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MILTON SCHWANTES Ne NO) ee sean tneany NUHVRNEEN rae e estudo sobre Amos @ FOU } colecio Pi ee aU ait mento de ajuda para o estud objetivo é o alcance de um maior c HON e TIN OS Oe Onna CTO) necessario descobrir pri Tn OYA nal de um texto uD hae Rares i I i L ny E SSMU te Tet LLL Ce Cee eric nes dirige-se a professores e estudantes enydlvidos no estu- aI | N) TO R I A TOM CHw sin Reet PON Ry Pen) ern Lda ee, 7a interess any Eu EIT Aken ance PROT TCL [Coad ee Sa) ree mellior Utes e literat i ed Or 4 busca “ tg Tae biblic C7 J Milton Schwantes é doutor em Teologia i331 CG leciona na Universidade Metadista, em Sao Bernardo do Campo (SP). £ um intérprete da Palavra OTST Comet PCO eco Rom RU LCC LCS Ceres ren eaten cristae cru Re CROs MCecrC Mel Cares sc CM tI cog Mae SM Cont: cg Eclesiais de Base, tanto catélicas como protestantes. i 8555'61 MILTON SCHWANTES “A TERRA NAO PODE SUPORTAR SUAS PALAVRAS” (Am 7,10) Reflexdo e estudo sobre Amés €B... yun Padd Baumann Dados Internacionais de Catalogagao na Publicado (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Schwant Milton — (Colegio Biblia ¢ historia) Bibliografia. ISBN 85-356-1434-6 1, Biblia, A-T. Amés “A Terra no pode suportar suas palavras” (Am 7,10) : rellexio | estudo sobre Amos / Milton Schwantes, ‘Sto Paulo : Paulinas, 2004, Critica e interpretagdo [. Titulo. I, Titel: Reflexdo ¢ estudo sobre Amés. If]. Série. | 04-7171 indice ps CDD-224.806 a catélogo sistemiitico: |. Amés : Livros proféticos : Biblia: Interpretagao e critics 224.806 Diregdo-geral: Editora responsivel: Copidesque: Coordenagao de revisai Revisio: Diregiio de arte: Gerente de produgia: Capa: Editoragao cletrinica: Flavia Reginatto Noemi Dariva Anoar Jarbas Provenzi Andréia Schweitzer Ana Cecilia Mari Irma Cipriani Felicio Calegara Neto Everson de Paula Sandra Regina Santana ‘Nenhuma parte desta obra poderi ser reproduzida ou transmitida por {qualquer forma e/a quaisquer meios (eletrinico ou mecanico inchuinds fotocopis e gravagao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissdo escrita da Editors, Di Paulinas Rua Pedro de Toledo, 164 040139-000 0 Paulo — SP (Brasil) Tel. (11) 2125-3549- Fax: 1) 2125-3548 hitp:/www-paulinas.org.br — editora@pautinas.org.br ‘Telemarketing: 0800-7010081 © Pia Sociedade Filhas de So Paulo ~ Sd Paulo, 2004 A paz 86 visita 0 povo que antes justiga hospedou. Daquela sé sabe a béncao quem esta primeiro abragou. A ira abrasa a cidade que a miséria seu povo forgou. Silvio Meincke Para Naor e Marina em familia e na fé, em gratidao pela amizade. Apresentagao Com muita alegria apresentamos “A terra nao pode suportar suas palavras” (Am 7,10) — Reflexdo e estudo so- bre Amos. Fiz varias alteragdes no texto da edicdo de 1987, publicada pela editora Sinodal, ¢ sei que outras mais seriam recomendaveis. Todavia, neste caso, eu teria de reescrever 0 livro. Por isso, as mudangas nao foram substanciais ao lon- go dos caps. 1-6. No capitulo 7, introduzi um novo artigo, que se refere a Amés 7-9. Originalmente, a maioria dos ensaios contidos nesta publicagao foi formulada com vistas ao 7° Congresso Luterano Latino-Americano, realizado em Caracas (Vene- zuela), em abril de 1986. Seu tema era “Renascer e crescer na esperanga e na paz”. Agradego pela atencao dos congres- sistas. Aprendi com suas perguntas e criticas. Para dentro desses ensaios apresentados no Congresso, fluiram nossas experiéncias latino-americanas, marcadas por opressao secular e pelo continuo e teimoso renascimento liber- tador. Neste nosso contexto, Amés foi muitas vezes lido e reli- do. Busquei manter-me em sintonia com essa leitura situada e latino-americana de nosso profeta, Os seis primeiros ensaios querem ser uma contribuigao nessa caminhada com Amos. No sétimo capitulo estao acrescentados dois trabalhos escritos em outro contexto. Em algumas partes repetem tematicas abordadas nos outros seis capitulos. 8 8 3 8 = 3 g S << SS * Cada um dos seis primeiros ensaios tem seu tema es- pecial, afinal, foram preparados tendo em vista estudos ¢ teflexdes no decorrer do congresso. Embora cada reflexio seja completa em si mesma, juntas constituem um todo, ex- pressando uma interpretagdo de todo o livro de Amés. Sao Paulo, janeiro de 2004 Milton Schwantes 1. “Nos dias de Jeroboao” Vede quantos oprimidos no centro de Samaria. »- Assim diz Amés: “Jerobodio morreré a espada”? oe A teologia cristi rechaga a ilusao. Nem merece ser designada de teologia crista quando nao persegue essa intengdo. Pois o lugar do Evangelho é a realidade humana.’ = Todo dia é dia... Deixa o tatu-bola no lugar. Deixa a capivara atravessar. Deixa a anta cruzar 0 ribeirao. Deixa 0 indio vivo no sertao. Deixa 0 indio vivo nu. Deixa 0 indio vivo. Deixa 0 indio. Deixa.* "Am 39. > Am 7,11 > Kasemanw, Emst. Vom theologischen Recht historisch-kritischer Exegese. Zeitschrift fiir Theologie und Kirsche, v, 64, Tiibingen, Mohr Siebeck, 1967, p. 259. * Joni, Anténio Carlos. Borzeguim. Rio de Janeiro, 1986/1987. ll As “palavras de Amés” (Am 1,1) sao contextuais. Dialogam com o ambiente do qual sao parte. Assimilam as circunstancias. O conceito hebraico de “palavra” (dabar) inclui também a realidade. Nao ha “palavra’”-dabar sem contexto! Meditemo-lo. Por que come¢amos pelo contexto? Comegamos, pois, pelo contexto. Ao assim proceder- mos, nesta série de reflexdes e estudos, enveredamos por um dos caminhos possiveis. Por certo, também poderiamos trilhar outros. Se privilegio a situagao como porta de entra- da, fago-o por certos motives. Convém explicita-los. Habituamo-nos a antepor a experiéncia da realidade as definig6es teolégicas. Assim o fomos aprendendo pelos caminhos da vida. Amigos e amigas de jornada nos falam das “linguas de um fogo revolucionario que arde nas pro- fundidades”.> Entendem “teologia como reflex4o critica so- bre a praxis”.® Formulam a eclesiologia segundo as “prati- cas pastorais”, segundo a militancia;’ vivenciam Igreja como eclesiogénese, como “reinven¢gio”.* Incorporam decidida- mente 4 hermenéutica a “realidade de cada dia” ¢ “as disci- plinas que explicam 0 presente”? Teologia é entendida como * Stiautt, Richard. A revolugao, In: Alves, R. et alii. De dentro do furacto, Richard Shaul] e os primérdios da Teologia da Libertagdo. Rio de Janeiro, Cedi, 1985. p. 54, * Gutttrrez, Gustavo, Teologia da Libertagdo; perspectivas. Petropolis, Vozes, 1975. p. 18, Bost, Leonardo, igreja: carisma e poder; ensaios de eclesiologia militante. 3. ed., Petropolis, Vozes, 1982 (veja, por exemplo, pp. 13-14). * Idem. Eclesioggnese — As Comunidades Eclesiais de Base reinventam a Igreja. Ca- dernos de teologia e pastoral, v. 6, Petropolis, Vozes, 1977. * Secunpo, Juan Luis. Libertagao da tealogia. Sao Paulo, Loyola, 1978. pp. 9-10 (veja, com especial, pp. 9-43), 12 ato segundo! A novidade desse jeito de experimentar a fé esta em seu método, o qual prioriza as mediagées historicas. A experiéncia que nos leva a Amés é vida vivida, dia a dia. E “pé-no-chao”.!" Afinal, um profeta como Amés ou Oséias ou Miquéias e outros nao conhecem as entranhas do poder, a desfacatez nos corredores palacianos. Vivem cend- rios cotidianos. Por isso, trazem a luz do dia horrores das esquinas da vida, as violéncias que ocorrem em quartos es- condidos, como aquela a que fica submetida a “menina” vio- lentada pelo “homem e¢ seu pai” (2,7b). Profetas como Amés nao sao alto-falantes de escndalos publicos, mas antes “pa- lavra’” de dores do dia-a-dia. Contudo, uma leitura de Amos com base na vida é nao s6 nosso jeito, mas também o que se costuma praticar na exegética biblica. La hora de Amos € 0 titulo de um dos livros muito difundidos sobre nosso profeta.'' Dois dos co- mentarios de maior solidez exegética — o de Hans Walter Wolffe 0 de Wilhelm Rudolph — introduzem suas volumo- sas obras descrevendo o contexto de Amés.'