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Peter Burke Uma hist6ria social do conhecimento : II Da Enciclopédia @ Wikipédia Traduetio: Denise Bottmana QZAHAR Introdugio Nio existe uma histéria do conhecimento’, declarou o fururdlogo ¢ ted- rico da adminisrrayo Peter Drucker ex 1993, peevendo que els se tornaria uma importante rea de estudos “nas proximas décadas”! Desta vez ele estava'um pouco atrasado, pois o interesse pela histéria do conhecimento jA-vinha surgindo: prova disso sio livros de historiadores com titulos como Saber é poder (1989), Campos de conhecimento (1992) ou O colonialism e suas {formas de conhecimento (1996)? Quando escrevi Uma histéria social do conhecimento: De Gutenberg a Diderot (2000), ainda pensava que era uma iniciativa individual, baseada num longo interesse pelo hiingaro Karl Mannheim, um pioneiro na "so- ciologia do conhecimento”* Mas, retrospectivamente, ficou claro que eu era apenas um entre muitos estudiosos motivados, consciente ou incons- cicntemente, pelos debates correntes sobre a “sociedade do conhecimento” ‘que haviam levado A previsio de Drucker (adiante, p.273). Em 1998, dois autores que escreveram sobre © tema jé mencionavam wma “explosto do conhecimento”* Desde 2000, essa tendéncia se fortaleceu ainda mais, refletindo-se nao s6 em publicacbes como também em programas de pes- quisas, sobretudo, embora nao exclusivamente, no mundo de lingua alema. © presente livro pode ser lido sodginho ou como uma continuacao do Gutenberg a Diderot (espero fazer em breve uma versio revista dos dois volumes, com o titulo De Gutenberg ao Google).,A obra nasceu de uma curiosidade pessoal, procurando responder a pergunta “Por quais cami rnhos chegamos ao nosso estado atual de conhecimento coletivo?”. Como me viliberado das “mavérias" e dos "periodos letivos” pela aposentadoria, foi mais ficil me entregar a essa curiosidade Dando continuidade a De Gutenberg a Diderot, este volume apresenta uma visio geral das transformagées no mundo do saber desde Enciclo- pédia (1751-66) até a Wikipédia (2001) Seus temias principais sio processos, ‘Ha muitas monografias excelentes sobre aspectos do vasto tema aqui ‘examinado, sobretudo no caso da biatéria da eiéncia, A maioria delas se 10 Uma histéria social do conhevimento entre eles quantificagao, secularizagao, profissionalizacéo, especializacio, democratizagio, globalizacdo e tecnologizacio. ‘Nao se devem esquecer, porém, as tendéncias contrérias. De fato, se hi uma tese neste ensaio, & a importincia da coexisténcia e da interago de correntes em diregdes opostas, um equilfbrio de antagonismos que, de vez.em quando, pende para o desequilibrio (adiante, p.22s, 265, 31). A nacionalizagao do conhecimento coexiste com sua internacionalizagao; a secularizagao, com a contrassecularizagio; a profissionaliza¢io, com a amadorizagio; a padronizacio, com a personalizacao; a especializacio, com projetos interdiseiplinares; a democratizacao, com movimentos con- tririos ou restritivos a ela. Mesmo a acumulac3o de conhecimento é, em certa medida, contrabalancada por perdas (adiante, Caps). Apenas a tec- nologiza¢do parece avangat sem encontrar maiores obstaculos, As historias de determinados aspectos do conhecimento, como as histérias de vrias outras coisas, geralmente sio escritas dentro de um arcabougo nacional, que muitas vezes transmite aos: es uma impres- io exagerada das conquistas dos cidadaos daquele pais. Veja-se 0 caso da exploragdo polar: nesse contexto, os ingleses pensam em Robert Scott ¢ Ernest Shackleton, os americans em Robert Peary, 08 russos em Otto ‘Shmidr, os noruegueses em Fridtjof Nansen e Roald Amundsen, os sue- ‘cos em Alfred Nathorst, os finlandeses em Adolf Nordenskidld, os dina- marqueses ¢ os groenlandeses em Knud Rasmussen. Numa tentativa de compensar os angulos nacionais, 0 presente estudo adota uma abordagem, explicitamente comparativa. Ollivro se concentra no Oeidente, tentando nao se limitar aos “Cinco Grandes” ~ Inglaterra, Franga, Alemanha, Rissia e Estados Unidos ~ € procurando incluir orestante da Europa e também a América Latina, pelo menos de vez em quando. Por exemplo, um pais pequeno como a Holanda tem desenvolvido uma quantidade considerivel de estudos sobre a historia de seus conhecimentos ~ 0 conhecimento colonial, a histéria da ciéncia, a historia dos museus e assim por diante* seguir serio mencionados quase oltocentos deles: talvez um nimero um. Pouco exceanivo para alguna leitarer, mas server de contrapero a abstra- Introducio u restringe & histéria de apenas uma disciplina académica. Aqui, porém, adoto uma abordagem comparativa para evitar néo apenas os angulos nacionais acima citados, mas também os disciplinares. © que se segue € uma tentativa de sintese geral, um trabalho de destilagao ou, mais preci- samente, daquilo que um historiador da ciéneia descreveu como “invadir, rearranjar € as vezes corrigir as obras de meus colegas historiadores”” Preencher lacunas também faz parte da tarefa, visto que alguns t6picos tém recebido muito menos estudos do que outros. E ainda fazer ligagdes entre desenvolvimentos em lugares ou campos diferentes. CO objetivo é apresentar um grande quadro de um género muitas vezes invisivel para os especialistas, um quadro que inclui uma descricio geral dda propria especializagio em si. Bsse panorama do perfodo 1750-2000 ser definido por contraste com o periodo inicial da Modernidade, c:1450-1750, 4o qual me dediquei durante a maior parte de minha vida académica. No entanto, nfo serdo esquecidas as continuidades entre o infcio e a fase mais avancada da Modernidade, entre elas a consciéncia contemporanea do problema agora conhecido como “excesso de informagio".