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vulnerabilidades associados
«Só sentirás falta da tua água
quando o poço secar»
Bob Marley
132 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
4
Capítulo
Escassez de água — riscos e
vulnerabilidades associados
A escassez é um resultado A segurança humana só está garantida quando existem meios de defesa contra situações
induzido pelos políticos, imprevisíveis que podem originar perturbações na vida e na subsistência dos povos. Poucos
consequência previsível recursos têm uma influência tão decisiva na segurança humana como a água. Enquanto
da interminável busca de recurso produtivo, a água é essencial para garantir a subsistência dos povos mais vulneráveis
recursos a baixo custo do mundo. Mas a água também possui poderes destrutivos, como o poderão testemunhar as
tempestades e as inundações. A garantia de acesso à água enquanto investimento produtivo
e defesa contra as vulnerabilidades associadas à incerteza dos cursos de água constitui um
dos elementos chave do desenvolvimento humano.
A avaliação que hoje se faz da segurança da água é for- Essa visão apocalíptica coincide com as esti-
temente influenciada pelos conceitos associados à sua mativas mais pessimistas relativas aos cenários
escassez. As faltas de água são genericamente enca- futuros da disponibilidade da água. O Comité
radas como aspectos determinantes para se avaliar o Mundial da Água identificou «a obscura aritmé-
grau de insegurança do acesso à água. O receio de que tica da água» como uma das maiores ameaças para
o mundo esteja «a ficar sem água» surge com cada a Humanidade. 2 «A escassez dos recursos hídri-
vez maior frequência. Mas encararmos o problema da cos», escreve outro comentador, «será condição 4
insegurança da água só em função da sua escassez é de vida determinante para muitos seres humanos
uma visão simultaneamente distorcida e redutora do neste novo século.»3 A imagem de lagos a secarem
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A escassez dos recursos começarmos a vender modelos da Porsche a 300 dó- poderá neutralizar os avanços acumulados ao longo
hídricos pode ser de lares a unidade, estas viaturas também irão em breve de gerações em termos de desenvolvimento humano
escassear no mercado.»4 junto de largas camadas da população. As alterações
carácter físico, económico Para além da escassez, a segurança do acesso à climáticas representam uma ameaça séria, e perfeita-
ou institucional, e — tal água também tem que ver com questões de risco e mente previsível, à segurança dos recursos hídricos
vulnerabilidade — temas a que iremos dedicar parte para muitos dos países mais pobres e para muitas das
como acontece com as
deste capítulo. Desde as mais remotas civilizações até famílias mais carenciadas do mundo inteiro. Claro
próprias reservas de água ao mundo globalizado de hoje, o êxito — ou o fracasso está que esta ameaça não se confina aos países pobres.
— pode variar consoante — das sociedades no aproveitamento do potencial Os países ricos também sentirão o impacto das alte-
produtivo dos recursos hídricos limitando, ao mesmo rações verificadas nos padrões da precipitação, nas
o tempo e o espaço tempo, o seu potencial destruidor é determinante para más condições meteorológicas e na subida do nível
o progresso humano. A previsibilidade e confiança no dos oceanos. Mas os países pobres — e as pessoas ca-
acesso à água, e a protecção contra os riscos a ela as- renciadas que habitam nesses países — não possuem
sociados, revelam-se cruciais para o bem-estar do ser os recursos financeiros de que os países ricos dispõem
humano. Tal como nos mostram de forma dramática para fazer face aos riscos como seria exigível. A me-
as imagens do sofrimento provocado pelas cheias em dida internacional de reduzir as emissões de carbono
Moçambique ou em Nova Orleães, ou pelas secas no para a atmosfera é importante porque irá limitar os
Norte do Quénia, a escassez ou o excesso de um bem danos futuros provocados pelas alterações climáticas.
tão precioso como a água pode transformá-lo num No entanto, as alterações climáticas perigosas conti-
agente de destruição. O progresso é determinado, em nuarão a verificar-se porque as actuais concentrações
parte, pela forma e local onde a Natureza nos dispo- atmosféricas conduzirão inevitavelmente a um aque-
nibiliza os recursos hídricos, mas mais decisivamente cimento global. Para milhões de povos carenciados
pelas instituições e infra-estruturas através das quais em todo o mundo que tiveram um contributo insig-
as pessoas e as sociedades garantem o acesso aos cau- nificante na geração das actuais emissões, a prioridade
dais de água previsíveis, bem como a sua capacidade de reside em melhorar a sua capacidade de adaptação à
resistência face aos choques. nova realidade. Infelizmente, as estratégias de adap-
Alguns choques são mais previsíveis do que ou- tação estão bem menos desenvolvidas, quer a nível
tros. O presente capítulo irá abordar as implicações nacional quer internacional, do que as estratégias de
de um choque iminente que, por culpa de má gestão, mitigação do problema.
4
Repensar a escassez num mundo pressionado
Escassez de água — riscos e vulnerabilidades associados
Até que ponto existe falta de água no mundo? Não A Terra pode ser chamado o planeta da água, mas
é fácil responder esta questão. A escassez dos recur- 97% dessa água está nos mares e nos oceanos.5 A maior
sos hídricos pode ser de carácter físico, económico ou parte da restante água está retida nos gelos da Antár-
institucional, e — tal como acontece com as próprias tida ou subterrada nas camadas profundas do subsolo,
reservas de água — pode variar consoante o tempo e o deixando disponível menos de 1% para consumo hu-
espaço. A escassez depende, em última análise, das leis mano, em lagos e rios de água doce de acesso fácil. Ao
da oferta e da procura. Mas em que as duas componen- contrário do petróleo ou da hulha, a água é um recurso
tes da equação oferta/procura são definidas de acordo infinitamente renovável. Ela segue um ciclo natural:
com opções políticas e medidas governamentais. a água da chuva cai proveniente das nuvens, regressa
ao mar salgado através das correntes dos rios de água
doce, para voltar depois a evaporar-se e a formar nu-
Compreender a escassez vens. Este ciclo pode explicar o motivo pelo qual não
se pode dizer que a água está a acabar, mas as reservas
«Água, só vejo água por toda a parte, e nem uma só disponíveis são, de facto, limitadas. O sistema hidroló-
gota que se beba», lamenta o marinheiro no Poema do gico do planeta Terra bombeia e transfere anualmente
Velho Marinheiro, de Samuel Coleridge. Esta obser- para o solo aproximadamente 44.000 quilómetros
vação continua a ser um bom ponto de partida para cúbicos de água, o equivalente a 6.900 metros cúbi-
melhor compreendermos os problemas relativos ao cos por cada habitante do planeta. Uma grande parte
abastecimento mundial de água doce. desta água não corresponde a caudais de cheias incon-
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troláveis ou a água demasiado inacessível para poder ser seco», uma região semi-árida que abrange nove estados Em termos globais,
utilizada pelo homem. Mesmo assim, o mundo dispõe e 940.000 quilómetros quadrados do Nordeste, expe- temos mais do que o
de mais água do que 1.700 metros cúbicos por pessoa rimentam regularmente faltas de água crónicas. A Eti-
definidos pelos hidrologistas (embora seja arbitrário) ópia, com vários lagos e rios de grande caudal, abundân- suficiente para cobrir as
convencionado-se como a quantidade mínima neces- cia de lençóis de água subterrâneos e um elevado índice necessidades: o problema
sária para garantir a alimentação, manter as indústrias de precipitação, praticamente atravessa o limiar mí-
é que alguns países têm
em funcionamento e conservar o meio ambiente.6 nimo que define a situação de pressão sobre os recursos
Infelizmente, a média internacional acaba por ser hídricos. Mas, infelizmente, a precipitação é eminente- muito mais do que outros
um número perfeitamente irrelevante. Neste ponto, os mente sazonal e varia muito no tempo e no espaço. Se
recursos hídricos mundiais são como a saúde mundial. associarmos a isto infra-estruturas de armazenamento
Em termos globais, temos mais do que o suficiente para limitadas e bacias hidrográficas mal protegidas, estas
cobrir as necessidades: o problema é que alguns países oscilações expõem milhões de pessoas à ameaça ora da
têm bastante mais do que outros. Cerca de um quarto das seca ora das cheias.
provisões mundiais de água doce encontram-se no Lago O tempo é outra parte importante da equação da
Baikal, situado na região escassamente povoada da Si- disponibilidade da água. Para os países que dependem
béria.7 O desnível das reservas das diversas regiões e, das monções ou de estações de chuvas curtas, as médias
mesmo, no interior destas, contribuem para acentuar nacionais transmitem-nos uma visão errada das dispo-
ainda mais o problema da distribuição. Dispondo de nibilidades reais existentes. Grande parte da Ásia recebe
31% dos recursos universais de água doce, a América quase 90% da sua precipitação anual, em menos de 100
Latina tem 12 vezes mais água por habitante do que, horas, o que origina riscos de escassez, cheias intensivas
por exemplo, a Ásia do Sul. Algumas regiões, como o durante alguns períodos do ano e uma seca prolongada
Brasil e o Canadá, dispõem de mais água do que aquela no resto do tempo.9 As disponibilidades reais ao longo
que conseguem consumir; outras, como alguns países de todo o ano não dependem apenas da precipitação,
do Médio Oriente, possuem muito menos do que ne- mas também da capacidade de armazenamento e do
cessitam. O Iémen, um país pressionado pela escassez de ritmo a que os caudais dos rios e as águas subterrâneas
água (198 metros cúbicos por pessoa) não ganha nada vão sendo repostos.
com o facto de o Canadá ser abundante em água doce
(90.000 metros cúbicos por pessoa). E algumas regiões
que lutam com falta de água na China e na Índia em Pressão e escassez crescentes
nada beneficiam com o facto de as reservas de água na Os hidrologistas costumam calcular o grau de
Islândia serem 300 vezes superiores ao limiar de 1.700 risco de escassez de uma determinada região através 4
metros cúbicos. da análise da equação água/população. Mas como já
No interior de cada região, também é frequente fizemos notar, convencionou-se adoptar os 1.700 me-
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Por volta do ano 2025, mais Com muitos dos países mais atingidos pela pres- Figura 4.1 Disponibilidade da água em declínio
de 3 mil milhões de pessoas são da falta de água a registarem taxas de crescimento
populacional muito elevadas, as reservas per capita Disponibilidade da água per capita (1950=100)
poderão viver em países têm vindo a diminuir rapidamente. Tomando o ano 100
Índia integrarão o clube mundial dos ameaçados as estatísticas nacionais. Esta «água azul» repre-
pela falta de água. senta apenas 40% da precipitação total. A restante —
0zonas do Norte de África: por exemplo, é infe- a «água verde» (água rica em matéria orgânica) —
rior à de Marrocos. nunca chega aos rios mas alimenta o solo, evapora-se ou
O mundo debate-se hoje com problemas rela- é expelida pela transpiração das plantas.12 Trata-se de
cionados com os limiares para a pressão sobre os re- um recurso que mantém húmidos os terrenos agrícolas,
cursos hídricos. Conforme demonstrado em cima, fonte de sustento para largas camadas da população ca-
Figura 4.2 A pressão sobre os recursos hídricos é planeada para acelerar de intensidade
em várias regiões
População de países que enfrentam uma pressão ou uma escassez sobre os recursos hídricos
(mil milhões)
2,5 Pressão sobre os recursos hídricos: menos de 1.700 metros cúbicos por
pessoa e por ano
2,0 Escassez de água: menos de 1.000 metros cúbicos por pessoa e por ano
1,5
1,0
0,5
0
1990 2005 2025 2050 1990 2005 2025 2050 1990 2005 2025 2050 1990 2005 2025 2050 1990 2005 2025 2050
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renciada de todo o mundo. No entanto, apesar de todos alimentar uma família de quatro pessoas consome Figura 4.3 Intensificação da
estes problemas e omissões, os níveis das reservas de água o equivalente a uma piscina olímpica cheia). Por pressão mundial
sobre a água
nacionais ainda conseguem fornecer quantidades muito outras palavras, é preciso cerca de 70 vezes mais
razoáveis. água para produzir comida do que para satisfazer Pessoas atingidas pela pressão ou escassez
sobre os recursos hídricos (mil milhões)
as necessidades domésticas de cada família.15 A pro-
6
dução de um único quilo de arroz consome 2.000-
O crescimento da procura de água é 5.000 litros de água16 . Mas alguns alimentos são
superior ao crescimento populacional mais sequiosos do que outros. A produção de uma
5
No historial da utilização dos recursos hídricos, alguns tonelada de açúcar consome oito vezes mais água
aspectos vão-se alterando mas outros mantém-se sempre do que a produção de uma tonelada de trigo — por
iguais. Hoje em dia, tal como no passado, o ser humano exemplo. A produção de um simples hambúrguer
usa a água principalmente para irrigação. Algumas das consome cerca de 11.000 litros — mais ou menos a 4
mais importantes civilizações — Egípcia, Mesopotâ- quantidade disponível para cada 500 residentes dos
mica, Indiana e Chinesa — assentavam no controlo da bairros urbanos degradados que não possuem água
água dos rios para efeitos agrícolas. Hoje, como então, canalizada em casa. Estes números servem para ex- 3
a irrigação e a agricultura continuam a ser as princi- plicar o motivo por que a subida dos salários e as
pais consumidoras de água. Contudo, desde o início alterações na dieta — à medida que as pessoas vão
do século XX que a utilização da água na indústria e enriquecendo também consomem mais carne e açú- 2
ao nível autárquico tem vindo a crescer. O mesmo tem car — mantêm o crescimento do consumo de água
vindo a acontecer com o fosso existente entre a taxa de acima da taxa de crescimento da população.
crescimento populacional e as necessidades de água: à Em termos de futuro, é claro que é o padrão de 1
medida que o mundo enriquece e se industrializa, as consumo de água continuará a mudar. Atendendo a
pessoas vão consumindo cada vez mais água.13 Esta ten- que o ritmo de urbanização e o crescimento da pro-
dência tem levado alguns a darem uma certa credibili- dução continuam a ganhar terreno, a procura de água 0
dade às preocupações Malthusianos que previam um por parte da indústria e dos municípios irá continuar 1990 2005 2025 2050
futuro sem água. a aumentar (ver figura 4.6).17 Ao mesmo tempo, o Escassez de água:
Desde há um século, pelo menos, que o consumo crescimento da população e dos rendimentos esti- menos de 1.000 metros cúbicos
por pessoa e por ano
de água tem vindo a crescer a um ritmo muito mais rá- mularão a procura de água para irrigação, a fim de
Pressão sobre os recursos hídricos:
pido do que a população — e esta tendência mantém- satisfazer as necessidades de produção alimentar. Em menos de 1.700 metros cúbicos
se. Nos últimos cem anos, a população quadruplicou, 2025, haverá perto de 8 mil milhões de pessoas no por pessoa e por ano
enquanto o consumo de água cresceu pelo factor sete. À mundo, registando-se uma taxa de crescimento nos Fonte: Calculado com base em FAO 2006. 4
medida que o mundo vai enriquecendo, também se vai países em desenvolvimento de 79% para 82%. Em O nosso mundo cada
Figura 4.4
tornando mais sequioso de água (figura 4.4). Os padrões 2050, os sistemas agrícolas mundiais terão de ali-
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Figura 4.5 Como o mundo utiliza a sua água Transpor os limites do consumo
sustentável — problemas,
Utilização da água por sector nos
países em desenvolvimento, 1998-2002 (%)
políticas e respostas
Países OCDE de rendimento elevado
Ao longo da história, as sociedades humanas têm-
se estabelecido sobretudo nas margens dos rios.
0 20 40 60 80 100 Segundo a história, os povos eram obrigados a
Países em desenvolvimento instalar-se junto das reservas de recursos hídricos
que lhes proporcionavam água para beber, meio de
escoamento de resíduos, fonte de irrigação e ener-
0 20 40 60 80 100
gia para a actividade industrial. Nos últimos cem
Agricultura Uso doméstico Indústria
anos, o desenvolvimento industrial trouxe consigo
Fonte: FAO 2006. uma crescente capacidade de transportar e contro-
lar a água — paralelamente a uma também cres-
cente capacidade de consumir mais, desperdiçar
mais e poluir mais. Em grande parte do mundo a
Figura 4.6 A agricultura continua a ser a humanidade ultrapassa cada vez mais as fronteiras
maior consumidora de água
da sustentabilidade ecológica, criando ameaças ao
Captações sectoriais de água desenvolvimento humano de hoje e custos que as
(quilómetros cúbicos por ano)
gerações de amanhã terão de pagar.
3.200 Agricultura
2.800
Para além dos limites da
sustentabilidade
2.400
Que poderá acontecer quando os limites do con-
sumo de água sustentável forem ultrapassados? Os
2.000
hidrologistas encaram esta questão à luz dos mode-
los intricados destinados a aproveitar os ecossiste-
1.600
mas das bacias hidrográficas. Para respondermos a
isto de uma forma simplificada, a integridade dos
4 1.200 Indústria
ecossistemas que sustentam os caudais de água — e
em última análise a vida humana — entraram em
800
ruptura.
