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g af [7 Erminia Maricato METROPOLE NA PERIFERIA DO CAPITALISMO ee ee ee tigere, Nossas cidades vém sendo erigidas sobre a exclusdo e, por isto, sobrea violencia. Como se sabe, quem semeia ventos colhe tempestades. A metrépole é temida. De objeto de desejo dos que aspiravam o con- sumo bésico ou o supérfluo, ela tornou-se simbolo da barbarie. Banali- Zaram-se assassinios, assaltos, abandono ou exploracao de criancas. Insidiosamente a dor, 0 desperdicio ou a destruicao da vida rotiniza- ram-se no cotidiano das filas, do transito congestionado, da poluigao, da moradia precaria. Para este livro, nao obstante a evidéncia desses trdgicos problemas, seu reconhecimento institucional inexiste. Nossas raizes escravistas € nos- sa tropical familiaridade com a acomodacao de contrérios vém per- mitindo que se fechem os olhos para 0 desmoronamento de nossas pretensées ao progresso civilizatério. O direito urbano, a administra- a0 publica e 0 saber técnico urbanistico, por sua vez, estdo progra- mados para tratar apenas com uma fatia da cidade: a que pode pagar 0 precos do circuito oficial do mercado. Ignoram-se, assim, as neces- sidades da cidade real dos despossuidos. Mas € possivel e urgente agir contra este estado de coisas. Mesmo por- que cresce a consciéncia e o rancor dos setores espezinhados, aos quais é preciso proporcionar o que é direito de todos: a vida urbana decente. Isto pode ocorrer sem planos inécuos, nem truques administrativos neoliberais. Na politica habitacional, por exemplo, cabe & gestdo urba- na tomar os carentes como prioridade e buscar, entre os numerosos programas ja experimentados, as solugées especificas mais adequadas para, em cada caso, dar melhor habitabilidade aos locais onde eles jé se encontrem instalados. A arquiteta Erminia Maricato, ex-secretaria da habitagao da cidade de Sao Paulo e professora da FAU-USP pode falar de catedra sobre essas questoes. Seu livro é um libelo contra a injustica, a inércia e a bruta- lizagao que nos cercam. Maria Irene Szmrecsényi (Capa: ERMINIA MARICATO € ETTORE BOTTINI sobre desenho de RENINA KATZ. Estudos Urbanos 10 diregao de Maria Irene Szmrecsanyi Milton Santos Série Arte e Vida Urbana 4 direcao de Maria Irene Szmrecsényi ESTUDOS URBANOS titulos publicados Pobreza Urbana, Milton Santos Ensaios Sobre a Urbanizacio, Milton Santos Pensando o Espaco do Homem, Milton Santos A Urbanizacao Brasileira, Milton Santos A Identidade da Metrépole: A Verticalizagao em Sao Paulo, Maria Adélia A. de Souza SERIE ARTE E VIDA URBANA ‘A Carta deAtenas, Le Corbusier Sao Paulo e Outras Cidades, Nestor Goulart Reis Filho Operarios da Modernidade, Maria Cecilia Franga Lourengo METROPOLE NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: ILEGALIDADE, DESIGUALDADE E VIOLENCIA Erminia Maricato METROPOLE NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: ILEGALIDADE, DESIGUALDADE E VIOLENCIA Estudos Urbanos Série Arte e Vida Urbana EDITORA HUCITEC Sao Paulo, 1996 © Direitos autorais, 1996, de Erminia Maricato. Direitos de publicagao reservados pela Editora de Humanismo, Ciéncia e Tecnologia HUCITEC Ltda., Rua Gil Eanes, 713 — 04601-042 Sao Paulo, Brasil. Telefones: (011/240-9318 e 543-0653. Vendas: (011)530-4532. Fac-simile: (011)530-5938. ISBN 85-271-0351-6 Foi feito 0 Depésito Legal. Fotos: NAIR BENEDITO/N- IMAGENS Editoragao eletronica: Ouripedes Gallene INTRODUCAO Parte I: URBANISMO NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: DESENVOLVIMENTO DA DESIGUALDADE E CONTRAVENGAO SISTEMATICA. Fatos da cidade controversa Ratzes da ordem invertida: trabalho e terra Urbanizagao da “industrializacao com baixos salérios” Cidade, Estado e mercado: a modernizacao excludente Fim do desenvolvimentismo: globalizagao e violéncia nos anos 80 Parte Il: ENTRE O LEGAL E O ILEGAL — MERCADO E ESCASSEZ Segregagao ambiental e exclusao social Hlegalidade e exclusio Entre o legal e o ilegal, arbitrio e ambigiiidade Direito 4 ocupacdo, sim. Direito a cidade, nao Parte Il: SEGREGACAO AMBIENTAL, E VIOLENCIA URBANA. Violéncia urbana ‘Anova “(des)ordem internacional” ou “(des)ajuste global” ea explosio da violéncia ‘A-exclusdo é um todo Segregacao ambiental e violéncia Evidéncia cartogratica da segregacao ambiental 10 20 2 31 39 43 49 54 58 61 63 72 73 74 83 85 