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ppIcao Mosca Casinova CAPAE DIAGRAMAGRO Murcia Miler AGRADECIMENTOS A Universidade Paulista - UNEP pela onganizagio rain da Congreso de live. Psicologia Fenonicnolgico-Fxiseneal, que propicio 0 sta, Paulo Yduaedo R.A tone.) Psicologia lenomenokigisresisencial-Possiilidades da ate linia fenomenoligi / Organizador: Paulo Fduardo R.A. Evangstisi Ted. Bio de Jane 184 p2 2055em ISBN: 97885-64565. 142 1. Psicologia Fxistencial. 2. Fenomenologia Fxistencal 3. Psicologia 3.4. Di analyse. 5, Picopatogia. 6, Fomnago de cop 150.192 eee Tad 0s direitos desta edigbo reservados VIA VERITA EDITOI Tel (21) 3874-7080 _wwveviaveita.com.be Psicologia fenomenolégico- existencial Possibilidades da atitude clinica fenomenoldgica Paulo Eduardo R. A. Evangelista (organizador) VIAVERITA AUTORES Gurcudos dos antares PREFACIO: RUMOS DA FENOMENOLOGIA NO BRASIL Thuis Fduardo Fran Jardim 7 HEIDEGGER E 0 ESCURO DO EXISTIR: ESBOCOS PARA UMA INTERPRETACAO DOS TRANSTORNOS EXISTENCIAIS Marco dntonias Casanona 25 COMPREENSAO FAGAONACLINICA ; EENOMENOLOGICA EXISTENCIAL. Tas Eads Fran dni 6 SOBRE LOUCOS, SANTOS, LOSOFOS EARTISTAS Isabel Cristina Carnie! INTIMIDADE E BSTRANHEZA: REFLEXOES SOBRE A SITUACAO CLINICA _ Daniel Rebel v5 ATENDIMENTO PSICOLOGICO EM INSTITUICOES: ) DATRADICAO A FENOMENOI Jaltana Vendruscolo ia A DASEINSANALYSE DE MEDARD BOSS: MEDICINA E | PSICANALISE MAIS NTES AO EXISTIR HUMANO Paulo Eduardo R.A. Evangelista 139 CUIDAR DE QUEM CUIDA: GRUPOS DE CUIDADORES NAPRATICA INSTITUCIONAL DA REDUCAO DE DANO Leonardo Toshiaki Borges Yoshinochi 159 A RELACAO EU-TU NO ENCONTROTERAPEUTICO Marta Tolaint Rosmeaninho Ta PREFACIO Seen RUMOS DA FENOMENOLOGIA NO BRAS Luis Eduardo Francao Jardim Falamos sempre a partir da lingwage Isso significa que somos sempre ultrapassenlos pelo que. jd nos deve ter envalvide © tomade para falarmos a seu respeit. Martin Heides A fenomenologia como fundamentagio da prética em Psi- cologia consolidou-se no Brasil entre a dévada de 1960 © meados de 1970. Nesses quase 50 anos, desde que a fenomenolo pas: ida © pensada em s1 Psicologi inuita coisa mudou no pais, Nesse periodo passamos por signi cativas mudangas hist6rieas e politicas, a prot 10 do psicdlogo {ii reconhecida, eresceu, ¢ a propria pritica clinica fenomenoligi- ca se desenvolveu e se transfor mou largamente, Mas uma das mu- «langas mais relevantes, especificamente para a fenomenologia, ¢ que hoje dispomos de diversos textos aind inéditos até poucos anos atras, Em sua maioria, esses textos ainda earecem de uma 9 mais ampla, Nesse contexto de intensas transform des, quais possiveis rumos a fenomenologia parece estar seguin- do atualmente e quais desafios se fazem presentes’? Desde as primeiras décadas do século XX, psiquiatras eu- ropeus jé questionavam @ modo como tradicionalmente se pensa- va a “psique”. Tentativas de aproximagio da pritica clinica com a fenomenologia de Edmund Husserl jé eram feitas desde a segun- da década do século pasado, Nemes como Karl Jaspers, Ludwig Binswanger, Eugene Minkowski e Viktor Emil Vor Gebsattel nao poderiam deixar de ser lembrados como pioneiros nessa tarefa Mas foi somente na década de 1940 que Binswanger e. posteriormente, Medard Boss entraram em contato com o pensar mento de Martin Heidegger. A luz da fenomenologi comeca a ganhar corpo 0 que viria a ser chamado Daseinsanaly- hermengutica, se. pritica clinica fundamentada no pensamento heideggeriano. unda metade do séeuly XX. as contribuigoes de insanalyse cOnS- Medard Boss para 0 desenvolvimento da Das {ituiram-se como passos essenciais