Escassez de água — riscos e vulnerabilidades associados
Consumo municipal
As percepções face à água têm vindo a mudar
400
lentamente. Em 1908, Winston Churchill postou-
se junto da margem norte do Lago Victoria a ob-
0
1900 1925 1950 1975 2000 2025 servar o segundo maior caudal lacustre do mundo
Fonte: IWMI Forthcoming
no seu percurso em direcção às Cataratas de Owen,
que culminam no Nilo. Mais tarde, ele viria a recor-
dar os seus pensamentos de então: «Tanta energia
assim desperdiçada… uma força tão poderosa, capaz
guirá o mundo alimentar mais 2,4 mil milhões de de controlar todas as forças naturais da África, dei-
pessoas no ano 2050, com base em recursos hí- xada assim à solta.»20 Decorridas duas décadas,
dricos que já hoje estão em crise profunda? Num José Estaline, ficaria célebre ao lamentar a água des-
mundo onde hoje existem cerca de 800 milhões perdiçada no Volga, no Don e noutros rios, abrindo
de pessoas subnutridas, esta questão exige uma assim as portas a uma era de grandes sistemas de
ref lexão séria. O mesmo é válido para a ausên- irrigação e barragens gigantescas que fizeram enco-
cia de um debate internacional sério sobre este lher o Mar Cáspio. Em meados da década de 70, a
problema. Dado que a distribuição da água pelos União Soviética consumia oito vezes mais água do
diferentes sectores vai sofrendo alterações, isso que em 1913, na sua maior parte para irrigação.
terá implicações importantes na distribuição de Churchill e Estaline tinham em comum, tal
água entre os povos. Um dos perigos óbvios é o como a maioria dos outros líderes políticos das pri-
de que as pessoas cuja subsistência depende da meiras nove décadas do século XX, a ideia de que a
agricultura mas que não têm direitos reconheci- água existia para ser utilizada sem qualquer preocu-
dos, poder económico e peso político venham a pação com a sustenbilidade ambiental. Esta aborda-
ficar para trás — assunto a que voltaremos no gem criou raízes fortes nos modelos de governação da
capítulo 5. água. Em quase toda a história recente, os governantes
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Quadro 4.1 Previsões do consumo global de água e da parcela utilizada em sectores não
agrícolas por região, em 2000 e em 2050
2000 2050
concentraram a sua atenção em três grandes consumi- contabilidade ambiental. Se as necessidades ecológi-
dores de água: indústria, agricultura e uso doméstico. cas não forem respeitadas, o meio ambiente que sus-
Como não contava com o apoio de um eleitorado tenta a subsistência de todos nós ir-se-á desgastando,
politicamente forte, o quarto grande consumidor, o em detrimento do desenvolvimento humano no longo
meio ambiente, viria a ser ignorado. Hoje, estamos a prazo. A pressão ecológica mostra bem até que ponto o
aprender da pior maneira que os recursos hídricos ca- consumo de água por parte do ser humano ultrapassa
nalizados para fins agrícolas e industriais através do o nível exigido para se manter a integridade ecológica
investimento em infra-estruturas não tinham sido das bacias hidrográficas (mapa 4.1). Seguem-se os pon-
anteriormente «desperdiçados». Os sistemas hídricos tos críticos da crise do débito hidrológico.
interiores tais como as bacias hidrográficas, os lagos O consumo em excesso tende a verificar-se em
e os aluviões desempenham funções ecológicas vitais regiões fortemente dependentes da agricultura de re-
que dependem da água. gadio — como as Planícies do Indo-Ganges na Ásia
Os caudais de água naturais provenientes dos rios do Sul, as Planícies do Norte da China e as Grandes 4
ou retidos em lagos e aquíferos determinam os pa- Planícies da América do Norte — e em zonas sujeitas
râmetros de disponibilidade de água. Quando esses a um processo de urbanização e de industrialização
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Mapa 4.1 O consumo abusivo de água está a prejudicar o ambiente em muitas das principais bacias
Nota: As fronteiras e os nomes mostrados e as designações utilizadas neste mapa não implicam uma responsabilidade oficial nem a aceitação por parte das Nações Unidas.
Fonte: Smakhtin, Revenga e Döll 2004.
contribui com cerca de 40% das receitas agrí- sem água? Só numa leitura muito superficial. To-
colas do país — mas a um preço ambiental memos como exemplo o caso da Bacia do Murray-
demasiado alto e insustentável. Nos últimos Darling. Os indícios de pressão sobre os recursos
anos, não houve praticamente nenhuma água hídricos são inequívocos. Essa ameaça é produto de
do Rio Murray que conseguisse chegar ao políticas governamentais que, no passado, acharam
mar. 24 que valia a pena sacrificar um ecossistema inteiro,
• O Rio Orange, na África do Sul, é palco de uma em nome da produção de arroz, algodão e açúcar
crescente ameaça ambiental. Os níveis desta três dos produtos agrícolas mais sequiosos — des-
bacia hidrográfica têm sido de tal modo modifi- tinados à exportação. No interior daquela bacia, o
cados e regulados que a armazenagem de reservas maior reservatório do mundo — Estação de Cub-
realizadas na bacia já excede o caudal anual. 25 bie — reúne mais água do que o porto de Sydney, e
Tal como milhões de pessoas que habitam em perde cerca de 40% através da evaporação. 27 Até há
zonas ameaçadas pela falta de água têm vindo a des- pouco tempo atrás, os consumidores de água paga-
cobrir, o meio ambiente está a ser sufocado por dé- vam tarifas insignificantes pelo uso e desperdício
bitos de água insustentáveis, verificados em grande desse bem precioso — e os contribuintes australia-
escala. Por exemplo, os agricultores que vivem perto nos têm vindo a pagar a factura de programas de
de Saná, no Iémen, têm vindo a perfurar os respec- engenharia multimilionários destinados a inter-
tivos poços em mais 50 metros ao longo dos últimos ceptar a água salgada das drenagens. O problema
12 anos, enquanto o volume de água que conseguem na Bacia do Murray-Darling não é haver água em
extrair diminuiu em dois terços. 26 Alguns povos re- muito pouca quantidade. É, isso sim, haver ali de-
sidentes em zonas de pressão sobre os recursos hídri- masiado algodão, arroz e gado.
cos possuem os recursos económicos, capacidades e Os governos em regiões de pressão sobre os re-
oportunidade para não terem de se preocupar com o cursos hídricos começaram agora a aperceber-se da
problema da água. Muitos milhões — de pequenos necessidade para lidar com o débito hidrológico
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insustentável. Na China, a gestão da procura de- era do tamanho da Bélgica, sustentando uma eco- Entre os problemas menos
sempenha um papel cada vez mais importante na nomia local fulgurante. Hoje em dia, é um lago visíveis mas mais agudos
governação da água. Desde 2000, a Comissão do virtualmente morto e hipersalino, com um quarto
Rio Amarelo impôs restrições às captações de água da sua antiga dimensão. A razão: uma geração an- inclui-se o declínio das
levadas a cabo pelas províncias situadas a montante, terior de tecnocratas soviéticos determinou que os camadas freáticas, resultado
tendo aumentado assim os caudais nas zonas mais grandes rios da Ásia Central — o Syr Darya e o
de um ritmo de consumo
baixas do rio. Também foram criadas provisões ao Amu Darya — deveriam ser postos ao serviço de
longo da Bacia do Rio Hei para uso ambiental e con- uma vasta cintura de regadio para o cultivo de al- de água do subsolo muito
sumo humano, embora sejam necessárias medidas godão. Esta visão arrogante da gestão dos recursos mais rápido do que aquele
mais severas no futuro. Na Austrália, a Comissão de hídricos veio ditar o destino de todo um sistema
Murray-Darling definiu um quadro bem mais insti- ecológico, com consequências devastadoras para a que o ciclo hidrológico
tucional com vista ao reequilíbrio das necessidades o bem-estar da Humanidade (ver capítulo 6). A consegue repô-la
dos consumidores humanos e do ambiente. Esse qua- sobre-exploração contribuiu para o retraimento de
dro estabelece taxas de extracção anuais num rácio muitos dos maiores lagos de África, incluindo os
determinado de acordo com os padrões de consumo Lagos Chade, Nakivale e Nakaru. O Lago Chade
de água de 1993, embora alguns comentadores argu- decresceu para cerca de 20% do seu volume inicial,
mentem que esses números ainda excedem os limites em parte fruto das alterações climáticas resultan-
ecológicos recomendados. Os governos da África do tes da extracção abusiva.
Sul, e não só, promulgaram legislação que exige que A quantidade de água não constitui o único
se tenha em conta as necessidades ambientais antes indício de escassez. A qualidade também tem in-
de emitir licenças de exploração para consumo hu- fluência no volume disponível para consumo — e
mano (ver caixa 4.7 mais adiante neste capítulo). em muitas das bacias mais ameaçadas pela escas-
Qualquer destes exemplos demonstra até que ponto sez, a quantidade tem vindo a ser comprometida
os governos se viram agora forçados a chegar para pelos índices de poluição. Qualquer dos 14 grandes
fazer face às consequências dos erros políticos do sistemas fluviais da Índia se encontra gravemente
passado. Contudo, de futuro serão necessárias abor- poluído. Em Deli, e só para exemplificar, 200 mi-
dagens bastante mais radicais. lhões de litros de resíduos e 20 milhões de litros
de desperdícios são despejados diariamente no Rio
Yamuna. Na Malásia e na Tailândia, a poluição
Maiores sintomas de pressão da água é tão grave que os rios contêm frequente-
Os sintomas físicos de consumo de água abusivo mente 30-100 vezes mais a percentagem de agen- 4
variam de caso para caso. Entre os problemas menos tes patogénicos admitida pelos padrões de saúde.
visíveis mas mais agudos inclui-se o declínio das O Rio Tiete, que atravessa São Paulo, no Brasil,
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Caixa 4.1 China — como gerir a crise da água no contexto de um forte crescimento económico
Desde 1979, a China tem vindo a por um quarto, e os resíduos humanos não tratados pelo res-
áa Figura 1 A agricultura está a
utros perder para os outros registar o crescimento económico tante. Segundo a Administração Estatal de Protecção do Am-
consumidores mais acelerado do mundo. A po- biente, mais de 70% da água da bacia 3-H estão demasiado po-
Percentagem estimada de água para os
breza diminuiu de forma abrupta, luídos para consumo humano.
ara os
s sectores municipal e industrial nas não obstante a coexistência de • Descargas reduzidas. O caudal dos rios 3-H que chega ao oce-
bacias 3-H da China (%) um aumento das desigualdades, ano decresceu cerca de 60% desde 1956-79. O consumo de
35 e a educação e a saúde melhora- água nos três sistemas fluviais ultrapassa, hoje em dia, os níveis
ram a um ritmo impressionante. de sustentabilidade por larga margem. Uma avaliação dos riscos
30
Mas este crescimento rápido de escassez sugere que qualquer captação de água que exceda
25 teve um efeito de pressão sobre os 20% dos caudais disponíveis representa uma ameaça ao con-
os recursos hídricos da China. O sumo sustentável, sendo as captações acima dos 40% consi-
20 bom desempenho económico foi deradas já de risco de escassez extremo (figura 2) No sistema
15 mantido, em parte, à custa de um hidrográfico 3-H, as captações de água oscilam entre mais de
crescente saque ecológico, tendo 50% no caso da Bacia do Rio Huang (Amarelo), 65% na do Rio
10 agora a zona Norte da China de Huai ou mais de 90% na do Rio Hai-Luan. Estes valores situam-
enfrentar uma crise de gestão da se bem acima dos limites da sustentabilidade. A transformação
5
água cada vez maior. que se tem vindo a registar nas últimas décadas reflectiu-se no
0 O Norte da China é o epicen- caudal do Rio Huang, em tempos considerado a grande dor de
030 1997 2010 2030 tro dessa crise. As bacias dos cabeça da China devido ao facto de os seus elevados níveis de
Fonte: Cai 2006. rios Huai, Hai e Huang (Amarelo) água terem provocado tantas inundações. Presentemente, os
— as chamadas bacias hidro- fracos caudais do rio ficaram reduzidos a um fiozinho de água
gráficas 3-H — fornecem pouco que mal consegue chegar ao mar. A duração dos períodos de
Figura 2 As bacias chinesas dos menos de metade da população baixo caudal aumentou de 40 dias no início da década de 90 para
3-H encontram-se hoje do país, 40% das terras agríco- mais de 200 dias no final dessa mesma década.
com níveis muito las, uma grande parte da produ- • Captação de águas subterrâneas. As captações de água para
elevados de pressão
sobre os recursos ção de cereais e um terço do PIB. a agricultura têm sido alimentadas através da canalização dos
hídricos Cerca de metade da população lençóis subterrâneos, mas os aquíferos estão a esgotar-se a um
Consumo de água relativo à rural pobre do país habita nas ritmo mais rápido do que a sua capacidade de reposição. Na
disponibilidade bruta, 2000 (%) zonas das bacias hidrográficas. bacia do Hai, as reservas de água sustentáveis rondam os 17,3
100 E contudo, esta região contribui mil milhões de metros cúbicos por ano, enquanto as descargas
Hai-Luan com menos de 8% dos recursos ultrapassam os 26 mil milhões de metros cúbicos. Os lençóis
90 hídricos nacionais. É por isso freáticos estão hoje 50-90 metros abaixo do nível que tinham há
4 Pressão sobre que cada uma destas bacias fica quatro décadas, o que contribui para a salinização e para os alui-
80 os recursos reduzida a menos de 500 me- mentos subterrâneos em cidades como Pequim, Xangai e Tianjin
hídricos muito tros cúbicos per capita, transfor- — bem como para o aumento do custo da bombagem de água.
Escassez de água — riscos e vulnerabilidades associados
alta mando esta região numa zona de São tudo sintomas clássicos de pressão sobre os recursos hídri-
70
escassez aguda. cos. A eles poderemos acrescentar os constrangimentos crescentes
Huai O crescimento acelerado no consumo de água em cidades do norte do país. Os problemas de
60
fez aumentar as necessidades Pequim são sobejamente conhecidos, mas existem outras sete cida-
Huang de água. Desde 1980, as per- des na região norte com populações acima dos 2 milhões — e todas
50 centagens anuais de captação elas enfrentam situações de escassez de água.
nas bacias 3-H aumentaram 42 Estaremos então perante uma crise mundial de escassez de
40 mil milhões de metros cúbicos, água? Em certo sentido, não será bem assim. Os níveis de pressão
Pressão sobre o equivalente ao caudal médio sobre os recursos hídricos actuais reflectem anteriores incentivos a
30 os recursos total do rio Hai. Também se re- padrões de consumo de água insustentáveis. Até há muito pouco
hídricos alta gistou uma alteração na procura, tempo atrás, a água era grátis. Uma das consequências disto foi a
20 com o sector agrícola a perder ausência de incentivos à sua conservação. Os cereais de baixo custo
para os consumidores indus- e de consumo intensivo de água dominavam a produção agrícola. Na
triais e municipais (figura 1). A actividade industrial, as empresas chinesas consumiam 4-10 vezes
10
percentagem representada pela mais água do que as suas congéneres dos países industrializados,
indústria no consumo de água reflectindo em parte o avanço tecnológico, mas indiciando também
0
duplicou desde 1980 para 21%, a fragilidade dos incentivos financeiros à contenção do consumo de
Fonte: Shalizi 2006.
e a parcela dos consumidores água.
urbanos triplicou. A China respondeu à crise da água com medidas políticas dirigi-
As previsões actuais apontam para um crescimento da procura das à oferta e à procura. No que respeita à oferta, criou um sistema
superior a 20% no ano 2030. A pressão daí resultante ameaça exa- de desvio de águas do Sul para o Norte, a fim de canalizar mais de
cerbar o grave problema relacionado com a qualidade. 40 mil milhões de metros cúbicos de água — superior ao caudal total
• Poluição das águas de superfície. Mais de 80% das bacias do do Rio Colorado — até às regiões industriais e urbanas da bacia do
Hai e do Huai encontram-se seriamente poluídos. A agricultura e Huai, a mais de 1.000 quilómetros de distância.
as agro-indústrias são responsáveis por cerca de metade dessa No que toca à procura, as medidas visaram um reajustamento
poluição. Indústrias em franco crescimento como os têxteis, a do consumo de água à luz das suas potencialidades ecológicas. A
indústria química e de produtos farmacêuticos são responsáveis partir de 2000, a Comissão de Conservação do Rio Amarelo passou
142 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
Caixa 4.1 China — como gerir a crise da água no contexto de um forte crescimento económico (continuação)
a ser autorizada a promover transvases para os sistemas ambientais lucrativas, os fiscais locais contornam muitas vezes a lei e as nor-
— uma medida incentivada por secas constantes. Também foram mas que restringem a poluição.
adoptadas medidas de fomento da eficiência para aumentar os ín- • Direitos e titularidades frágeis. Os agricultores estão a perder os
dices de produtividade da água na agricultura, incluindo tecnologias seus direitos à água, frequentemente sem receberem qualquer
de irrigação e incentivos à produção de colheitas de maior valia. Na compensação em troca. As associações de consumidores de
indústria, os preços da água estão a aumentar, e encontram-se em água, geralmente apoiadas pelos governos locais, desenvolvem
preparação novas medidas regulamentares. iniciativas no sentido de tentar garantir direitos à água e respon-
O esforço desenvolvido no sentido de reequilibrar a oferta e a der às reclamações relacionadas com os transvases. Mas os
procura através de uma redistribuição administrativa em situações modelos de redistribuição adoptados reflectem decisões mar-
de pressão sobre os recursos hídricos constitui hoje um dos maiores cadas por burocracias relativas à divisão da água, resultantes
desafios da governação: de pressões levadas a cabo por grupos poderosos da indústria
• Igualdade social. Os apoios concedidos pelo governo com vista e dos municípios. Outro problema reside no facto de as actuais
à expansão dos sistemas avançados de irrigação tiveram como comissões das bacias hidrográficas funcionarem sob a tutela do
consequência um aumento do custo da água. Os agricultores po- Ministério dos Recursos Hídricos e faltar-lhes autoridade para se
bres poderão não ter capacidade financeira para aceder a esses imporem a outros ministérios e províncias.
sistemas devido ao seu fraco rendimento e aos elevados custos • Gerir reclamações relacionadas com a ecologia. Para os executi-
do investimento. Isto poderá forçá-los a consumir menos água e vos locais, o imperativo do crescimento económico continua a ser
a desistirem das colheitas mais rentáveis ou até mesmo a aban- uma prioridade face a qualquer tipo de preocupação ecológica, o
donarem a agricultura. A solução poderá passar pelo contributo que ajuda a perpetuar situações de grave stress ambiental.
de associações de consumidores de água que apoiem e protejam Diversas províncias e municípios estão a implementar reformas
os interesses dos grupos mais vulneráveis. com o objectivo de fundirem as competências de diferentes unidades
• Fragmentação e política da força. A política actual de transvase de gestão da água num único Gabinete para os Assuntos da Água.
de água respeita as prioridades dos governos locais, frequente- Estes organismos poderiam assim assegurar direitos mais consisten-
mente influenciados por preocupações económicas sem visão, tes sobre os recursos hídricos através da colaboração com as asso-
com o único intuito de irem ao encontro dos objectivos nacionais. ciações de consumidores, por forma a criar um sistema de transvase
A fiscalização da poluição e os programas de aplicação de coi- compatível com o compromisso de maior equidade social e susten-
mas são adoptados de forma selectiva. Para manter as indústrias tabilidade ecológica.
