ações em Redes Digitais

Sem demérito do impulso que a popularização da internet representou para a


generalização da compreensão das estruturas em rede e da resiliência das organizações
horizontalizadas, é preciso destacar que existem muitas discrepâncias entre a realidade da
rede digital de comunicação e as características que o senso comum lhe atribui. Nem
todas as características da internet – e da web – favorecem o fomento da reestruturação
da gestão pública no sentido do desenvolvimento da democracia participativa. Não se
justifica, portanto, a confiança, demasiadamente comum, de que a prestação de serviços
públicos e a disponibilização de informações online conduzirá naturalmente ao
aprimoramento dos processos democráticos e ao incremento da participação da sociedade
civil na gestão pública.
Este texto se propõe a discutir como e até que ponto as redes digitais de
comunicação podem ajudar no processo de reestruturação do Estado e apoiar o
incremento da participação popular nos processos de decisão. Para tanto, as estratégias
típicas da utilização da internet para o fomento da democracia participativa foram
organizadas conforme três patamares evolutivos: (a) prestação de serviços, (b)
disponibilização de informação e (c) fomento da cidadania. Grosso modo, é possível
associar esses níveis de ação às noções de governo eletrônico, democracia eletrônica e
5
Também essa presunção será problematizada ao longo do texto.

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governança eletrônica, respectivamente6. Ao confrontar as necessidades de cada etapa


com a configuração técnica, estrutural e aspectos contextuais da internet, espera-se
perceber se e como as características da rede digital operam contra e a favor da
implementação das soluções pretendidas.

2.1. Governo Eletrônico


Aqui se denomina ‘governo eletrônico’ à prestação de serviços públicos online.
Trata-se de um conjunto de estratégias que pretendem ampliar o acesso e tornar mais
eficientes os serviços públicos e, ao mesmo tempo, reduzir os custos operacionais da
máquina estatal. Em que pese o inegável mérito da intenção de disponibilizar serviços de
melhor qualidade com menor custo, esse nível de ação não implica mudanças estruturais
nos modos de governar: a menos que haja desdobramentos, é o mesmo governo, em
versão online.
Algumas características técnicas da internet são muito favoráveis ao governo
eletrônico: antes de mais nada, trata-se de um banco de dados infinitamente extensível, de
acesso fácil e imediato e permanentemente disponível. O grande diferencial em relação às
mídias anteriores é a combinação de acesso imediato e disponibilidade contínua.
Separadamente, o acesso instantâneo (dito ‘em tempo real’) corresponde à transmissão
‘ao vivo’ que já era praticada no rádio e na TV. A diferença é que naqueles meios é o
emissor quem determina quando a informação é disponibilizada (‘vai ao ar’), enquanto na
web o material permanece sempre disponível, para ser acessado quando convenha7. É

6
A adoção dessas expressões com esses significados específicos é propensa a causar polêmica. No
conjunto, a literatura sugere uma progressão afinada com essas descrições, de modo que o ‘governo
eletrônico’ é tipicamente o primeiro passo para a ‘democracia eletrônica’, e ambos são condições
fundamentais – mas não suficientes – para viabilizar a ‘governança eletrônica’. Em geral, os autores
preferem enfatizar as relações entre os três conceitos em detrimento de sua diferenciação (por exemplo
Ruediger, 2003 e Wzorek, Ramos e Rezende, 2005). Mesmo enquanto estratégia didática, como é o caso
neste texto, essas categorias devem ser pensadas em gradiente, já que é praticamente impossível diferenciar
os limites de cada uma em relação às demais.
7
Por isso se diz que a web é uma pull technology (literalmente, ‘tecnologia de puxar’), em oposição às
mídias anteriores, que seriam push technologies (‘tecnologias que empurram’). Vale notar que várias
aplicações online, por exemplo mensageiros instantâneos e email, funcionam no modo push.

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evidente que esse modo de distribuição só é possível graças à interatividade, ou seja, à


existência de um canal de dupla mão entre o usuário e o sistema8.
Outras características técnicas da internet são desfavoráveis à universalização do
acesso a serviços públicos melhores e com menor custo, sobretudo a dependência da
disponibilidade de uma infra-estrutura de telecomunicações cara, cuja capacidade modula
a qualidade do acesso possível, restringe o alcance das ações de governo eletrônico.
Mesmo o acesso básico à internet depende de investimentos cujo custo está longe de ser
desprezível e que tendem a ser direcionados para as regiões mais ricas tanto quando
depende do capital privado (Afonso, 2007) como quando advém do dinheiro público
(Wzorek, Ramos e Rezende, 2005). Não surpreende, portanto, que os indicadores de
acesso à internet sejam proporcionais à riqueza das regiões nas várias escalas de
observação, como indicam os Gráficos 1, 2 e 3.