para a construgdio de uma pritica clinica fenomenoldgica ndo derivada da concepgio de sujeito da Psicologia tradicional, Seu trabalho em Daseinscnaly- se mereceu destaque também pela proximidade relacional que xer por longos anos, Fles tornaram-se ami- gos, ¢ dessa amizade € constante troca sobre Filosofia e Dasein- obra Semindrios de Zollikon, Esse livro & uma .eminarios proferidos por Heidegger pa- sanalyse sui compilagao de cartas e s ra psiquiatras suigos entre os anos de 1959 ¢ 1969. E essa ser se debruga sobre 0 efetivamente. a tinica obra em que Heid 1a da Dascinsanalyse Aqui no Brasil, a fenomenologia na area da Psicologia se fortaleceu e ganhow um corpo mais definido, principalmente, na 6 ade 1970 Alpuns dos precursores da fenomenologia, como Maria Fernanda Dichtchekenian, Joel Martins ¢ Solon Spanoudis, deram os primeiros pasos desse trabalho em solo brasileiro e fo- ram mestres de muitos profissionais ¢ estudiosos que caminham ainda hoje por essas veredas, Desde nto, muito se caminhou em mais de quatro dé- ccadas de ensino, pritica € pesquisa em fenomenologia nos cursos de Psicologia. A fenomenologia faz parte do curriculo dos princi pais cursos de Psicologia das mais importantes universidades do Brasil, com disciplinas. estigios e/ou grupos de pesquisa na drea, Nas provas de avaliagdo dos cursos universitirins elaboradas pe- lo MEC (ENADE), a fenomenologia & frequentemente um tema presente, Fntretanto, apesar do reconhecimento que a fenomeno- log a vem progressivamente alcangande nl Psicologia, hit aind lum longo caminho a ser percorrido, E nesse eaminhar, alguns de- safios despontam no horizonte, A Fenomenotogia esta presente como Fundamentagao nos mais diversos ramos de atividade da feré Psicologia. Os autores de re- cia nessa sirea sdo também miiltiplos tardam diferengas nificativas em seu pensamento. ‘alamos, principalmente. de Husserl, Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty ¢ Edith Stein, Nesse ccaminhar pelas veredas dos desafios que se colocam para a feno- menologia. restringiremos nosso foco na Daseinsanalse. No campo especifico da Daveinsanalyse, Boss também teve uma participagao importante em sua consolidagio no Brasil psiquiatra suigo mantinha vinculos familiares no pais e por aqui esteve em diversos momentos enire os anos de 1970 ¢ 1980, Em algumas dessas oportunidades, pode acomy nhar de perto 0 traba- tho que naquela época vinha sendo desenvolvido pelos precurso- res da Daseinsanalyse no Brasil Nao hi davidas sobre a importine: dos passes percor- Fidos por Boss na Dasvinsanalyse. Seus texts desenvolver as pectos essenciais sobre a pritica clinica, “psieossométiea”, “pa- folosias” ¢ ouleas questdes pettinentes & Psicologia. Sus contr buigdes definitivamente devem ser reconhecidas, no entanto, nde podem ser vistas como iltinas, definitivas. A Daseinsanalse ain da tem um longo caminho & frente Nos filimos 20 anos, a base sobre a qual a Daseiasanaly se esti fundamentada ampliou-se ¢ “transformou-se” largamente Fim 1976, pouco antes de morrer. Heidegger organtzava seus es critos para a publicagao de sua obra completa, Gesamtansahe. alguns poucos textos seus haviam sido Até aquela época, somes publicadas, se comparado com a vastidio de cursos, conferéncias Jésofo. Entre os anos de 1980 ¢ 1990. e ensaios deixados pelo ‘com 0 inicio da publicagzio da maior parte de seus textos inédites. © panorama mundial de estudos do pensamento heideggeriano g3- hon uma nova dimensao. Com isso, também a Daseinsanal se, como prt mento de Martin Heidegger, passou a materiais que, pelo seu ineditismo, ainda clini- ca