Fonte: Banco Mundial 2001; Shen e Liang 2003; CAS 2005; Cai 2006; Shalizi 2006.
R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 14 3
Escassez induzida por medidas políticas
Caixa 4.2 O Iémen apresenta pressão sobre os recursos hídricos
Os sintomas de escassez parecem confirmar al-
guns dos piores receios Malthusianos acerca da in-
A água e a pobreza estão intimamente ligadas no Iémen, que tem um dos
teracção existente entre o ser humano e a água. Os
mais baixos níveis de reservas de água doce do mundo — 198 metros cúbi-
cos por pessoa — e uma das percentagens mais altas de consumo de água
efeitos conjuntos do aumento do crescimento da
na agricultura. Para agravar o problema da escassez, depara-se com grandes população e da crescente procura de recursos hídri-
variações no tempo e no espaço. E com uma previsão de crescimento popu- cos numa base fixa dão origem à escassez de água a
lacional para o dobro em 2025, as disponibilidades de água per capita irão um nível sem precedentes. É muitas vezes ignorado
descer um terço. o papel da política como factor de escassez, através
Os sintomas físicos e sociais de pressão sobre os recursos hídricos aguda de actos e omissões.
já são visíveis. As captações de água subterrânea começaram a ultrapassar Os actos concretos podem assumir muitas for-
a capacidade de reposição desde há 20 anos. A percentagem de captação mas. Os incentivos perversos ao excesso de consumo
do aquífero situado junto da cidade de Saná é 2,5 vezes superior à taxa de incluem-se entre os mais prejudiciais. Mais uma vez,
reposição. A crescente procura urbana está a impor-se ao consumo agrícola.
a exploração da água subterrânea constitui um bom
As captações realizadas sem controlo nas zonas rurais (de um total de 13.000
exemplo. Os custos de captação da água subterrânea
furos no activo, apenas 70 são propriedade do Estado) e o desenvolvimento de
mercados privados de transferência de água para os consumidores urbanos
dependem dos custos dos sistemas de bombagem e
colocam, hoje em dia, sérias ameaças à pequena agricultura acentuadas pela das tarifas de energia no momento. Uma vez insta-
incerteza dos direitos consuetudinários sobre a água. Noutras cidades como lada uma bomba, o único entrave ao seu funciona-
Ta’iz, as tensões urbanas por causa do consumo de água e da exploração de mento reside no preço da electricidade. Em muitos
água subterrânea já conduziram a confrontos violentos. casos, a electricidade para os consumidores agrícolas
Os esforços desenvolvidos no sentido de reencher os aquíferos são neu- tem sido gratuita ou subsidiada, em detrimento dos
tralizados pela extracção descontrolada, nomeadamente por parte das empre- incentivos à poupança. Na Índia, a agricultura é res-
sas privadas de camiões-cisterna que fornecem água à cidade. Cerca de dois ponsável por um terço das vendas de electricidade
terços da água da cidade provém de fontes de abastecimento privadas. Com subsidiada, mas só contribui com 3% da receita. Se-
este ritmo de esgotamento, a escassez de água irá reduzir muito a viabilidade
gundo o Banco Mundial, os subsídios ao consumo
de subsistência da população rural.
de electricidade foram responsáveis por cerca de um
Fonte: Molle e Berkoff 2006; Grey e Sadoff 2006; SIWI, Tropp e Jägerskog 2006. terço do défice fiscal da Índia em 2001.39 Estes sub-
sídios constituíram um desincentivo à poupança da
água e incentivaram modelos de cultura desaconse-
as aldeias vizinhas. Os «senhores da água» domi- lháveis. Por exemplo, é improvável que as colheitas
4 nam, hoje em dia, um extenso mercado de regadio de regadio intensivo como a cana-de-açúcar conti-
e de água para consumo — vendendo frequente- nuassem ao ritmo actual na maior parte da região de
mente às referidas aldeias e arredores a água dos Gujarat se o preço da água fosse justo e devidamente
Escassez de água — riscos e vulnerabilidades associados
poços que lhes pertenciam e que eles efectivamente controlado.40 Como os subsídios ao consumo de
esvaziaram. Milhares de aldeias ficaram privadas electricidade tendem a aumentar com a dimensão da
de água, estando dependentes do abastecimento de exploração e a profunidade dos poços, são altamente
camiões-cisterna.36 regressivos: quanto mais rico é o produtor, maior o
A exploração de água subterrânea contribui subsídio (caixa 4.3).
para realçar os custos públicos que a actuação Podemos encontrar subsídios perversos em mui-
dos consumidores privados poderá ainda origi- tos ambientes sujeitos a pressão sobre os recursos hí-
nar. A água constitui um veículo de transferência dricos. Um exemplo flagrante é a antiga prática da
de custos ambientais, ou «exterioridades», dis- Arábia Saudita de utilizar as receitas provenientes do
torcendo os indicadores do mercado. As pessoas petróleo para bombear água de rega de um aquífero
poderão sentir-se menos inclinadas a desperdi- fóssil não renovável, a fim de produzir culturas alta-
çar ou a poluir a água se tiverem de arcar depois mente consumidoras de água como o trigo e a alfalfa
com as consequências. Em Java, Indonésia, as fá- em pleno deserto. Nos anos 80, o país lançou-se num
bricas de têxteis poluíram as reservas de água a programa de desenvolvimento de um sistema de rega
tal ponto que a produção de arroz registou uma rápida a partir de um aquífero fóssil. Com apoios aos
quebra e a capacidade de pesca nas enseadas a preços, concessão de subsídios e garantias estatais de
jusante do rio ficaram comprometidas. 37 Coube investimento em infra-estruturas, a Arábia Saudita
aos agricultores, e não às fábricas, suportarem começou por tornar-se auto-suficiente na produção
os custos. Também na Índia, os rios Bhavani e de trigo e, depois, passou a ser um importante ex-
Noyyal, em Tamil Nadu, estão virtualmente inu- portador. Quase um terço da terra arável ainda se
tilizáveis para os consumidores agrícolas situados encontra destinado à produção irrigada de trigo. Os
a jusante, por culpa das indústrias intensivas de custos de produção estimados são 4 a 6 vezes supe-
tinturaria e branqueamento que laboram a mon- riores aos preços médios mundiais, não contando já
tante, em Tiruppur. 38 com os subsídios e a depauperação das reservas sub-
144 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
terrâneas. Para produzir cada tonelada de trigo são trigo para exportação — utilizam cerca de um quinto Os subsídios à produção
necessários 3.000 metros cúbicos de água — o triplo das reservas de água do Estado. Eles pagam preços para culturas de consumo
do normal. Em 2004, foi implementada uma nova estimados em menos de metade do custo da água,
estratégia de poupança de recursos hídricos desti- recebendo um subsídio que totaliza os 416 milhões intensivo de água como
nada a reduzir o consumo de água e a manter as re- de dólares por ano. Aqui, também, as transferências é o caso das sementes
servas do aquífero.41 são altamente regressivas: os 10% maiores agriculto-
oleaginosas, do açúcar,
As políticas de preços sustentam frequente- res recebem dois terços do total de subsídios conce-
mente sistemas de subsídios perversos. Os subsídios didos.44 Em países do Sul da Europa, como a Espa- do trigo e do gado criaram
à produção para culturas de consumo intensivo de nha, a produção de colheitas que consomem grandes incentivos ao investimento
água como é o caso das sementes oleaginosas, do açú- quantidades de água constitui uma fonte de pressão
car, do trigo e do gado criaram incentivos ao inves- sobre os recursos hídricos. Esta produção é possível, nessas áreas, padrões que
timento nessas áreas. Entretanto, a depreciação da em parte, graças aos subsídios concedidos no âmbito leveram à sobre-exploração
água para irrigação funcionou como um desincen- da Política Agrícola Comum.
tivo à poupança. Até no Médio Oriente e no Norte Os subsídios ao consumo de água nos países
de África, onde a escassez de água é óbvia, o preço ricos têm implicações além fronteiras, sobretudo
fixado pela água situa-se muito abaixo dos custos relativamente a produções em que a União Euro-
da sua reposição. Na Argélia, as tarifas actuais são peia e os Estados Unidos são grandes exportadores.
estimadas a 1%-7% do custo marginal do abasteci- Quando os Estados Unidos exportam produções de
mento de água.42 Uma política de preços como esta consumo intensivo de água como o arroz — são o
desencoraja o consumo eficiente e ameaça a susten- terceiro maior exportador mundial — também estão
tabilidade. Para o Médio Oriente e Norte de África a exportar grandes subsídios virtuais ao consumo de
enquanto região, estima-se que apenas 30% do cau- água. Os produtores de outros países exportadores
dal de água utilizada em rega chega, efectivamente, (como a Tailândia e o Vietname) e importadores
às sementes.43 (como o Gana e as Honduras) têm de competir em
Será que o recurso a políticas de preços como mercados distorcidos por estes subsídios.
forma de promover a eficiência e a sustentabilidade Mais prejudicial do que o acto de subsidiar in-
ambiental poderia prejudicar o princípio da igual- devidamente, poderá ser o acto de omissão. A água
dade, por excluir os agricultores pobres dos mercados poderá ser um bem disponível em quantidades limi-
da água? A resposta depende da política ambiental tadas — mas tem sido tratada como recurso ambien-
em geral e de um conjunto de outros factores de dis- tal sem risco de escassez. Os ecossistemas baseados
tribuição. As investigações levadas a cabo no Egipto na água criam as condições e mantêm o processo que 4
sugerem que a tarifa, para cobrir os custos operacio- sustenta a vida humana, incluindo o fornecimento
nais e de manutenção, teria de ser equivalente a 3% de água para a produção. No entanto, estes serviços
R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 14 5
Caixa 4.3 Subsídios de exploração de água subterrânea no México
A sobre-exploração, encorajada por subsídios ao consumo de electricidade, ame- População (%) Subsídios (%)
aça a produtividade agrícola de longo prazo. No Estado de Sonora, o aquífero costeiro 100 100
Mais alto
de Hermosillo forneceu água a uma profundidade de cerca de 11 metros nos anos 1960. 90
20% dos
90
Hoje, o sistema de bombagem capta água a uma profundidade de 135 metros — o que 80 consumidores 80
seria antieconómico sem subsídios energéticos. O excesso de captação conduziu à 70 70
intrusão salina e a perdas de terrenos aptos para a agricultura. As empresas expor- 60 60
tadoras de produtos agrícolas estão a transferir-se do interior para as zonas menos
50 50
atingidas da costa, em busca de novos recursos.
40 40
O custo anual dos subsídios ao consumo de electricidade é de 700 milhões de dó-
30 30
lares. Como o consumo de electricidade está relacionado com a dimensão das explo-
20 20
rações agrícolas, as transferências são altamente regressivas (ver figura). Isto significa Mais baixo
que muitos dos maiores consumidores receberam uma média de 1.8000 dólares por 10 20% dos 10
consumidores
ano, enquanto os mais pequenos receberam em média 94 dólares. O coeficiente de 0 0
Gini, que mede as desigualdades, é de 0,91 (1 corresponde à desigualdade absoluta) Fonte: Guevara-Sanginés 2006.
Fonte: CNA 2004; Ezcurra 1998; Guevara-Sanginés 2006; Ponce 2005; Texas Center for Public Studies 2002; Duinhof e Heederik 2002.
146 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
No centro da ideia de sustentabilidade do
Caixa 4.4 O valor real dos ecossistemas baseados na água
consumo de recursos está a afirmação de que
os sistemas de produção deveriam ser geridos
Quanto vale a água? Os mercados dão uma fraca resposta porque os ser-
de forma que pudéssemos esgotar os actuais re-
viços dos ecossistemas não estão geralmente cotados — e também porque
cursos sem com isso destruir as bases que irão
fornecem bens públicos a que é difícil atribuir um preço.
ser um dia herdadas pelas futuras gerações.
Os ecossistemas constituem uma enorme fonte de riqueza. Eles desem-
Este aspecto é vital para o desenvolvimento
penham funções ecológicas — como a filtragem de águas — e conservam as
humano. Implícito nesta ideia está o princípio
condições ambientais vitais para a produção de alimentos e outros produtos.
da igualdade distributiva transgeracional —
Uma estimativa do valor económico das zonas pantanosas da Bacia do Zambeze
a crença de que temos obrigações para com as
feita pela União Mundial para a Conservação avaliou as suas funções ecológicas
futuras gerações. 46 Os actuais governos estão a
em 63 milhões de dólares, mais de metade dos quais em depuração de água e
violar esse princípio, ao esgotarem por completo
sistemas de tratamento. Nos pântanos de Hadejia Nguru, na Nigéria, a utilização
as reservas de água nacionais.
tradicional das planícies de aluvião rende 12 dólares por metro cúbico de água
O principal desafio que se coloca à gestão
em produção de arroz, comparados com os 0,04 dólares por metro cúbico ob-
dos recursos hídricos é reajustar o consumo de
tidos a partir dos esquemas de irrigação.
água à procura de modo a manter a integridade
Os pântanos também se revelam cruciais para a subsistência do povo ca-
do meio ambiente. Embora as políticas variem
renciado. No Mali, as zonas pantanosas do Delta do Níger sustentam 550.000
consoante o país, é preciso garantir cinco gran-
pessoas, incluindo pescadores, pastores e produtores que cultivam metade do
des factores:
arroz produzido no Mali.
• Desenvolvimento de uma estratégia nacional.
A cidade de Nova Iorque fornece um dos melhores exemplos de um ecosser-
Um objectivo central da gestão integrada de
viço em funcionamento. Ela desvia a maior parte da água que consome a partir
recursos hídricos é adaptar os padrões de
de reservatórios localizados nas Montanhas Catskill. À medida que a região se
consumo de água às disponibilidades exis-
foi desenvolvendo, a poluição começou a ameaçar a água potável da cidade.
tentes, tendo em atenção as necessidades am-
Confrontada com a opção entre um projecto de depuração orçado em 6-8 mil
bientais. Para atingir esta meta, é necessário
milhões de dólares ou uma reconstrução ambiental avaliada em 1,5 mil milhões
haver informação de alto nível acerca dos
de dólares, as autoridades da cidade escolheram a reconstrução. Recorrendo
recursos hídricos. Tmabém se exige uma ca-
a um empréstimo obrigacionista ambiental, a cidade adquiriu terras que se en-
pacidade por parte dos governos locais e na-
contravam dentro e à volta da bacia hidrográfica e aprovou a concessão de um
cionais de implementarem políticas de pre-
subsídio para um projecto de gestão sustentável de recursos.
ços e de distribuição que reduzam a procura
para valores consentâneos com os limites da
Tal como o responsável pelo meio ambiente da cidade fez notar: «A depura- 4
ção mais não faz do que resolver um problema. Mas prevenir o problema através
sustentabilidade. O planemanto nacional
da defesa da bacia hidrográfica é mais rápido, mais barato e traz muitas outras
efectivo deverá prever disposições para o
R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 147
Caixa 4.5 Aumentar as reservas através da redução da poluição — mercados e tecnologias
Cotar a água a um preço que ignore a sua escassez, ou a protecção cursos hídricos naquele país. Diversas indústrias locais investiram
ecológica, poderá constituir um incentivo disfarçado ao desperdí- no tratamento de águas através da osmose inversa e nas tecno-
cio e à poluição. Criar os incentivos apropriados pode fazer aumen- logias de reciclagem, conseguindo assim depurar eficazmente as
tar muito as disponibilidades de água. A Índia é exemplo tanto do águas residuais. Com um investimento inicial ligeiramente inferior
problema como das potenciais soluções. a 3 milhões de dólares, a empresa Fertilizantes de Madras recicla
A legislação aprovada em 2003, introduzindo multas para mais de 80% dos 15,12 milhões de litros de água utilizados diaria-
controlar a poluição, provou ser ineficaz. As multas representa- mente nas torres de refrigeração da fábrica. A empresa também
ram apenas uma fracção insignificante dos custos para a maio- fornece diariamente 3 milhões de litros de água doce à cidade de
ria das indústrias poluentes. Para a energia térmica, papel, ferro Chennai.
e aço, a percentagem foi de 0,1%-0,5% dos custos operacionais. Esta eficiência no tratamento das águas também foi seguida
As tarifas também se revelaram ineficazes. Muitas indústrias auto- noutras regiões. Uma das empresas de pasta de papel com con-
abasteceram-se através da bombagem de águas subterrâneas. E trolo de água mais eficiente no país, a Papéis J.K., fica situada em
mesmo quando as tarifas são aplicadas, são geralmente baseadas Rayagada, uma zona escassa em água do Distrito de Orissa, e a
em preços médios e não em preços de custo marginal. E ignoram indústria açucareira com tratamento de águas mais eficaz, a Açú-
as exterioridades ambientais. car Natural e Indústrias Associadas, fica no distrito de Latur, em
A escassez de água começou a gerar soluções tecnológicas Maharastra, onde também há falta de água. A primeira unidade
inovadoras. Os custos operacionais dessas tecnologias tornaram- fabril têxtil com «zero descargas» do país, a Fábrica Arvind, está
se mais competitivos com o aumento do preço de compra da água localizada em Santej, em Gujarat, onde as faltas de água são um
nas regiões onde ela escasseava. Por exemplo, o custo de trata- problema recorrente.
mento dos resíduos líquidos municipais através da osmose inversa Estas histórias de sucesso servem para sublinhar a forma
em Chennai oscila entre 25-50 rupias por metro cúbico, equivalente como os incentivos e a tecnologia podem alterar os parâmetros
às tarifas da água doce cobradas pelo Organismo de Abasteci- da escassez de água. A maioria das inovações foi implementada
mento de Água e Lixos de Madras. pelo sector privado. Olhando para o futuro, há perspectivas de os
Algumas das melhores práticas de consumo de água na Índia impostos e outros incentivos virem a encorajar a expansão das
emergiram em regiões atingidas pela escassez, de que é exemplo tecnologias de tratamento eficaz da água, em nome do interesse
Chennai, uma das cidades mais atingidas pela pressão sobre os re- público geral.