Gráfico 1: Porcentagem da população mundial com acesso à internet, por região.


(Internet Usage Statistics, 2007).

8
Nunca é demais repetir que o fato de que a web e outras tecnologias digitais permitem interatividade
(interação com o sistema) não significa que os meios anteriores (como o jornal, o rádio ou a TV) não sejam
interativos. Para aprofundamento, ver por exemplo Fragoso, 2001.

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Gráfico 2: Porcentagem da população da América Latina com acesso à internet, por país
(Internet Usage Statistics, 2007).

Gráfico 3: Porcentagem da população brasileira com acesso domiciliar à internet, por


região (Comitê Gestor da Internet, 2006).

As ações de inclusão digital brasileiras são particularmente numerosas e


frequentemente bem sucedidas, de modo que a quantidade de brasileiros com acesso à

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internet aumenta consideravelmente quando se leva em conta a utilização de salas


públicas. Em 2005, a UNESCO estimava que existiam cerca de 12 mil pontos de acesso
público gratuito no país, dois anos depois o IBICT tinha registro de 17.607 mil PIDs
(IBICT, 2008). No entanto, a distribuição desses pontos de acesso mais uma vez favorece
as regiões mais ricas (Mapa 1), mesmo porque a aplicação de verbas públicas na
instalação de pontos de acesso à internet não condiz com a realidade de diversas áreas do
país, que mal dispõem de saneamento e eletricidade. Em 2007, 44% das cidades
brasileiras não tinham acesso à internet por rede telefônica – são mais de 22 milhões de
pessoas para as quais a internet só está disponível por satélite, com custos elevados e
desempenho limitado. Tratam-se dos municípios mais pobres do país, que mais
necessitam de alavancagem econômica e social (Afonso, 2007).
Finalmente, a persistência do analfabetismo, que alcança 13,3% da população
brasileira em todas as regiões (Gráfico 5) inviabiliza definitivamente a presunção de
universalidade do acesso: nenhum serviço de governo eletrônico poderá ser utilizado
pelas pessoas que não conseguem sequer ler a instrução ‘clique aqui’.

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Mapa 1: Distribuição dos pontos de acesso gratuito à internet (ONID, 2008).

2.2. Democracia Eletrônica


Quase todas as iniciativas de prestação de serviços via internet envolvem a
disponibilização de informações de utilidade pública, com tendência à ampliação da
abrangência conforme o governo eletrônico se desenvolve. Aqui associadas à noção de
democracia eletrônica, essas ações costumam ser saudadas por seu potencial para o
empoderamento dos sujeitos sociais9 e implicariam uma alteração no controle das

9
Essa interpretação, presente por exemplo em Frey, 2003; Ruediger, 2003 e Ribeiro, 2005, parte do
pressuposto de que a informação é a chave para o exercício da cidadania. A abordagem é discutida por

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informações que o poder público mobiliza para as tomadas de decisão, com impacto
transformador sobre as práticas políticas e as formas de gestão.

Gráfico 4: Porcentagem da população analfabeta com 15 anos ou mais, por região.


IBGE, 2006.

Nesse nível de ação, a qualidade do acesso aumenta muito de importância, de


modo que as condições socioeconômicas têm um peso ainda maior do que para a
prestação de serviços online. É muito diferente buscar de informação na web utilizando
banda larga ou conexão discada, em local privado ou em sala pública. Especialmente nos
locais públicos, onde costuma haver limite de tempo para a utilização e mecanismos de
controle de conteúdo, certas áreas da rede simplesmente não estão disponíveis – o que
contradiz diretamente a proposta de promover o acesso democrático à informação com
vistas ao desenvolvimento da cidadania.

exemplo Michael Schudson, Click Here for Democracy, em Jenkins e Thorburn, 2004, pp.49-60.