fundamentada no pen: dispor de uma gama de & pouco assimilado na pratica clini agora temos acesso nos coloca a tarefa de repensar a Daseinsa rnalyse no sentido de ampliar ¢ aprofundar as articulagdes com seu fundamento, Especiticamente no Brasil, essa tarefa ganhou nove a, Esse “novo” material a que félcgo, prineipalmente a pactir dos anos 2000, quando os textos antes inéditos de Heidegger comegaram a ser traduzidos em maior escala para o portugues. Por muitos anos, a Daseinsanalyse Foi pensada priorita- ca existencial do Dasein presente riamente no contexto da anal em Ser e tempo. A importancia des nalyse € para a construgao do pensamento heidegi tratado para a Daseinsa- gavel. Assim como Ser ¢ fempo tem uma importincia central no chamado “primeito Heidegger”, Contribuicdes & Filosofia — do acontecimento apropriador (1936-38) pode ser considerada ci ‘mo una chave de compreensiio, que abre espago para o entendi- mento dos ensaios, cursos € conferéncias tardios de Heidegger e do seu caminho de pensamento. Nas titimas duas décadas, fieou claro para aqueles que se aprofundam no estudo do pensamento heideggeriano que nao se pode cindi-lo em um primeira eum segundo momentos, pois ele se constitui como um s6 caminho percorrido. Nesse sentido, 0 tratado de 1927 deve ser lido & luz desse caminho, do qual faz part. O mesmo acontece com Semincirios de Zollikon, & sua lei- (ura atenta ja traz essa percepeiio. Os semingirios ¢ cartas reunidas na obra datam do period entre 1959 € 1969. Nesse periodo, 0 pensamento do filésolo ja havia caminhado prativamente 40 anos desde Ser e tempo. Com certa frequéncia, ainda hoje encontramos iscussdes sobre Semindrias de Zollikon relerenciadas apenas em. Ser ¢ tempo, deixando de lado 0 pensamento turdio de Heideg ger, 0 que definitivamente restringe a compreensio do alcance aquilo que foi pensado nos semindrios. A assimilagdo dos textos lardios de Heidegger pela Daseinsanalyse & uma tarefa ainda em andamento, E essa tarefa implica pensar. Pensar a Dascinsanalyse também no dmbito da questo da técnica, da historia do Seer, par- lindo da linguagem, do acontecimento da verdade, da quadrinda- de. da conversa ¢ do acontecimento apropriador. Essa tarefa de pensar a Daseinsanalyse & necessiria nao pens pata dar continuidade ao trabalho inicial de Boss ou de- vide a0 acesso mais vasto que hoje temos a obra de Heidegger. Mas, fundamentalmente, essa tarefa se impde para esclarecer dois equivocos comuns e persistentes no ensino da fenomenologia, re- produzidos por muitos profissionais, Fm primeiro lugar. a Daseinsanalyse nao pode conti- nuar a ser vista como uma teoria psicologica entre outras. Nao raro encontramos textos e falas que psicologizam e teorizam a Daseinsanalyse. A Daseinsanalyse, assim como as outras pric ticas clinicas fenomenolégicas, nao é uma teoria psicoldgica, tampouco parte de estruturas organicas com a fungao de orien- Lago interpretativa para nortear o psicoterapeuta a ver aquilo que lado pela tcoria. Muito antes, © nio apenas isto, a contribuigio da fenomenologia guarda relagaio com uma postura diante do outro, Um modo de estar com 0 outro e consigo mes- mo que é, antes de tudo, um recuo € uma rentineia Aquilo que F para que, na conversa, paciente © cont ja se conhece. Um renun terapeuta se coloquem na proximidade daquilo que se anuncia e que se quer ser dito na fala do paciente. A proximidade & um avizinhar-se que fala de um habitar diante do outro, de um ins talar-se e de um voltar-se para a proximidade. Para Heidegger, € nessa vizinhanga que nos encontramos € nos movimentamos. E onde nos colocamos a caminho