? Outros comen- tarios igualmente se dedicam ao tempo do profeta. Por mais que me alegre com essa feliz convergéncia, penso que dela nao advém raziio suficiente para fazer da vida “Veja Bork, Clodovis. Teologia de pé-no-chao. 4. ed., Petropolis, Vozes, 1984. 227 p. “Wourr, Hans Walter. La hora de Amés, Salamanca, Sigueme, 1984. 200 p. (Nueva, Alianza, 92). 2 Idem, Dodekapropheion 2; Joel und Amos. Neukitchen, Neukirchener, 1969. pp. 105- 106 (Biblischer Kommentar Altes Testament, 14/2); Rupotrtt, Wilhelm, Joel-Amos- Obadja-Jona. Giterstoh, Giitersloher Verlag, 1971. pp. 95-96 (Kommentar zum Alten ‘Testament, 13/2}. © Veja Anpexsen, Francis I. & Freepwan, David Noel. Amos; A New Translation with Introduction and Commentary. New York, Doubleday. 1989. pp. 18-23 (The Anchor Bible, 24A), 13 ponto de partida para meditar Amés. Decisivo 6 que 0 proprio livro de Amés exija, para si, uma abordagem contextual. E 0 que nos impée seu titulo (Am 1,1), sua porta de entrada: Palavras de Amos que viveu entre os criadores de ovelha de Técua, que viu contra Israel nos dias de Ozias, rei de Juda, e nos dias de Jeroboao, filho de Joas, rei de Israel, dois anos antes do terremoto. Duas alas abrem caminho ao livro, de acordo com o titulo. Primeira: as “palavras” so mediadas por uma pessoa concreta, chamada Amos, um vidente. Segunda: foram ditas numa situacio especifica e politica, Focalizaremos a primeira ala no segundo estudo. A segunda ala sera, agora, nosso tema. Portanto, 0 proprio cabegalho do livro de Amos exige de nds uma leitura situada. Entendem-se seus nove capitu- los quando se esta com os pés fincados “nos dias de Jero- bodo”. Que dias eram esses? Epoca de Jeroboao IT Encontramo-nos em torno de 760 a.C. Ha bons argu- moentos para essa datag4o da atuagao de Amés.'* Amés é, pois, em termos hist6ricos, o primeiro dentre os chamados “profetas classicos”. Com ele comega algo novo. A profecia ingressa em seu momento mais radical. Veja Kunst, David Noel. Amds; textos selecionados. Si0 Leopoldo, Faculdade de Teo- logia, 1981. pp. 11-12 (Exegese, 1/1). Compare, por exemplo, também Ruoox7t, Joel- Amos-Obadja-Jona, cit., pp- 114-115 © ANDERSEN & FREEDMAN, Amos; A New Translation with Introduction and Commentary, cit., pp. 18-23. Na época, dois Estados se sobrepdem 4 vida do povo de Deus: no Sul, em Judd, comanda um (Ozias 787-735); no Norte, em Israel, Jeroboao H detém o poder. Amos atuou sob Jeroboao II. Jerobodo H é da dinastia de Jeu, um general que — com algumas boas intengdes e por meio de muitos massa- cres (cf. Os 1,4! 2Rs 9-10) — galgou 0 poder em 842. Jeroboao II mostrou servigo. Atesta-o seu longo go- verno de quarenta e um anos, desde 787 até 746. Os anais reais, citados em 2Rs 14,23-29, nos dio uma idéia de seus grandes “sucessos”. Ampliou as fronteiras de Israel. Impés o interesse do Estado israclita em Damasco e em Emat, vizinhos ao norte. No sul, alargou as fronteiras até o Mar Morto (cf. 2Rs 14,25.28).'° Nao é possivel que os Estados de Damasco e Emat tenham sido mantidos sob ocu- paco, durante todo o governo de Jeroboao. Afinal, de acor- do com Am 1,3.13; 6,13 houve lutas fronteirigas em Galaade (na Transjordania). Nesses combates muitos civis foram massacrados, “trilhados com trilhos de ferro” (Am 1,3). Por sobre defuntos os Estados tratavam de ampliar sua area de influéncia. Nos dias de Jerobodo, o Estado de Israel levava a melhor na disputa contra seus vizinhos.'® A ampliacio de fronteitas em dire¢ao ao norte (Da- masco e Emat) e ao sul (Mar Morto) tinha seus objetivos. 'S Quanto 4 interpretagiio desses dois versiculos, confira Worrnwery, Emst. Die Biicher der Konige I; Kénige 17 - 2. Kénige 25. Gottingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1984. pp. 374-376 (Das Alte Testament Deutsch, 11/2) “SCF. Brigit, John. Histéria de Israel. 2. ed., Sio Paulo, Paulus, 1981. pp. 341-356 (Nova Colegio Biblica, 7); Nom, Martin. Iistoria de Israel. Barcelona, Garriga, 1966. pp. 237-250; Travetto, J, G. Situacién histérica del profeta Amos. Estudios biblicos, v. 26, Madrid, Facultad de Teologia “San Damaso”, 1967, pp. 249-274. Servia para aumentar a arrecadacio de tributos. E, em especial, garantia e alargava em muito o controle de rotas comerciais. Para o Estado de Israel estas ultimas eram de importancia vital. Detinha o controle da principal via que interligava as terras do Rio Nilo e as do Eufrates e Tigre. Comerciantes egipcios e mesopotamicos necessariamente passavam pela Planicie de Jezrael, um verdadeiro entroncamento comer- cial. E ela se situava em territorio israelita. Além de deter 0 controle desse vale — situado praticamente no coragao do Estado de Israel —, Jerobodo II soube fazer valer seus inte- resses em dirego ao norte, em Damasco e no acesso a Emate. Também as ferozes lutas em torno de Galaade e a extensdo das fronteiras rumo ao sul obedecem primariamente a intui- tos mercantis, pois a rota transjordaniana permitia participar do transito das mercadorias oriundas do Golfo de Elat (en- tao em maos de Judd; 2Rs 14,22). Amés nao se defrontou com um Estado fragil. Depa- rou-se com o vigor militar e comercial de um soberano bem- sucedido ¢ de uma economia florescente. Sua andlise critica certamente nao era compartilhada por toda a opinido publi- ca, Como se a opinido do profeta fosse consenso. O que os olhos que se detinham na superficie viam era esplendor. O que Amés dizia contradizia a opiniao promovida pelo Esta- do e pela religiao. Podemos verificar isso até mesmo num “colega” de Amoés. A passagem de 2Rs 14,25-27 menciona um profeta chamado Jonas, um cortes4o que aplaudia os sucessos de Jeroboao II. Jonas era a voz da situagao, bem acolhida e aplaudida na corte de Samaria.’ Amés era a voz " Veja Cevesemann, Frank. Kritik an Amos im deuteronomistischen Geschichtswerk — Erwigungen zu 2. Kénige 14,27, em Probleme biblischer Theologie. Miinchen, Christian Kaiser, 1971. pp. 57-63. 16 que trazia 4 tona a realidade vivida pelo povo. Sua profecia era um contradito. Sua 6tica vem marcada pela vida. Seu contradito parte do dia-a-dia. No avesso nasce seu verso. As dores, porém, que em Amds sao ditas nao sao fruto das agdes dos pequenos. Nao que dores nao possam ser ge- tadas entre os pequenos. Por todos os lados experimenta- mos em nossa propria vida que pobres também sao capazes de nao crer em pobres, de mutuamente se guerrearem, sem dé nem piedade. Nas periferias de nossas cidades atuais, as mulheres conhecem muito bem essa cruel realidade. Em Amos, todavia, esse nao € o interesse maior. Seu foco recai no senho- rio de Samaria e la vé a origem das caltnias contra mulheres e homens empobrecidos. Por isso, nossa atenc&o primeira volta-se a esse senhorio e aos conflitos que produzem. As dores que vém do senhorio ‘Viamos que, para o Estado de Israel, 0 controle das rotas comerciais era de importancia capital. Por qué? Os motivos, por certo, hao de ser buscados na organizacao so- cial de entéo. Como se produzia naqueles tempos? Quem detinha os produtos? Qual era 0 papel do Estado? A tematica é complexa. Restrinjamo-nos ao elementar.'® Trabalho e sobrevivéncia obedeciam, nos dias de Amés, a relagées peculiares. Sao distintas das de hoje, a comegar pela predominancia cabal da atividade agricola. Quase todas as pessoas viviam do plantar e colher. Peque- '® Veja Houtakr, Frangois. Religido e modos de producdo pré-capitalistas. Sio Paulo, Paulus, 1982, 250 p. (Pesquisa & Projeto, 1) e Graraw, Philomena, org. Conceito de modo de produgdo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978. 