* Espero incen- tivar o didlogo entre dois tipos de estudiosos que nem sempre conversam centre si: 08 historiadores do perfodo inicial e os do periodo avancado da Modernidade* O titulo do livro coloca duas perguntas que exigem uma discussi0, preliminar. © que é historias ial? © que é conhecimento? Historias sociais Em primeirolugar, o termo “social” é evidentemente problematico. Aqui, cle 6 utilizado para diferenciar este estudo de uma historia intelectual eral do perfodo 1750-2000. (Os pensadores individuais que se destacam nas historias intelectuais Jo serio excluidos ~ realmente exerceram influéncia, e nas paginas a mento é “attuado”, no ligar da imagem tradiciona! dos cientiatan distumtes és Beonislaw Malinowski chamau de “o material bruto da informagio”,'* n Una histéria social do conhecimento «fo sem rosto das tendéncias gerais. Ainda assim, os protagonistas deste estudo so o que os socidlogos chamam de “grupos portadores de conheci- mento, sobretudo, mas nfo exclusivamente, pequenos grupos de contato direto, e de “instituigdes geradoras de conhecimento”, entendidas como grupos de individuos que se encontram regularmente em vista de objeti- vos comuns, seguindo regras que produzem diferentes papéis sociais, de bispos a prafessores, de primeiros-ministros a presidentes de empresas." Enquanto o sociblogo polonés Florian Znaniecki escreveu sobre “o papel social do homem de conhecimento”, este ensaio tratari dos varios papéis sociais de individuos instruidos, papéis gerados por onganizagoes do conhecimenro, como universidades, arquivos, bibliotecas, museus, grt pos de discussio, sociedades eruditas e revistas cientificas. Também sero abordados os processos pelos quais se institucionaliza o conhecimento:” Este estudo no omitira as ideias ~ é impossivel entender as institut es sem elas, mas ird privilegiar sua hist6ria mais externa 3 interna, os ambientes intelectuais aos problemas intelectuais, Assim, por exemplo, a tOnica recaird sobre o Instituto de Estudos Avangados em Princeton, a0 qual Albert Einstein pertenceu em certa €poca, e nao tanto sobre suas teorias da relatividade; recaird sobre a critica de Edward Thompson 4 Universidade de Warwick, e nfo tanto sobre seu estudo da formagio da classe operaria inglesa ‘Também serdo abordados os pequenos grupos de contato direto, sejam equipes on concorrentes, visto que muitas vezes s4o esses yrupos que fazem o trabalho creditado a apenas um individuo. Apesar do mito, por ‘exemplo, do explorador heroico da segunda metade do século XIX, se niio de antes, “os agentes de exploracao eram grupos, nao individuos”. Da mesma forma, no decorrer do perfodo, tornou-se cada vez inais frequente que as pesquisas de laboratério fossem feitas por equipes. Em suma, este livro € uma historia social a maneica de outras hist6- ras sociais anteriores, por exemplo da arqueologia, da cartografia ou da medicina," Pode-se defini-lo também como uma sociologia histbrica do conhecimento. Como fazem os socidlogos, ressalta-se aqui que o conheci- Introdugdo 4 do muro, fechados em laborat6rios, observatérios, bibliotecas € outras torres de marfim, Os estudiosos realmente precisam de “um espago pré- prio” para trabalhar sem se distrair, mas esse afastamento ¢ apenas relative. Levam 0 mundo, inclusive a politica, para seus gabineres ou laborat6rios, € seus resultados, como mostra o Capitulo 4, sio frequentemente utilizados para fins mundanos. Assim, 0 titulo do livro também poderia ser “uma histéria politice do conhecimento”, como se chama uma de suas secdes, nao fosse pelo fato de ter um objetivo mais amplo, em que o termo “social” funciona como ‘uma qualificagio abrangente, que, além da historia social em sentido mais estrito, incfui ainda a histéria econdmica e a histéria politica. Qutra possi- bilidade seria chamé-lo de “uma ecologia histérica do conhecimento”, em vista de sua preocupacdo com a concorréncia pelos recursos, a diferen ‘lo © 08 ambiemtes ou nichos favoraveis para instituicées, disciplinas du tipos particulares de estudiosos, como o polimata (adiante, p.aags). ‘Um terceiro titulo possivel seria “uma histéria cultural do conheci mento”, A expresso “culturas do conhecimento” (ou “culturas epistémi as", em aleméo Wissenskulturen) é& cada vez mais corrente e, sem diivida, tem sua utilidade, reforgando a ideia de conhecimentos no plural. Esta ‘obra trata varias vezes de préticas como a observagio, o mapeamento ou a anotagio, as quais também poderiam ser qualificadas de culturais ou sociais. Ainda assim, a tSnica sobre as instituigdes parece exigiro termo social”, que tem a vantagem adicional de evocar a tradi¢ao da sociologia do conhecimento, que possui quase um século de existéncia. Conhecimentos A segunda pergunta, “O que é conhecimento?’, incomodamente faz lem brar muito a pergunta que fez. 0 "Pilatos trocista’, o qual, segundo Fran: cls Bacon, “no esperou pela resposta’: o que é a verdade? Um primeira passa seria diferenciar o conhecimento daquilo que o antropélogo pola: 4 (Uma histéra social do conheermente Dizem-nos que “estamos nos afogando em informagao”, mas somos “po- bres de conhecimento”, Podemos vicar “gigantes da informagio", mas cortemos 0 risco de nos tornar “andes do conhecimento”?” ‘Tomando de empréstimo uma metéfora famosa de outro antropé: logo, Claude Lévi-Strauss, poderfamos pensar na informagdo como o cru, enquanto 0 conhecimento seria 0 cozido. £ claro que a informacao & apenas relativamente crua, visto que os “dados” nao sdo de maneira ne. nhuma “dados” objetivamente, ¢ sim percebidos pelas mentes humanas, repletas de suposigdes e pteconceitos. Mas 0 conhecimento ¢ “cozido”, no sentido de ser processado. Os processos, discutidos longamente no Capitulo 2, incluem 2 verificagio, a critica, a medigio, a comparagio € a sistematizacao. As tradigdes do ou dos conhecimentos devem ser concebidas no plural, ‘como ji fez 0 filsofo Michel Foucault nos anos 1970, embora ainda sejam frequentemente vistas no singular, tomando-se uma parte conhecida pelo todo, Para citar Drucker outra vez, "passamos do conhecimento para os conhecimentos"!* Os taxistas de Lomdres, que falam de “conhecimento” referindo-se & topografie da capital, ndo sio de maneira nenhuma os tini- cos a adotar 0 postulado maliciosamente atribuido a Benjamin Jowett (catedeético do Balliol College, Oxford) de que “o que no conheco nao & conhecimento’ € implicitos (ou técitos), puros e aplicados, locais universais. Embora sejam raras as historias das habilidades praticas, é evidente que “saber como” merece um lugar ao lado de “saber que"2° Da mesma forma, os conhecimentos dominados ou submetidos (savoirs assujettis) merecem um ugar ao lado, e no abaixo dos dominantes." Hé um aspecto politico na ergunta “o que ¢ conhecimento?”