de um pensar, um pensar que & uma escuta daquilo que se faz interrogar. segundo equivoco a ser esclarecido acont ta frequéncia ¢ caminha muito préximo a esse primeiro. Ser & tempo nao pode ser entendido como uma espécie de antropo- logia nem como um tipo de metafisica. © homem nao € 0 cen- tro em torno do qual o mundo gira, Para Heidegger, pergunta- se pelo homem em Ser e tempo a partir da verdade do ser e apenas assim. Esse equivoco traz a consequéncia bastante direta de uma leitura imanista do pensamento heideggeriano nas pri- ticas clinicas. A Daseinsanalyse no pode ser vista como uma psicologia humanista, que coloca 0 homem no centro do mundo € foca apenas no existir isolado do paciente, O discurso sobre pela propria com cer- 0 apropriar-se de si mesmo ¢ o responsabilizar 16 existéncia com frequéncia resvala ingenuamente para uma visto individwalizadora do paciente, como ente unico implicado nos desdobramentos de sua propria existéncia. A historia de cada um se da como desdobramento da re- Jagao de si mesmo com 0 mundo, © que implica, necessariamente, que as possibilidades existenciais de um ou de outro também jé fo- ram abertas pelo mundo em que se habita. Dizer que a existéncia se 44 no mundo significa que o existir aconteve vw 1 08 OUITOS e junto 0s entes. O existir nio se dé de maneira isolada no mundo: de mo- do que no se pode pensar no softimento ou nas “elérias” de um paciente como algo encerrado em um * 1” encapsulado, A dor de um paciente que sofre preconeeito por ser ne- gro no pode continuar sendo vista apenas como um sofrimento individualizado, Nao se trata tio s6 de e ar com o paciente para que ele se responsabilize pela propria existéncia em seu solrimen- to, Esse so mento se di na relagdo com o outro ¢ nao se inicia apenas com ele, mas é algo muito anterior, gestado na historia Por geragdes e geragdes. E a dor que fala de algo para além do sofrimento apenas individual daquele que chega ao consultorio, algo que tem origem nas relagdes de dominagio e rebaixamento do outro ¢ que se dé de modo arraigado historicamente no existir em comunidade, Esse sofrimento ndo é meramente individual. © mesmo acontece com o sofrimento daquele que teme sair a rua devido a violéncia urbana; daquele que sofre por ser perseguido e maltratado no trabalho ou por nao ter 0 devido re~ conhecimento de suas habilidades; daquele que lamenta nao ter obtido “sucesso” financeito; e também daquele que se recente por ‘um amor nio correspondido ou por ter idale avangada e nao ter se easado; ou ainda daquele que chora a perda de um parente queri- do, Todos esses sofrimentos emergem nas relagdes de um com 0 ‘outro e so gestados historicamente, muitas vezes por modos de 7 ser compartilhados por uma comunidade ou um povo. Sio mods de ser as veres impostos por padrdes de consumo ou de relagio, ¢ reproduzem sem serem percebidos, ree O softimeno irrompe na coexisténcia com o outro. Em outras palavras, o sofrimento do paciente que chega ao consulto~ rio tem um carater nao apenas singular, mas o sofrimento é tam- bém politico, Politica, em seu sentido originario, diz respeito & coexisténcia ¢ associagdo de homens diferenres. A politica se ba- seia na pluralidade humana. [sso quer dizer que 0 sofrimento hu- samente, isto &, com ox outros. mano algo que se constitui polit A leitura equivocada da fenomenologia heideggeriana como um humanismo ou mesmo existencialismo implica uma distorgio da Daseinsanalyse como uma pritica individualizado- cia, Des- ra, que relega o paciente ao carater isolado da exis considerar que as possibilidades de sucesso ¢ de sofrimento se