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O papel da alfabetidade também se intensifica quando se trata da democracia


eletrônica: a alfabetidade técnica (saber lidar suficientemente bem com o computador e
com a rede para encontrar o que procura) não basta, é preciso ser capaz de compreender a
informação encontrada, relacioná-la com o que afirmam outras fontes, interpretar os
dados e produzir inferências. Em 2007 apenas 28% dos brasileiros dispunham de
alfabetidade suficiente para isso. Entre os demais, 40% conseguiam no máximo localizar
uma informação em textos curtos e 25% só podiam fazê-lo quando se tratava de
enunciados com uma só frase (por exemplo num anúncio ou chamadas de capas de
revistas). Os demais 7% eram analfabetos (Instituto Paulo Montenegro, 2007, p. 9). Na
melhor das hipóteses, o empoderamento em prol da cidadania através da democratização
da informação via internet poderia alcançar aqueles 28% da população do país que
correspondem à elite plenamente alfabetizada.
No que diz respeito à internet e à web enquanto bancos de dados, vale para as
ações de democracia eletrônica a mesma positividade que se verificava na escala do
governo eletrônico. Tecnicamente, a disponibilidade, o acesso imediato e a imensa
capacidade de armazenamento permitem realizar consultas amplas, aprofundadas,
localizar informações de fontes diferentes, etc.
Já a estrutura de rede, contra todas as apostas do senso comum, no mais das vezes
opera contra as ações de democracia eletrônica. Isso porque, apesar de disseminada, é
errada a idéia de que as redes digitais de comunicação são descentralizadas, horizontais e
igualitárias. Embora o projeto inicial da internet visasse uma topologia distribuída
(Baran, 1977) com essas qualidades (Figura 1), tanto a internet quanto a web tornaram-se
redes policêntricas10 e hierarquizadas (Nielsen, 1997; Barabási, 2002; Anderson, 2005).

10
Tecnicamente, essa topologia de rede com muitos centros é chamada de descentralizada. Optou-se pela
expressão policêntrica ou multicentrada para evitar o entendimento – equivocado, mas muito comum – de
que uma rede descentralizada não tem centro(s).

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Figura 1: No alto, tipos de redes: centralizada, descentralizada (policêntrica), distribuída.


Embaixo à direita, mapa dos percursos de uma intranet (Lumeta, 2001, reproduzido de
Klein, 2007); à esquerda, mapa das conexões internas do site do CNPq (produzido com
Astra SiteManager em 19/12/2006)

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A estrutura policêntrica da internet é análoga à das cidades, sobretudo as maiores,


que também têm muitos centros, cada qual com suas próprias características e seu nível
de importância. A experiência com as áreas urbanas pode ajudar a entender, por
conseguinte, o que esse desenho significa em termos da hierarquização e distribuição de
informação e poder na web. Na cidade como na web, alguns locais (por exemplo, alguns
websites ou alguns parques) são mais fáceis de acessar e mais visitados que outros. Do
mesmo modo, algumas conexões (links ou vias públicas) são mais proeminentes e
recebem mais tráfego que outras. Tanto na cidade quanto na web existem ainda lugares
praticamente inacessíveis (pequenas praças periféricas, websites pouco conhecidos) aos
quais só se chega perseguindo deliberadamente o endereço. É fácil perceber que, assim
como nas cidades, a configuração web faz com que os diferentes lugares tenham
diferentes importância, visibilidade e valor.
É tentador atribuir esse efeito a forças externas à rede, que estariam distorcendo
sua vocação inicial. No entanto, a Teoria Matemática das Redes indica que a
configuração policêntrica da web e da internet é intrínseca a todas as redes dinâmicas
(Barabási, 2002) de modo que, apesar de ter sido projetada para ser uma rede distribuída,
era inevitável que a internet reverteria para uma estrutura multicentrada11.
Retornando à analogia com a cidade, é adequado comparar a web com uma
metrópole que cresceu muito rapidamente e de modo desordenado: entre 1999 e 2005, a
estimativa do número de páginas indexáveis na web passou de 800 milhões (Lawrence e
Giles, 1999, p. 2) para mais de 11,5 bilhões (Gulli e Signorini, 2005, p.1). Além dessa
exuberância quantitativa, o fato de que os websites são conectados por hiperlinks implica
uma configuração espacial multidimensional (Fragoso, 2000) que dificulta bastante a
apreensão de sua topologia. Quando não se dispõe do endereço que se procura, como
encontrar um site numa estrutura tão grande e estruturada de modo tão complexo? A
solução evidente são os buscadores, que não por coincidência quase sempre ocupam os