Sumo SUMARIO 8 no municipio de Sao Paulo A guisa de conclusao: um alerta militante Parte IV: AS TESTEMUNHAS DA CIDADE OCULTA, ‘AS IMAGENS DA CIDADE OCULTA BIBLIOGRAFIA Suni 94 101 106 18 136 Dedico este livro aos que se empenham em democratizar a justica no Brasil. Em especial aos juristas e advogados: Dr. José Afonso da Silva Dr. Marcio Tomaz Bastos Dra. Sonia Rao Dr. Paulo Lomar Dr. Eurico de Andrade Azevedo Dr. Miguel Baldez e também a Associagao dos Juizes para a Democracia. INTRODUCAO As idéias aqui desenvolvidas tiveram origem na perplexidade causada pelas contradi¢des vividas tanto em minha militancia em movimentos populares urbanos quanto em meu estagio na administragdo municipal de Sao Paulo. Ha um profundo descolamento entre a ordem legal ¢ a cidade real. H4 um profundo desconhecimento social sobre a cidade concreta. Esse descolamento entre a concretude e sua representacao, com as conseqiientes praticas dai decorrentes, vio manifestar-se coti- dianamente tanto no universo informal como no cora¢ao do aparelho de Estado, grande promotor da ruptura aludida. £ intrigante perceber as estratégias desenvolvidas pelo Estado e pela sociedade para conviver com 0 ocultamento da cidade real, mas é no sistema jurfdico porém, a quem compete oficialmente garantir a justica e os direitos universais previstos na legislacao, que as contradigGes s4o mais profundas. © reconhecimento da “cidade partida’, da segregacao espacial, do aumento da pobreza, do apartheid social, j8 constituem um avanco para uma sociedade que ¢ tao alienada em relacdo a dimensao dos excluidos. A chamada “violéncia urbana” é uma manifestago daquilo que se procura tanto esconder, mas que extravasou seus espacos de confinacao. A representagao elaborada pelas camadas dominantes, da cidade hegeménica ou da cidade virtual, como eu a chamo aqui, esta sofrendo um sério revés com 0 aumento da violéncia. A concretude escapa pelas frestas da habil construgao. Mas, além dessa constatacao que nao evita uma abordagem dual, hd um ardil que exige reflexio e que se encontra nas estratégias elaboradas para apresentar a realidade diferente do que é. De 1975 a 1983 militei em movimentos reivindicatérios urbanos, na zona sul da cidade de Sao Paulo. A regiao de Capela do Socorro j estava formalmente protegida pela Lei de Protegao dos Mananciais, mas era ai que numerosos loteamentos clandestinos eram abertos a luz do dia ¢ lotes totalmente irregulares eram vendidos a precos compativeis, com o poder aquisitivo de uma populacao pobre, recém-chegada & cidade e empregada, na maior parte, nas indiistrias da regido. A ilega- lidade era acompanhada de baixissima qualidade urbanistica jé que 0 investimento na abertura do loteamento era o menor possivel, pratica- InrRoUGAO " 2 mente restrito & abertura das ruas e demarcagao dos lotes. Os movimen- tos de terra raramente guardavam alguma compatibilidade com o sitio ou as condicdes geotécnicas do terreno, contribuindo com as erosées, para comprometer a represa que abastecia a cidade de agua. A ausén- cia de servigos e infra-estrutura urbanos e as imensas distancias a serem percorridas tornavam a vida um grande sacrificio. Foi baseada no bind- mio loteamento clandestino e dnibus urbano que a periferia da cidade de Sao Paulo se expandiu horizontalmente nas décadas de 40, 50, 60¢ 70. Em raras oportunidades a cidade ilegal foi tomada como tema para a intervengao projetual na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Sao Paulo, na qual eu dava aulas desde 1974. Aalic- nacdo nao era alimentada apenas pelo ardil social (ou pela forca do regime militar, mas também pelo suporte representado por livros € revistas de arquitetura que informavam mais sobre as tendéncias uni versais (leia-se, dos paises centrais) do que sobre a realidade que é vizinha a universidade. A atividade de criacdo se referenciava a uma globalidade que entretanto ignorava a concretude cientifica ¢ 0s confli- tos presentes na producao e apropriagao do territ6rio proximo, apesar da boa inten¢ao de muitos. Nao foram apenas os setores elitistas ou conservadores da academia que ignoraram essa produgao gigantesca ¢ ilegal da periferia urbana, A fuga em relacao a realidade concreta gerou também uma producao intelectual abstrata e alienada também por muitos dos que fizeram uma leitura critica