bitamos € esqu omenologia ¢ ignorar o cariter de ser-no-mundo constituem no mundo no qual h os funda mentos da fer do existir. A clin individualizador, pois a clinica & politi 1a nig pole se prestar a ser um instrumento, Se pretendemos con- ‘a clinica consistentemente fundamentada no solidar uma prt pensamento heideggeriano, a Daseinsanalyse precisa ser pensa~ da também em seu cariter politico. A Daseinsanalyse nao po de ser vista como pritica centrada no individuo, 44 que, em seu fundamento mesmo, ela € também “social A tarefa de pensar € repensar a Daseinsamalyse no cor junto da obra heideggeriana hoje disponivel, considerando a possibilidades do existir em seu carater politico, é um processo em andamento. Alguns pesquisadores no Brasil e na Europa ja vém apresentando trabalhos nessa diregao, 0 que é essencial tam- bém para a consolidagao da Daseinsanalyse no meio académico. A Daxcinsamalyse continua caminhando e ainda precisa caminhar, 18 Em consona cia com a tarefa de repensar a Daseinsa- fundada no pensamento de Martin Heidegger, este livro pretende dar alguns passos nesse caminhar. A sua realizagao c megou natyse ser gestada entre 0 final de agosto e o inicio de setembro de 2012, quando estivamos reunidos em Ribeirdo Preto (SP) para apresentar nossos trabalhos no Congreso UNIP de Psicologia Fe nomenoldgica Existencial. O evento ultrapassou as expectativas iniciais © promoveu um verdadciro debate acerca da fenomenu- logia ¢ da pritica clinica realizada pelas diferentes gera protissionais presentes. igdes de Apesar de 0 evento ter mobilizado grande niimero de par ticipantes, pareceu-nos importante que o encontro que ali acon- tecia excedesss ucles limites © que mais pessoas pudlessem ter acesso ao que foi pensado nas palestras, E, assim. apresenta- ges foram revistas e ampliadas para ganhar contoros adequados esta publicagao. O livro, que inicialmente seria voltado ao estudante ou a0 jovem psicdlogo interessado em aprofundar sua formagao em. fenomenologia, em seu processo de desenvolvimento acabou por extrapolar esse primeiro objetivo. Mantendo uma linguagem compreensivel as articulagdes fundamentais para aquele que inicia seu caminho pela fenomenologia, os artigos aqui org: dos também contemplam reflexdes profundas e avangadas sobre © pensamento fenomenolégico na pri aniza- a clinica e na Filosofia Desse modo, sem perder a leveza ¢ a simplicidade de um livro acessivel, esta publicagdo pretende trazer contribuigdes aos psi- eélogos nos mais variados estigios de aprendizado e ampliar a reflexdo sobre a fenomenologia. O texto que inaugura este livro traz uma rica contribui- 19 mento de go para a fundamentagao da pritiea clinica no pens: Martin Heidegger. Escrito pelo filésofo e tradutor Marco Ant6- rio Casanova, 6 texto inaugural apresenta importantes reflexdes, tadlas no pensamento heideggeriano, abordando a sus fundamet pensio do conecito de existéneia de uma estrutura organiea — co- mo o aparelho psiquico —utilizada para descrever as experiéneias © explicitando a compreensio do existir humano em tividade. Casanova & hoje um dos mais importantes tra- existenci dutores de Heidegger para a lingua portuguesa e, hd alguns anos, ‘vem trabalhando com os piedlogos no Rio de Ianeira ¢ em Sao o de uma psicologia da negatividade, Paulo para a fundament fundada no pensamento do filosofo alemao. km seguida. o artigo de Luis Jardim apresenta alguns fu dos em um refe- damentos do pensamento heideggeriano articul reneial clinico, O autor buscou em suat experigneia docent temas que frequentemente permanecem pouco esclarecidos para icos, procurando