11
Para uma discussão dos condicionantes da topologia da internet, ver por exemplo Fragoso, 2006a.

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primeiros lugares nas listas de sites mais visitados em todo o mundo 12. Essa proeminência
dos sites de busca em relação aos demais tornam os buscadores verdadeiros ‘centros dos
centros’ e implica uma importante pressão de verticalização sobre a estrutura policêntrica
da web. A situação compromete a confiança no potencial democratizante da
disponibilização de informações através da web, em especial quando se leva em conta
que os sistemas de busca mantêm suas estratégias de hierarquização dos resultados em
segredo e que seus bancos de dados não cobrem toda a web (de modo que certas
informações jamais poderão ser encontradas com o auxílio de buscadores) (GULLI E
SIGNORINI, 2005). Mais alarmante é a rápida redução do número de grupos
empreendedores envolvidos com o negócio das buscas nos últimos anos: em 2008,
apenas 3 grupos operam com bancos de dados próprios: Google, Yahoo! e Microsoft
(Bruce Clay, Inc., 2007) e portanto têm em mãos todo o tráfego das buscas –
praticamente todo o tráfego em geral – da web13.
O fato de que o desenho que o negócio das buscas assumiu tende a tornar a web
cada vez mais parecida com os meios de comunicação de massa, e portanto, na prática,
cada vez menos horizontal e igualitária, não anula o impacto positivo do aumento
expressivo do número de indivíduos capazes de desempenhar o papel de emissor em
processos comunicacionais de grande escala nas redes digitais de comunicação. Mesmo
que o desequilíbrio da visibilidade entre os websites estabeleça uma grande distância
entre a possibilidade de expressar-se e a garantia de ser visto ou ouvido, o fato de que
atores sociais anteriormente sem voz passaram a poder se manifestar implica um
rearranjo do controle da informação em direção ao pluralismo e é um fator positivo para a
democracia eletrônica.

12
Por exemplo, em fevereiro de 2008 três dos quatro sites mais visitados do mundo na classificação do
Alexa eram buscadores: Yahoo!, LiveSearch e Google. O segundo lugar no ranking, entre Yahoo! e
LiveSearch, era ocupado pelo YouTube (Alexa, 2008).
13
Para discussão da questão dos buscadores e seus efeitos sobre o modo de distribuição da web, ver
Fragoso, 2007.

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2.3. Governança Eletrônica


Ações de governança eletrônica partem do pressuposto de que a gestão
participativa requer o fortalecimento das organizações da sociedade civil, em especial das
comunidades locais. Trata-se de favorecer a criação de novas redes sociais e facilitar a
adesão de novos membros às já existentes, bem como de intensificar os laços no interior
de cada grupo e entre os vários grupos. Tudo isso operaria no sentido de aumentar o
‘capital social’14 das organizações civis, capacitando-as para influenciar a agenda
governamental e os processos decisórios.
A maior parte das características técnicas da internet é favorável às ações em prol
da governança eletrônica (a exceção são as especificidades relativas à dificuldade de
acesso). Particularmente positiva é a confluência, na internet, dos três modos de
comunicação e distribuição de informação: um-muitos, um-um e muitos-muitos (Figura
2) – cuja correlação com as estruturas de rede (Figura 1) evidentemente não é
coincidência.
No atual estágio de desenvolvimento da web, grande parte dos sites são
desenhados para o modo massivo (um-muitos) de distribuição. São produtos midiáticos
de grande porte, cuja criação e manutenção depende de equipes especializadas e custos
elevados (grandes portais, como Terra e UOL, e sites vinculados à mídia offline, como
Globo e Abril, são exemplos típicos). Não é irrelevante, por outro lado, a quantidade de
sites de criação coletiva que alcançam grande visibilidade (YouTube, Flickr e Blogger são
exemplos muito conhecidos), sobretudo no paradigma da chamada Web 2.0 (O’Reilly,
2005) A distribuição no caso é muitos-muitos.

14
Muito brevemente, ‘capital social’ corresponde ao conjunto de recursos que emerge das interações no
interior de um grupo social e que se traduzem ou podem ser convertidos em benefícios ou vantagens de
diversas naturezas para todos e cada um dos membros do grupo. Para uma revisão do conceito de capital
social em Putnam, ver por exemplo Frey, 2003. Para avançar a discussão incorporando a noção de capital
social de outros autores, ver por exemplo Recuero, 2005.