do capital imobilidrio e da renda imobilidria, A literatura estrangeira sobre instrumentos reguladiores do desenvolvimento urba- 10 foi inspiradora de farta producao intelectual e, 0 que é mais grave, também do planejamento oficial. A idealizacao da relacao cidade e sociedade e também da relagao Estado e sociedade foi responsdvel por imensa quantidade de Planos Diretores indcuos (mas com evidente papel ideolégico) e grande arsenal regulatério que foi aplicado apenas ao mercado imobilidrio legal ou a cidade hegeménica (Villaga, 1995). Esse fato iria tornar-se mais evidente durante o periodo em que fui res- Memtoroce Na ruin 99 cars ~ Eman Manica ponsavel pela politica de habitacdo e desenvolvimento urbano do mu- nicipio de Sao Paulo. Uma legislacao rigorosa e detalhista sobre 0 uso do solo urbano convive com um proceso anarquico e desastroso de ocupacao do solo, causador de dramas e tragédias a cada chuva que apresente intensidade pouco maior. A propria estrutura da Secretaria de Habitacao e Desenvolvimento Urbano é partida. A Superintendén- cia de Habitaco Popular convive com a banalizacao das tragédias motivadas pela ocupacao clandestina, pobre e descontrolada do solo: incéndios em corticos e favelas, desmoronamentos de encostas habita- das com precariedade, desabrigados de enchentes, despejados de ter- renos privados, epidemias por falta de saneamento, etc. Do outro lado, os departamentos da secretaria que se ocupam da cidade formal fazem andlise minuciosa e detalhista de cada projeto que solicita licenca para a construcao dentro da ordem legal. O proceso pode levar, freqiente- mente, mais de um ano em sua trajet6ria por intimeros departamentos municipais, onde zelosos técnicos irao fazer a andlise baseados em diversificada e abundante normatizacao, para depois dar ou ndo a au- torizacao para a construcdo. A fragmentacdo na divisdo de trabalho isolando cada departamento em seu mundo e a especializacao na frag- mentacao pelos técnicos faz parte da estratégia de sobrevivéncia dian- te de um conjunto (a soma das intervenes na cidade real) que no admite unidade. A cidade real nao passa de referéncia longinqua e abstrata, Uma das certezas que adquiri nesse periodo foi constatar que a privati- zacao da estrutura de administragao publica nao € praticada apenas Por interesses empresariais privados e pelos politicos profissionais que sio representantes do atraso. Parte dessa maquina ndo serve a ninguém sendo microinteresses sedimentados mediante a conquista de micropo- deres. Nao se trata do corporativismo moderno, mas de resquicios do arcaico que passa pelos privilégios pessoais. O rigor nunca alcancou as agées de controle geral urbanfstico, mas era uma regra quando se trata- va de detalhe, papel e gabinete. Num mesmo dia podfamos enfrentar conflitos como nao ter para onde levar uma dezena de familias retiradas de areas de risco (e era um ali- Innxo0ugho B * Alusto feita a expressio de Roberto Schwarz (Schwarz, 1973), dfinida ‘como a “combinacio amalucada de ‘normas prestgiosas da modesnidade ‘com relagbes sociais de base que discrepam muito delas. (Rev. Teoria © Debate, Sto Paulo, PT. Ano 7, n2 27, ez. 94-jan. 95) “ vio encontrar locais em outros barracos de favelas para que ficassem em seguranca) € conflitos advindos de um promotor imobilidrio que viu 0 inicio de sua obra atrasar meses porque a prefeitura cobrava a notago dos bebedouros (pequenos pontos portanto) na planta do shop- ping center, tal como exigia a legislacao. De um lado improviso, carén- cia de recursos diante da gigantesca demanda de problemas acumulados na cidade clandestina; de outro, rigor normativo e aco cartorial. Tudo debaixo do mesmo teto, no mesmo edificio de uma instituigao publica, mas separados por uma distancia infinita: 0 desconhecimento mituo. Abusca de compreender a l6gica das situagdes vividas (ou das “idéias, fora do lugar”)', cujos exemplos iremos abordar ao longo do texto, le- vou a um reencontro muito feliz com parte da producao intelectual brasileira que mereceria sem divida extravasar os limites estreitos da academia, para auxiliar a desvendar amplamente, democraticamente, a identidade da sociedade brasileira: Roberto Schwarz, Antonio Candi- do, Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira, Otavio lanni, José de Souza Martins, Maria Silvia