. Quem tem a autoridade para decidir que é conhecimento? * Os conhecimentos podem se dividir em explicitos Este livro trata sobretuco do conhecimento académico, cal como se dé com o conhecimento no Ocidente. Assim, um titulo mais exato seria “uma histéria social do conhecimento académico ocidental”. © problema é que, além de ser um titulo um tanto pesado, dé afaisa impressio de que essen tinn ds SeEIaNEN seria tratado izaladamente. Introd " Na verdade, « interagla entre diversos conhecimentos é um dos temas centrais deste estuda, Dai ax constantes referéncias a detetives e espides, ‘ow a governos ¢ grandes empresas, além da discussio sabre os vinculos ‘entre novas disciplinax académicas, como a quimica, a economia ou a ‘geologia, e o conhecimento prético de farmacéuticos, comerciantes, mi- neiros e assim por diante. Por exemplo, Adam Smith pertencia ao Clube de Economia Politica em Glasgow, e suas converses com os comerciantes dda associagZo foram muito titeis para seu famoso A riqueza das nagies (76), Com efeito, ha quem sustente que o desenvolvimento da economia ni Inglaterra se dex: “em larga medida sem o beneficio do reconhecimento oficial, académico ou de qualquer outra espécie” 2 Ademais, era frequente atravessar-se a fronteira entre o trabalho meat dérmico e 0 servigo secreto, sobretudo, mas nfo s6, em tempos de Nos Estados Unidos, o Departamento de Servicas Bstratégicos 4 guerra recrutou varios professores tadiante, p.isd). Na Inglatert®| Russell, mais conhecido por sua importante contribuiglo aos panhéis, ingressou no servigo secreto nos anos 1930, enquanto @. dor da arte Anthony Blunt trabalhou tanto para o Mis quanto equivalente soviético, a NKVD. Passando para a geografia, este livro, apesar de concentrar’o Buropa e nas Américas, também aborda outras partes do rmundo, Hgito, a China e 0 Japto no século XIX. Tai discussio é necessdtia foi nesse periodo que o conhecimento ocidental se espalhou para do Ocidente ~ embora 0 verbo “espalhar” nao seja o mais apropriade sugeric um movimento sem mudancas, Seria mais realista pensar’ mos de uma recepcdo ativa, em que grupos e individuos fora do fe apropriaram do conhecimento ocidental ¢ 0 adaptaram a suas finalidades. Em segundo lugar, o mundo além do Ocidente precis cutidlo, pois havia um transito na dirego contréria, cuja import fecentemente veio a ser reconhecida no Ocidente. Os exploradoren, tanto neste periodo quanto no inicio da Modernidade, dependiam de «© quias nativos, O mesmo se aplica a bocinicos, linguistas ¢ outros ‘20, manne que epennabtiuens 0s cesukedos como “descobanatll 6 ‘Uma hlatdta socal do comhectmeno Bevidente que o assunto é vastissimo, dificil de caber em um volume ‘com algumas centenas de paginas, e s6 posso esperar que os leitores nao julguem que, a0 discutir 0 excesso de informacio, eu tenha contribuido: para aumentar essa sobrecarga. Sendo uma breve apresentacao de um vasto tema, este livro privilegia descobertas relativamente sibitas, em detrimento da acumulacio lenta ¢ paciente do conhecimento que leva _gradualmente a grandes mudangas de interpretacao. & gualmente dhvio que ele foi escrito de um ponto de vista pessoal. Meu conhecimento do conhecimento é, para dizer 0 mninimo, desigual, ¢ muitas vezes fiquei dividido entre a vontade de fizer justiga as ciéncias naturais ¢ @ atragao por estudos de caso em campos que conhego melhor, da historia da arte 4 antropologia. A abordagem é tanto mais pessoal porque me envolvi e passei por mudangas nos regimes de eonhecimento durante os titimos cinquenta anos, que correspondem a 20% do periodo coberto peloivro, ‘vendo essas mudangas da perspectiva de uma disciplina ~a historia -e de ciés lugares: as universidades de Oxford, Sussex e Cambridge. [Em outras palavras, o que se segue, apesar de sua extensio, deve ser ‘visto como um ensaio, impressionista nos métodos e provisério nas con- ‘cusoes, sem nenhuma pretensio de cobrir todo o terreno de seu vasto tema, oferecendo basicamente uma panoramica. Em certo sentido, éuma sequéncia de ensaios. Os quatro primeitos capitulos se concentram nos processos de coleta, andlise, disseminacao e aplicacao dos conhecimen tos, fisando a historicidade de atividades muitas vezes entendidas como invariaveis. Os Capitulos 5 e 6 procuram combater a suposico comum de um progresso continuo do conhecimento, ou do “avanco do saber", reconhecendo 0 aspecto problemtico da acumulagao, Os Capitulos 7 € 8 examinam a histéria do conhecimento dos pontos de vista geografico, econdmico, politico e sociolégico, enquanto o iltimo capitulo apresenta de maneira mais explicita a preocupagio essencial do livro coma mudange 20 longo do tempo. A ceapecializaco afetou nio s6 a hist6ria, mas também a historiografia do conbeclmeni, A Iiistoria da ciéncia, por exemplo, constitai um depar- samante autiwama een multas universidades. Além disso, foi fandada uma Introd ” International Intelligence History Association (i993), bem como um Journal of Inteligence History (2003). A bibliografia secundaria sobre a histéria de co: nhecimento, em sua maioria, costuma ser organizada segundo nacdes ou Aisciplinas, Em contraposiclo, o objetivo e, na verdade, a justificativa deste ‘ensaio é transpor fronteiras ~ nacionais, sociais ¢ di ‘iplinares -, tendo ‘em mente 0 conselho de E.M. Forster “Apenas conecte” ~ e procurando evitar o que Aby Warburg chamou de “policia de Fronteira” intelectual, na speranga de produzir uma historia polifénica dos conhecimentos, uma * historia vista de miltiplas perspectivas. " Embora este livro nao pretenda recomendar nenhuma atitude e muito ‘menos uma politica particular em telagZo ao conhecimento, os leitores de- vem estar avisados de que o autor é um pluralista, no sentido de acreditar que conhecimentos no plur: tal como as opinides, sdo desejéveis, visto que o entendimenta surge do didlogo ¢ mesmo do conflito intelectual, PARTE 3 Praticas do conhecimento 1, Colhendo conhecimentos UMA HisTOnta SOCIAL DO CONHECIMENTO PRECISA, evidentemente, abordar as maneiras como os diferentes grupos adquirem, processam, difundem ¢ utilizam o conhecimento, sequéncia esta que, no rundo do servigo se- creto ~ em outras palavras, na espionagem -, as vezes é dividida em quatro fases ptincipais: coleta, andlise, disseminagao e ago (ou, abreviado, Cada). Claro, é impossivel separar totalmente esses estdgios” Nao se faz-coleta ou observagio com a mente vazia. Como disse 0 antropélogo Clifford Geertz, ‘no estudo da cultura, a andlise penetra no préprio corpo do objeto”, ponto que tem sido reiterado, quando nao exagerado, por estudiosos que falam da “construcao cultural” de praticamente tudo? A disseminagao amitide ‘envolye a andlise.