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Figura 2: Modalidades de distribuição de informação e aplicações típicas.

Os sistemas de comunicação interpessoal (email, mensageiros instantâneos) são


vocacionados para a comunicação um-um em ‘tempo real’, mas é frequente sua utilização
no modelo muitos-muitos (por exemplo em listas de discussão ou conferências virtuais).
Já os MUVEs, salas de bate-papo, fóruns e SNSs15 destinam-se primeiramente à
comunicação muitos-muitos e não-simultânea (assíncrona), de modo que lançam mão do
caráter pull da internet: o mundo virtual, as mensagens gravadas, os perfis, estão sempre
disponíveis, esperando o acesso. É evidente que a disponibilidade de todos esses serviços
e produtos com suas diferentes vocações favorece a divulgação de informações e a
democratização da comunicação. Mesmo a configuração policêntrica da rede é um aporte
positivo no âmbito do fomento à governança, pois se trata de favorecer a criação e o
fortalecimento de múltiplos agrupamentos e colocá-los em contato, não de torná-los
iguais ou equivalentes.

15
MUVEs (multi-user virtual environments) são ambientes online compartilhados, geralmente com
interfaces que simulam espaços tridimensionais (por exemplo SecondLife ou World of Warcraft). SNSs
(social network services) são serviços online baseados na construção de perfis pessoais com conexões
explícitas para os perfis de outros usuários (por exemplo Orkut, Facebook, LinkedIn).

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Os registros da utilização da internet para a formação e fortalecimento de grupos


sociais antecedem o advento da web e se estendem a um grande número de sistemas e
aplicações16. Criados especialmente para esse fim, os SNSs estão entre os sites mais
populares no mundo todo17. No Brasil, o grande foco é o Orkut, acessado por 9,3 milhões
de pessoas em janeiro de 2007 (Coutinho, 2007). Nem todos os usuários do Orkut no
Brasil utilizam acesso doméstico: o serviço é muito popular entre os frequentadores de
locais públicos de acesso, tanto pago (Moraes, 2008) quanto gratuito (Spence, 2007).
Indicadores como esses parecem particularmente positivos para as ações de
governança quando se leva em conta um dos grandes diferenciais do Orkut, que é a
existência de comunidades de interesse às quais, na maior parte das vezes, é possível
vincular-se sem conhecer previamente os demais integrantes. Pelas definições-padrão do
Orkut, essas comunidades incluem fóruns de discussão, cujos tópicos podem ser criados
por qualquer membro e que, uma vez abertos, também aceitam a participação de todos. O
potencial para a reunião de pessoas com interesses afins, para a intensificação dos laços e
para a construção colaborativa dessa configuração é imenso – mas a apropriação que se
verifica empiricamente no Orkut vai no sentido oposto. A associação a comunidades, por
exemplo, muito frequentemente tem caráter de ‘etiqueta identitária’(Matuck e Meucci,
2005; Tomasini, 2007), ou seja, é apenas mais um elemento na construção do perfil
pessoal. Muitas comunidades não têm nenhum tópico em seus fóruns, outras têm apenas
spams18 e jogos. Mesmo nas comunidades cujos fóruns contêm tópicos que abordam
temas capazes de instigar o debate ou que convidam à construção coletiva de
conhecimento, de um modo geral resultam em sequências de mensagens que não
constituem propriamente uma conversação, mas apenas reiteração de idéias pré-

16
A literatura nesse sentido é vasta: ver por exemplo, Roszak (1988) e Rheingold (1993) reportam a
formação e o fortalecimento de comunidades em BBSs; Reid (1991) e Recuero(2002) no IRC, Reid (1994)
nos MUDs, Sá (2005) em listas de discussão, Sepé (2007) em games e fóruns, Recuero (2006) em blogs.
17
Conforme o Alexa, em fevereiro de 2008 quatro entre os dez sites mais acessados no mundo eram SNSs:
MySpace, Facebook, Hi5 e Orkut (Alexa, 2008).
18
Spams são mensagens não solicitadas, enviadas para um grande número de usuários, geralmente com
apoio de programas ou scripts especiais.