148 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
40 mil milhões de metros cúbicos de água por ano apresenta factores restritivos. Para os países ricos O desvio dos caudais dos
— aproximadamente o volume de outro Rio Amarelo em petróleo e para as cidades relativamente próxi- rios oferece uma melhoria
— de Yangtze para as planícies sequiosas do Norte mas do mar, a dessalinização constitui uma pro-
da China e para as megacidades dessa região. O pro- messa como fonte de água para consumo domés- de curto prazo para um
jecto chinês não é caso único. Na Índia, o Projecto tico. A capacidade de resolução dos problemas das problema de longo prazo.
de Interligação de Rios é um plano ambicioso e de cidades pobres em países de baixos recursos é mais
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o constitui panaceia
cortar a respiração, que pretende redesenhar o mapa limitada — e é improvável que a dessalinização re-
hidrológico do país, aproveitando o caudal dos rios solva o desequilíbrio fundamental entre a oferta e para o uso excessivo
do Norte bafejados com monções perenes, tais como a procura de água. Este método contribui presen-
o Brahmaputra e o Ganges, para encher os rios do Sul, temente com apenas 0,2% das captações de água
permanentemente secos e a retraírem-se, como são os mundiais e tem um potencial reduzido na agricul-
casos do Kavery e do Krishna, que foram sendo esva- tura e indústria (caixa 4.6). 48
ziados por causa das excessivas captações destinadas
à agricultura, indústria e centros urbanos.
Avaliado numa perspectiva meramente quantita- Água virtual
tiva, o desvio dos caudais dos rios oferece uma melho- As importações de água virtual são uma outra
ria de curto prazo para um problema de longo prazo. opção da vertente abastecimento para aliviar a
Não constitui panaceia para o uso excessivo. Além escassez de água. Quando os países importam
disso, qualquer transvase de rio implica o risco de cereais e outros produtos agrícolas, eles também
elevados custos sociais e ecológicos e a possibilidade estão a importar a água utilizada na produção
de aparecimento de novos obstáculos ambientais. Em desses produtos. O comércio de água virtual
Espanha, um plano para desviar o Rio Ebro do Norte gera poupanças de água para os países importa-
para as zonas de comércio agrícola do Sul acabou por dores, bem como poupanças de água mundiais,
ser metido na gaveta, em parte devido a uma reavalia- por causa do diferencial existente em termos
ção política dos custos e em parte porque o projecto de produtividade de água entre exportadores e
não se coadunava com as orientações de sustentabili- importadores.
dade ambiental impostas pela Directiva da Água da O comércio da água virtual tem vindo a crescer
UE. Na China, a faceta mais ambiciosa do plano de exponencialmente com o comércio alimentar. Em
transvase de Sul para Norte pressupunha transferir as termos globais, estimou-se que o comércio efectu-
águas glaciais a montante de Yangtze, no Tibete, até ado em 2000 tenha rondado os 1.340 mil milhões
ao Rio Amarelo. No entanto, o aquecimento global de metros cúbicos, o que equivale ao triplo dos ní- 4
coloca sérias interrogações sobre o volume e a duração veis de 1960. Para melhor percebermos o alcance
das futuras correntes glaciais. disto, este número representa cerca de um quarto
R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 14 9
Caixa 4.6 A dessalinização — e as suas limitações
A dessalinização é uma opção técnica para obter água doce a partir décimo da produção total. Outras zonas, como Tampa Bay, na Florida,
da água do mar. Destilar a água do mar através da sua ebulição e e Santa Cruz, na Califórnia, adoptaram fábricas de osmose inversa, e a
recolher posteriormente o vapor consiste numa prática muito antiga China anunciou o projecto de uma fábrica em Tianjin, a terceira maior
— uma actividade que se foi transformando ao longo dos últimos 20 cidade do país. Em Espanha, o novo governo abandonou as fábricas
anos, através do recurso a novas tecnologias. Mas há limites para a de bombagem de água existentes por todo o país, desde o Norte hú-
sua utilização. mido ao Sul árido, em benefício de 20 fábricas de osmose inversa (o
Em 2002, o mercado mundial de dessalinização andava pelos 35 suficiente para satisfazer 1% das necessidades), embora o custo da
mil milhões de dólares. Hoje, há mais de 12.500 fábricas a operar em água dessalinizada possa não ser suficientemente tentador para levar
120 países. Tradicionalmente, a dessalinização era feita através do os agricultores a abandonarem as suas actuais fontes de irrigação
aquecimento térmico com a ajuda de petróleo e energia como fonte subterrâneas. No Reino Unido, a estação de tratamento de águas que
de calor. As fábricas mais modernas substituíram esta tecnologia pela serve Londres tem uma unidade de osmose inversa que começará a
osmose inversa — pressionando a água através de uma membrana operar em 2007.
e recolhendo assim as moléculas de sal. Os custos de produção de Este padrão de distribuição permite-nos sublinhar as potenciali-
água através deste método diminuíram substancialmente, de mais de dades e as limitações da dessalinização. Embora os custos estejam
1 dólar por metro cúbico há uma década, para menos de metade hoje a diminuir, os custos de capital das novas fábricas são consideráveis
em dia. A energia que produz a conversão representa uma parcela e os custos operacionais são altamente dependentes dos preços da
insignificante do custo total. energia. Projectos recentes levados a cabo em Israel e noutros paí-
Israel dispõe dos mais elevados padrões no processo de dessa- ses demonstram-no, tendo os orçamentos de abastecimento de água
linização da água. Na sequência da implementação da estratégia de aumentado para 0,80-1 dólar por metro cúbico. Os custos da bomba-
planificação lançada em 2000 — o Plano Director de Dessalinização gem de água também aumentam muito com a distância, pelo que as
— este país produz agora cerca de um quarto da sua água doce para cidades do interior dispõem de estruturas com custos mais elevados.
consumo doméstico através da dessalinização. A fábrica de Ashkelon, Estes factores ajudam a explicar o motivo por que os Estados ricos
orçada em 250 milhões de dólares, e que começou a operar em 2005, em petróleo e as cidades costeiras situadas em zonas de escassez de
é a maior unidade de osmose inversa e a mais avançada do mundo, água continuarão, provavelmente, a ser os principais consumidores.
produzindo água doce ao custo de 0,52 dólares por metro cúbico. Ela Mas os padrões de consumo estão a mudar lentamente por toda
fornece cerca de 15% da água doce utilizada em Israel para consumo a parte. Nalguns países, é provável que a dessalinização venha a con-
4 doméstico. Os projectos actuais prevêem um aumento da produção tar com um aumento da percentagem de consumidores de água do-
diária das fábricas de dessalinização dos actuais 400 milhões de me- mésticos e industriais. Os municípios já representam dois terços dos
Escassez de água — riscos e vulnerabilidades associados
tros cúbicos para cerca de 750 milhões de metros cúbicos em 2020. consumidores e a indústria um quarto. O potencial na agricultura é
A actual capacidade de dessalinização encontra-se altamente reduzido, devido ao preço de custo. Isto acontece, sobretudo, no caso
concentrada. Os estados do Golfo são responsáveis pelo grande au- dos produtores de culturas básicas de baixo valor acrescentado, que
mento da capacidade, sendo a Arábia Saudita responsável por um necessitam de grandes quantidades de água.
Fonte: Rosegrant e Cline 2003; Schenkeveld e outros 2004; Rijsberman 2004a; BESA 2000; Water-Technology.net 2006.
da falta de água através da expansão do comércio de exportadores de produções que consomem intensi-
água virtual peca por exagero, pelo menos numa vamente água, tais como o algodão e o arroz — por
perspectiva de desenvolvimento humano. exemplo, a Austrália e os Estados Unidos — entrem
Consideremos, em primeiro lugar, o argumento em linha de conta com os prejuízos ambientais (ou
de que o comércio de água virtual representa um subsídios a água virtual) quando definem os seus
exercício de vantagem comparativa. Os países ricos preços de exportação.
contribuem com mais de 60% das exportações agrí- A complexa interacção entre a importação de
colas mundiais. Se considerarmos que estes países alimentos e a segurança alimentar constitui outro
forneceram mais de 280 mil milhões de dólares de factor de preocupação. Podem surgir graves pro-
ajuda agrícola em 2005, decorre daí que este mer- blemas de segurança alimentar quando as impor-
cado da água virtual sofreu distorções idênticas às tações alimentares são resultado de fraco cresci-
sentidas pelos mercados que forneceram os produ- mento e de declínio da produtividade agrícola,
tos que facilitaram este intercâmbio de água.51 No como sucede na África Subsariana. Por exemplo,
que respeita aos custos de oportunidade associados as importações de cereais na África Subsariana
ao consumo de água, não é seguro que os principais já estão programadas para mais do triplo no ano
150 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
de 2025, isto é, para 35 milhões de toneladas.52 Paquistão, descobriu taxas de incidência de diarreia O uso controlado de água
É pouco provável que esta região esteja em posição e de infecções por ancilostomas entre os agriculto- tratada poderia atenuar
de financiar essas importações numa base previsível e res utentes de águas residuais duas vezes superiores
sustentável, o que sugere uma dependência crescente às registadas entre os agricultores que utilizavam significativamente as
da ajuda alimentar. Além disso, quando os países im- canais de irrigação.55 pressões de adaptação
portam água virtual, também estão a importar subsí- O uso controlado de água tratada poderia ate-
enfrentadas hoje em dia
dios virtuais e reais, contra os quais os seus próprios nuar significativamente as pressões de adaptação
agricultores têm de competir nos mercados locais. enfrentadas hoje em dia pela gestão dos recursos pela gestão dos recursos
Estes subsídios podem baixar os preços e reduzir as hídricos na agricultura. Israel é uma prova desse hídricos na agricultura
quotas de mercado com implicações negativas para potencial. Mais de dois terços das águas residuais
os esforços de redução da pobreza rural. produzidas todos os anos no país são agora tratados
e utilizados para irrigação agrícola. A maior parte
provém da empresa nacional de águas, que também
Reciclar as águas residuais estabeleceu normas restritas para os níveis de trata-
Algumas políticas simples de gestão de água, aliadas mento de água: as águas residuais de menor quali-
às tecnologias apropriadas, podem ajudar a aliviar dade são canalizadas para as colheitas mais toleran-
o desequilíbrio entre a oferta e a procura de água. tes, como o algodão, sendo as águas com tratamento
Um exemplo disso é a reutilização das águas resi- de melhor qualidade utilizadas para regar vegetais
duais através do tratamento dos detritos de modo a ou reencher os lençóis freáticos.56 Deste modo, as
poder devolvê-las aos rios, usá-las para irrigação ou águas residuais de Telavive sustentam a irrigação
disponibilizá-las para a indústria. agrícola em toda a região árida do Sul. Outros países
A reciclagem das águas residuais para utilização estão a seguir as pegadas de Israel. Cidades situadas
na agricultura peri-urbana já é feita em larga escala. nas zonas de escassez de água da Califórnia estão
Estima-se que as águas residuais irrigam, directa a investir fortemente em fábricas de tratamento de
ou indirectamente, cerca de 20 milhões de hecta- alto nível de todo o tipo de resíduos domésticos e
res de terras em todo o mundo — ou seja, cerca de industriais, reutilizando depois essa água para a
7% do total da área irrigada.53 No Vale Mezquital, agricultura e a refrigeração industrial. A cidade me-
no México, cerca de meio milhão de famílias rurais xicana de San Luís Potosi recicla 60% das águas resi-
são abastecidas por sistemas de irrigação mantidos duais da cidade para as distribuir pelos agricultores
a partir de águas residuais não tratadas. No Gana, depois de tratadas numa fábrica moderna.
os agricultores que habitam à volta de Kumasi utili- Muitos países em desenvolvimento partem de 4
zam águas residuais nos seus 12.000 hectares, mais uma posição de considerável desvantagem em ter-
do dobro da área coberta pelos sistemas formais de mos de recursos de águas residuais. A maioria das
R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 151
Os povos e os governos Embora poucos países em desenvolvimento estejam O aumento da produtividade constitui uma
de todo o mundo estão a em posição de duplicar o sistema de distribuição de forma de reduzir o problema da falta de água — e
águas residuais de Israel, bastaria um conjunto de o conceito de mais colheita por gota também tem
tomar consciência do valor regras simples para fazer toda a diferença. O Mé- muito por onde se expandir. A boa nova é que
da água e dos custos a xico usa o expediente de banir as águas residuais na o aumento da produtividade dos recursos hídri-
irrigação de frutos e legumes. A Jordânia e a Tunísia cos registado nas últimas décadas tem-se reve-
pagar por terem ignorado
desenvolveram campanhas de educação pública al- lado espectacular. A quantidade de água neces-
esse valor no passado. tamente inovadoras entre os produtores rurais para sária para produzir cereais para alimentar cada
lhes ensinar estratégias de redução dos riscos de habitante do planeta desceu para metade, desde
saúde associados ao uso de águas residuais. 1960. O lado negativo disto é que, em muitas das
bacias hidrográficas mais atingidas pela escassez
no mundo inteiro, a produtividade permanece
Regulamentação da procura muito baixa. As análises comparativas realizadas
de um recurso escasso em diversos países mostram, sem margem para
dúvidas, o alcance de uma política de fomento
«Quando os poços secam», observou Benjamin da produtividade da água medida simplesmente
Franklin, um dos arquitectos da Declaração de em função do conceito mais colheitas por gota.
Independência dos Estados Unidos, «é que nos Na Califórnia, 1 tonelada de água dá para pro-
damos conta do valor da água». Hoje em dia, os duzir 1,3 quilogramas de trigo. No Paquistão,
povos e os governos de todo o mundo estão a tomar a mesma quantidade de água produz menos de
consciência do valor da água e dos custos a pagar por metade.57 A produção de uma tonelada de milho
terem ignorado esse valor no passado. Os políticos em França consome menos de metade da quanti-
estão a pagar, agora, a factura de uma postura ante- dade de água que seria necessária na China. As
rior que encarou a água como um recurso que podia variações existentes entre os diferentes sistemas
ser explorado de forma ilimitada. de irrigação nos países em desenvolvimento tam-
E, como as pessoas ganharam maior consciên- bém são enormes: por exemplo, a China produz
cia do valor dos recursos hídricos, tem-se registado o dobro da quantidade de arroz da Índia com o
uma preocupação crescente em aumentar a produti- mesmo volume de água.
vidade da água. Que significado terá isto na prática? O padrão de referência da eficácia da água
Embora sejam frequentemente confundidas, exis- na agricultura consiste na irrigação gota a gota,
4 tem duas formas distintas de abordar o problema da um método que distribui a água directamente
produtividade da água, quando se debate a sua uti- nas raízes das plantas.58 Na Jordânia, a irrigação
lização. Uma dessas abordagens privilegia a impor- gota a gota permitiu reduzir o consumo de água
Escassez de água — riscos e vulnerabilidades associados
tância de se aumentar a produtividade física deste re- em cerca de um terço. Contudo, a Jordânia é a
curso, através do incremento do rácio «mais colheita excepção. A tecnologia gota a gota foi até agora
por gota». Paralelamente a esta abordagem, concen- adoptada em menos de 1% das terras irrigadas do
tram-se esforços no sentido de aumentar a produti- mundo inteiro — e 90% da sua capacidade está
vidade, medida em função do valor acrescentado da sediada nos países desenvolvidos.59 A criação de
produção: a água é um recurso escasso de capital im- parcerias mundiais que promovessem a transfe-
portância, que deveria ser consumido sobretudo nas rência tecnológica financiada através da ajuda in-
situações em que pode gerar maior riqueza. ternacional poderia fazer toda a diferença.