de Carvalho Franco, entre outros. Certa- mente a lista € bem maior e se ndo a completo aqui € porque seria muito extensa. Como parte integrante de um processo que € capitalista, sem divida, e de uma sociedade de classes, relacdes calcadas no favor, no privilégio e na arbitrariedade caracterizam a formagao da sociedade brasileira. Mais do que uma convivéncia entre o atrasado e o modero, a evolu- 40 dos acontecimentos se da com o “desenvolvimento moderno do atraso”. Nao se trata, como nota Maria Silvia de C. Franco, de “dualida- de integrada”, mas sim de “unidade contraditéria” (Franco, 1969). A relacao calcada no favor constitui a nega¢ao da universalidade dos direitos (embora previstos na ordem legal) ou a negagao da cidadania e da dignidade. Ela esté na esséncia da confusdo entre a coisa publica e 08 negocios privados, na confusdo entre governo e Estado, na dificul- dade de abstragio do Estado (pelas camadas pobres) submetido a rela- bes pessoais. [MerRorous Wa PRFERA D0 CARAS ~ ERs MARicaTO Desvinculado da violéncia que sempre acompanhou a esfera produti- va, 0 favor pode encobri-lae até alimentar interpretagdes mais amenas sobre a sociedade brasileira (Schwarz, 1973). As caracteristicas do cres- cimento econdmico, entretanto, nao deixam duvidas. Ele ¢ profunda- mente concentrador. Concentrador de renda, de terra, de poder. Ele é sempre profundamente excludente. Nao se trata da exclusdo que atin- ge a Europa e os Estados Unidos no inicio da década de 70. O fordismo periférico que se inicia no Brasil, apés a segunda guerra por exemplo, se desenvolve com exclusao social, diferentemente do que acontecera Tos paises centrais. Trata-se da modernizacao com exclusao. Na primeira parte deste livro, um conjunto de dados e fatos, embora ‘ndo-sistematicos pretendem destacar a articulagao contraditéria entre norma e infracdo no espaco da metrépole brasileira. Uma leitura ou representacao alienada da cidade perpassa Estado e sociedade, orien- tando discurso e pratica, antagdnicos. Especula-se acerca das raizes de situacdo tao extraordinéria quanto habitual. Sao feitas referéncias a al- guns aspectos fundamentais que marcaram a formacdo da sociedade brasileira, em especial a emergéncia do trabalhador livre, sem, entre- tanto, uma preocupacao com a sistematizacao ou 0 aprofundamento historiografico. O periodo que vai de 1930 a 1980, caracterizado por intenso proceso de industrializagao e urbanizacao, com forte intervencao estatal na vida econémica e politica, mereceu algumas referéncias numéricas com a finalidade de evidenciar tanto 0 crescimento econdmico quanto a con- centracdo das riquezas, com ébvio reflexo na construgao das cidades. Cinco décadas de acentuado crescimento populacional urbano marca- do pela dinamica expressa no bindmio “crescimento e pobreza" resul- tardo numa cruel heranga para os anos 80. Nessa década ela sera agravada pelo fim do desenvolvimentismo e pela emergéncia de novo arranjo internacional, que acarretara a ampliacao da desigualdade. A politica urbana implementada pelo Estado autoritario, tecnocratico e centralizador que tem origem em 1964, expressa especialmente pela riagdo e gestéo do SFH/BNH (Sistema Financeiro da Habitacao e Ban- Inarc0uGh0 5 16 €o Nacional da Habitagio) e o impacto da Lei federal 6.766/79, de parcelamento do solo, pretendem mostrar o carater excludente das me- didas modernizantes de produgao do espago urbano. As caracteristicas do ambiente construido por uma sociedade marcada pela desigualdade e pela arbitrariedade nao poderiam negé-la. O para- doxo que articula legislacao, arbitrariedade e exclusao social é explo- rado na segunda parte do livro. Destaca-se que a ocupacao ilegal de terras 6 informalmente consentida (ou por vezes até incentivada) pelo Estado que entretanto nao admite o direito formal de acesso aterrae a cidade. Isso se da por conta da articulacao entre legislag’o, mercado e renda imobilidria, A ocupagao é consentida mesmo em areas de prote- ‘co ambiental, mas raramente em éreas valorizadas pelo mercado imo- biliario calcado em relagdes capitalistas. E.ao contexto do ardil que a exclusdo sera referenciada. £ a cidade ocul- ta, disfarcada e dissimulada que deverd emergir na parte final deste tra- balho. Nao ha preocupacao rigorosa com a historicidade dos dados durante todo 0 texto, mas