* Os estgios podem parecer atemporais; pelo contririo, todos eles estio situados no tempo e no espago. Esses quatro estiigios serdo tratados nesta ordem, na Parte I, ¢ outras, distingGes sero apresentadas ao longo do livro. Este capitulo enfoca 0 primeiro estigio, 0 processo de colher ou colerat conhecimento. Colhendo conhecimento ‘Metiforas expressivas como “colher" ou “coletar” conhecimento evocam um quadro que, evidentemente, é simplificado demais, como se 0 conhe- ‘imento pudesse ser catado como concha na praia, colhido como fruto de uma érvore, apanhado na rede como borboleta, A mesma observaciio se aplica A metéfora de “cacar” ou “capturar” (uma das favoritas nos atuais estudos de administracdo de empresas)’ Aqui, tais termos s3o utilizados como simples designagdes sucintas para uma série de processos que in- cluem a exploracao, a observasao, o levantamento ¢ a experimentagao, para nfo citar a aquisicio, a pilhagem e, também importante, a consulta 4 informantes locais, seja perguntando ou ouvindo. Em linguagem académica, tais processos correspondem a fazer “pes quisa” [research]. A palavra “research”, antes de 1750 empregada apenas oca- sionalmente, passou a ser cada vez.mais frequente nos titulos dos livros a partir de meados do século XVIII, em varias inguas europeias — recherches, rricerche, Forschung e assim por diante -, para descrever investigacdes em uma variedade de campos intelectuais, entre eles a anatomia, a astrono- mia, a economia politica, a demografia, a geografia, a fisica, a quimica, a paleontologia, a medicina, a histéria e os estudos orientais. Para citar apenas alguns exemplos famosos: 1768. De Pauw, Recherches philosophiques sur les américains s788- revista Asiatic Researches 3704 Lamarck, Recherches sur les principauscfaits physiques 1799. Davy, Researches, Chemical and Philosophical s6i2. Cuvier, Recherches surles ossemens fssiles 2838 Cournot, Recherches sur les principes mathématiques de la théorie des richesses Bsses casos se referem a pesquisas realizadas em arquivos, museus ¢€ laboratérios, mas outros exemplos inclufam o que agora chamamos de “trabalho de campo", como no caso ébvio da exploragdo. John Bar- row, ministro do Almirantado britdnico, posigao que Ihe permitia en- comendar e autorizar expedigées, publicou um relato de algumas delas com o titulo Voyages of Discovery and Research in the Arctic Regions (1846). Os exploradores oferecem exemplos memoraveis de coleta de conhe- cimento, motivando reflexes sobre o processo pelo qual se produz 0 conhecimento® A segunda era de descobrimentos A quantidade de conheclmento novo colbido ou coletado no primeiro século de nosso periodo de estudo, 1750-1850, foi assombrosa, sobretudo © conhecimento coletado por europeus sobre @ fauna, a flora, a geografia ¢ ahhist6ria de outras partes do mundo, Assim, no é de surpreender que alguns historiadores se refiram a esse perfodo como uma “segunda grande era de descobrimentos”? ‘A primeira era dos descobrimentos, que se iniciou com Vaseo da Gama € Ctist6vao Colombo, caracterizou-se pela exploragio extensiva das cos- tas. A segunda era levou a exploragio costeira aos mares do Sul e a outras localidades, mas também incluiu a exploragio intensiva do interior da Africa, das Américas do Norte e do Sul, da Australia, da Sibéria, da Asia Central ¢ de outros lugares, preenchendo 0 que Joseph Conrad, numa ‘expresso famosa, chamou de “espacos em branco” no mapa. Um desses exploradores, Alexander von Humboldt (figura 1), cujo nome reaparecers varias vezes nestas paginas, é chamado de “o Colombo alemao! John Hemming, ele proprio explorador, definiu quem se aventura na atividade como “alguém que avanca além do mundo conhecido de sua sociedade, descobre o que hé por lé ¢ volta para descrevé-lo a seu povo"* A definigdo de Hemming exclui algumas mulheres (adiante, p.297-8), bem como 08 varios exploradores que nao retornaram, mas sua énfase sobre o retorno do explorador trazendo um novo conhecimento condiz com os objetivos deste livro, 4 Os episodios de dificuldades, sucessos ¢ tragédias dos exploradores se restam a narrativas heroicas, que tém sido incansavelmente recontadas. Entre os nomes mais famosos esto James Cook e Louis-Antoine de Bou- gainville nos mares do Sul, Mungo Park e David Livingstone na Africa, Meriwether Lewis e William Clark:no Oeste dos Estados Unidos, Alexan- der von Humboldt na América do Sul, Robert Burke e William Wills na ‘Australia, Alexander von Middendorffna Sibéria ¢ Nikolai Prehevalsky na Asia Central, Hoje, as contribuigies desses exploradores a0 conhecimento vém recebendo destaque cada vez maior? iguaa 1. Alexander von Humboldt, estétua em Berlim (885). Humboldt, por exemplo, com seu amigo botinico Aimé Bonpland, passou cinco anos explorando a América Espanhola (1799-1804), escalando montanhas (inclusive 0 vuleio do monte Chimborazo) ¢ viajando por rios (0 Orenoco € 0 Amazonas). A expedigio rendeu contribuigoes para a geologia, a botanica, a zoologia (com o estudo das enguias elécricas, por exemplo}, a meteorologia ¢ uma série de outras disciplinas (mais preci- samente, como explicaré o Capitulo 6, contribuigdes ao que depois se isciplina Mas houve muitos outros exploradores daquele perfodo que no con- quistaram tanta fama. Franceses e alemies, alm dos ingleses, investiga- ram o interior da Africa: René Caillié, por exemplo, que respondeu a0 desafio lancado pela Sociedade Geografica de Paris ¢ alcangou Timbuktu em 1424; Pierre de Brazau, de quem velo o nome de Brazzaville; Henri Duveyrier, que aos dezenave anos explorou o deserto do Saai amigo lemdo de Duveyrier, o gedgrafo Heinrich Barth, outro explorador do Saara; 0 botdnico alemio George Schweinfurth, que descobriu os azandes a Africa Central.” Nos mares do Sul, ao lado de figuras famosas como Cook e Bougain- ville, Jean-Prangois de La