17
FRAGOSO, Suely . Redes Urbanas e Redes Digitais: considerações sobre a governança eletrônica. In: Ângela Prysthon;
Paulo Cunha. (Org.). Ecos urbanos: a cidade e suas articulações midiáticas. 1 ed. Porto Alegrte: Sulina, 2008

existentes. A hostilidade com os discordantes é frequente e os contra-argumentos são


raros – o mais comum é a repetição de uma mesma idéia, muitas vezes com as mesmas
palavras (Tomasini, 2007), caracterizando estratégias de convencimento pelo cansaço ou
pela força.
As raízes desse comportamento podem ser associadas à história do Brasil, com
suas repetidas e recentes ditaduras, que fomentaram o hábito do autoritarismo e
reprimiram a prática argumentativa, bem como aos baixos níveis de escolaridade 19, que
incapacitam a maioria da população a formular argumentações complexas. Além disso, é
perceptível a relação entre essa atitude dos brasileiros no Orkut e diversas características
da cultura brasileira apontadas por Da Matta (1978, 1984, 1985), especialmente no que
concerne à intolerância e dificuldade de diálogo20.

3. Condicionantes

A atratividade das afirmações de que o acesso à internet conduzirá a uma vida


social mais democrática, participativa e livre cai por terra diante da similaridade com os
anúncios feitos nos primeiros tempos de outras tecnologias:
É tentador acreditar que a revolução da informação é, por natureza,
profundamente democrática. Essa crença acompanhou também outras revoluções
sociais e tecnológicas no passado – a introdução da imprensa, [a idéia de] o
ensino público universalizado, o rádio, a televisão e até mesmo o surgimento do
avião. Em meio ao entusiasmo da mídia com os primeiros vôos em 1903,
jornalistas profetizaram uma era “em que os aviões conquistariam as distâncias,
abolindo as fronteiras nacionais, e tornando todos os homens irmãos (...)
garantindo igualdade, democracia, e paz perpétua” (OECD Public Management
Service, 1999, p. 4821).

19
Embora as taxas de escolarização da população tenham crescido muito entre os censos de 1940 e 2000
(IBGE, 2007), em 2005, a escolaridade média dos brasileiros com 10 anos ou mais de idade era de 6,6 anos
(IBGE, 2006).
20
Para um aprofundamento da relação o comportamento dos brasileiros no Orkut e as considerações de Da
Matta sobre a cultura brasileira ver Fragoso, 2006b.
21
O documento da OECD remete a citação a Doug Saunders, Wired should stay out of the future, 1997 e a
Rick Salutin, How about some straight talk on the Internet?, 1996.

18
FRAGOSO, Suely . Redes Urbanas e Redes Digitais: considerações sobre a governança eletrônica. In: Ângela Prysthon;
Paulo Cunha. (Org.). Ecos urbanos: a cidade e suas articulações midiáticas. 1 ed. Porto Alegrte: Sulina, 2008

O mesmo exagêro está presente nos alertas, igualmente simplistas, de que a


internet destruirá os valores locais em prol de uma globalização homogeneizante ou que
compromete a capacidade cognitiva dos usuários (que, sob pressão do imediatismo do
meio, perdem a capacidade crítica e se põem a selecionar botões e links
impensadamente).
Não tão atraente, porém muito mais razoável, é a percepção de que “a tecnologia
não determina a sociedade. Nem a sociedade escreve o curso da transformação
tecnológica (...) Na verdade, o dilema do determinismo tecnológico é, provavelmente, um
problema infundado, dado que a tecnologia é a sociedade e a sociedade não pode ser
entendida ou representada sem suas ferramentas tecnológicas” (Castells, 1999, p. 25). A
história da internet está cheia de exemplos de induções do contexto cultural, do mesmo
modo que a história recente testemunha pela interferência da internet (e outras
tecnologias) sobre a configuração social. Nessa dupla mão de influências, diferentes
grupos sociais, em momentos históricos distintos, concebem tecnologias diferentes e se
apropriam delas de maneiras igualmente variadas.
O fato de que a sociedade não está à mercê das tecnologias não implica,
entretanto, que as formas possíveis de apropriação independam das especificidades de
cada dispositivo técnico. Este texto procurou apontar justamente que, mesmo quando se
trata de uma tecnologia de comunicação flexível como a internet, certas apropriações são
favorecidas e outras dificultadas. Outras ainda são tecnicamente impossíveis (não há
como enviar matéria física pela internet, por exemplo).
No que concerne a gestão pública, em especial a proposta de indução da
reestruturação do Estado e fomento de formas participativas de gestão por meio das redes
digitais, verificou-se que a maioria – embora não a totalidade - dos aspectos técnicos e
estruturais da internet opera de modo favorável. Os principais fatores contrários são o alto
custo da infra-estrutura tecnológica (que compromete a universalidade do acesso) e a
configuração policêntrica da rede (que tende a hierarquizar os conteúdos, dando mais
visibilidade às vozes já poderosas em detrimento dos demais grupos). Já os