275 p. (Colegdo Pensamento Critico, 24), 17 nas eram as cidades, incomparaveis com a moderna urbani- zacao. Ao lado de nossas cidades, nem merecem tal nome. Nao passam de burgos ampliados. Cidade e campo eram, na época, duas realidades so- ciais bastante distintas. No campo vivia a grande maioria da populacao. Con- centrava-se em pequenas vilas, militarmente mais ou menos desprotegidas (sem muros). Convivia-se de acordo com os costumes clénicos ¢ tribais. Sobrevivia-se pelo trabalho na toga. Cada cl& produzia o necessario para os seus. Por meio de trocas, eram cobertas necessidades imprevistas. Clie vila camponesas eram quase autarquicas. Raramente acontecia comércio. Quando aparecia, seu efeito tendia a ser desesta- bilizador para o modo de vida familiar-clanico. A terra, da qual os camponeses retiravam seu sustento, era posse grupal. Nao se costumava vendé-la. Era heranga. Na cidade ou, se assim quisermos, nesses burgos am- pliados, viviam poucos. Nela se agrupavam a “classe”-Esta- do, os segmentos sociais que detinham o controle do con- junto social. Tratava-se da corte ¢ de seu funcionalismo, dos sacerdotes do templo citadino e dos comerciantes que, via de regra, confundiam-se com o proprio funcionalismo esta- tal. A parte mais consideravel das cidades era ocupada pelo exército, seus soldados e suas armas (carros de combate). Afora estes, a cidade e seus arredores imediatos também comportavam escravos e gente empobrecida (vitvas e ér- faos) que prestavam servigo ao senhorio. De fato, a cidade era uma espécie de burgo que exercia controle sobre seus moradores mais empobrecidos e, principalmente, sobre os camponeses circundantes e, em conexéo com as outras ci- dades, constituia um estado territorial. Este acelerava a do- 18 minagao sobre 0 campo, valendo-se para tal tanto da coer- ¢ao das armas quanto do fascinio da religiao, ambos em maos citadinas, bem como de aliados dentro das préprias vilas campesinas. Pelo visto, campo e cidade nao sé eram distintos, como também viviam em conflito.'? Em cada momento da histé- ria, a luta entre campo e cidade apresentava suas peculiari- dades. Nos dias de Jerobodo II, suas principais facetas eram aproximadamente as seguintes: Em disputa estava a taxa do tributo. O Estado reivin- dicava seu aumento, A func¢ao primeira dessas arrecadagdes era cobrir as despesas crescentes do aparelho estatal em sua politica expansionista. Esses tributos confluiam para a capi- tal, Samaria,”° por isso é plenamente compreensivel que os profetas no morram de amores por essa central de arreca- dagao (cf. Am 3,3-4,3 e Os 14,1). Contudo, Jeroboao II ne- cessitava do produto agricola nao sé para manter seu Estado expansionista, mas também para participar ativamente do comércio internacional que circulava pela Planicie de Jezrael e pela via transjordaniana. Nesse comércio, Israel concorria com produtos agricolas. Adquiria ferro, ouro e preciosida- des (cf. Am 3,12-15). Para Israel, essas trocas eram desvan- tajosas: os produtos de exportagdo eram de valor menor do ” “No dmbito das cidades israelitas também existia a distingfio de classes, comum na Antigilidade: 0 patriciado citadino era credor, ¢ os camponeses ao redor das cidades eram os devedores.” Embora essa afirmagiio de Max Weber (Das antike Judentum. 4. ed., Tiibingen, J. C. B. Mohr, 1966. p. 26 (Gesammelte Aufsatze zur Reli- gionssoziologie, 3]) careceria de diversos reparos quanto aos detalhes, certamente confere quanto ao principal. 2 Veja Norn, Martin, Das Krongut der israelitischen Knige und seine Verwaltung, em Aufsitze zur biblischen Landes- und Aitertumskunde. Neukirchen, Neukirchener, 1971. pp. 152-182, Sobre o assunto, veja também Donner, Herbert, Hisidria de Israet ¢ dos povos vizinhos. Sao Leopoldo/Petropolis, Sinodal/Vozes, 1997. pp. 318-329, 19 que os de importagao. Por isso, em Estados economicamen- te “dependentes”, como Israel e Juda, 0 ingresso nas trocas, no “mercado” internacional, costumava ser catastrofico para © povo trabalhador. Antes, porém, de realgar a dimensao crucial da questéo, devemos acompanhar, por instantes, 0 fluxo das mercadorias oriundas do exterior. Seu consumo principal acontecia nas cidades. Ates- tam-no diversos textos proféticos (por exemplo, Am 3,12; Is 2,6-9 e 3,16-4,1). Contudo, uma parte ainda que pequena dessas mercadorias internacionais era repassada ao campo, seja para gerar lucros para a cidade (pensemos no ouro), seja por corresponder a necessidade dos préprios camponeses (pensemos no ferro). A participacao no comércio internacio- nal nao deixava de ter seus efeitos nas vilas palestinenses. Amos 0 anota em 8,4-6. Sobre essa troca entre pessoas e povos, convém acres- centar aqui mais algumas intuigdes. A sociedade da época é de trocas. Trocam-se produtos ¢ servicos, ajudas e amizades principalmente entre familias, clas e tribos. A arqueologia mostra quao cotidianas eram tais trocas. Afinal, os proprios textos biblicos originam-se do intensivo intercémbio entre grupos sociais. Entre cidades, até mesmo de povos diferen- tes, as trocas assumiam contornos peculiares. Pois as cida- des sé podiam obter produtos para troca 4 medida que os retirassem, muitas vezes 4 forga, da produgao alded. Além disso, centros urbanos estavam conectados entre si sob a tu- tela de algum centro urbano hegemé6nico. Ora, no século VIII a hegemonia encontrava-se na Mesopotamia, em terras assi- rias. Para la “convergiam” trocas, intercAmbios, ““comércios”. Quando dizemos que nas terras mesopotamicas concentra- vam-se as cidades que centralizavam 0 comércio, entao isso nao significa que houvesse muitas rotas comerciais que con- 20 duziam “diretamente” a esses centros mesopotamicos. Na- queles tempos, prevaleciam amplamente as trocas mais ime- diatas nas relagdes entre os povos. E como se as relagdes de troca funcionassem em forma de corrente. A corrente dos intercambios comerciais era acionada a partir das cidades mesopotémicas, mas factualmente as trocas e 0 comércio eram feitos nas imediagdes, dentro dos elos da corrente. Lembremo-nos de que o horizonte internacional de Amés corresponde, em Am 1-2, precisamente aos povos vizinhos, aos elos mais préximos das correntes de relagdes entre os povos. Portanto, dentro de seu espago especifico, em seu elo, o senhorio do Estado arrecadava para sua auto-manutengio, para financiar sua politica expansionista e para realizar seus projetos comerciais nas rotas internacionais em diregao ao Egito e, em especial, 4 Mesopotamia, onde se concentravam as poténcias da época. A ampliagao da tributacao certamen- te tinha sua origem principal no projeto politico ¢ comercial de Jeroboao II. Convém destaca-lo, pois pode-se ser levado a crer que 0s tributos tdéo-somente serviam para satisfazer a ganancia e a luxtiria dos ricos. Alguns textos do livro de Amés até poderiam favorecer essa interpretagao (cf. Am 3,12.14-15; 4,1; 5,11; 6,4-6). E nao raras vezes optou-se por essa leitura. Dizia-se, entao, que nosso profeta somente cri- ticava a insaciavel ganancia dos ricos; restringia-se a inves- tir contra as pessoas luxuriantes, nao contra as estruturas de opressao que, a partir do Estado, propiciavam ostentagao. Tal abordagem é insuficiente por moralizar 0 luxo, desen- taizando-o de sua origem social, descolando-o da opressao. Requintes luxuriantes, em parte, acompanham a extracdo de mais tributos e rendas dos camponeses (cf. Am 4,1) e, em parte, sao reflexo das atividades comerciais internas (cf. Am 21 8,4-7) e, em especial, externas (cf. Am 3,12), As “camas de marfim” de alguns (cf. Am 6,4) e sua vida facil estéo na conseqiiéncia do expansionismo de Jeroboao II. E 0 povo? Qual era a situagao das mulheres, dos ho- mens e das criangas do campo nos dias de Jeroboao? A realidade do povo A realidade das pessoas era exatamente 0 inverso do esplendor das elites e dos que usufruiam as benesses dos centros urbanos de entao. A gente do campo era convocada a gerar, com seu suor e sua fome, os produtos e as riquezas. necessarios para o expansionismo comercial e militar. A rea- lidade do povo era, pois, marcada por dura exploragao.”