Pérouse, Nicolas Baudin ¢ Matthew Flinders comandaram viagens de descobrimento, Baudin, por exemplo, iniciou sua viagem ao redor do mundo em 1800, entre outras coisas para mapear a costa australiana, com 0 apoio de uma grande sociedad erudita, o Institut de France, ¢ com o auxilio de alguns cientistas a bordo, incluindo astrd- nomos, botdnicos, mineralogistas, zodlogos € um médico que também atuava como o que chamariamos de etnégrafo. Em paralelo corriam as exploragdes russas ¢ norte-americanas do inte- rior desses imensos paises, 05 russos indo para o leste e os americanos para veste. Entre 1803 ¢ 1806, Meriwether Lewis e William Clark, escolhidos pelo presidente Jefferson para comandar o “Corpo de Descobrimento”, foram e voltaram de Pittsburgh 3 Costa Pacifica, explorando dois tergos da América do Norte. Sobre a expedigao programada, Lewis disse que estava “‘prestes a penetrar numa regido com pelo menos 3.200 quilémetros de Jargura, jamais pisada pelo homem civilizado”. Clark fez o levantamento © omapeamento, enquanto Lewis se encarregou da historia natural. Os exploradores encontraram animais desconhecidos pela cigncia oc dental, como o cdo-da-pradaria, 0 lagarto-de-chifre das planicies e 0 roedor silvestre do género Neotoma, ¢ remeteram espécimes botinicos, zoolég cos e minerais. Lewis ¢ Clark também tinham instrugdes de aprender os rnomes, as linguas, as ocupagées, as ferramentas ¢ os costumes das tribos indligenas que encontrassem. Descreveram os siouxes, os shoshones e os nez perce, € yoltaram com alguns vocabulérios de linguas nativas.* Os relatos do empreendimento de Lewis ¢ Clark nem sempre fazem Jjustica ao papel dos informantes indios, como Sacajawea (adiante, p.257), para orientar a expedigio, bem como “o conhecimento geogréfico ame- ricano native codificado nos varios mapas que moldaram e guiaram sua Jornada" Ainda assim, a proeza da dupla, como a de muitos outros ex- ploradores, foi considerdvel e permitiu que os estudiosos tivessem a visio eral ~ neste caso, de todo o Oeste americano ~ que faltava aos locais. Na Rassia, a Sociedade Geogratfica, a Academia de Ciéncias, o Museu Btnogrifico Russo e outras instituicdes organizaram expedigOes para ma- peare explorar Areas distantes do império, inclusive a Sibéria e 0 Artico. O estudioso alemao Peter Pallas foi enviado a Sibéria por Catarina a Grande, para investigar os recursos naturais da regido (1768-74), 0 botanico russo Mikhail Adams empreendeu pesquisas na regio (1806); o noruegués Chris- topher Hansteen foi Sibéria estudar o magnetismo da Terra (1828-30), © Alexander von Humboldt também Ihe prestou uma visita (1826). Mas a primeira grande expedi¢Zo cientifica a Sibéria foi a do 206- | logo Alexander von Middendorff (1842-45), financiada pelo governo russo ‘¢ apoiada pela Academia de Cigneias russa, a fim de estudar a vida orgi- nica num ambiente Artico. Na verdade, Middendorff fez muito mais do ‘que isso, liderando o que tem sido definido como “a expedigao cientifica rressa mais importante do século XIX" e abrangendo uma érea to vasta quanto Lewis e Clark haviam coberto no Oeste americano, Middendorff sua reduzida equipe mapearam a regio, estudaram o lima, mediram ‘a temperatura do solo, ¢ coletaram nJo s6 espécimes da flora e da fauna, mas também as ferramentas, as cangdes, as narrativas € os vocabulirios dos povos autéctones, entre eles os ostiaques, os iacutes ¢ os tungus. Acxpansio russa até o Turquistio resultou numa série de expedig&es geogrificas, arqueologicas ¢ etnogréficas na Asia Central, comandadas por Nikolai Przhevalsky (1872), Samuil Dudin (1900-2) e outtos.* A Asia Central foi finalmente mapeada pelo ge6grafo sueco Sven Hedin, apés uma série de expedigoes entre 1894 € 1908. Expedigées cientificas Na terra e no mar, houve grandes contribuig6es a0 conhecimento, sobre- tudo 0 geogrfico, dadas por individuos sem qualquer pretensio cientifica, 8 proprios exploradares, com o autilio ~ muitas vezes ndo reconhecido de alguns autéctones das regides que estavam explorando, No entanto, houve uma diferenga importante entre a primeira ¢ a sc- und era dos descobrimentos. Os navios da primeira era tinham levado soldados, comerciantes, missionérios e administradores. Os da segunda, de especializacio crescente (abordada adiante, p.203s), levavam também ustrOnomos, naturalistas e outros estudiosos. Bra cada vez maior o niimero do que chamariamos de expedigdes “cientificas”, orgonizadas em parte ou mesmo principalmente para coletar dados nao 86 sobre as rotas maritimas de importancia estratégica, politica ou econémica, mas também sobre 0 mundo natural cm geral e (com menor frequéncia) as diferentes culturas, "Tense sugerido algumas vezes que a expedico cientifica foi inven- tada no final do século XVIL'* Essa sugesto desconsidera ocorréncias similares no periodo inicial da Modernidade, como 0 caso de Francisco Hernandez, médico do rei Filipe II de Espanha, que foi enviado ao México as Filipinas numa missio de sete anos (157+78) para estudar ervas medi- cinais, Apesar disso, sem davida ¢ correto situar o surgimento da expedi: ‘do cientifica ou de coleta de conhecimento como fendmeno recorrente ¢ organizado — em outras palavras, como uma instituiggo ~ na segunda metade do século XVII. ‘No caso das viagens de exploragio, os nomes de alguns navios indicam a importéncia dos interesses cientificos, pelo menos na maneira como se apresentavam. James Cook viajou no navio Discovery, Alessandro Malas- pina no Descubierta, La Perouse no Astrolabe, Baudin no Naturaliste e no Géographe, Flinders no Investigator, enquanto as expedig6es francesas a0 Pacifico (1792) ¢ a0 Artico (1835) foram a bordo do Recherche Accoleta de conhecimento fazia parte das instrucdes dadas aos capi- ties dos navios, ¢ uma equipe de estudiosos podia seguir a bordo. Por ‘exemplo, um astrénomp foi com o capitiio Cook em sua primeira vingem, incumbido pela Royal Society de observar a passagem de Venus pelo Sol, que deveria ocorrer em 1769. O navio também levou o botdnico Joseph Banks e seu colega sueco Daniel Solander (dai o nome Botany Bay, que Cook dev a rea que agora fax parte da cidade de Sidney). Analogamente, La Perouse recebeu instrucdes detalhadas da Geographer Royal ¢ da Aca- demia de Ciéncias sobre 