Numa perspectiva de desenvolvimento hu-
mano, o problema da irrigação gota a gota e da
Fomentar o conceito da expansão das tecnologias é de índole distributiva.
colheita por gota As novas tecnologias podem reequilibrar a oferta
Que implicações terão estas alterações no desenvolvi- e a procura para níveis de consumo de água redu-
mento humano? A defesa do aumento da produtivi- zidos. Contudo, a distribuição dessas tecnologias
dade da água em função do conceito mais colheita por no mundo é raramente neutra. A nível global, as
gota poderá ter consequências avassaladoras. Conci- tecnologias para a conservação de água são estão
liar a satisfação das necessidades de uma população concentradas nos países ricos, em parte devido
em crescimento com a protecção dos ecossistemas aos custos de capital envolvidos. E mesmo no in-
naturais, de que depende a própria vida no planeta, terior de cada país, o acesso aos métodos inovado-
constitui um factor crucial para o desenvolvimento res de poupança de água exige disponibilidade de
humano sustentável. Para fazer face a este desafio, capital, conhecimento e melhores infra-estrutu-
o mundo terá de adoptar uma gestão da água para ras. Os agricultores pobres das regiões marginais,
irrigação mais exigente e engenhosa — por exemplo, e nomeadamente as mulheres agricultoras, são os
trocando tecnologia e conhecimento por água. que têm menos capacidade de acesso a esse tipo
152 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
de benefícios. A questão está em sabermos se, ao Mantendo-se os restantes factores inalteráveis, O maior desafio consiste
aumentar a produtividade e reduzir o consumo poderia esperar-se que um volume de água equi- em desenvolver uma
de água, as novas tecnologias hídricas irão ajudar valente viesse a gerar maiores lucros quando
a resolver um dos aspectos da crise da água, e, ao aplicada à produção de frutas, vegetais, gado ou nova ética na gestão
mesmo tempo, acentuar as desigualdades sociais produtos lácteos de elevado valor acrescentado, dos recursos hídricos
e económicas. Mas isso não é uma inevitabili- em vez de alimentos básicos como o arroz. 62 O
apoiada num compromisso
dade: como iremos demonstrar no capítulo 5, as mesmo se aplica à indústria de elevado valor
tecnologias gota a gota a baixo custo estão cada acrescentado. de resolução das
vez mais generalizadas. Contudo, em países onde a grande maioria da profundas desigualdades
população depende da agricultura como meio de
subsistência, e onde a produção de produtos alimen- que conduzem à
Desvio da água para utilizadores tares básicos representa uma grande fatia dos rendi- insegurança da água
de maior valor acrescentado mentos e do emprego das famílias carenciadas, as
A tentativa de transferir as maiores percenta- perdas de água podem traduzir-se numa importante
gens de consumo de água para zonas de maior ameaça ao desenvolvimento humano. O perigo
valor acrescentado também levanta alguns pro- óbvio é que o desvio de água possa gerar mais riqueza
blemas análogos. Trata-se de uma das principais e, ao mesmo tempo, destrua os meios de subsistência
recomendações dos defensores de uma solução de alguns dos povos mais vulneráveis do mundo.
«suave» para o problema da escassez dos recursos
hídricos. Em vez de se pretender fomentar o con-
ceito mais colheita por gota, o objectivo — para Gestão integrada de recursos hídricos
deixarmos de parte os rodeios — é ganhar mais Voltaremos a abordar estes problemas da distri-
dinheiro por metro cúbico. O pressuposto sub- buição no capítulo 5. Mas começa a emergir já,
jacente a isto é de que a água, enquanto recurso como pano de fundo, um certo consenso em
cada vez mais escasso, tem de ser utilizada nas torno da gestão da água. Na Cimeira Mundial
regiões onde possa gerar maiores dividendos. 60 sobre Desenvolvimento Sustentável realizada em
Em termos de valor nominal, esse pressuposto 2002, os governos adoptaram a gestão integrada
parece bastante razoável. Aplicado à Califórnia, dos recursos hídricos como um modelo a seguir
onde a água usada, por exemplo, na produção de no futuro. Esta opção incide sobre a importân-
micro-chips, gera mais lucro e emprego do que cia de uma gestão dos sistemas de distribuição de
a água utilizada nas zonas de cultivo de arroz e água dentro dos limites ecológicos das reservas 4
algodão fortemente subsidiadas e de capital in- disponíveis, com a contrapartida de três facto-
tensivo, as opções políticas parecem claras. Na res: equidade, eficácia e sustentabilidade ambien-
R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 15 3
Caixa 4.7 Gestão Integrada de Recursos Hídricos
Atingir um desenvolvimento e gestão coordenada da água, O alcance desta cooperação é impressionante. A Comis-
das terras e dos recursos a eles associados no sentido de são da Bacia Hidrográfica de Murray-Darling, criada em 1988,
maximizar, de forma equitativa, o bem-estar económico impôs um limite ao consumo de água, tendo em consideração
e social daí resultante, sem comprometer a sustentabili- os requisitos ecológicos para a conservação da integridade do
dade de ecossistemas vitais. sistema. São atribuídos a cada Estado direitos quantitativos de
É esse o objectivo da gestão integrada de recursos hídri- consumo de água que, por sua vez, os distribui pelos diferentes
cos. Adoptado em 2002 pela Cimeira Mundial sobre Desenvol- consumidores Os conflitos são dirimidos através de procedi-
vimento Sustentável de Joanesburgo, como parte da estratégia mentos legais predefinidos, incluindo cláusulas que prevêem a
internacional alargada para atingir os Objectivos de Desenvol- venda de direitos de consumo de água por parte das entidades
vimento do Milénio, o conceito marca o que de mais recente colectivas e dos consumidores individuais.
existe na evolução das estruturas de gestão da água desen- A participação pública na gestão tem vindo a evoluir ao longo
volvido desde a Conferência Internacional da Água, realizada do tempo e passou a incluir grupos ambientais, comités de con-
em 1992. Essa conferência estabeleceu três princípios chave trolo de represas, organizações de agricultores e outros repre-
para uma boa gestão: sentantes das partes interessadas envolvidas nos processos de
• O princípio ecológico que deve nortear a introdução do consulta. Um Comité de Aconselhamento Comunitário disponibi-
conceito da gestão da água nas zonas das bacias hidro- liza ampla informação técnica sobre as redes de distribuição de
gráficas em detrimento dos consumidores institucionais in- água. A autoridade pública da Comissão da Bacia Murray-Darling
dependentes, com a adopção de uma gestão integrada de baseia-se numa estrutura institucional que funciona por delega-
terras e de água ditada por razões ambientais. ção de poderes de um Conselho Ministerial de alto nível.
• O princípio institucional que baseia a gestão dos recursos Reproduzir estas condições nos países em desenvolvimento
hídricos no diálogo entre as partes interessadas através de não será tarefa fácil. A estrutura de gestão da água no período
instituições transparentes e responsáveis orientadas pelo pós-apartheid na África do Sul apresenta algumas característi-
princípio da subsidiariedade — a desconcentração de au- cas institucionais comuns à iniciativa de Murray-Darling. O plano
toridade ao mais baixo nível, desde os grupos de consu- nacional dos recursos hídricos está altamente descentralizado.
midores até aos executivos locais e aos organismos de Os ministérios envolvidos na distribuição dos recursos hídricos
gestão das bacias hidrográficas. estão todos reunidos num poderoso organismo de cúpula. As
• O princípio económico que aconselha o recurso a maiores redes de distribuição de água também concedem direitos de
incentivos e princípios baseados nas leis do mercado, com consumo ambiental sob a forma de reservas inegociáveis, defi-
vista a melhorar a eficácia da água enquanto recurso cada nidas pelo governo com o objectivo de garantir a quantidade, a
4 vez mais escasso. qualidade e a fiabilidade da água necessárias à conservação da
Trata-se de princípios gerais que constituem fortes alicer- integridade dos sistemas ecológicos. Neste ciclo de planificação
ces de qualquer sistema de gestão da água. O ponto de partida anual, não são concedidas licenças de consumo de água até que
Escassez de água — riscos e vulnerabilidades associados
de qualquer gestão integrada de recursos hídricos reside na a reserva ambiental tenha sido definida.
necessidade de se encarar a água como um recurso ambien- Contudo, os processos institucionais levam o seu tempo. O
tal único e de se proceder à sua distribuição dentro dos pa- Brasil é por vezes citado como um modelo em determinados as-
râmetros de uma política pública coerente, concertada entre pectos da gestão integrada de bacias hidrográficas. Mas mesmo
os principais grupos de consumidores de água: agricultura, no Ceará, muito provavelmente o estado que apresenta melhor
indústria e consumidores domésticos. Ao garantir a sustenta- desempenho, levou mais de uma década a desenvolver um mo-
bilidade, este modelo também reconhece a existência de limi- delo de gestão participada dos recursos hídricos.
tações ecológicas ao consumo da água, bem como a necessi- A Lei Nacional da Água, de 1997, veio revolucionar os mo-
dade de o meio ambiente ser encarado como um consumidor delos de gestão dos recursos hídricos no Brasil. Esta legislação
de direito próprio. Mas a transposição destes princípios para foi passada ao papel após cinco anos de debates organizados
medidas políticas concretas já será mais problemática. a nível nacional, que incluíram milhares de reuniões e audições
Provavelmente, um dos casos mais frequentemente men- públicas. A descentralização da gestão dos recursos hídricos
cionado como modelo de boas práticas de gestão integrada surgiu como um objectivo político de crucial importância, uma
de recursos hídricos ao nível das bacias hidrográficas talvez vez que as bacias hidrográficas foram consideradas como pla-
seja o da Iniciativa da Bacia Murray-Darling, no Sudeste da taformas ideais para se promover uma transferência do poder.
Austrália, que abrange 20 rios e um grande número de sistemas Foram criados novas instituições a todos os níveis de gestão, in-
de lençóis subterrâneos que se estendem por cinco estados. cluindo um órgão de cúpula que reunia representantes de todos
A bacia hidrográfica representa três quartos de toda a área os ministérios da tutela dos recursos hídricos, representantes
irrigada da Austrália, estando mais de um quarto destinado à estatais, consumidores e agências não governamentais.
exploração pecuária e metade aos ovinos e campos de cultivo. O Estado do Ceará tem sido um dos reformadores mais bem
Esta iniciativa nasceu como uma tentativa de cooperação entre sucedidos. Situado numa região propensa à seca e semi-árida,
parceiros no âmbito da gestão integrada dos recursos hídricos, no Nordeste, trata-se de um dos estados mais pobres do Brasil,
em resposta à crise gerada pela grave degradação ecológica com mais de 70% de famílias rurais abaixo do limiar da pobreza.
sentida e pelo excesso de captação de águas para irrigação O Ceará tem cinco grandes bacias hidrográficas, mas nenhum
numa região que já é semi-árida. rio com caudal natural perene. Os conflitos nestas bacias hidro-
154 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
Caixa 4.7 Gestão Integrada de Recursos Hídricos� (continuação)
gráficas têm vindo a intensificar-se à medida que a crescente A experiência acabou por ser aplicada noutros locais, de
procura por parte dos consumidores industriais e dos municí- uma forma híbrida. A Cimeira de Joanesburgo convidou todos
pios de Fortaleza, a capital do Estado, entra em competição os países a esboçarem planos de gestão integrada de recur-
com os consumidores da agricultura de regadio, que consomem sos hídricos num prazo de cinco anos; um objectivo irrealista
mais de 80% das reservas existentes. entretanto já alterado face aos constrangimentos das reservas.
A reforma da água no Ceará insere-se num processo mais No final de 2005, apenas 20 dos 95 países contemplados pela
amplo de democratização e descentralização. A Bacia Hidro- Parceria Mundial da Água tinham elaborado esse plano ou es-
gráfica do Baixo Jaguaribe ilustra bem esse processo político. A tavam em vias de o fazer. E apenas cinco pertenciam à África
Empresa de Gestão dos Recursos Hídricos do Ceará (EGRHC), a Subsariana, e um (Brasil) à América Latina.
agência estatal da bacia hidrográfica daquele rio, convocou uma Nalguns casos, houve um grande empenho neste planea
assembleia-geral com 180 grupos de consumidores da zona. mento, sem resultados tangíveis. Por exemplo, a Nicarágua
A referida assembleia, que incluía representantes da indústria, levou mais de dois anos a preparar um plano de 13 volumes,
agricultores comerciais, sindicatos e cooperativas de trabalha- mas não conseguiu estabelecer mecanismos de acompanha-
dores rurais, desenvolveu um plano operacional para a gestão mento eficazes. Nada disto deverá pôr em causa os progressos
do consumo de água na bacia hidrográfica apoiado pelo acon- registados até à data. Partindo de uma situação fragilizada, o
selhamento técnico fornecido pelos hidrologistas da EGRHC. A Bangladeche, o Burquina Faso, a Namíbia e o Uganda levaram
implementação foi supervisionada pelo Comité de Representan- a cabo importantes reformas institucionais, embora a sua im-
tes eleitos pela assembleia. Após um ano de baixa precipitação plementação possa parecer desanimadora.
em 2000, a Comissão de Consumidores reuniu-se para esboçar A gestão integrada dos recursos hídricos requer a existên-
estratégias de redução das captações de água aprovadas na- cia de instituições que levam vários anos a desenvolver, mesmo
quela assembleia. quando existe um forte compromisso político, e não oferece
Conseguiram-se bons resultados graças ao elevado número soluções já feitas para alguns problemas clássicos associados
de participantes e ao debate público realizado no âmbito da à gestão da água. Um plano teoricamente integrado de gestão
Comissão de Utentes, que contribuiu para instituir as normas da água diz muito pouco acerca dos interesses que serve e das
de regulamentação da concorrência. Também foi importante o vozes que ouve. Em muitos casos, a gestão integrada de recur-
contributo de um organismo de aconselhamento técnico sólido, sos hídricos peca por ter um enfoque técnico limitado. Tem-se
considerado competente e independente dos interesses dos di- dado muito mais atenção ao aumento da eficácia do consumo
versos grupos de consumidores. E o apoio das coligações par- de água através do seu transvase para zonas de maior valor
tidárias à EGRHC e outros processos de participação política acrescentado ou por meio de novas tecnologias, do que à equi-
similares ao nível da saúde e da educação em todo o Estado con- dade e à justiça social, que são fundamentais para o desenvol- 4
tribuíram para despolitizar alguns aspectos da gestão da água. vimento humano (ver capítulo 5).
R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 15 5
A distribuição mundial de seca. É durante os períodos de crise que as infra- cheias nunca ultrapassou 1% do RNB. 65 A maioria
de infra-estruturas estruturas hídricas ganham destaque no debate polí- da população japonesa e 60% dos seus bens produ-
tico público em épocas de crise ou na iminência da tivos situam-se, actualmente, nas planícies baixas
hídricas é inversamente sua aproximação. Nos Estados Unidos, o furacão vulneráveis às cheias, mas as infra-estruturas e a
proporcional à distribuição Katrina veio-nos recordar de forma trágica a impor- gestão da água reduziram o risco numa média de
tância das infra-estruturas — e da vulnerabilidade cerca de 9 mil milhões de dólares por ano.
mundial dos riscos de
humana. Este acontecimento foi tão chocante, em
insegurança da água parte por se terem perdido tantas de vidas e pela des-
truição ter sido tão devastadora. Em contrapartida, O défice de infra-estruturas
na maior parte do mundo em desenvolvimento, os nos países pobres
custos a nível humano a pagar por infra-estruturas A distribuição mundial de infra-estruturas hí-
débeis e vulnerabilidade de choques hídricos são dricas é inversamente proporcional à distribuição
vividos diariamente. mundial dos riscos de insegurança da água. Os cli-
mas sazonais, as variações de pluviosidade e os ris-
cos de inundações e de secas são uma ameaça ainda
Mitigar o risco nos países ricos maior nos países em desenvolvimento do que nos
A escalada de investimentos em infra-estrutu- países ricos, enquanto as instituições e as infra-es-
ras hídricas nos países ricos não é muito bem vista. truturas necessárias à segurança da água são bas-
Os investimentos em infra-estruturas hidráulicas tante mais fracas. 67
têm gerado, em alguns casos, grandes prejuízos As secas são um excelente exemplo dos custos
ambientais, mas também têm sido base de susten- a pagar quando as infra-estruturas são fracas. Uma
tação de maior prosperidade económica e progresso fraca pluviosidade contribui para a depauperação
social. das bacias hidrográficas, terrenos agrícolas e pasta-
Nos Estados Unidos, muitos dos investimentos gens, degrada a terra e arruína as colheitas. Desde
federais da história tiveram por objectivo armaze- o Dust Bowl dos anos 30, nos Estados Unidos, ao
nar água, aproveitá-la para produzir energia e dimi- Sahel dos anos 70 e à África Oriental dos nossos
nuir as hipóteses de ocorrência de cheias. Segundo dias, as secas têm mostrado uma enorme capacidade
uma estimativa, o Corpo de Engenharia do Exército de destruição e a erosão dos solos duros teve reper-
dos EUA gastou 200 mil milhões de dólares desde cussões em termos de desenvolvimento humano. As
1920 só na gestão de cheias e na sua minimização secas afectam as zonas rurais pobres devido a uma
4 (o que rendeu cerca de 700 mil milhões de dólares redução da produção, à perda de cabeças de gado e
de lucro). 64 A Autoridade do Vale do Tennessee, da fertilidade dos solos e à extrema escassez de água
fundada em 1933 como parte do Novo Pacto para potável. Quando o gado morre e as colheitas se per-
Escassez de água — riscos e vulnerabilidades associados
156 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
Caixa 4.8 Secas, cheias e insegurança da água no Quénia
A seca em Wajir e Turkana, no Nordeste do Quénia, representa ainda uma continuação daquela, e mais de 3 milhões de pessoas
uma catástrofe humanitária. A dimensão desta tragédia atraiu enfrentam a ameaça da fome.
a atenção dos media internacionais, mas não se tratou de uma Para além do sofrimento humano, os custos têm sido enor-
situação invulgar: o Quénia tem vindo a ser afectado por uma mes. Comunidades pastoris inteiras perderam os seus rebanhos
sucessão de secas e de cheias desde meados dos anos 90. As e demais bens, o que veio aumentar a sua vulnerabilidade. Os
cheias de 1997-98 foram imediatamente seguidas por uma seca, enormes prejuízos financeiros atrasaram toda a economia e os
entre 1998 e 2000. A seca que hoje se faz sentir no Nordeste é esforços de redução da pobreza.