! Atenhamo-nos a alguns pormenores e ao funcionamento dessa espoliag&o. Houve aumento na tributagao. O Estado acelerou a concentracao dos frutos do trabalho, dos produtos da roga. A religidéo desempenhava papel central em tais aumentos de arrecadacio, como podemos ver em Amés (cf. 4,4-5) e tam- bém em Oséias. Como nao havia uma rede estatal apta para arrecadar os tributos, ou seja, suficientemente organizada (era recente o sistema estatal persa de eficiente tributacao), recorria-se acima de tudo 4 religiao, aos templos, aos luga- res altos locais. Nas festas religiosas era entregue parte sig- nificativa do excedente agricola e nelas, simultaneamente, era criado um clima propicio para a produgao cada vez maior 21 A prosperidade, a exploragdo ¢ o lucro cram os aspectos mais marcantes da socieda- de que Amés contemplava e na qual trabalhava... Os pobres eram reaimente pobres e desavergonhadamente explorados” (MorvEx, J. A. O dia do leo; a mensagem de Amés, $0 Paulo, 1984. p. 1). 22 de excedentes. A religiao, suas festas e scus ritos, incre- mentavam tanto a produgaio quanto a arrecadagao tributaria. Por iss) é plenamente compreensivel que Amés, que expe- rimenti: essa pratica a partir dos camponeses, oponha-se jus- tament:? a religido (cf. Am 2,7-8; 4,4-5; 5,21-27; 8,1-3 ¢ 9,1-4). Para ele, as idas ao templo “multiplicam as trans- gressdes” (Am 4,4), o que — entre outras coisas — também significa que empobrecem e subjugam as pessoas. Contudo, nao parece que os donos das instituigdes somente tenham recorri(o a religiao para intensificar seu intuito de acimulo. A violéncia fisica nao faltou. De acordo com Amos, a coercac brutal foi amplamente usada para manter a hege- monia «los homens e para acelerar a criagdo de riqueza. Po- demos ‘é-lo em varios textos (cf. Am 2,7; 3,9-10; 4,1 e 8,4). Em 3,9-10, a violéncia é parte das estruturas de Samaria. Em 2,7 a violéncia é sexual, de homem contra mulher. Na concepvdo das elites do Estado e dos que o mantinham, ha- via “necessidade” de criar tal riqueza “nacional”. Diviso trés causas principais para esse processo de acimulo. P-imeiro: hé uma causa interna. A medida que Israel se militarizava e se fazia conquistador, cresciam os gastos adminis trativos e militares. Quanto mais forte era um Esta- do tributario, mais intensos eram seus tributos. Segundo: ha uma causa externa. Sob Jeroboio II, fo- ram ampliadas as fronteiras comerciais. Nessas trocas, Is- rael ing) essava com produtos agricolas. Por conseguinte, para poder trocar e “comercializar”, Jeroboao II tinha de tributar seus roceiros. Terceiro; a elite de Israel — um pequeno Estado depen- dente no Antigo Oriente de entéo — internacionalizava-se. Seu consumo seguia padrées novos. Requinte e luxo davam 23 charme (cf. Am 3,12; 6,4). Alguém tinha de fornecé-lo. O “fornecedor” do luxo eram os camponeses (cf. Am 4,1) e as camponesas (cf. Am 2,7; 8,3). O povo camponés de Israel era pisado (cf. Am 2,7a), estuprado (cf. Am 2,7b), aterrori- zado (cf. Am 3,9), esmagado (cf. Am 4,1), destruido (cf. Am 8,4) pela tributagao estatal. Através de seus quarenta e um anos de bem-sucedidas conquistas, Jeroboao II transformou as pessoas em nao-gente. Amos fala 4 luz desse reverso da historia. O povo, porém, nao so sangrava em prol do regime jeroboanico. Se assim fosse, esse soberano talvez nao tives- se podido manter-se por tao longos decénios. A opressao te- tia sido demasiado evidente. A contradig&éo — classe-Esta- do versus camponeses — seria deveras patente. Essa confrontagao era cotidiana. Afinal, no dia-a-dia das casas, homens se impunham a mulheres, adultos a jo- vens. Uns tinham menos participagao social que outros. Sem tais estruturagGes e vivéncias cotidianas de espoliagao, difi- cilmente se manteria um aparato militar urbano. O livro de Oséias — préximo aos dias de Amés — da-nos uma idéia muito viva da exploragao 4 qual mulheres eram expostas. Grandes poderes nao funcionam sem que criangas e mulhe- res sejam submetidas, como se lé em Am 2,7. Tais confrontagdes, nas quais o Estado jeroboanico estava inserido, eram vivenciadas nas vilas. Por la certos setores sociais desempenharam papel decisivo. Refiro-me aos que tradicionalmente representavam os clas interioranos € aos que, sob os auspicios do novo elf comercial, sobres- saiam-se dentro dos vilarejos por deter certo controle sobre os metais preciosos (ouro, ferro) e sobre pequenas parcelas do excedente de produgaio. Penso principalmente nos anciaos. 24 Eles eram as autoridades clanicas. Eram os juizes. E possi- vel que dentre eles alguns se dedicassem a formas incipientes de comércio nas vilas. Os interesses de tais ancidos e dos que Ihes eram préximos (sacerdotes, funciondrios, merca- dores, militares,” agricultores mais poderosos” ) podiam conflitar com os da corte (IRs 12), mas nao raro conver- giam com os desta (1Rs 21). Tais setores intracampesinos diluiam a confrontagao entre Estado tributario e campesinato tributado. Essa sua fungao veio particularmente a tona nos dias de Jerobodo II, devido a circunstancias especificas. Lembremo-nos da decisiva importancia da atividade comercial. A ela se deve 0 avanco dos limites do Estado. Contudo, ela nao s6 teve implicagées para fora. Teve conse- qiiéncias internas. Ampliou, por assim dizer, as fronteiras comerciais internas. O comércio internacional, por certo, foi chegando até as vilas. Embora nelas continuasse a vigorar a troca interfamiliar, também se iam constituindo algumas pra- ticas comerciais. Prata e ouro passavam a assumir papel de destaque (cf. Am 8,4-6 ¢ Is 2,7). Os interesses do Estado ingressavam no 4mago do campesinato. Implantavam-se nas relagdes intraclanicas.* Amés atesta essa situagdo. Consta- ta a manipulagao das praticas processuais nas vilas; a prata ® A respeito, confira Mq 2,1-5 (Hat, Noli Bemardo. Miquéias 2, 1-5; profecia ¢ luta pela terra - Uma leitura da influéncia da situagdo histérico-social nas dltimas décadas do século VIII a.C., em Juda na vida da antiga ordem tribal. Paulo, Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assungiio, 1992. 156 p.; A profecia de Miquéias e mew ova; memérias, vores e experiéncias. S40 Bernardo do Campo, Universidade Metodista de Sio Paulo, 2002, 283 p.). > A respeito de agricultores — de “homens livres” — de posses mais abastadas, veja, por exemplo, Ex 21-22. % Cf. Fenove, Marlene. Zur Sozialkritik des Amos ~ Versuch einer wirtschafts- und sozialgeschichtlichen Interpretation alttestamentlicher Texte. Evangelische Theologie, v. 33, Miinchen, Christian Kaiser, 1973, pp. 32-53. a8 passa a ditar sentengas (cf. Am 2,6 e 5,7-12). Os juizes, que so os anciaos, executam em nivel local os interesses do soberano nacional. Em Am 8,4-6, sao os comerciantes os que, no dia-a-dia, efetivam o que Jeroboao II prevé para 0 conjunto. A semelhanga de Amés, também Oséias, que atuou de 755 até 722, igualmente em Israel (= Norte), da destaque as mudangas em andamento nas vilas camponesas. Contu- do, Oséias nao se atém a observar tanto as corrupgées da jurisprudéncia (veja, porém, Os 5,1) ou as falsificagdes co- merciais (veja, porém, Os 12,7), como Amés, quanto a pra- tica religiosa. Constata que nas eiras e nos vilarejos ha gran- de entusiasmo pelos ritos de fertilidade. Estes visam ativar a reprodugdo humana e a produgdo, ambos mui necessarios para o expansionismo de Jeroboio II e de seus sucessores.”* Pode-se, pois, dizer que tanto Amds quanto Oséias enfocam as profundas transformacées locais que se vao processando devido ao expansionismo nacional. A realidade do povo camponés dos dias de Amés era, pois, marcada por espoliagao e violéncia (cf. Am 3,9-10). Para manter-se e para ativar as rotas comerciais, o Estado de Jerobodo II extorquia sua gente e, provavelmente, criava um incipiente comércio nas vilas. O povo empobrecia. E, além disso, 0 projeto jerobodnico encaminhava a todos para um futuro incerto e obscuro. Afinal o sonho expansionista nao passava de uma alucinagao generalesca. Era uma aventura. % Veja Wower, Hans Walter. Dodekapropheton 1; Hosea. Neukirchen, Neukirchener, 1965 (Biblischer Kommentar Altes Testament, 14/1); Mrsia, Jorge. Amor, pecado, alianza; una lectura del profeta Oseas. Buenos Aires, Patria Grande, 1975. 