0 conhecimento que devia coletar. Levou dez cestudiosos, entre eles astrdnomos, gedlogos, botanicos e zodlogos—sem ccontar artistas contratados para registrar as paisagens, a flora, a fauna e ‘0s indigenas dos locais visitados.” Na tradigGo de Filipe II e Hernandez, a Espanha promoveu mais de sessenta expedigbes no século XVIII, sobretudo expediges botinicas ao Novo Mundo, ea Franca ainda mais. Entre elas estavam a expedigio a0 Orenoco (4754-61), a expedicao franco-espanhola a0 Peru (1777-88), a expe digo a Nova Granada, atual Colémbia (1783-2808), € a expedigao a Nova Es- pana, atual México (787-1803)."" Em outras palavras, embora a expedicdo | de Humboldt América espanhola atraisse maior atengao internacional resultasse em descobertas numa maior variedade de campos, ndo foi de maneira nenhumva a primeira, nem a mais longa. Uma terceira era de descobrimentos? A concentracdo nos cem anos que vio da década de 1760 a de 1860, ou de Cook a Livingstone, deixa de fora algumas das mais épicas narrativas da luta entre exploradores e ambientes hostis, no Artico ¢ na Antartida (embora 0 capito Constantine Phipps jé em 1773 tivesse feito uma expedigo ao polo Norte). Aqui também, a busca de conhecimento é parte importante da his- ‘t6ria, Em 1895, 0 VI Congresso Geogrifico Internacional declarou que “a maior obra de exploragio geogrifica ainda ase realizar" estava na Antartida, ¢ resultaria em “acréscimos 20 conhecimento em quase todos os ramos da ciéncia”! © famoso quimico Dimitri Mendeleiey insistiu com o primeiro- ministro cusso para que apoiasse a “conquista” dos polos Norte e Sul, em prol do “triunfo do conhecimento”? Nansen era zoélogo e oceandgrafo. Nathorst era gedlogo e paleobotanico. Na expedig3o de Amundsen ao Artico, ‘em 1918-25, foi erguido um observatbrio geofisico no gelo. Quando finalmente chegou-se ao polo Norte e ao polo Sul, parecia que nfo restara nenhum lugar do mundo a conquistar ou, pelo menos, a explo- tur, ¢€m 1904 © gedgrafo britinico Halford Mackinder anunciou pesaroso ‘fim da era “colombiana’, como a definin, ¢ o advento do “espaco fechado”. Mas estava se abrindo outra fronteira: o mundo submarino. A explo- rasfo das profundezas marftimas comecou com a expedicio do navio bri- nico Challenger (1872-76; figura 2), que fez: um mapa geol6gico do fundo do oceano, mediu a temperatura da agua em diversas profundidades e descobriu cerca de 4700 formas de vida marinha antes desconhecidas. A partir dos anos 1930, « exploragio das profundezas maritimas passou a ser feita por cientistas em submergiveis especialmente projetados, corn amplas janelas para observaciio: a batisfera (baixada do navio por um cabo) € 0 batiscafo (que era autopropelido) 2" Depois da terra e do mar, veio a exploragio do espaco, a “terecira grande era” dos descobrimentos# © langamento do satélite artificial russo Sput nik (1957), rapidamente seguido pela criacdo da Nasa (National Aeronautics and Space Administration, 1958) nos Estados Unidos, visava a “promover 0 avango do conhecimento cientifico fundamental” e do prestigio nacional. ‘Onome da nave espacial americana Challenger (em operaco em 1983-86) foi uma homenagem ao navio do século XIX. Tal como no caso da exploracdo polar, a natureza épica das proezas de Juri Gagarin e Neil Armstrong (para nfo citar a tragédia dos astronautas mottos em acidentes) foi toldada pelo conhecimento adquirido durante as issbes realizadas por naves tripulades e nfo tripuladas: a coleta de amostras geolégicas da Lua, por exemplo, o estudo da oceanografia por ‘meio de instrumentos no espaco, a transmissio de dados de Venus, Marte, Jpiter, Saturno, Urano e Netuno para a Terra e, recentemente, a anilise do solo de Marte, coletado pela sonda espacial Phoenix (2008) Em busca de culturas do passado Algumas expedigdes em busca de conhecimento estavam menos interes sadas na natureza e mais na cultura, do passado e do presente, Um dos primeiros exemplos foi a expedigyo de Niebuhr 4 Arabia (incluindo os F1GURA 2, HMS Challenger 1858), atuais Egito e Siria) entre 1761 & 1767 Sugerida pelo extudioso hiblico ale ‘flo Johann David Michaelis, para langar luz sobre os povos descritos no ‘Antigo Testamento, examinando-os em seu proprio meio, a expedicio foi financiada pelo rei da Dinamarea ¢ ineluia o topégrafo alemio Carsten Niebuhr, 0 botinico sueco Peter Forsskal, um fil6logo ¢ um artista. A ‘maioria dos participantes teve um destino trégico, como o de muitos ex- ploradores na Africa ou na Antartida, mas Niebuhr sobreviveu e publicou uma famosa descrigio da Arabia, com novas informagdes sobre as Kinguas, ‘05 costumes locais eas esculturas remanescentes nas cuinas de Persépolis.4 A expedigao individual do filélogo Rasmus Rask, que visitou a Suécia, a Finlandia, a Riétssia, a Pérsia e a {ndia em busca de manuscritos (1816-29), também foi financiada por um rei dinamarqués. ‘Uma geracao depois, a expediicao de Niebuhr foi vastamente superada pelo grupo de mais de 150 estudiosos que acompanhou o exército de Napo- Jeo, quando a Franca invadiu o Egito em 1798. Seguindo esse modelo, a Mission Scientifique de Morée (1828.33), designada pelo Institut de France, acompanhou o Exército francés na intervencio durante a Guerra de In- fica” da Angelia, como era oficialmente conbecida, foi empreendida entre 1841 € 1843 em nome do governo francés. Alguns estudiosos também acompanharam o Exército francés em sua iptervencao no México, em 1862, apoiando © imperador Maximiliano2¢ As aplicagées do conhecimento na construczo ‘ena manutengio dos impérios serio tratadas adiante, no Capitulo 4. Alguns dos estudiosos que acompanbaram as expedigGes ao Egito, A Grécia, & Argélia e 0 México eram arque6logos. No século XVII, j6 haviam sido feitas varias descobertas notaveis ds restos materiais de ci- vilizagdes do passado, entre clas as ruinas das cidades romanas antigas de Herculaneum (1738) e Pornpeia (1748) e da cidade maia de Palenque, no México (1773) dependéncia da Grécia, Além disso, a “exploracao No entanto, varias das mais famosas expedicBes e escavagées arqueolé- ‘gicas datam dos meados e do final do século XIX. A antiga cidade assiria de Ninive foi escavada pelo diplomata inglés Austin Layard (1845 em diante), a cidade de Troia (perto de Hsarlik, na