nao 95 alunos ¢ psicoterapeutas fenomenold apenas apresentar a fandamentayao de compreensdo € agde para a, como também descrever uma possivel articula- a fenomenologi a0 desses conceitos com a priti distorgdes relativamente comuns no ensino ¢ aprendizagem da fe- clinica e esclarecer algumas nomenologia. A discussto da pritica clinica avanga por temas centrais como conceito de “satide mental” e “doenga mental”, Isabel Cristina Carniel constréi em seu texto um belo caminho através do sagrado, da religiosidade, da Filosotia ¢ da sua propria expe- rigneia para pensar a loucura ¢ o sofrimento. A autora levanta a o entre Psicologia e arte, como possibilidade de ex- intima relag: pressiio da genialidade ¢ dos mistérios do humano. A intimidade continua a ser tema, juntamente com a es- tranheza, pelas palavras do psicdlogo e filésofo Daniel Rehfeld. Por um caminho postico, 0 texto discute a clinica questionando © direcionamento da palavra e a possibilidnde de escuta, isto 6. em que medida a clinica pode ser espago de estranhamento e in- timidade e se constituir como lugar de aparecimento, A dimensio podtica aberta peta sit Jo clinica se mostra. ao mesmo tempo. como a instauragaio da dimensdo ética pautada na possibilidade de um encontro auténtico, Das possibilidades de um encontro auténtico entre tera- peuta e paciente, a psicsloga e professora Juliana Vendruscolo revisita questdes bisieas da psicologia para, con isso, levantar 4 discussio sobre a importincia da fenomenologia para determi- nadas priticas clinicas, como atendimento psicoligico, plan Psicoldgico, psicoterapia breve ¢ aconsethamento terapéutico, realizadas em instituigdes de satide. Com base no relate do aten- dimento psicoligico a um paciente em hospital pablico, essa pes: quisa detineia as caracteristicas da postura do psicoterapeuta e da relagio terapéutica, ‘A relagdo werapeutica na Daseinsanalise tem como uma de suas caracteristicas fundamentais ser essencialmente um cuid do outro. Esse fundamento ¢ trazido ao leitor com maesiria pelo texto de Leonardo Yoshimochi, Seu texto, baseado em sua expe- cia clinica, cartega 0 mérito de reunir em um mesmo artigo uma reffexiio sobre a pritica fenomenolégica na modalidade de gTupo e a possibilidade de atuago em uma insttuigdo,articulados pelo tema da reduc de danos. O trabalho do Agente Redutor de Banos (ARD) extrapola os limites da clinica psicoterapica e ope ra.em rede com outros dispasitivos extra-hospitalares de atengao © cuidado, Leonardo mostra ainda a importaneia de olhar para o cuidador como aquele que também ne ssita ser cuidado, Seu tex- to traz um belo exemplo pritico de atuagao da Daseinsanahise pa Fa muito além da relagao Gnica terapeuta-paciente no consultirio. Ainda sustentando a tematica da compreensdo do encon= tro terapeutico, a psivétoga Marta Rosmaninho envolve 0 leitor © o convida a refletir sobre sua constituigio na perspectiva do famoso conceito Ew-Ti do filésofo Martin Buber, como modo de » relacionar e de se colocar diante do outro © do mundo. A rela ao Fu-Tu é marcada pelo impacto da presenga do outro, Nesse Tnodo de relagdo acontece um encontro em que um ¢ atravessaddo pela poténeia e pela forga do outro, Baseada em um exemple linico experienciado em supervisio, a autora revela como a Fe lagdo Ei 6 paciente ¢ contribuir para que a relagao deste com o mundo Tu pode auxtiiar na construya de uma relagao com seja menos utilitiria e mio dominada por um conhecimento me- ramente intelectual, Por fim, dando continuidade & proposta do livro de ex- plicitagdo da Daseinsamalyse, neste Gltime artigo a contribuigao de Medatd