155 p. (Teologia, Fstudios y Documentos, 1), Sobre a interpretago de Oséias, veja agora, em especial, Sameato, Ténia Marta Vieira. Movimento do corpo prostituido da mulher na beleza do cotidiano; uma aproximago da profecia atribuida a Oséias, Sio Bemardo do Campo, 1997, 236 p. 26 Para bem entendé-lo, faz-se necessario dar algumas pince- ladas na caracterizagao da conjuntura internacional da pri- meira metade do século VIII. Lembremo-nos, inicialmente, da real insignificancia de Israel no concerto dos povos da area. Os avangos terri- toriais obtidos por Jerobodo II em nada alteravam essa situa- gao. As mais significativas concentragdes de poder encon- tram-se no norte (Urartu, Emat e Damasco) e, em particular, na Mesopotamia. (No século VIII, 0 Egito nao se sobres- saia.) Na regido siro-mesopotamica, ndo havia, porém, uma poténcia hegem6nica. Lutava-se pela supremacia. Logo apés 747 a.C. — isto é, apds Amés —, a Assiria rapidamente toma para si, sob o general Tiglate-Pileser, o controle da Mesopo- témia e da Siro-Palestina. Emat e Damasco sao subjugadas. Em 732 a.C., as partes mais ricas e comercialmente mais interessantes de Israel, em particular a Planicie de Jezrael, sao feitas provincias assirias. Em 722 a.C., Samaria é ane- xada, com o que termina o Estado de Israel dos tempos veterotestamentarios, Portanto, a expansdo jeroboanica ocorre sob o signo da indefinigéo da hegemonia na regiao. Naqueles dias, Is- rael se beneficia da disputa pelo mando. Embora Jeroboao II evidentemente nao tivesse folego para aspirar a diregdo dos acontecimentos, as indecisdes propiciavam-lhe alguns es- pagos. Contudo, 4 medida que ingressava ativamente no ambito das trocas comerciais internacionais, também criava as condigées da futura invasio assiria. A rota que, sob Jero- boao IE, levou os cereais israelitas trouxe, alguns anos de- pois, os soldados assirios. A invasao assiria é uma espécie de refluxo da expansdo jeroboanica. Por conseguinte, a po- litica de Jeroboo IL nio sé pauperizou os camponeses 27 israelitas, mas também preparou as condigGes para sua sub- jugacao pelos assirios. Preparou a catastrofe, da qual Israel (= Norte) jamais se recuperou. A gléria jeroboanica foi o tamulo do povo. A deterioracdo das condicgdes de vida do povo era pal- pavel em toda parte. Violéncia e maus-tratos, religiosidade formalista e templos interesseiros, enriquecimento facil e suborno, enfim a justiga transformada em veneno (cf. Am 6,12) e o caos social dominavam a cena. Detalhd-lo aqui equivaleria a antecipar estudos subseqiientes. Voltaremos, pois, ao enfoque pormenorizado das dores e dos clamores do povo em Amés. Retrospectiva Quisemos delinear 0 contexto das “palavras de Amés” (Am 1,1). Em retrospectiva, podemos constatar 0 seguinte. Encontramo-nos por volta de 760 a.C., em Israel (= Norte), na segunda metade do longo reinado de Jerobodo II (787-746). Trata-se de uma época de certo vacuo de poder. Nao ha poder hegeménico no cenario dos povos vizinhos. Exitos significativos marcam a politica de Jerobodo IT. A expansao territorial e 0 controle de rotas comerciais diri- gem-se principalmente ao norte (Damasco, Emat). Formas ja existentes de dominagio sao radicalizadas e novas sdo agregadas. A dominagiio de mulheres e criangas é radicalizada, como se verifica no proprio livro de Amés (cf. 2,7), mas principalmente em Oséias, profeta conterraneo € praticamente contemporaneo de Amés. A defesa das crian- 28 gas € um dos temas de Isaias (cf. 10,1-2). A essas domina- Ges ja historicas sao agregadas principalmente aquelas so- bre a gente que produz no campo. Aumentam a injustiga e a exploragao, seja mediante a tributagado seja mediante certa mercantilizagao das trocas, no dmbito das vilas interioranas. Violéncia e espoliagéo perfaziam o dia-a-dia das pes- soas. Na linguagem de Miquéias, dir-se-ia que elas estavam sendo “devoradas” (cf. Mq 3,1-14). oo Tal descrigdo de circunstancias é de alguma serventia para nés que — nesses estudos — queremos avaliar nossa fé € nossa pratica com base em Amés? Afinal, nao é a Palavra © que importa? De que serviriam tais incursées no nivel do circunstancial? Nao resta ditvida, néio podemos permanecer no con- texto. Ele ainda nao é a Palavra. Por isso, anseio por avangar para além dessa sondagem do histérico. Nesse sentido, esta- mos perdendo tempo ao analisarmos a realidade dos dias de Jeroboao II? Sim, nosso intuito é o de dar destaque ao que nao é meramente situacional. Contudo, isso nao pode implicar em descartar 0 contexto. Afinal, a Palavra jamais se descuida da realidade. Ela “acampou entre nés” (Jo 1,14). E presenga real, efetiva, corpérea, concreta, factual. Nesses termos, a Palavra, além de criar contexto, também se faz contexto. Eem Amés isso é muito patente. Expressa-o 0 cabe- galho de seu livro. Ele afirma que no texto que Ihe segue se 1éem “palavras de Amos”. Esta expressao chama a atengao, ainda mais quando a comparamos com os titulos de outros 29 livros proféticos. La nos so anunciadas “palavra de Javé” (Os 1,1; J1.1,1; Mq 1,1 etc.). Como meditar e entender nosso livro, sem atentarmos para as condigdes reais de sua profe- cia? Sem nos fixar em sua pessoa? No estudo do livro de Amés — mas certamente nfo sé dele —, a contextualidade é um requisito teolégico. Espiritualidade por suposto nao prescinde de historicidade. Se prescindisse, Amds diria que nosso entusiasmo religioso sé serve para multiplicar 0 peca- do (cf. Am 4,4-5; 5,5.21-27), para reproduzir alienagéo e ilusionismo. Avancemos em nossa tarefa. Meditemos adiante so- bre esse Amos de Técua. Quem ¢ esse pastor, vaqueiro, tra- balhador sazonal? 30 2. “O Senhor Javé me fez ver” O outro estudioso escondeu-se, de noite, num canto da casa. ‘Viu 0 povo entrar, sem pedir licenga, para dangar e brincar, falar e cantar, para sentir-se 4 vontade e encontrar-se com os outros. Gostou de ver essa alegria na casa e esqueceu- se, por um momento, das riquezas antigas. Gostou tanto, que entrou na roda e dangou. Dangou e brincou, falou e cantou, a noite inteira. Coisa que de ha muito nao mais fa- zia. Nunca se sentira tao feliz na vida. Descobriu, naquela hora, que tudo aquilo que tanto estudara tinha sido feito pelo povo, para 0 povo poder alegrar-se na vida... Passava a ser conhecido ¢ acolhido pelo povo que nao distingue as pessoas que nele se misturam. Era um do povo.' oe Na sua origem, 0 profetismo nao surge tanto do lado do poder... Surge muito mais do lado da poesia, da inspiragao, do transe, da musica, do sonho, da visio, da beleza, do po- pular, da arte, da intuicao, do oraculo, da religiao, da divin- dade, da orac4o, da mistica? Contactamos, no primeiro capitulo, o contexto. Essa foi nossa primeira tarefa. As “palavras de Amés” também » Mrsters, Carlos. Por unis das palavras, 3. ed., Petropolis, Vozes, 1977.v. 1, pp. 17-18. ? Grupo DF REFLEXAO DA CRB. A leitura profética da historia, Sao Paulo, CRB/Loyola, 1992. p. 17. 31 sao seu contexto. Mas nao sé: sao também de Amés. Se fos- sem de outro, seriam diferentes. Podemos comprovar isso em Oséias. Fala conforme 0 mesmo contexto, alguns pou- cos anos depois. Sua linguagem € outra. Sua ética é especi- fica, Nao 6, pois, indiferente que nosso livro nos apresente “palavras” oriundas de um tal de Amés, uma pessoa especi- fica, um grupo profético distinto de outros. Também, por- que esse Amés, de jeito nenhum, foi recitador de liturgia.