Anatélia) pelo alero Heinrich Schliemann (4870-). A civilizacdo suméria foi descoberta pelo arquedlogo francés Ernest de Sarzec em Telloh, no Iraque (4877). Muitos sitios antigos no Egito foram escavados pelo inglés Flinders Petrie (1880). A cidade da Babil6nia foi escavada pelo alemao Robert Koldewey, € 0 complexo dos palacios de Cnossos em Greta por Arthur Evans (ambos a partir de 1899) Houve outras descobertas espetaculares no comeco do século XX. A civilizagao dos hititas comegou a ser descoberta em 1906, em escavagies em Bogazkale, na Anatélia. Khara-Khoto, cidade tangute na China oci- dental, foi escavada pelo russo Piotr Kozlov em s907-09. A cidade inca de Machu Picchu foi descoberta em 1911 pelo historiador americano Hiram Bingham (com a ajuda de um agricultor local), enquanto as escavagies sistematicas dos restos maias em Palenque comecaram em 1934. Nessa época também se realizaram expedicées antropolégicas. Entre as mais conhecidas esto a Expedicao Jesup ao Pacifico Norte (1897-1902), da qual Franz Boas participou; a Expedicéo Antropologica de Cambridge ao Estreito de Torres (1898), na verdade um empreendimenta interdisciplinar; € a Missio Dacar-Djibuti, francesa (931-33), que incluiu um importante an- tropdlogo, Marcel Griaule. Como os folcloristas mais perto de casa, os antro- pologos tinham sua curiosidade intensificada por acreditarem que estavam_ presenciando os diltimos dias de culturas tradicionais ou “primitivas’, que estavam fadadas & extingio no mundo moderno, Como declarou Adolf Bas- tian em 1880: “O que pode ser feito tem de ser feito j4. Do contratio, a pos- sibilidade de etnologia est anulada para sempre."*” Segundo Malinowski, a tragédia da etnologia € que, no exato momento em que esta “pronta para ‘opera’, “o material de seu estudo se dissolve com rapidez irreversivel”: A descoberta do tempo (Os arqueélogos eram apenas um dos grupos que contribuiram para a chamada “descoberta do tempo’, principalmente do “tempo profundo’.#* ‘Tais grupos poderiam se chamar “exploradores do tempo’, € por isso s0 tratados neste capitulo junto com os exploradores do espaco, embora a dencoberta de camadas temporaix cada vex mais profundas tenha resul tudo de uma trabalhosa unalise, ¢ ndlo canto da simples observagio. Jim 1750, muitos europeus cultos ainda sustentavam a visio tradicional de que o mundo tinha 6 mil anos de existéncia. Desde entao, a ideia de tum mundo com 6 mil anos foi continuamente contestada por arque6lo- £05, paleontélogos, gedlogos e astrénomos. Na metade do século XIX, 0 termo “prehistory”, em inglés, entrou em uso entre arquedlogos ¢ outros ‘estudiosos para descrever 0 pasado humano antes da invengio da eserita em francés, “préhistoir” apareceu um pouco mais tarde, em 1876, mas 0 termo “antehistorigue” recuava a0s anos 1830. O periodo conhecido como “pré-historia” se expandiu gradualmente. A Idade da Pedra foi dividida entre antiga e nova, o Paleolitico e o Neolt- tico, Entao foi introduzido um periodo intermediario, conhecido como Mesolitico, ¢ 0 Paleolitico foi subdividido em Inferior, Médio ¢ Superior, para distinguir as mudangas ao longo de um periodo que passou a ser considerado cada vez mais extenso. ‘Nos iltimos 150 anos, aproximadamente, gracas aos arquedlogos € palcontélogos, a data de surgimento dos humanos como mamiferos ca- pazes de usar ferramentas tem recuado cada vez mais. Em 1942, Louis © Mary Leakey descobriram um sitio de ocupagéo humana no Quénia, ‘Olorgesailie, que tinha machadinhas de pedra ¢ ossadas de animais que datavam de 700 a 900 mil anos atris. Os Leakey também trabalharam na regio da garganta de Olduvai, na Tanzinia, onde ficou demonstrado que a invencao de ferramentas se iniciou ha cerca de 2,5 milhées de anos. Mesmo esse achado foi superado pela descoberta de “Lucy”, um esqueleco humano com 3 milhoes de anos encontrado na Etiépia, mostrando que andar sabre as duas pernas foi anterior a fabricagio de ferramentas, ‘© tempo humano, mesmo com 3 milhies de anos, parece pequeno comparado ao tempo animal, como tém revelado os paleontélogos desde ‘o comeco do século XIX. Em suas Recherches (1812), 0 paleontélogo francés Georges Cuvier afirmou que as sequéncias fosseis revelavam uma suces- sio de organismos, os répteis antecedendo os mamiferos. Ele descobriu ‘0 mamute € 0 mastodonte e em 1809 identificou ¢ nomeou o pterodatilo, descoberto meio século antes, Desde Cuvier, os fosseis tém sido datados em perfodos muito mais recuados, Os dinossauros, agora, datam de 66. 245 milhGes de anos atras, e os primeiros fosseis de cerca de 3,5 bilhdes de anos atrds, Atualmente acredita-se que a vida na Terra surgiu ha cerca de 3,8 bilhdes de anos. A paleontologia, por sua vez, foi superada pela geologia. Em suas Fpo- ques de nature (1779), 0 conde de Buffon distinguiu seis épocas, que soma- vam cerca de 75 mil anos, © que agora parece uma cifra modesta, mas naquela época chocou muita gente. Mais tarde, estudando o proceso de sedimentagao, Buffon ampliou a idade da Terra para 3 milhdes de anos, mas nio publicou esse achado. Baseando suas estimativas em célculos de perda de calor, como Buffon, o fisico briténico William Thomson (lorde Kelvin) sugeriu em 1862.que a Terra teria de 20 a 400 milhdes de anos. To- davia, essas cifras nfo foram suficientes para estudiosos mais jovens, como o fisica Robert Strut, que datou uma pedra em 2 bilhdes de anos, ou 0” ‘geélogo Arthur Holmes, que afirmou que algumas pedras de Mogambique tinham 1,5 bilhdo de anos. Formou-se um comité sobre a idade do planeta, no qual Holmes defendeu uma data de 1.5 a 3 bilhdes. A estimativa atual gira em torno de 4.5 bilhdes de anos.” ‘A geologia, por fim, foi superada pela astronomia, apresentando-nos ‘om universo com idade nfo de milhdes, mas de bilhbes de anos. Nos anos 1920, 0 astrénomo americano Edwin P. Hubble langou a ideia de que 0 “universo teria se iniciado com uma grande explosdo, um big bang — como a denomirnou um oponente da teoria, o astrdnomo britanico Fred Hoyle, numa expresso que ficou famosa. Quancio? As estimativas varia, mas algumas chegam a1o bilhées de anos. Levantamentos Fazer um levantamento permite ver alguma coisa de uma posicdo mais alta. © levantamento topografico, no sentido de fazer medigbes