Estima-se que as inundações de 1997/98 provocadas pelo El
Os impactos das cheias e da seca no Quénia, 1997-2000 Niño tenham provocado prejuízos equivalentes a 11% do PIB (ver
quadro). As secas de 1998-99 e 1999-2000 provocaram perdas
Valor Total
Impacto (Em milhões de dólares) (%) superiores a 16% do PIB. Estima-se que a indústria e a energia
Cheias de 1997-98 hidroeléctrica tenham contribuído com 80% do total de perdas.
Infra-estruturas de transportes 777 88 Provavelmente, os prejuízos globais em termos de economia são
Infra-estruturas de abastecimento de água 45 5 ainda maiores, uma vez que as perdas não contabilizam as con-
Sector da saúde 56 6
sequências ao nível da má nutrição, a redução do investimento na
Total 878
% do PIB 11 agricultura e uma quebra do investimento na indústria.
Seca de 1998-2000 As perdas sofridas em termos de colheitas e cabeças de
Perdas em energia hidroeléctrica 640 26 gado representaram uma parte relativamente pequena dos pre-
Perdas em produção industrial 1.400 58 juízos globais, atingindo menos de 16% do total, mas tiveram um
Perdas em produção agrícola 240 10
impacto devastador nas populações pobres, provocando uma
Perdas de cabeças de gado 137 6
Total 2.417 situação geral de má nutrição, a depauperação de bens e o au-
% do PIB 16 mento das vulnerabilidades perante situações de risco futuras.
Fonte: Banco Mundial 2004c, 2006e
dem, as famílias pobres perdem o seu rendimento e grande maioria das pessoas dependem da agricul-
a qualidade da nutrição agrava-se. Restaurar activos tura de sequeiro, é a incerteza. No entanto, estima- 4
pode levar anos. se que a variabilidade das chuvas tenha empurrado
A África Subsariana é a região mais afectada. mais 12 milhões de pessoas para um nível abaixo
R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 157
Figura 4.8 Grandes desigualdades As infra-estruturas hídricas têm enorme in- O rio Colorado tem uma capacidade de armaze-
põem em risco a fluência no grau de vulnerabilidade e na capaci- nagem equivalente a 1.400 dias, enquanto a do rio
capacidade de
minimização
dade das famílias absorverem mudanças violen- Indus nem chega bem aos 30 dias.72
tas. Estima-se que a Indonésia perca 25.000 vidas As análises comparativas realizadas em diversos
Capacidade de armazenamento em
reservatórios (metros cúbicos per capita) por ano devido a problemas relacionados com a países ao nível do armazenamento de água dão-nos o
6.000
Estados Unidos
seca — a Austrália, com um grau de exposição aos retrato de um dos aspectos da sua capacidade de mi-
riscos de seca similar, não sofre nenhuma perda. nimização de risco. Contudo, a capacidade de arma-
Os investimentos feitos no Japão minimizaram o zenamento é apenas um exemplo da ligação existente
5.000
Austrália impacto das cheias, pelo que os danos raramente entre infra-estruturas e vulnerabilidades. Países como
sobem acima de 0,5% do RNB e as perdas de vida o Gana e a Zâmbia apresentam níveis muito elevados
são raras. Mas quando as cheias atingiram Moçam- de armazenamento de água per capita — na verdade,
4.000
bique, em 2000, provocaram 700 mortes e meio mais elevados do que nos Estados Unidos — mas com
Brasil milhão de desalojados. As colheitas ficaram des- uma capacidade de minimização do risco limitada.
3.000
truídas e as infra-estruturas danificadas. Estima- A maior parte da capacidade de armazenamento é
China
se que o total de perdas tenha atingido os 20% do orientada para fins energéticos, havendo uma infra-
RNB, com o crescimento económico a descer de estrutura muito limitada destinada aos pequenos pro-
Tailândia
2.000 8% em 1999 para 2% em 2000. As inundações dutores agrícolas. Existe igualmente um lado mais ne-
México
também danificaram ou destruíram 500 escolas gativo nas infra-estruturas hídricas em grande escala,
África do Sul primárias e sete escolas secundárias.71 destacado no actual debate sobre o grau de interven-
1.000 Marrocos Tendo em conta que se tratou de uma situação ção mais adequado.
Índia pontual, a experiência de Moçambique sublinha As grandes barragens têm sido protagonistas
Etiópia
a forma como os eventos climáticos podem di- desse debate — e por uma boa razão. Estima-se que
0
minuir os ganhos de desenvolvimento em grande 40-80 milhões de pessoas tenham sido desalojadas
Fonte: Banco Mundial 2005c.
escala. Em muitos casos, porém, os países são nos últimos 50 anos por culpa de projectos de barra-
obrigados a enfrentar cheias e secas consecutivas, gens mal concebidas, e em muitos casos sem recebe-
ou até mesmo simultâneas (caixa 4.8). Os riscos rem a devida indemnização. Na pressa de desenvol-
resultantes da debilidade das infra-estruturas ver infra-estruturas de larga escala para irrigação ou
atingem, sobretudo, as pessoas pobres. Em Mo- produção energética, muitos governos descuraram
çambique, são as famílias pobres das planícies ao os direitos e reivindicações das comunidades que
longo das margens dos rios que mais sofrem com necessitam de energia a baixo custo, encontrando-
4 as cheias. Em Nova Orleães, a devastação provo- se frequentemente as populações indígenas entre as
cada pelo furacão Katrina afectou toda a cidade, mais afectadas73. Para além disso, muitas barragens
mas os bairros pobres da população negra foram causaram imensos danos sociais e ecológicos. Os
Escassez de água — riscos e vulnerabilidades associados
os mais prejudicados. Embora os efeitos das fortes efeitos indirectos incluem a sedimentação, a sali-
intempéries atinjam toda a sociedade, as famílias nização e a desarborização; os efeitos directos vão
pobres estão mais expostas ao risco e menos prepa- desde a redução dos bancos de pesca e a degradação
radas para minimizar esse risco através de seguros das reservas naturais, até à diminuição das cama-
ou poupanças. das sedimentares e de nutrientes. Nalguns casos, os
As desigualdades sentidas ao nível dos equipa- benefícios económicos foram exagerados. O equi-
mentos hidráulicos põem em evidência os custos líbrio dos ganhos de produtividade para os utiliza-
humanos e económicos associados às intempéries dores indirectos trouxe efeitos prejudiciais directos
mais graves. A maioria dos desastres naturais tem e alterações nos ecossistemas dos leitos de cheias.
origem no facto de haver muito pouca ou, pelo A Comissão Mundial de Barragens descobriu uma
contrário, demasiada água. Os factores cíclicos e tendência sistemática para se subestimarem os cus-
as alterações climáticas conjugam-se para aumen- tos de capital das barragens (numa média de 47%)
tar a frequência com que ocorrem intempéries tais e para se sobrevalorizarem os retornos económicos
como secas e inundações. E todos os países aca- da irrigação em larga escala.74
bam por ser afectados. Contudo, os países ricos Este cenário veio tornar claro que os grandes
conseguem proteger os seus cidadãos e o seu de- projectos de infra-estruturas deveriam ser subme-
sempenho económico através da criação de vastas tidos a um escrutínio crítico no que respeita aos
infra-estruturas hidráulicas. A capacidade de ar- seus possíveis impactos sobre o meio ambiente e
mazenamento de água é um indicador alternativo as populações pobres. Ao mesmo tempo, o contri-
para compararmos a capacidade das infra-estrutu- buto das infra-estruturas de grande escala para o
ras entre os diversos países (figura 4.8). Os Esta- desenvolvimento humano também não deveria ser
dos Unidos armazenam 6.000 metros cúbicos de desdenhado. Em muitos países, este tipo de infra-
água por pessoa, e a Austrália cerca de 5.000, em estruturas fornece água para a irrigação, reduzindo
comparação com os 43 metros cúbicos da Etiópia. a variabilidade dos fluxos hídricos de que os produ-
158 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
tores dispõem e mitigando os riscos de segurança ameaça sem paralelo ao desenvolvimento humano. Para uma larga percentagem
da água resultantes das flutuações da precipitação. Grande parte dessa ameaça far-se-á sentir através de da população mundial
O acesso a meios de irrigação é uma das estratégias alterações ao nível dos ciclos hidrológicos e dos pa-
mais elementares para minimizar a insegurança do drões de precipitação, bem como pelo impacto das residente nos países em
abastecimento de água.75 Na Ásia, a prevalência da elevadas temperaturas de superfície sobre a evapo- vias desenvolvimento,
pobreza é normalmente 20%-40% mais elevada ração da água. Os efeitos em termos globais consis-
as previsões relativas
onde não existem sistemas de irrigação, do que onde tirão na exacerbação dos riscos e vulnerabilidades,
eles existem (ver capítulo 5). As infra-estruturas com a consequente ameaça à subsistência, saúde e às alterações climáticas
hídricas também oferecem uma importante fonte segurança de milhões de pessoas. apontam para uma menor
de energia renovável: a elas se devem 22% da elec- Os testes de comportamento do clima apontam
tricidade produzida na África Subsariana. para uma complexa gama de efeitos possíveis, como garantia de meios de
Embora o contributo das infra-estruturas de consequência das alterações climáticas. Para além da subsistência, uma maior
grande dimensão para a irrigação e produção energé- complexidade da situação, ainda existem dois temas
vulnerabilidade à fome e à
tica não deva ser subestimado, o mesmo se aplica ao recorrentes. O primeiro diz respeito à tendência de
contributo potencial das infra-estruturas de pequena as regiões secas ficarem ainda mais secas e as zonas pobreza, um agravamento
dimensão. A captação de água em pequena escala tem húmidas ainda mais húmidas, com graves conse- das desigualdades
a vantagem, não só de armazenar água de forma eficaz, quências para a distribuição da produção agrícola.
minimizando deste modo os riscos, mas também de O segundo prevê que se verifique um aumento da sociais e uma maior
armazenar água em zonas próximas das populações imprevisibilidade dos fluxos hídricos, associado a degradação ambiental
que dela necessitam. O facto de se armazenarem enor- intempéries mais frequentes. Embora os resultados
mes volumes de água na Barragem de Kariba, na Zâm- variem de região para região e no interior de cada
bia, em nada ajuda os pequenos agricultores das zonas país, é possível antecipar algumas das principais
do país mais propensas a sofrer secas. consequências:
A polarização do debate em torno dos méritos • O desenvolvimento agrícola e rural irá suportar o
relativos associados às infra-estruturas de grande ou embate dos riscos climáticos. Este dado é impor-
pequena dimensão não passa de uma manobra de tante porque o sector rural abrange cerca de três
diversão relativamente ao que está verdadeiramente quartos da população que vive com menos de 1
em causa. A escolha do modelo de infra-estrutura dólar por dia e qualquer coisa como entre um
mais indicado deve ser decidida a nível nacional e quarto e dois terços do RNB dos países de baixo
local, através do diálogo entre governos e popula- rendimento. Em algumas regiões, uma redução
ções. Mas a verdadeira opção não se baseia, geral- das reservas de água, combinada com alterações 4
mente, entre grandes ou pequenas infra-estruturas. da pluviosidade, poderiam provocar uma quebra
A maioria dos países em desenvolvimento não ne- da produção em 2050 em qualquer coisa como um
R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 15 9
visões relativas às alterações climáticas apontam para
Figura 4.9 O nosso planeta estará muito mais quente no próximo século
uma menor garantia de meios de subsistência, uma
Alteração da temperatura média mundial: variação da temperatura em relação ao valor de 1990 maior vulnerabilidade à fome e à pobreza, um agrava-
(em graus Celsius)
6
mento das desigualdades sociais e uma maior degrada-
Observações ção ambiental. As alterações climáticas — ao contrá-
Observações, Hemisfério Norte, dados proxy instrumentais mundiais Projecções
rio do tsunami no Oceano Índico ou do terramoto em
5
Cenário de Cachemira — ameaçam provocar não propriamente
4
não mitigação uma catástrofe pontual, mas antes um desastre que irá
do PIAC (A2)
desenrolar-se lentamente no tempo. Enquanto que a
extensão de futuras alterações climáticas podem ser
3 Estabilização
a 550 ppm
moderadas, estamos longe do ponto que não tem re-
torno. As alterações climáticas perigosas são agora ine-
2
vitáveis. A forma como a comunidade internacional
Estabilização
a 450 ppm responder a esta ameaça irá determinar as perspectivas
1
de desenvolvimento humano das gerações presentes e
futuras. Uma prioridade imediata consiste em provi-
0
denciar estratégias com vista a minimizar os efeitos
–1
das alterações climáticas com estratégias que apoiem
1600 1700 1800 1900 2000 2050 2100 a adaptação às inevitáveis mudanças do clima.
Nota: As projecções de alterações climáticas do PIAC são baseadas em cenários que modelizam o impacto do crescimento económico,
da população e outros factores. O cenário de não mitigação (A2) supõe um crescimento económico médio e um elevado crescimento
demográfico, mas não apresenta medidas para reduzir as emissões de gases com efeito de estufa. Os cenários de estabilização
indicam limites específicos de reduções.
Fonte: PIAC 2001. O nosso mundo está a aquecer
No século XX, a acção do homem fez aumentar a
presença na atmosfera de gases com efeito de estufa
• O agravamento dos padrões climatéricos irá au- — principalmente, dióxido de carbono, metano e
mentar o risco e as vulnerabilidades. As altera- ozono — para cerca de 30% acima dos níveis da era
ções climáticas contribuirão para agravar as pré-industrial. Esta evolução terá consequências
consequências das monções asiáticas e o efeito El gravíssimas para a humanidade neste século XXI,
Niño, com importantes implicações na produ- e posteriormente.
ção agrícola. O grau de susceptibilidade às secas O impacto do aumento de gases com efeito de
4 e às cheias tenderá a aumentar com o passar do estufa já está a tornar-se evidente. A Terra aqueceu
tempo.79 0,7ºC ao longo do século passado — mas a velo-
• A redução dos glaciares e o aumento do nível do cidade a que se está a registar esta alteração tem
Escassez de água — riscos e vulnerabilidades associados
mar representarão uma nova ameaça para a segu- vindo a aumentar. Os 10 anos mais quentes ocorre-
rança humana. A diminuição da área de glacia- ram desde 1994 para cá. A década de 90 foi a mais
res poderá provocar, a curto prazo, a ocorrência quente desde o século XIV. Os glaciares estão a en-
de cheias, e a longo prazo, um decréscimo das colher e o nível do mar está a aumentar muito mais
reservas de água por toda a Ásia, América Latina depressa do que os meteorologistas previam há uma
e partes da África Oriental. 80 A subida do nível década atrás.
do mar irá reduzir as reservas de água doce, afec- As concentrações de dióxido de carbono, o
tando milhões de habitantes dos países situados principal gás com efeito de estufa, têm vindo a au-
abaixo do nível do mar e dos deltas dos rios. 81 mentar progressivamente. Actualmente, as emis-
Para uma larga percentagem da população mun- sões estão a registar-se a um ritmo de cerca de
dial residente nos países em desenvolvimento, as pre- 7 mil milhões de toneladas por ano, com as concen-
Nota: cenários de estabilização das temperaturas segundo o PIAC: inclui a totalidade dos principais gases com efeito de estufa, com equivalência ao dióxido de carbono.
Fonte: Stern Review on the Economics of Climate Change (Relatório Stern sobre os Efeitos Económicos das Alterações Climáticas) 2006.
160 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
trações atmosféricas a atingirem as 380 partes por actuais, e que continuem a diminuir daí em diante, Mas as piores previsões de
milhão (ppm). A evolução exacta das emissões no até atingirem emissões próximas de zero; reduzir o aquecimento para o século
futuro dependerá de muitos factores — incluindo nível para os 450 ppm (continua a ser um cenário
o crescimento da população, o crescimento da eco- perigoso das alterações climáticas) implicará que as XXI produzirão grandes
nomia, as alterações tecnológicas, o preço do pe- emissões globais de dióxido de carbono em 2050 se alterações em termos de
tróleo e, acima de tudo, a actuação dos governos. situem em cerca de metade dos valores actuais. A dife-
níveis de evaporação e
Mas a evolução geral dos níveis de dióxido de car- rença entre estes requisitos e os cenários traçados pelo
bono revela uma tendência clara para o aumento. PIAC diz muito sobre o desafio com que a comuni- de precipitação, aliadas
O World Energy Outlook (Panorama Energético dade internacional hoje se depara (figura 4.10). a um ciclo hidrológico
Mundial) prevê que, até ao ano de 2030, as emis- A resposta a esse desafio exigirá um nível de am-
sões de dióxido de carbono irão aumentar cerca de bição muito superior ao que está patente no actual mais imprevisível
63%, relativamente aos níveis de 2002. 82 Protocolo de Quioto. Alguns governos de países de-
O que significa isto para as alterações climáticas? senvolvidos já começaram a exercer pressões para que o
Mesmo que as emissões parassem já amanhã, as tem- próximo protocolo estabeleça um limite de estabiliza-
peraturas continuariam a subir, como resultado do ção próximo dos 550 ppm — quase o dobro dos níveis
efeito retardado das emissões do passado. Se a ten- da era pré-industrial. Outros — incluindo a União
dência registada nos últimos 50 anos se mantiver, as Europeia — defenderam uma meta baseada nas tem-
concentrações de dióxido de carbono aumentarão peraturas, com o objectivo de restringirem o aumento
para 500 ppm em meados do século XXI, e continu- da temperatura para valores nunca superiores a 2ºC
arão a crescer depois disso. acima dos níveis da era pré-industrial. Isto implicaria
Há mais de duas décadas que organismos inter- um compromisso por parte dos países desenvolvidos
nacionais como o Painel Inter-governamental sobre no sentido de, em 2020, reduzirem as emissões para
as Alterações Climáticas têm vindo a consolidar 15%-30% abaixo dos níveis de 1990, para aumentarem
uma base científica que permita compreender estas até aos 80% no ano 2050.85 Para melhor percebermos
transformações.83 De acordo com os cenários de não o alcance deste desafio, bastará dizer que as emissões
mitigação, a tendência destas emissões poderá levar por pessoa a nível mundial terão de descer das cerca de
a um aumento global das temperaturas entre 1,4º e 4 toneladas de dióxido de carbono actuais, para 1,2-
5,8ºC até ao ano 2010. Numa perspectiva mais posi- 2,8 toneladas no ano de 2050. Quanto mais tempo
tiva, com a estabilização das emissões nos 450 ppm, demorarmos a atingir o nível de emissões definido,
o mundo ainda estaria sujeito a um aumento de cerca maiores serão os cortes necessários.86
de 2°C (figura 4.9 e quadro 4.2).84 O que ambos os 4
cenários realçam é que as actuais concentrações at- Figura 4.10 Aquecimento do planeta:
mosféricas e oceânicas de gases com efeito de estufa
R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 161
Mapa 4.2 As alterações climáticas causarão um declínio da abundância de águas em muitas regiões
Mais de 20
20 a 0
0 a –20
–20 e menos
Nota: As fronteiras e os nomes mostrados e as designações utilizadas neste mapa não implicam uma responsabilidade oficial nem a aceitação por parte das Nações Unidas.