> Nem todos viam 0 que ele via. Amés nos apresenta a realidade dos “dias de Jeroboado” em uma ética muito pecu- liar. O profeta Jonas de 2Rs 14,25 via as coisas de outro modo. O sacerdote Amasias, que denunciara Amos junto a corte (cf. Am 7,10-17), fazia outra analise dos fatos. Amés perscrutava, pois, 0 que Jonas, Amasias e outros nao enxer- gavam. Para Amés, essa diferenga tem origem em sua expe- riéncia de Deus: “Falou 0 Senhor Javé, quem nao profetiza- 1a?” (Am 3,8). Javé o “fez ver” (Am 7, 1.4.7; 8,1; 9,1). Nisso reside a alteridade de nosso Amés. Sua visio da realidade é teologica, é mistica. Nao se trata de querer repetir o culto ao individualis- mo, como por vezes se fazia em outros tempos.* Nem pre- tendo adentrar na alma de nosso profeta. Nao conhecemos sua psique, s6 temos seus textos. Contudo, também nao po- demos desalma-lo, nem s6 objetiva-lo em seus textos. Amdés } A relagdo entre Amés e a liturgia templar é estudada por Hennig Graf von Reventlow. Vé em nosso profeta uma espécie de recitador, de liturgo de agenda, Veja Revenr.ow, Hennig Graf von. Das Amt des Propheten bei Amos. Gottingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1962 (Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testaments, 80). * Veja Durm, Bernhard. Israels Propheten. 2. ed., Tiibingen, J.C. B. Mohr, 1922 (a1. ed. & de 1916). Confira também Knaus, Hans-Joachim. Geschichte der historisch- hritischen Erforschung des Alten Testaments von der Reformation bis zur Gegenwart. 4.ed., Neukirchen, Neukirchener, 1988. pp. 275-283. 32 por certo tinha seu jeito e suas emogdes. Imaginemo-lo pro- ferindo aquelas palavras de Am 4,1 sobre os senhores* de Samaria: “Ouvi, vacas de Basa!” Nao as tera dito sem tre- mor e emocao. Imaginemo-lo em sua confrontagao com Amasias (cf. Am 7,10-17). O javismo do sacerdote de Betel divergia do javismo do pastor de ovelhas de Técua. Amés tinha um jeito muito peculiar de articular a fé em Javé e de confessa-lo em publico. Esse profeta é diferente. Nao ha duvida, o contexto fez com que Ams falasse. To- davia, igualmente, é evidente que Amés fez com que o contexto falasse. Tentemos percebé-lo neste nosso segundo estudo. As visées As visdes, contidas em Am 7-9, permitem-nos conhe- cer algo de Amés. Por certo, nao foram anotadas para bio- grafar o profeta. Seu objetivo é outro. Querem-nos testemu- nhar os conteudos e as conseqiténcias das palavras proféti- cas. Mas, enquanto perseguem essa meta, nas entrelinhas também deixam transpirar algo da pessoa de Amos. Atente- mos para essas entrelinhas. Cinco sao as visdes espalhadas por Am 7-9. Sao elas: 7,1-3; 7,4-6; 7,7-8.9; 8,1-2.3 e 9,1-4.° Certamente se 5 Ressalto que em Am 4,1-3 a maioria dos sufixos alude a um masculino, ¢ ndo a um feminino. Logo, as tais “vacas de Basa” nao ho de ser mulheres, mas senhores, © O texto original dessas visdes no esta bem preservado. Persistem muitas incertezas. Nao posso pormenorizi-las. Sugiro uma comparagiio com comentirios especializados. Os problemas esto bem trabalhados em: Krst, Nelson. Amds; textos selecionados, So Leopoldo, Faculdade de Teologia, 1981. pp. 41-92 (Exegese, 1/1). Veja também ‘meu proprio ensaio: Jacé é pequeno ~ Visdes em Ams 7-9, Revista de Interpretacdo Biblica Latino-Americana, v. |, Petropolis, Vozes, 1988, pp. 81-92. Este v. | foi reeditado em 2. ed, em 190. O ensaio em questio encontra-se, agora, no Anexo do presente livro. 33 correlacionam. Formam um sé ciclo.” No atual texto de Am 7-9 estdo separadas, ao meu ver, porque foram usadas pelos redatores para estruturar 0 conjunto desses trés ultimos ca- pitulos do livro.® Inicialmente nos interessa enfocar o ciclo das cinco visées a parte de seu atual contexto literario. Num segundo passo, também perguntarei pelas intengdes que orientaram a composigao de Am 7-9. O pice do ciclo é a quinta visdo (9,1-4). As quatro ante- riores compdem dois pares. Juntas estéo, por um lado, 7,1-3 ¢ 7,4-6 €, por outro, 7,7-9 ¢ 8,1-3. A disposigao ¢, pois, 2+2+ 1. A progressao entre os conjuntos é evidente. A ultima visao constitui o auge. Entre o primeiro e o segundo par ha um cres- cendo. Constato, pois, que a disposig&o e a seqiiéncia desse nosso ciclo de visdes de modo algum sao fortuitas. Ao medi- ta-lo, temos de fazer jus a essa sua peculiaridade, temos de integrar-nos em seu fluxo. Vejamos 0 que Amés viu. ? Nao pretendo comprové-lo uma vez mais. A esse respeito ha varias pesquisas a com- parar, por exemplo: SrieRstan, Ivar P. Die Offenbarungserlebnisse der Propheten Amos, Jesaja und Jeremia; eine Untersuchung der Eslebnisvorginge unter besonderer Beriicksichtigung ihrer religids-sittlichen Art und Auswirkung. Oslo, Univer- siteisforlaget, 1965, Wotrr, Hans Walter. Dodekapropheton 2; Joel und Amos. Neukirchen, Neukirchener, 1969. pp. 337-394 (Biblischer Kommentar Altes Testament, 14/2); Barrezex, Ginter. Prophetiec und Vermittlung; Zur literarischen Analyse und theologischen Interpretation der Visionberichte des Amos. Frankfurt, Peter Lang, 1980 (Europiiische Hochschulschriften, 23); Tourn, Giorgio. Amds; profeta de la justicia, Buenos Aires, 1978. pp. 49ss; Kirst, Ams; textos selecionados, cit., pp. 41-92; Leve, Gregorio del Olmo. La voeacién del lider en ef antiguo Israel; morfologia de los relatos biblicos de vocacién, Salamanca, Univ. Pontificia, 1973. pp. 179-207 (Biblio- teca Salmanticensis, 3/2); Axparsex, Francis I. & FxeepMax, David Noel. Amos; A New Translation with Introduction and Commentary. New York, Doubleday, 1989. pp. 609-860 (The Anchor Bible, 244); Paut, Shalom M. Amos; A Commentary on the Book of Amos. Minneapolis, Fortress Press, 1991. pp. 226-281 (Hermeneia). * Veja Avorvacn, Pablo Riben. Amos ~ Memoria y profecia — Anilisis estructural y hermenéutica. Revista Biblica, ano 45, v. 12, Bucnos Aires, Sociedad Argentina de Profesores de Sagrada Escritura, 1983, pp. 239ss 34 O primeiro par de visdes esta em 7,1-3 e 7,4-6. Focaliza a vida no campo. Trata de planta (7,1-3) e de “heranga”/roga (7,4-6), do lavrador e também do pastor. Em jogo esta a so- brevivéncia da gente do campo. Amés vé ameagas terriveis: praga de gafanhotos (7,1-3) ¢ seca (7,4-6). Os gafanhotos ameagam liquidar os camponeses. O tributo real ja os ex- plorara, ao se assenhorar da primeira colheita, isto é, da co- lheita mais rentavel (v. 1). Agora, gafanhotos estavam por devorar a segunda, a que sobraria para a gente do campo. Haveria fome. Além dessa praga, esta a caminho uma seca arrasadora. O manancial de aguas subterraneas estava sendo consumido por um fogo terrivel, césmico (v. 4). Haveria sede. Fome e sede ameagavam, pois, a sobrevivéncia no campo. Amés intercede e é atendido, Seu argumento, a pri- meira vista, surpreende. Recorre 4 pequenez de Jacé (v. 2 e v. 5). A fragilidade dos lavradores — afinal, estes sao Jacé, no concreto — é o argumento decisivo para a suspensdo da ameaga. Para o campo empobrecido, ha perdao. As ameagas da natureza — pragas e secas —, por mais terriveis que se- jam, nfo aniquilam. O Deus criador nao é tao mesquinho. Nem secas e nem pragas “pisam”, “eliminam” (Am 8,4) e “devoram” (Mq 3, 1-4) os pobres. Suas dores tém outras ori- gens. E é disso que nos fala o segundo par de visdes. As préximas duas cenas (7,7-9 e 8,1-3) séo especialmen- te dificeis de interpretar. Referem-se a um prumo” (7,7-9) ea um cesto (8,1-3). O prumo certamente tem a fungao de veri- ficar a estabilidade do muro. Este esta prestes a ruir. O cesto contém frutas de verio (figos, azeitonas, uvas). Ambas as ® A respeito de 7,7-9, vejaa leitura de Haroldo Reimer em seu valioso livro: Richter auf das Recht!; Studien zur Botschatt des Amos. Stutigart, Katholisches Bibelwerk, 1992. pp. 175-189. Eb visdes predizem o fim de “meu povo Israel” (7,8; 8,2). Para entendé-las, nao basta fixar-se nos objetos (prumo/muro ¢ cesto). E preciso atentar para as conseqiiéncias concretas da ameaga, isto é, proponho interpretar a terceira e quarta visio segundo 7,9 e 8,3, respectivamente.'