para de- terminar a distancia entre diferentes pontos, remonta pelo menos ao Egito ‘antigo, ¢ alguns dos instrumenton usados foram inventados pelos arabes na Idade Média, mas « topogeafia velo a se tornar mais exata em nosso periodo ¢ também se estendeu a um niimero muito maior de lugares na ‘Terre. Os exploradores muitas vezes eram topégrafos nesse sentido tée- nico. © capitio Cook, por exemplo, recebeu o encargo de fazer viagens 20 Pacifico por sua habilidade em levantamentos topogréfics, demonstrada na Marina Real ‘O levantamento das costas era especialmente importante como auxitio A navegagiio numa época de expansio europeia e americana. A Espanha e 4 Gri-Bretanha estavam interessadas na costa noroeste do Pacifico (quase chegando as vias de favo na disputa pela posse do brago de Nootka), ¢ nos anos 170 os dois paises montaram expedigées para fazer um levanta- mento da area. O Levantamento da Costa feito pelos Estados Unidos em 108 oferece um exernplo inicial do apoio governamental 4 pesquisa. Os ‘governos imperiais tinham especial interesse em fazer o levantamento de seus territorios. A india, por exemplo, foi objeto de levantamento a partir de 1764, por uma equipe encabecada pelo major James Rennell, que logo seria nomeado topégrafo-geral Nesse periodo, foram feitos muitos outros tipos dle levantamentos (ou, como diziam os franceses, enguétes): geokbgicos, etnogrificos, arqueolé- ‘gicos, boténicos e assim por diante. Entre os exemplos iniciais tém-se 0 levantamento geolégico do Canadé (1842), o levantamento etnografico conduzido pela Sociedade Geogréfica russa (848) ¢ 0s Levantamentos da Ferrovia do Pacifico no Oeste americano, nos meados do século XIX. O Le- vantamento do Bstado-Maior Britanico comecou em 1791, 0 Levantamento Arqueolégico da india em 1861 e o Levantamento dos Lagos em 1841. Entre os levantamentos sociais (a expresso data apenas de 1927), 0 mais famoso é certamente o censo. O censo tem uma longa histéria — 08 pais de Jesus foram a Belém para participar de um censo, que agora € da- tado de 6 d.C. ~, mas foi em nossa época que 0 censo periddico, feito pelos governos a cada cinco ou dez anos, se estabeleceu como pratica. A Suécia foi a primeira (em 1749), seguida pela Espanha (768), pelos BUA (790), pela Franga e pela Inglaterra (ambas em 180%)" Inspirados ou nfo pelo censo, logo se seguiram levantamentos socials mais especializados. Na Franca, por exemplo, os exames das condigdes econ6micas da nago comegaram em 1806, ¢ os levantamentos das condi- ‘¢bes operdrias em 1830, enquanto em 1852 realizou-se uma enguéte oficial sobre a poesia popular."* Na Gri-Bretanha, um dos levantamentos mais famosos foi a investigacdo da saitde piiblica que resultou no Report on the Sanitary Condition ofthe Labouring Population (1842), de Edwin Chadwick, a quem logo se seguin Friedrich Engels, com A condigdo da classe openiria na Inglaterra em 1844. Na Noruega, 0 socidlogo Bilert Sunde fez levantamentos pioneiros sobre os pescadores e moradores das florestas, na metade do séeulo XIX” Na Alemanha, os levantamentos de fabricas ¢ de trabalhadores rurais remontam aos anos 1870 € 1890, logo apés a unificacio do pais. Mas 0 pafs mais intimamente associado ao levantamento social, sem davida, sio os Estados Unidlos. Os levantamentos americanos ineluiram The Phi: ladelphia Negro (1895), estudo da situacao social e econdmica dos negros na cidade, conduzido por W.E.B. du Bois, que mais tarde veio a ser 0 dliretor da National Association for the Advancement of Coloured People; © Levantamento de Pirtsburgh (1909-14); o Levantamento de Springfield (4918120); ¢, os mais conhecidos de todos, os levantamentos de Alfred Kinsey Comportamento sexual do homem (948) ¢ Comportamento sexual da mulher (1953). A acumulagio de espécimes Pode-se dizer que os participantes de muitas das expedigdes menciona- das acima estavam colhendo conhecimento em sentido quase literal. N5o raro os lideres das expedigSes, desde a segunda metade do século XVIII, tinham instrugbes de retornar com artefatos locais ¢ espécimes cientibi- cos. As bibliotecas os museus, em particular na Europa ¢ nos Estados Unidos, ficaram repletos de quantidades crescentes de “aquisigdes’ fosseis, esqueletos animais e humanos, caveiras, conchas, insetos, armas, ferra- mentas, pinturas, mdscards, martron toteémicos, estituas de Buda ou Shiva, fragmentos arquitetOnicos, como o Portto de Ishtar (da Babilénia), ¢, por ‘veres, edificios inteiros, Aqui devem ser incluidas as obras de atte, no s6 porque eram objetos de conhecimento para os connaisseurs, mas também porque até data relativamente recente colecionavamse obras estranhas A tradi¢do ocidental menos por razdes estéticas € mais pela luz que se julgava langarem sobre as culturas “exéticas” de que provinham. Gracas a Banks ¢ Solander, mais de mil plantas ¢ centenas de espéci- mes de minerais, mamiferos, aves e peixes vieram na primeira viagem de Cook. Os espécimes vegetais vivos foram enviados a jardins botanicos ‘como o de Kew, enquanto as plantas secas foram preservadas em museus ow herbétios, Dos estudiosos participantes da expedicio napolednica ao Egito, mais notadamente do naturalista Etienne Geoffroy St-Hilaire, 0 Museu de Historia Natural de Paris, onde St-Hilaire dava aulas, recebeu milhares de espécimes, ocupando de quarenta a cinquenta caixas no trans- porte de Marselha a Paris.” ‘A Expedicao de Exploragio aos Mates do Sul, dos Estados Unidas (3838- 42}, superou as anteriores € retornou com mais de 160 mil espécimes; 50 ‘mil deles foram remetidos do Rio de Janeiro, no comeco da expedig40, a0 asso que, “nos trés anos seguintes, chegaram caixas de metal e madeira, barris ¢ barriletes de uisque, cestas ¢ sacos de lona as centenas”.* O na- turalista Alfred Wallace voltou com mais de 125 mil espécimes apés oito anos no Bornéu estudando a fauna € 2 flora, talvez. um recorde de coleta individual de um cientista Outro resultado espetacular veio com a expedigo britanica as pro- fundezas marinhas no HMS Challenger (1872-76). O material foi remetido, durante a viagem, de varios fugares: Bermudas, Halifax, o Cabo da Boa Esperanga, Sidney, Hong Kong ¢ Japdo. Em sua introdugio aos relatérios

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