Os traçejados representam aproximadamente a Linha de Controlo em Jammu e Cachemira acordada entre a Índia e o Paquistão. O estatuto final de Jammu e Cachemira ainda não foi acordo entre as partes.
Fonte: Arnell 2004.
ais instâncias internacionais reconhecem um princí- evaporação dos oceanos em todo o planeta, acele-
pio fundamental que determina «responsabilidades rando dessa forma o ciclo hidrológico. Esse aumento
comuns, mas diferenciadas» entre países desenvol- das temperaturas também implicará uma evapora-
vidos e países em desenvolvimento. Os países ricos ção mais acelerada da água dos solos, de tal forma
têm de se empenhar manifestamente mais no sen- que haverá cada vez menos água das chuvas a atingir
tido de «descarbonizarem» as suas economias. Ao os rios. Estas alterações serão acompanhadas por
mesmo tempo, o crescente impacto ambiental dos novos padrões de precipitação e intempéries cada
países em desenvolvimento não pode ser ignorado. vez mais violentas, incluindo cheias e períodos de
Daí a necessidade de o eventual sucessor do Proto- seca.
colo de Quioto abranger não apenas todo o mundo Que implicações terão estas alterações em ter-
desenvolvido, mas também os países em desenvolvi- mos de segurança da água e de desenvolvimento hu-
mento mais importantes, como o Brasil, a China e mano, nos países mais pobres do mundo? Podere-
a Índia. A adopção de formas de financiamento, a mos assistir, por toda a parte, a numerosas alterações
transferência de tecnologias e uma divisão equitativa nos ciclos hidrológicos associados a microclimas.
dos direitos de emissão são a chave para que os países Alguns hidrologistas também alertam para a pos-
aceitem integrar uma estrutura multilateral capaz de sibilidade de surgirem «situações de aviso», à me-
promover uma efectiva minimização de riscos. dida que as alterações climáticas forem dando lugar
a novos e menos previsíveis ciclos de mudança. 87 Por
exemplo, o derretimento acelerado das camadas de
Alterações climáticas e gelo do Árctico poderia provocar uma série de epi-
segurança da água sódios hidrológicos de consequências imprevisíveis.
O aquecimento global pode ser já hoje um facto, O que já não oferece contestação é a previsibilidade
mas as piores previsões de aquecimento para o sé- do aumento generalizado da pressão da falta de água
culo XXI produzirão grandes alterações em termos num grande número de países.
162 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
Podemos encontrar nas projecções relativas às simulações do impacto das alterações climáticas na A produção agrícola
disponibilidades de água para 2050 (mapa 4.2) re- produção agrícola no Brasil apontam para uma di- dependente das chuvas,
ferências a uma série de consequências plausíveis, re- minuição de 12%-55% nas colheitas das regiões ári-
sultantes dos diversos cenários de desenvolvimento das dos estados do Ceará e de Piauí, que apresentam e que constitui o modo de
analisados pelo PIAC. Estas projecções apontam concentrações extremamente elevadas de pobreza e subsistência da maioria
para um declínio de 30% ou mais do escoamento de subalimentação nas zonas rurais. 88
das populações mais
de água proveniente das chuvas em largas faixas do A segunda grande conclusão que podemos tirar
mundo em desenvolvimento, incluindo: é de que a vulnerabilidade e a insegurança associa- carenciadas do mundo,
• Países propensos à ocorrência de secas na África das à água vão aumentar. A produtividade na produ- enfrenta graves ameaças
Austral, incluindo Angola, Malawi, Zâmbia e ção agrícola, e em particular de sequeiro, é influen-
Zimbabué. Esta região enfrenta alguns dos mais ciada tanto pela periodicidade como pelo volume em muitas regiões
graves desafios mundiais no domínio da segu- da precipitação. E uma das conclusões mais óbvias a
rança alimentar, registando elevados níveis de retirar dos diversos testes de simulação realizados é
pobreza, subnutrição e uma crise prolongada no de que os níveis de precipitação tendem a tornar-se
sector agrícola dependente das chuvas. mais variáveis e instáveis. Haverá também uma cres-
• Uma longa faixa que vai do Senegal à Mauri- cente incidência de intempéries, sob a forma de secas
tânia, atravessando a maior parte do Norte de e de inundações, o que contribuirá para aumentar
África e do Médio Oriente. Nestes países, in- a ameaça que paira sobre as populações dos países
cluem-se algumas das nações mais atingidas pela com infra-estruturas de adaptação limitadas.
pressão de falta de água a nível mundial, onde já A terceira conclusão a emergir do PIAC é de
são visíveis os grandes desafios resultantes da in- que, em termos gerais, a produção de cereais irá au-
segurança da água, traduzidos em taxas de cres- mentar nos países desenvolvidos, enquanto se prevê
cimento populacional elevadas e rendimentos uma redução em muitos países em desenvolvimento.
per capita reduzidos. Também aqui o impacto de uma maior dependência
• Grande parte do Brasil, incluindo as regiões de importações de alimentos apresenta implicações
semi-áridas do Nordeste, bem como algumas potencialmente adversas para a segurança alimentar
regiões da Venezuela e a Colômbia. em vários países.
Relativamente a alguns aspectos importantes,
as projecções de precipitação de escoamento como
aquelas referidas no mapa 4.2 subestimam o pro- África Subsariana —
blema. As disponibilidades de água também serão toda uma região em risco 4
influenciadas pelas alterações de temperatura e pela A África Subsariana é espelho da complexidade
periodicidade das cheias. Partes da África Subsariana e dimensão da ameaça de insegurança dos recursos
R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 16 3
Mapa 4.3 As alterações climáticas ameaçam reduzir a produção de cereais
nhar que não estamos perante uma ciência exacta.
em grande parte da África Subsariana Contudo, o estudo recente de alguns casos forneceu
dados importantes que deverão servir-nos de ad-
Projecção do impacto da vertência. Um exemplo, apresentado no mapa 4.3,
alteração climática na
produção de cereais, 2080 baseia-se num dos cenários de alterações climáticas
(mudança em %
Mar em 2000), cenário A2 do PIAC
criado pelo PIAC e em indícios concretos da relação
Mediterrâneo
Maior do que 0% existente entre as disponibilidades de água e os ín-
ou terras áridas dices de produtividade no sector cerealífero.90 Este
0 a –25% caso permite sublinhar as zonas mais seriamente
–25% ou menos ameaçadas. Nestas zonas inclui-se uma larga faixa
que atravessa a região do Sahel, e se estende da Mau-
ritânia à Nigéria, Burquina Faso, Chade e Sudão. Os
grandes campos de trigo da África Austral deparam-
se com a perspectiva de sofrerem reduções abruptas
da produção, a par com países atingidos por uma in-
segurança alimentar crónica, tais como a Etiópia e a
Somália. Conjugada com a probabilidade crescente
de ocorrerem períodos de seca, a quebra da produção
agrícola irá traduzir-se em mais pobreza, rendimen-
Principais zonas afectadas tos mais baixos e condições de subsistência menos
A cintura de Sahelian: Burquina Faso Oceano seguras, para além da crescente ameaça de episódios
Índico
e regiões cultivadas do Sul do Mali, de fome crónicos.
Níger, Chade e Sudão (zona norte do
país não cultivada ou inadequada Por mais desconcertante que isto possa parecer,
para a produção de cereais). até mesmo este cenário desolador pode pecar por
Nigéria, Senegal e Serra Leoa excesso de optimismo. Mais de 600.000 quilóme-
(África Ocidental).
tros quadrados de terrenos agrícolas, agora classifi-
Leste da Etiópia e Somália. cados como moderadamente degradados, poderão
África do Sudeste: Moçambique, atingir um nível de degradação ainda maior como
Zimbabué, Zâmbia e Angola.
resultado das alterações climáticas, na maioria dos
casos no Sahel. Essa situação poderá intensificar as
4 pressões sobre a terra arável, originando tensões
ambientais crescentes e potenciais conflitos relacio-
nados com o uso da terra. Algumas colheitas bá-
Escassez de água — riscos e vulnerabilidades associados
Nota: As fronteiras e os nomes mostrados e as designações utilizadas neste mapa não implicam uma responsabilidade oficial nem a
aceitação por parte das Nações Unidas. sicas poderão vir a ser bastante mais afectadas do
Fonte: Fischer e outros 2005. que aquilo que o cenário supracitado fazia antever.
Pesquisas levadas a cabo em vários países sugerem
que a produção de milho, um alimento básico na
maior parte da região, é altamente sensível à varia-
aquecimento entre 0,2ºC e 0,5ºC por década, com bilidade das disponibilidades hídricas durante o
uma redução de 10% na precipitação verificada nas re- período de floração. Os cenários sub-regionais de
giões interiores atingidas por cenários de aquecimento médio prazo chamam a atenção para algumas das
global intermédios, e um aumento das perdas de água ameaças emergentes:
provocado pela subida das temperaturas. O aqueci- • África Oriental. As projecções para 2030 indi-
mento será maior nas margens semi-áridas do Saara, cam que esta região registará maior precipitação
por todo o Sahel e nas zonas interiores da África Aus- mas tornar-se-á mais seca, à medida que a tem-
tral. As alterações induzidas pelo clima no produto das peratura for aumentando. No caso da Tanzânia,
colheitas e nos limites dos ecossistemas irão afectar de o aumento de temperatura previsto oscila entre
forma dramática algumas das populações mais pobres 2,5ºC e 4ºC. Prevê-se um aumento da precipi-
da África Subsariana (bem como da América Latina e tação em algumas zonas do país, enquanto as
do Sul Asiático), em parte porque muitas delas vivem restantes — incluindo as regiões propensas a
em zonas muito propensas a intempéries, e por outro secas, situadas a sul — registarão índices mais
lado, porque têm pouca capacidade de adaptação a baixos. Algumas simulações prevêem uma que-
uma agricultura de regadio, a técnicas de sementeira bra da produção de milho da ordem dos 33%.91
avançadas ou a estilos de vida alternativos. A precipitação no Quénia deverá aumentar em
Fazer uma simulação do impacto das alterações média, mas prevê-se uma descida nas zonas semi-
climáticas nas colheitas e respectivo rendimento é áridas. A produtividade das colheitas em ambos
uma tarefa arriscada. Convém começar por subli- os países será afectada. De acordo com algumas
164 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
projecções de cenários elaborados pelo PIAC, as timento glaciar poderá surgir como umas das mais Nos próximos 50 anos,
colheitas de produtos alimentares básicos, café sérias ameaças ao progresso humano e à segurança o derretimento glaciar
e chá poderão sofrer uma quebra de um terço, alimentar (caixa 4.9).
devido às alterações climáticas.92 poderá surgir como umas
• África Austral. A temperatura média da região das mais sérias ameaças
deverá registar um aumento entre 1,5ºC e 3,0ºC Intempéries graves
ao progresso humano e
nos cenários de aquecimento global intermédio, A localização e a periodicidade das intempéries graves e
prevendo-se um decréscimo de 10%-15% na dos desastres humanitários permanecem imprevisíveis. à segurança alimentar
precipitação anual média, sobretudo na época Mas pode-se prever hoje em dia o seu aumento com um
de sementeiras. O rio Zambeze depara-se com grau de certeza razoável. Para muitos milhões de pes-
uma perspectiva de redução da água das chu- soas, os caudais de água serão ditados por um crescente
vas de cerca de um terço no ano 2050, percen- grau de incerteza e de imprevisibilidade.
tagem que poderá chegar aos 40% ou mais na Para além das complexas variações que afectam
bacia do Zambeze. Prevê-se que as situações de individualmente os sistemas atmosféricos, têm vindo
emergência alimentar que afectam ciclicamente a registar-se algumas alterações de base no conjunto
o Malawi, Moçambique, a Zâmbia e o Zimbabué de forças que governam o ciclo hidrológico. O aqueci-
venham a tornar-se mais frequentes. A produção mento global está a fazer aumentar a temperatura dos
de milho diminuirá abruptamente, graças a um continentes, enquanto que o derretimento glaciar está
aumento da temperatura de 1ºC-2ºC e a uma re- a fazer descer a temperatura dos oceanos. A variação
dução das reservas de água.93. entre estes dois factores influencia as monções asiáticas.
• O Sahel. No último quarto de século, o Sahel Um clima mais quente significa que o ar pode conter
registou a mais acentuada e sustentada descida maior quantidade de vapor de água, pelo que os ventos
de sempre em termos de precipitação, pontuada da monção de Verão transportarão mais humidade. A
com secas recorrentes no Burquina Faso, Mali maior parte dos modelos climáticos sugere que os pa-
e Nigéria. Na África Ocidental, os caudais dos drões das chuvas das monções irão sofrer alterações de
rios sofreram uma redução superior a 40% desde 25%-100%. Sabe-se que flutuações de apenas 10% pro-
os anos 70. Antecipando o futuro, o rio Níger, vocam inundações e secas de graves repercussões.95 As
que fornece água a dez países pobres e áridos, chuvas mais intensas têm consequências devastadoras,
poderá vir a perder um terço do seu caudal. As tal como ficou demonstrado com as cheias de 2005, em
simulações baseadas em estudos desenvolvidos Bombaim: 500 pessoas morreram.
no Sudão apontam para uma redução do poten- Os modelos simples de ganhos e perdas não con- 4
cial de produção de 20%-76% no que diz respeito seguem transmitir a dimensão real da ameaça que as
ao sorgo e de 18%-82% no que toca ao milho alterações climáticas representam para os sistemas hi-
R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 16 5
Caixa 4.9 Os bancos de água estão a derreter — o encolhimento dos glaciares estão a mudar os caudais de água
Os glaciares são verdadeiros bancos de água. Eles conser- de água soltarem-se e provocarem inundações. Para gerir esta
vam a água sob a forma de gelo e neve durante o Inverno, ameaça, serão necessários enormes investimentos públicos
libertando-a lentamente para os rios e lagos à medida que as adicionais.
temperaturas aumentam. O aquecimento global registou o seu China. Quase todos os glaciares da China já deram sinais
maior impacto nos glaciares. Nos anos 90, a massa glaciar di- de derretimento substancial. O retraimento dos glaciares no
minuiu a um ritmo três vezes superior ao registado na década Tibete foi descrito como uma catástrofe ecológica, e a maior
anterior, o que indicia uma aceleração generalizada do pro- parte dos glaciares poderá mesmo desaparecer até 2100. En-
cesso de derretimento. Mas as consequências mais profundas quanto esta catástrofe se mantiver, a China estará sob forte
serão experimentadas nas décadas que se seguem. ameaça. Há quem argumente que o retraimento dos glaciares
Paquistão. Os glaciares dos Himalaias fornecem todos os poderá ajudar a ultrapassar a pressão da falta de água através
anos ao Paquistão cerca de 180 mil milhões de metros cúbi- da libertação de novos caudais em direcção às zonas áridas
cos de água, através do rio Indus e de outros sistemas fluviais. do Norte e do Ocidente. A maioria dos casos estudados su-
Os caudais de água provenientes dos glaciares sustentaram a gere agora que estaremos perante um falso benefício. Embora
actividade agrícola dos primeiros colonatos humanos que flo- o derretimento glaciar no Tibete esteja a libertar mais água, as
resceram nas margens do Indus, em Harappa e em Mohenjo- temperaturas mais elevadas conduzirão à evaporação da maior
Daro. Hoje, ainda alimentam o sistema de rega do Indus, consi- parte desse volume adicional. É provável que os 300 milhões
derado o maior do mundo em termos de contiguidade. Mesmo de agricultores das regiões áridas da China Ocidental assis-
com uma intervenção correctiva a nível global, o encolhimento tam, pois, a uma diminuição do volume de água proveniente
glaciar irá continuar durante, pelo menos, mais meio século. dos glaciares.