? As conseqiiéncias con- cretas das ameagas simbolizadas nas visdes de um prumo junto ao muro e de um cesto de frutas sio: aniquilamento dos “altos” (isto é, dos locais de culto a Baal), dos santua- trios estatais, da dinastia no poder (cf. 7,9) e morte no pala- cio (cf. 8,3). Generalizando podemos dizer que a terceira ¢ quarta visio ameacam os poderosos, sua religido (“altos” e “santuarios”) e seus representantes (dinastia e paldcio). Quando Amés se refere, pois, a “meu povo Israel”, nao pensa no conjunto de todas as pessoas, mas especificamente nas instituigdes de poder do reino do Norte." A partir dai, também as coisas vistas tomam sentido. Nao é por acaso que Amos vé um cesto de frutas de verdo (cf. 8,1-2). Isso ha de aludir ao cendrio da principal festa da colheita, realizada no final do ano agricola palestinense. Na oportunidade, os santuarios arrecadavam seus tributos (cf. 9,1-4 e 2,13). Igual- mente, nado é por acaso que Amés vé um muro prestes a ruir (cf. 7,7-8). Afinal, 0 poder opressor era, naqueles tempos, um poder citadino. Para a cidade e o Estado, seus muros palacios, suas festas de colheitas e espoliagdes nao ha futuro. Portanto, esse segundo par de visdes (7,7-9 e 8,1-3) é oposto ao primeiro (7,1-3 e 7,4-6). Aquele se refere ao cam- '° Para Hans Walter Wolff (Dodekapropheton 2; Joel und Amos, cit., pp. 131-135, 340- 341 ¢ 367), Am 7,9 € 8,3 sio adendos posteriores. Veja também Kirst, Amds; textos selecionados, pp. 58-59 ¢ 70-71. " Veja Kirst, Amds; textos selecionados, cit., p. 63; WoLrr, Dodekapropheton 2; Joel und Amos, cit., p. 348 36 po, este, 4 cidade-Estado. Para a fragilidade de Jacé, ha fu- turo. Para a opressao citadina, haver4 morte. Campo conju- gacom vida. Cidade-Estado caminha para a morte. A ultima visdo (9,1-4) formulara a conseqiiéncia mais radical desses antagonismos. Novamente deparamos com uma passagem complica- da, quando nos voltamos para 9,1-4. Os problemas comecam com 0 texto original; sua preservagdo nao é das melhores. Ainda assim é possivel reconhecer seu contetdo principal. Trata-se da ameaga ao templo e aos que dele se beneficiam. A cena chega a ser chocante e grotesca. Javé como que esta parado sobre o altar de holocaustos (localizado em frente ao templo); de 14 golpeia os capitéis. Demole o santuario, fa- zendo-o ruir sobre seus ocupantes. Nessa quinta (cf. 9,1-4), culmina 0 conjunto das visdes (7,1-3; 7,4-6 e 7,7-9; 8,1-3). O proprio Javé se volta contra o lugar e os ritos que mais querem prestigia-lo. Por qué? Porque esse santuario é servigal aos muros citadinos (cf. 7,7-8), tanto a seus idolatrismos quanto as suas dinastias (7,9). Serve ao acumulo tributario por meio das festas da colheita (cf. 8,1-2), em favor dos palacios e contra as escravas (cf. 8,3). O santuario ¢ a coroa da opressao exercida contra o campo ¢ as escravas. Nas visdes de Amés, ele coroa as ameagas. O templo seria lugar predileto da pro- mogao da vida; por meio de suas amarras citadinas e pala- cianas foi feito lugar privilegiado da morte. O ciclo das visées, por certo, no ¢ biografia. Tem como objetivo nao a pessoa de Amos, mas sim 0 contetdo de sua mensagem. Ainda assim é evidente que essas visdes tam- bém nos permitem entrever a pessoa de nosso profeta. Antes de mais nada, no-lo apresentam como um vidente, um visio- 37 nario (confira também Am 1,1; 7,12). Essa é por assim dizer sua especialidade. O vidente enxerga o que esta na raiz das coisas e em suas conseqiiéncias. Olha para a frente e vai ao fundo. Ao ir a raiz, Amés constata opressao de cidades e do Estado sobre a gente pobre do campo. Ao olhar o futuro, vislumbra o fim dos totalitarios. A visio profética nao é, pois, nenhum jogo fortuito com simbolos indecifraveis. Ela re- vela e des-vela, com perspicacia e radicalidade, o que esta ai € o que esta por vir. Torna as coisas transparentes. Tamanha perspicacia, porém, nao é sé fruto de exercicios de éxtase ou de sabia reflexao pessoal. E também episddio sociorreligioso, cujo controle situa-se além da propria pessoa. Situa-se no tempo e espaco religiosos que, simultaneamente, esto inse- ridos no comunitario e social. Em tal visio ocorre um en- contro entre a experiéncia pessoal de Amés ¢ 0 ambiente de dor comunitaria de sua gente alded. E 0 que se pode desig- nar de dadiva. Javé faz ver, vocaciona Amos a ser vidente. Nao fosse essa perspectiva vocacional, as visées de nosso profeta poderiam nao passar de sensacionalismo e soberbia. S6 o proprio Javé, com quem Amés dialoga em relacdo pes- soa], poderia denunciar que os templos a ele dedicados nao eram de seu agrado. Essa dadiva divina da visdo nao parece ter tomado nosso profeta de sobressalto, de uma hora para outra, Trata-se de uma trajetéria vocacional. Amos percorre todo um caminho visionario. As proprias visdes deixam en- trever isso, com bastante nitidez. A visio dos gafanhotos (cf. 7,1-3) cabe no inicio do ano agricola. A da seca (cf. 7,4-6), em pleno verao. A do cesto (cf. 8,1-3) da-se no outono. Es- tas visdes cobrem, no minimo, meio ano. Talvez seja o perio- do em que Amos é preparado, de modo incisivo, para seu ministério."? O ciclo das visdes leva-no a perscrutar os si- nais dos tempos: a dor dos camponeses ¢ 0 luxo de palacios 38 e templos. Essas coisas nfo se clareiam, miraculosamente, de um dia para 0 outro; clareiam-se na caminhada. Essas visdes tém um sentido como conjunto. Sao per- tinentes também a pessoa de Amés e a seu meio ambiente social. Mas também assumem um sentido especifico dentro de seu atual contexto literario, constituido por Am 7-9, Sao © lastro sobre o qual est&o assentados estes capitulos. Aqui, nao posso deter-me a meditar os alcances dessa composi- go. Restrinjo-me a assinalar dois aspectos. Por um lado, 0 ciclo ¢ amplificado. Em 8,4-14, a amea- ga também passa a incluir o comércio. Este igualmente de- vora os camponeses pauperizados, o Jacé enfraquecido. Contra 0 povo est&o nao sé cidades muradas, templos, pald- cios e Estado, como acentuam as visées, mas também os comerciantes. Por outro lado, o ciclo é radicalizado. Ao incluirem a confrontagao com Amasias (cf. 7,10-17) entre a terceira (cf. 7,7-9) e a quarta (cf. 8,1-3) visao, os redatores exemplificam numa cena o antagonismo entre a profecia que vem do cam- po € 0 sacerdécio amarrado aos interesses do Estado e de seu templo oficial. A mesma critica 4 conjugacao entre po- der e religido ¢ tematizada em 9,7-8 ¢ nas utopias messianicas de 9,11-12 e 9,13-15. Desse modo os compiladores de Am 7-9 quiseram denunciar o carater funesto das aliangas entre templo e palacio. Ao proceder assim, evidenciam-se como bons discipulos de Amés. Assim Kiast, Amds; textos selecionados, cit., pp. 42 ¢ 90. Sobre a questo, confira também Tourn, Amds; profeta de Ia justicia, cit, pp. 67-69. 39 “Rugiu o leao — Javé me agarrou” Algumas outras passagens focalizam a dimensao voca- cional da atuagado de Amos. Assemelham-se ao que viemos aconhecer por meio do ciclo das visdes. Penso em Am 3,8 e em Am 7,14-15. Em ambas, 0 tema nao é Amés, mas sua mensagem e a autoridade desta. Por um lado, a passagem em questio autentica a ameaga a4 Samaria (cf. 3,8), por outro, evidencia a necessidade da confrontagao com Amasias (cf. 7,14-15). Am 3,8 reveste-se de importancia especial 4 luz de seu contexto literario. Acontece que Am 3,3-4,3, provavelmen- te, compée um antigo panfleto, contendo cinco ditos profé- ticos de Amos (cf. 3,3-8; 3,9-11; 3,12; 3,13-15 e 4,1-3)." Todos eles afrontam explicita (cf. 3,9-11; 3,12; 4,1-3) ou implicitamente (cf. 3,13-15) Samaria. Seu contetdo é es- pantoso. A final, a capital é denunciada como bergo de terror e horror. Sua destruigao perpassa cada dito, como grande anseio. Um tal panfleto deve ter escandalizado e espantado. Fazia-se necessario embasar seu contetido. E essa é a fun- ° Essa tese ainda carece de uma verificago detalhada, na qual se comprovaria que 3, 1- 2, a0 menos em parte, uma introdugao secundaria (deuteronomistica?) ¢ que o apelo 4 atengiio de 4,1 poderia tanto ser do proprio Amés (confira 3,13 e 8,4) quanto estar influenciado pela linguagem redacional de 3,1 e 5,1. Indicios importantes que auxi- liam a embasar a tese, segundo a qual Am 3,3-4,3 é um antigo panfleto, podem ser encontrados em Kacu, Klaus. Amos untersucht mit den Methoden einer strekturalen Formgeschichte. Neukirchen, Neukirchener, 1976 (Alter Orient und Altes Testaent, 30), veja em especial p. 126 da I* parte e pp. 76-77 da 2" parte. Veja também Scar, Wermer Hans. Die deuteronomistische Redaktion des Amosbuches - Zu den theologischen Unterschieden zwischen dem Prophetenwort und seinem Sammler. Zeitschrifi fir die alttestamentliche Wissenschaft, v. 77, Berlin, Walter de Gruyter, 1965, pp. 168-193. Outra é a posigdo de Preirer, Gerhard, Amos und Deuterojesaja denkformenanalytisch verglichen. Zeitschrift fir die alttestamentliche Wissenschaft, v. 93, Berlin, Walter de Gruyter, 1981, pp. 439-443. Confira item Exército, cidade e templo, p. 62. 