Boss 6 apresentada detalhadamente por Paulo Evan~ gelista, Nese artigo, ao acompanhar o percurso do psiquiatra suigo, somos conduzidos pelo caminho do desenvolvimento da Dasvinsanalvse, desde 0 seu inicio na Suiga € também aqui ne Brasil, Fruto de um cuidadoso e detalhado estudo sobre a Dasein- sanaluse de Boss feito por longos anos, 0 autor esmiliga a propos: wud partindo de ta bossiana de refundagao da metapsicologia de tuma compreensio mais correspondente ao existir humano. Para iso, Boss propde uma patologia geral daseinsanalitica, defende © abandona dda modelo causal e, Fundado em uma compreensio de existéncia humana livre de pressupostos, pensa a psicoterapia co- imo processo de ibertago, De um modo bastante completo, o ati- ago sinttiza a historia da Daseinsamalyse meselada com a de Boss. apresentando informagdes nunea antes reunidas de tal modo, Esperamos que este livro nao se limite simplesmente 4 apresentar respostas, mas que sua Teitura possa incitar o leHtor a novos questionamentos eapazes de trazer 4 tona importantes re- flexdes que ainda estio por vir no campo da pesquisa fenomeno- logica em Psicologia. i) Agosto de 2013 HEIDEGGER E O ESCURO DO EXISTIR: ESBOCOS PARA UMA INTERPRETACAO DOS RANSTORNOS EXISTENCIAIS Marco Antonio Casanova O fisiolégico é uma condigéo necessaria para «a possibilidade de uma relagdo humana com o outro. No entanto, apenas 0 fato de que a paciemte vé na verdade um ‘ta’ como praximo, isso definitivamente nao é uma percepeao sensorial, pois nao hi um érgao sensorial para aquilo que se chama “9 outro O fisioldgico nao é uma condicio suficiente, no sentido fteral da palavra ‘alcangar’. pois 0 fisiologico nao pode aleancar 0 espaco até 0 outro ¢ constituir a relagao. Martin Heidegger, Semindrias de Zollikon, p.195 Introdugao A relagao essencial entre © pensamento de Martin Hei- dogger e a Psicologia precisa ser considerada no Ambito de um diélogo mais amplo entre 0 pensamento heideggeriano e as cién- cias énticas em geral, Seguindo a esteira do projeto fenomenolé- gico de seu mestre Edmund Husserl, Heidegger procura, desde 0 principio d seu! percurso investigativo, ao mesmo tempo colocar tem questio as bases fenomenologicas das ciéncias particulates ¢ 25 Hesdegger eraser do exists apresentar as condigdes de possibilidade d» acontecimento mes- jandamental- imo da cigncia, Seus esforyos iniciais esto voltados 10 dos fendmenos cientificos e dos seus mente para uma descr campos de génese em geral. No momento em que leva a termo tais esforgos, porém, Heidegger vai paulatinamente modificando de maneira substancial uma série de elementos caracteristicos da fenomenologia husserliana e abrindo espago para a constituigao aminho na fenomenologia. Desse modo. ¢ deci 0s tragos es- dle seu proprio sivo que levemos em conta aqui, em primeito luga truturais desse caminho e suas consequencias para a interpretayaio as das ciéncias em geral © |< Por sua Vez. ai e de suia hneideggeriana das bases Fenomenols da Psicologia em particular. Realizar tal tarefa passa © antes de tudo, por uma consideragio do termo s correlagao com a nogio de ser-no-mundo, Como teremos a opor- tunidade de acompanhar melhor durante o presente trabalho, & & nogdes de ser-ai ¢ de ser-no-mundo que Heidegger vai ela deseri- partir da pensar uma intencionalidade mais originaria do que ta por Hussetl nas relagdes entre 0s atos de conseigneia ¢ os cam pos de dagao dos objetos, uma intencionatidade que se articula imediatamente com um horizonte hermenéutico de realizagdes dle todas as possibilidades de concregao do existir. Ao levarmos a ter- imo esse