Os caudais dos rios aumentarão, aumentando a probabilidade Os Andes. Durante as estações secas, os glaciares da re-
de cheias inesperadas e acentuando os problemas de escoa- gião dos Andes representam a principal fonte de água potável
mento de irrigação, que neste momento já são graves. Na se- e de irrigação para os residentes nas cidades e os agriculto-
gunda metade do século XXI, deverá registar-se uma diminui- res. Estes glaciares estão a registar algumas das reduções de
ção dramática do caudal dos rios, provavelmente em mais de massa mais rápidas do mundo. Prevê-se que alguns glaciares
de pequena e média dimensão possam mesmo desaparecer
O derretimento dos glaciares mudará drasticamente os até 2010. No Peru, as camadas glaciares decresceram uma
fluxos do rio Indus quarta parte nos últimos 30 anos. A curto prazo, os respon-
sáveis pela gestão da água enfrentam a perspectiva de uma
Projecções de alteração nos fluxos (%) rápida diminuição dos caudais dos reservatórios e sistemas de
60 irrigação, com um aumento de custos para os consumidores
4 urbanos destinado a financiar a construção de novos reserva-
40 tórios. Os efeitos a longo prazo incluem uma redução dos cau-
dais de água para fins agrícolas durante a estação seca.
Escassez de água — riscos e vulnerabilidades associados
20
Ásia Central. A maior parte da Ásia Central — Cazaquis-
tão, Quirguizistão, Tajiquistão, Turquemenistão e Usbequistão
0
— situa-se em zonas semi-áridas, onde o processo de evapo-
–20 ração natural excede de forma significativa os níveis de preci-
pitação. Quase toda a água doce provém de campos de neve
–40 e glaciares eternos situados nas montanhas do Quirguizistão
e do Tajiquistão. A água resultante do derretimento dos gla-
–60 ciares corre para os rios Amu-Darya e Syr Darya - os rios e os
respectivos leitos de cheias, que garantem a subsistência de
22 milhões de pessoas no Tajiquistão, Turquemenistão e Us-
2010 2020 2030 2040 2050 2060 2070 2080 2090 2100
bequistão. A agricultura de regadio representa 25% do RNB
Aumento por ano (em graus Celcius) no Usbequistão e 39% no Turquemenistão. A água do Quir-
0,15 0,06 guizistão e do Tajiquistão proveniente da mesma fonte é utili-
0,10 0,03 zada para gerar energia hidroeléctrica nas zonas a montante.
O retraimento dos glaciares representa uma enorme ameaça
Fonte: Banco Mundial 2005b.
para as condições de subsistência e para a economia de toda
a região. A velocidade desse retraimento tem vindo a aumentar.
30% (ver figura). Esta enorme redução permanente dos fluxos Em 1949, os glaciares cobriam cerca de 18.000 quilómetros
terá enormes consequências para as condições de subsistên- quadrados do interior montanhoso do Tajiquistão. Imagens de
cia na Bacia Hidrográfica do Indus e para o abastecimento satélite captadas no ano 2000 indicam que esta área encolheu
alimentar do Paquistão. para 12.000 quilómetros quadrados — um decréscimo de 33%
Nepal. No Nepal, os glaciares estão a encolher 30-69 me- em 50 anos. Se a tendência actual se mantiver, os glaciares do
tros por década, existindo mais de 20 lagos glaciares agora Tajiquistão desaparecerão dentro de um século.
identificados como estando em risco de verem os seus bancos
Fonte: Maslin 2004; PNUD 2005a; Banco Mundial 2005c; Programa do Nepal do WWF 2005; Programa Mundial de Avaliação Hídrica 2006;
Schneider e Lane 2006.
166 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
mento de água. Um factor que irá determinar o perfil Mapa 4.4
As alterações climáticas terão como consequência a diminuição
de ganhadores e perdedores consiste na capacidade de dos dias de chuva na Índia
adaptação de cada um. Os sistemas de irrigação pode- Delimitação — China
rão oferecer alguma protecção, e os agricultores comer- Delimitação — Índia
ciais de grande escala estão em boa posição de investir Afeganistão Jammu
Aksai
Chin
em tecnologias que aumentem a produtividade da água. e China
Os riscos serão transferidos para os produtores que de- Cachemira
Delimitação — Índia
pendem das chuvas e que não possuem meios para se
adaptarem através de uma política de investimentos.
Delimitação — China
Os padrões gerais de precipitação também serão Paquistão
profundamente afectados pelas alterações verificadas Butão
nos sistemas atmosféricos. A Oscilação periódica do Nepal
R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 16 7
A partir de 2012, será rar as capacidades de armazenamento no planeamento lização de carbono), da ausência de países desenvolvidos
imprescindível adoptar nacional para países desenvolvidos. As companhias de de vital importância e da não inclusão de países em de-
seguros têm vindo a ajustar as avaliações de risco e a senvolvimento. Com efeito, o seu alcance equivale a uma
um ambicioso conjunto de criar reservas para prevenir futuras reclamações. Mas parte cada vez mais reduzida de emissões de carbono e
metas bem definidas, que os países pobres enfrentam problemas de diferente de outros gases de efeito estufa que estão a provocar o
ordem, quer no número de pessoas afectadas quer nos aquecimento global. O aumento desse campo levanta
estabeleçam claramente
custos do controlo da subida do nível dos oceanos. As importantes questões de equidade e de partilha de so-
um conjunto de sinais de pessoas nestes países encaram riscos maiores ao passo brecarga. Os países industrializados, que contam com
mercado e uma estrutura que a capacidade dos seus governos para reduzir o risco 12% da população mundial, são responsáveis por me-
é limitada pela capacidade financeira. tade das emissões registadas presentemente no mundo
executiva representativa inteiro. Os seus cidadãos também deixam atrás de si
dos governos nacionais, um rasto de carbono bem maior. A média de emissões
A resposta internacional — per capita oscila entre as 10 toneladas de dióxido de car-
das indústrias e dos
fraca em termos de adaptação bono ou equivalentes na Europa, e as 20 toneladas nos
consumidores domésticos A mitigação e a adaptação constituem dois elementos Estados Unidos. Os valores equivalentes são de 1,2 to-
base de qualquer estratégia orientada para fazer face à neladas na Índia e de 2,7 toneladas na China. O elevado
ameaça colocada pelas alterações climáticas. A mitiga- crescimento de países como a China e a Índia poderia,
ção consiste na minimização de futuras alterações cli- contudo, fazer aumentar a parcela de emissões de car-
máticas através do enfraquecimento da ligação entre bono dos países em desenvolvimento, de cerca de metade
o crescimento económico e as emissões de carbono. A registada hoje, para cerca de dois terços em 2050. Traçar
adaptação tem a ver com encarar o facto de as altera- um modelo de crescimento que permita melhorar os pa-
ções climáticas serem inevitáveis e de muitos dos países drões de vida e reduzir a pobreza nos países em desenvol-
mais ameaçados terem menor capacidade de adapta- vimento dentro de uma estratégia global de contenção
ção. A resposta internacional em ambas as frentes tem do aquecimento global implicará uma mudança radical
sido desajustada — especialmente, no que diz respeito nas políticas nacionais, de modo a facilitar a generaliza-
à adaptação. ção das tecnologias limpas, assente numa estratégia de
Os últimos anos assistiram a uma mudança acentu- cooperação internacional.
ada na resposta multilateral à mitigação das alterações A partir de 2012, será imprescindível adoptar um
climáticas. O Protocolo de Quioto, que entrou em vigor ambicioso conjunto de metas bem definidas, que esta-
em 2005 com o apoio de 130 países (mas não a Austrá- beleçam claramente um conjunto de sinais de mercado
4 lia nem os Estados Unidos), representa a tentativa mais e uma estrutura executiva representativa dos governos
abrangente de negociar limites de emissões compulsivos. nacionais, das indústrias e dos consumidores domés-
Inclui mecanismos de flexibilidade que permitem o co- ticos. A manutenção da subida da temperatura dentro
Escassez de água — riscos e vulnerabilidades associados
mércio de emissões entre países, e introduz o Mecanismo do limite de 2ºC acima dos níveis de 1990 deverá ser
de Desenvolvimento Limpo que possibilita que os países encarada como um ponto a atingir obrigatoriamente.
desenvolvidos ganhem créditos de emissões através do Para que tal se concretize, as emissões globais em 2050
financiamento de projectos orientados para a redução deveriam situar-se abaixo dos níveis de 1990 (cerca de
das emissões de gases com efeito de estufa em países em 13% abaixo dos níveis actuais), com concentrações de
desenvolvimento. Apesar de restrito a projectos individu- gases com efeito de estufa (medidos em equivalentes ao
ais, o número desses Mecanismos de Desenvolvimento dióxido de carbono) estabilizadas em cerca de 450 ppm.
Limpo tem vindo a crescer.98 Para além de Quioto, Para se atingir este objectivo, serão necessárias reformas
importantes estratégias de mitigação estão a emergir a fundamentais nas políticas de energia a nível mundial.
vários níveis. Também relacionado com o Protocolo de Os impostos sobre as emissões de carbono, o aprofun-
Quioto, mas simultaneamente independente daquele, damento dos mercados de licenças de emissões transac-
funciona o comércio entre os 25 Estados-Membros da cionáveis, incentivos ao desenvolvimento de tecnologias
UE através do Esquema de Comercialização de Emis- limpas, e — o que é decisivo — estratégias visando a
sões. Sete estados do Nordeste dos Estados Unidos estão transferência de tecnologia para os países em desen-
a participar, igualmente, num esquema de comércio vo- volvimento incluem-se entre os instrumentos políticos
luntário — a Iniciativa Regional de Gases com Efeito para a reforma. Ao contrário do que afirmam alguns
de Estufa, lançada em finais de 2005. Entretanto, 28 es- críticos, o processo de adaptação não deverá colocar em
tados norte-americanos desenvolveram planos de acção risco as perspectivas de crescimento dos países ricos:
para reduzir as emissões líquidas de gases com efeito de os custos de consecução da meta dos 450 ppm para os
estufa. O estado da Califórnica introduziu os seus pró- países desenvolvidos representam anualmente cerca de
prios objectivos inovadores para a redução de emissões. 0,02%-0,1% do RNB, comparativamente com as taxas
O Protocolo de Quioto em vigor sofre as conse- de crescimento médio anual de 2%-3%.99 Para os países
quências de um horizonte temporal limitado (o que res- em desenvolvimento, a perspectiva de um crescimento
tringiu o desenvolvimento de um mercado de comercia- sustentado no âmbito de um enquadramento multilate-
168 R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6
ral destinado a reduzir as alterações climáticas implicará 2006, foram contribuídos 100 milhões de dólares para Figura 4.11 Redução dos fluxos
o financiamento de transferências de tecnologia a uma este fundo, mas apenas 9 milhões de dólares em projec- de ajuda à agricultura
escala bem mais vasta do que a prevista nos actuais acor- tos levados a cabo em 43 países — portanto, uma res-
dos aprovados sob a égide do Mecanismo de Desenvol- posta muito limitada.100 2003, em milhões de USD
vimento Limpo (MDL). Terá a ajuda bilateral compensado as falhas do sis- 5.000
Para além da mitigação, o apoio destinado a pro- tema multilateral? A resposta é não, se tomarmos como
cessos de adaptação às alterações climáticas nos países referência o apoio concedido à adaptação na agricultura,
em desenvolvimento tem sido desgarrado e incompleto. o sector que enfrenta as ameaças mais graves. O duplo 4.000
A resposta multilateral tem sido lastimavelmente ina- desafio neste sector reside em pôr em funcionamento
dequada, denunciando maiores falhas na forma como infra-estruturas destinadas a mitigar os riscos e estra-
os sistemas globais de gestão estão a responder aos pro- tégias de redução da pobreza que contribuam para au- 3.000
blemas mundiais. O mesmo se aplica a nível nacional. mentar a capacidade adaptativa das famílias. O apoio
Muito poucos países em desenvolvimento deram prio- ao desenvolvimento desempenha um papel crucial, em
ridade ao processo de adaptação em documentos de pla- especial na África Subsariana. Contudo, os fluxos de 2.000
neamento chave como os estudos estratégicos de redu- ajuda à agricultura diminuíram de uma média anual de
ção da pobreza, ou mesmo os documentos referentes à cerca de 4,9 mil milhões de dólares no início dos anos
gestão integrada de recursos hídricos. 90 para 3,2 mil milhões de dólares nos dias de hoje, e 1.000
As provisões destinadas ao financiamento dos pro- de 12% para 3,5% da ajuda total. Todas regiões foram
cessos de adaptação falam por si. Foram aprovados vá- afectadas: as ajudas à agricultura na África Subsariana 500
rios mecanismos financeiros destinados aos processos diminuíram, em termos reais, de 1,7 mil milhões de dó- 0
de adaptação, mas as verbas envolvidas são limitados. O lares, em 1990-92, para pouco menos de 1 mil milhões 1990-1992 1995-1997 2000-2002
Protocolo de Quioto inclui uma provisão que estabelece de dólares em 2004. O Grupo dos Oito (G8) promoveu Ajudas a favor de todos os países
um Fundo de Adaptação. O financiamento destinado a cortes nos apoios à agricultura da região que chegaram em desenvolvimento
este vector provém de uma pequena contribuição (com aos 590 milhões de dólares — ou seja, mais de metade Ajudas a favor da África Subsariana
um tecto de 2%) sobre as compras de créditos ao abrigo do total — durante o mesmo período (figura 4.11).101 Ajudas do G-8 a favor da África
do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo. Segundo as Ora, tendo em conta os interesses do desenvolvimento Subsariana
actuais projecções da Organização de Cooperação e De- humano a longo prazo, isto é precisamente o oposto do Fonte: OCDE 2006b.
senvolvimento Económico, esta contribuição irá gerar que deveria acontecer.
cerca de 20 milhões de dólares até 2012. O principal Temos de reconhecer, naturalmente, a incerteza
mecanismo multilateral de financiamento da adapta- dos impactos futuros. Contudo, a incerteza é ambígua:
ção é o Fundo Global para o Meio Ambiente. Mas tam- o resultado poderia ser bem mais grave do que indi- 4
bém aqui os parâmetros de financiamento são modestos: cado nas projecções actuais. Para serem bem sucedidas,
cerca de 50 milhões de dólares foram atribuídos a fim de as estratégias de adaptação terão de ser desenvolvidas
O caminho a seguir
O mundo não corre o risco de ficar sem água. A nível nacional, o ponto de partida reside na
Mas muitos países correm o risco de já não irem a necessidade de se encarar a água como um recurso
tempo de lidar com os problemas gravíssimos que a escasso, colocando-se um enfoque ainda maior na
pressão da escassez de recursos hídricos coloca. gestão da procura dentro das fronteiras de susten-
R e l at ó r i o d o De s e n v o lv i m e n t o H u m a n o 2 0 0 6 16 9
Os sistemas de tabilidade ecológica. A gestão integrada de recursos As alterações climáticas apresentam desafios de
contabilidade ambiental que hídricos proporciona uma ampla estrutura através outra ordem. A mitigação constitui um imperativo.
da qual os governos poderão conciliar os padrões de Se a comunidade internacional falhar nesta área, as
valorizam a água como um consumo de água com as necessidades e exigências perspectivas para o desenvolvimento humano no
recurso natural e classificam dos diferentes consumidores, incluindo o meio am- século XXI sofrerão um sério revés. Os principais
biente (ver caixa 4.7). As políticas públicas visando objectivos, incluindo a meta de estabilização nos
o seu desperdício como uma
a alteração dos sinais do mercado e dos incentivos de 450 ppm para emissões equivalentes de dióxido de
perda poderiam contribuir preços com o objectivo de conferirem maior peso à carbono, deveriam ser apoiadas por claras estratégias
para alterar a forma como conservação, através do incremento das colheita gota a longo prazo para o comércio de emissões, incenti-
a gota e da redução da poluição, também se revelam vos para a implementação de tecnologias limpas e o
os políticos encaram a água de importância vital. financiamento das transferências de tecnologia.
Os sistemas de contabilidade ambiental que va- Para além da mitigação, o desenvolvimento de
lorizam a água como um recurso natural e classifi- estratégias de adaptação deveria ser encarado como
cam o seu desperdício como uma perda poderiam uma prioridade de primeira ordem. E isto é válido
contribuir para alterar a forma como os políticos en- tanto para a ajuda bilateral como para as iniciati-
caram a água. A Avaliação de Ecossistemas do Milé- vas multilaterais. Mais uma vez, o ponto de partida
nio identificou as falhas dos mercados e das receitas reside no planeamento a nível nacional. Constran-
nacionais, com o objectivo de avaliar os ecossistemas gidos por uma capacidade limitada e, por vezes,
como factores contributivos para a degradação am- por uma fraca gestão, poucos países em desenvolvi-
biental. E esta situação é sobretudo evidente em re- mento deram até agora início a estratégias nacionais
lação à água, em que o desperdício dos activos é con- de adaptação.
tabilizado como um contributo para o aumento da A ajuda internacional desempenha um papel de-
riqueza. A contabilidade ambiental que atribui va- cisivo no apoio aos processos de adaptação, especial-
lores económicos reais a ecossistemas baseados nos mente na agricultura. Na prática, é difícil separar os
recursos hídricos deveria contribuir para a discussão efeitos das alterações climáticas dos problemas mais
política dos preços da água, da sua distribuição e das graves que os produtores agrícolas enfrentam nos
necessidades ambientais.102 países em desenvolvimento. Contudo, são necessá-
A gestão integrada de recursos hídricos pro- rios recursos adicionais para fazer face aos proble-
porciona um veículo importante para reformas mas de pressão de falta de água que irão acompanhar
mais amplas, ao passo que a estrutura política varia as alterações climáticas. Ampliar a ajuda destinada à
4 inevitavelmente conforme os países. Os principais agricultura do presente nível de aproximadamente
requisitos incluem: 3 mil milhões de dólares para 10 mil milhões de dó-
• O desenvolvimento de estratégias hídricas na- lares até 2010 deverá, pois, ser encarado como um
Escassez de água — riscos e vulnerabilidades associados
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