19
FRAGOSO, Suely . Redes Urbanas e Redes Digitais: considerações sobre a governança eletrônica. In: Ângela Prysthon;
Paulo Cunha. (Org.). Ecos urbanos: a cidade e suas articulações midiáticas. 1 ed. Porto Alegrte: Sulina, 2008

condicionantes de ordem cultural e política vão, em grande parte, no sentido contrário das
ações de governança eletrônica.
Ruediger (2003) sugere que, havendo vontade política por parte do Estado para
deflagrar o processo, a pressão da sociedade civil por uma quantidade cada vez maior de
serviços e informações online estabelecerá um círculo virtuoso em direção ao incremento
da cidadania:
...as barreiras internas ao Estado poderiam ser tensionadas e, eventualmente,
mitigadas, pela pressão da sociedade civil em um processo dialético de demanda
crescente por serviços e informações advindas do Estado. Da mesma forma, os
gestores poderiam buscar iniciativas que maximizassem essa possibilidade, por
meio de mecanismos voltados ao provimento de meios de acesso, como também
outros, vinculados à oferta de programas e políticas que digam respeito
diretamente a questões de cidadania. Esse processo interessaria, sobretudo, aos
que almejam a continuidade de reformas no campo do Estado. Evidentemente,
esse ciclo virtuoso requer um ponto de partida que precisa ser politicamente
construído (Ruediger, 2003, p. 1277-1278)
A construção desse ‘ponto de partida’ demanda a superação não apenas dos
travamentos internos ao próprio Estado (que Ruediger constatou no âmbito corpo
técnico-administrativo), mas também a apatia generalizada em relação aos assuntos
políticos22. No caso brasileiro, fatores culturais ainda mais desfavoráveis estão em jogo: o
hábito com o autoritarismo (que, embora superado em relação à estrutura formal de
governo, permanece nas ações do cotidiano e no nível local); a tradição clientelista; a
indisposição para construções coletivas de natureza inclusiva. Embora no Brasil as
comunidades locais permaneçam ativas e muitas vezes desempenhem um papel
importante no cenário social, elas tendem a ser baseadas em laços de amizade e
familiares e com frequência se prestam a um modelo de dominação em que uma pequena
e poderosa elite explora as vantagens das relações em rede, em seu próprio interesse e em
detrimento dos que não pertencem ao grupo. Por outro lado, Frey identifica a presença,
no Brasil, de “novas formas emergentes de vida social e de engajamento político, capazes
não apenas de renovar os laços sociais das comunidades, mas também de promover novas

22
Esta última pode ser entendida como mais um sintoma da própria crise do Estado Moderno, de modo que
se trata de uma manifestação do problema mais que de um entrave à sua solução.

20
FRAGOSO, Suely . Redes Urbanas e Redes Digitais: considerações sobre a governança eletrônica. In: Ângela Prysthon;
Paulo Cunha. (Org.). Ecos urbanos: a cidade e suas articulações midiáticas. 1 ed. Porto Alegrte: Sulina, 2008

formas de participação pública visando à transformação das condições sociais e políticas”


(2003, p. 170). O maior desfavor que se pode prestar para as iniciativas nesse sentido é
continuar propagando a idéia de que a disponibilidade de serviços e informações
governamentais online seja suficiente para promover modos participativos de gestão. O
determinismo tecnológico não é apenas historicamente incorreto – ele é nocivo, pois a
crença de que não há escapatória diante dos efeitos ‘inerentes’ às tecnologias conduz à
paralisia social.
Para que a internet possa servir ao fortalecimento das redes sociais locais e
fomentar sua capacidade de atuar politicamente, é fundamental que se generalize a
compreensão de que a reestruturação do Estado em direção à governança democrática
pode ser apoiada pelas tecnologias digitais, mas dependerá sempre menos da tecnologia e
mais dos condicionantes socioculturais, tanto na esfera do governo quando da sociedade
civil – incluída aí a vontade política de ambas as partes.

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