primeito momento de nosso texto, nos aproximaremos do nbito propicio para a colocagao de um problema decisivo para todas as nossas discussdes ulteriores. Boa parte dos problemas da Pcicologia o da Psicandlise gira em tomo de uma discussao que aponta para a insergao de elementos condicionantes originarios, para a pressuposigao da possibilidade de se apelar para determina~ s ou psicofisiologicas nas con- Ges organico-fisiologicas, psiquis sideragdes dos transtornos existenciais em geral. Dito de maneira mais clara: hd uma tendéneia primordial da Psicologia © mesmo da Psicandlise de pressupor algo assim como uma estrutura orga- 26 de nossas experiéneias existenciais. Como veremos 1: parte do texto, porém, o pensamento heidegeeriano parte exata- mente de uma suspensao de tal tendéncia. Assim, precisamos em um segundo momento tratar justamente de uma questo funda- mental nesse contexto: até que ponto € possivel fal nt lar de determi Ses materiais prévias para o homem? Nos, por outro lado, tra- taremos essa questo situando-a em um campo investigative mais concreto, por meio da per inta sobre quando nascem ating bebés ¢ sobre como cles experimentam a si mesmos. O que bus camos alcangar por essa via é uma visdo clara do modo proprio do acontecimento do existir humano, Somente se aleangarmos essa visao remos realmente em condigdes de, por fim, tragar al- ‘guns primeiros esbogos para uma hermenéutica dos transtornos, existenciais, uma hermengutica que se confunda com o sentido mais proprio do projeto heideggeriano de uma Daseinsanalyse. ‘Comecemos, entdo, com o probler 1.Ser- humano como ser-no-mundo: sentido e negat Se olharmos para a histéria da filosofia moderna, ela por si sO revela a legitimidade propriamente dita da nogao do ser-ai como ente dotado de cariter de poder-ser. De certa forma, pode- mos tomar os desdobramentos histéricos da filosofia moderna partindo tanto de um paulatino encurtamento da ideia de uma sub- jetividade nuclear quanto de uma descrigo das aporias que cons- tituem as hipostasias ligadas ao conceito de sujeito. Se 0 sujeito em Descartes ainda se mostra como substancial ¢ nuclear, funcio- nando como suporte ontolégico das agdes, ele passa a se mostrar como um mero suj to adesivo em Kant ~ uma configuragio de consciéneia que acompanha apenas 0 proferimento dos juizos ~. Meidewger eo como uma dinimica hisoriea em Hegel, coro um simples rest tado das configuragdes relacionais que escapam eumpletamente sas cet controte em Nietzsche, até se mostrar, por fim em Husserl om “entretecimento das viveneias na unidade do fluxo viver= | cial”. Nesse sentido, a determinagse heideggeriana do ser-ai no se mostra como um postulado acerca do ser do homem, mas como «resultado justamente da suspensio de todos os posicionamen- tos ontoligicos tanto quanto como a sintese definitiva do proprio percurso do pensamento moderno'. No momento em que nos de- paramos, no entanto, com tal conchusto ela mesms Hos articuta tle imediato com 0 outro elemento decisive para nds no presente contexto: a nogo de ser-no-mundo. Heidegger nio se vale da palavra homem para designar o-ente que cada um de nds &, Ele prescinde dessa palavra exatty mente por conta das deeisdes ontologicas que se encontrar rela sedimentadas. Ao escutarmos a palavra homem, sempre pensimos imediatamente em algo assim como animal racional, como ser vivo que possui linguagem, como animal social, comme animal po- Titico. ete, Todas essas determinagdes se acham, porém., ett fran- ca contradigio com o carater de poder ser. Com isso, Heidegger

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