40 ¢4o de 3,3-8, em cujo auge esta nosso v. 8. Ele faz as vezes de assinatura teolégica para 0 atestado de morte passado a Samaria nesse nosso panfleto. Amiés 3,3-6.8'* é uma obra de arte da sabedoria popu- lar. No estilo da pergunta e resposta, correlacionando causa e efeito, Amés leva seu ouvinte a ter de admitir que suas ameagas proféticas a cidade (v. 6), isto 6, no panfleto Samaria, tem sua origem em Javé. Partindo das coisas cotidianas — quase banais e infantis'* —, esses versiculos chegam ao pro- blema elementar da profecia: os profetas tém de falar. Amés profetiza por obrigagdo, nao por deleite. Esta sob coagaio divina: Rugiu 0 leao! Quem nao temera? Falou o Senhor Javé! Quem nao profetizara? (Am 3,8). Profecia por coagéo — esta experiéncia contundente autentica a assombrosa ameaca que segue nos quatro ditos: Samaria, a capital do bem-sucedido Jeroboao II, sera destro- cada. A funcao da profecia é proclamé-lo. Nao parece que 3,8 queira referir-se a um aconteci- mento vocacional tinico. Seu propésito é antes apresentar as razées teolégicas para o conjunto da atuacao profética, em particular para os diversos ditos contra Samaria. Nesse ponto reside uma diferenca em compara¢4o com o ciclo das visdes. “4 Y.7 deve ser um adendo deuteronomistico, como foi demonstrado por Sciminr, Die deuteronomistische Redaktion des Amosbuches, cit., pp. 183-188. +3 Rupowek, Wilhelm. Joe!-Amos-Obadja-Jona, Giitersloh, Gitersloher, 1971. p. 156 (Kommentar zum Alten Testament, 13/2). 41 La conheciamos Amés no come¢o e quigd no gradual desen- volvimento de sua profecia. Aqui vemo-lo explicitar 0 mo- tivo de sua acao e palavra proféticas. Em Am 7,14-15, 0 profeta se refere a suas experién- cias vocacionais ¢ pessoais a semelhanga de 3,8. Atenhamo- nos, por instantes, a esses dois versiculos. Com eles retornamos ao contexto literario do ciclo das visdes. Em 7,10-17,'° os discipulos relatam uma das cenas marcantes da vida do mestre. E marcante porque confronta, sem meios-termos, duas propostas: a do vidente e a do sa- cerdote, a de Amés e a de Amasias, a da critica ao Estado e ado servico a ele, a do campo e a da cidade. Esse cenario de antagonismos interrompe 0 ciclo das visdes e, simultanea- mente, explica-o, num paradigma concreto. Novamente, a questo tematizada nao é Amos, é sua palavra profética. Esta esta no centro. A importancia de Amés deriva da relevancia da palavra, do dabar! E é por causa dessa palavra que Amés recorre a seu passado, nos versiculos que estéo em jogo. Amasias pro- punha acomodar a palavra profética as condigdes de um santuario do rei e aos interesses do Estado. Tratava de nego- ciar (cf. vv. 12-13), naturalmente cheio de boas intengées. Amés refuta tais tratativas. E intransigente. Nao por uma qualidade sua, mas devido 4 qualidade da palavra. Esta nao se ajusta e nem se acomoda ao Estado jeroboanico, iddlatra (cf. 7,9) e opressor (cf. 8,3.4-6). Para confirmar a intransi- géncia da palavra de Javé, Amés recorre a sua experiéncia vocacional ¢ a seu modo de vida. Cf. VircuLmn, Stefano. Os doze profetas e Daniel. Petropolis, Vozes, 1978. pp. 39-44 (Introdugio a Biblia, 2/4) 42 A experiéncia vocacional confere com a de 3,8, em- bora os termos sejam outros. Javé tomou, agarrou, constran- geu (cf. v. 15). Amés foi feito vidente, um tanto na marta. Nem mesmo o contetido de sua fala corresponde a uma op- gao sua. Também este lhe foi dado. Ha que se direcionar a Israel (cf. v. 15), ameaga-lo na pessoa de seus reis (cf. vv. 9.10-11), sacerdotes (cf. vv. 16-17) e similares. Na raiz de tamanha radicalidade esta a vocagdo: “Javé me agarrou!” Nisso 7,14-15 esté proximo de 3,8, como viamos. Mas tam- bém vai além. Em 7,14-15 transparece um interesse especial em elucidar as conseqiiéncias concretas e atuais da vocagdo para a profecia radical, para “o nao”'’ derradeiro. Por um lado, é destacado que Amés nio é “profeta” e nem mesmo “filho/ discipulo de profeta”.'* Portanto, nao deve ser confundido com os profetas vinculados a santudrios oficiais e deles dependen- tes (cf. 2Sm 7 ou Mq 3,5-8), se bem que em dado momento chega a desempenhar fungées proféticas (por exemplo, ao in- terceder em 7,2.5).'° A rigor, Amés nao é profeta, é “pro- fetizador” (cf. 3,8; 7,15.16). Por outro lado, seu modo de vida e de subsisténcia passa a desempenhar papel de realce. Seu pao nao lhe vem de sua fungao de profeta (o que nega ser). ” Esse é 0 titulo de um belo ensaio de Suenv, Rudolf. Das Nein des Amos. Evangelische Theologie, v.23, Miiuchen, Christian Kaiser, 1963, pp. 404-423. Sobre a correta tradugo de 7,14, ha longa discussdo. Ha quem queira traduzir: “Eu niio era (!) profeta e nem era (!) fidho de profeta” (confira, por exemplo, Kins, Aids; textos selecionados, pp. 95 ¢ 113-116 ou Paut, Amos; A Commentary on the Book of ‘Amos, cit,, pp. 238-252), A meu ver, Hans Walter Wolff (Dodekapropheton 2; Joel und Amos, pp. 359-361) reuniu os argumentos decisivos para que se traduza: “Eu nfo sou (!) profeta e nem sou (!) filho de profeta”, °° Quanto aos profetas como intercessores, veja Rab, Gerhard von. Los falsos profetas, em Estudios sobre el Antiguo Testamenio, Salamanca, Sigueme, 1976. pp. 445-459 (Biblioteca de Estudios Biblicos, 3). 43 Ganha-o como trabalhador. Vv. 14-15 ressaltam-no (veja tam- bém Am 1,1). Havemos de retornar ao assunto (confira item Amés — Um trabalhador, p. 49). Desde ja posso constatar que para os narradores do episédio de 7,10-17, o ganha-pao de Amés nao é indiferente ao contetido de sua profecia. A final, seu trabalho da autenticidade a suas palavras. Entre o Amés trabalhador e sua profecia radical contra os totalitarios deve haver uma relagdo. O trabalhador e o “profetizador” se correlacionam, embora este nao dependa daquele. Em 3,8 e 7,14-15, conhecemos, pois, um Amés voca- cionado como profetizador. Foi feito agente da palavra (do dabar). Isso ja era relevante para o proprio Amés. Sua tarefa era profetizar (cf. 3,8; 7,12.15-16) e proclamar (cf. 3,8; 7,16). Os compiladores Ihe deram destaque ainda maior, ao se va- lerem do conceito da palavra (do dabar) para intitular o li- vro (cf. 1,1) ou partes dele (cf. 3,1; 4,1; 5,1, confira 7,16). Amés atua, pois, por meio da fala, da palavra. Pode-se cons- tatar isso em mais outra caracteristica dos textos. Refiro-me as formulas que se encontram no come¢o, no meio e no fim dos ditos. Atentemos para elas. “Assim disse Javé” O inicio de muitos ditos é marcado pela expressio “as- sim disse Javé” (1,3.6.9.11.13; 2,1.4.6; 3,11.12; 5,3.4.16; 7,17). Seu equivalente no final das unidades é “disse Javé” (1,5.8.15; 2,3; 5,17.27; 7,3.6; 9,15). Outra expresso muito freqiiente e via de regra usada para concluir é “dito de Javé” (Almeida costuma traduzir por “disse Javé”). Encontramo-la em: 2,11.16; 3,6.10.15; 4,3.5.6.8.9.10.11; 6,8.14; 8,3.9.11; 9,7.8.12.13. 44

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