ha pretensao de fundamentar uma leitura da metr6pole em sua esséncia, e também uma leitura mais circunstanciada do periodo pés-80 na ultima parte, quando as manifestacdes de violén- cia criminal evidenciam 0 que as camadas dominantes insistiram em esconder: a desastrosa construcao socioecoldgica, a gigantesca concen- traczio de miséria que resultou de um processo historico de ocupacao excludente e segregadora do solo urbano, Nos anos 80 a desigualdade se aprofunda no Brasil, mas ndo s6 aqui. Agora ela se manifesta também 1nos pafses centrais que abandonam a era do “consenso social”. Aempre- a e 0 mercado substituem o papel outrora atribuido a patria — todos se ajudarem mutuamente contra os concorrentes (Lipietz, 1989). Mas 0 impacto do novo arranjo internacional, que tudo subordina a l6gica do mercado, tem evidentemente efeitos diferenciados jé que, no Brasil, ele encontra um cenério de exclusdo que é historico. Em meados dos anos 90, a chamada violéncia urbana é um dos temas fundamentais que preocupa todas as camadas sociais. O espaco, oter- Fitério, o ambiente fisico s4o partes intrinsecas desse quadro, embora Merxorott Na PERERA DO CARTAISAO - ERMA MARCATO freqiientemente esquecido e ignorado. A preocupacao aqui foi destacar © espaco fisico ou ambiente construido como objeto e sujeito desse proceso, Mais do que outros territ6rios, as metrépoles apresentam com maior evidéncia, embora nao com exclusividade, os conflitos e as con- tradicoes aqui tratados. Por isso as idéias desenvolvidas vao referir-se a elas sem uma preocupacao de abranger a todas nos dados apresenta- dos, mas buscando referéncias paradigmaticas. Sdo Paulo sera a refe- réncia principal do trabalho por causa da disponibilidade de informacoes € por causa também das dimensdes dos conflitos que apresenta. Alguns mapas do municipio de Sao Paulo, realizados com dados esta- tisticos coletados em varias fontes, mostram até que ponto podem che- gar a desigualdade e a segregacao na cidade de economia mais dinamica do pais, Essa megaconstrucao, até certo ponto desconhecida (em suas reais dimensdes socioeconémicas), cobra hoje, por meio da violéncia social, 0 preco da abstraao e do desconhecimento que acompanha- ram seu crescimento, Ninguém melhor do que os moradores da cidade oculta para descrevé- la, Isso é feito por meio das letras dos raps dos Racionais MC, morado- res de um dos bairros mais violentos de Sdo Paulo. A visio dos que estio no interior do “caldeirdo”, que comegam a ter voz, constitu no- vidade que atrai multiddes de jovens macicamente negros, aos shows que 0 conjunto musical apresenta na periferia de Sao Paulo. Os aparta- dos constroem sua identidade. Um ensaio fotografico de Nair Benedito mostra as insubstituiveis ima- gens dos bairros citados na letra de Mano Braun (Domingo no Parque) e também dos bairros que ocupam lugar de destaque quando se trata de indicadores de analfabetismo, mortalidade infantil, nimero de ho- micidios, conforme mostram os mapas. A maior parte desses bairros se localizam na zona sul da cidade de Sdo Paulo. Na mesma regio que viu 0s primeiros movimentos populares urbanos da década de 70, mo- vimentos de luta por condigdes mais dignas de vida, mobilizarem-se desafiando o Regime Militar. lwroougko wv As idéias aqui apresentadas, embora restritas ao cenario brasileiro, pre tendem contribuir para os estudos que buscam elementos de unidade entre as cidades, e mais exatamente entre as metr6poles do capitalismo periférico. A insisténcia na especificidade do caso brasileiro no quer significar a negacao de caracteristicas que so universais no mundo capitalista (se € que é possivel definir um “mundo capitalista” & parte neste final de século), ou caracteristicas que sdo proprias da periferia do capitalismo, ou dos chamados NICs — New Industrialized Coun- ou mesmo dos paises latino-americanos. Reconhecer especifici- dades s6 devera contribuir para entender melhor o que dé unidade a determinado conjunto e evitar generalizacdes apressadas como fazem muitos dos autores que tentam teorizar sobre 0 urbano nos chamados paises do sul ou mercados emergentes, termos que esto na moda para denominar os paises periféricos. O recurso as numerosas citacées bibliograficas visam compensar a au- séncia de uma pesquisa de cardter historiografico e compensar tam- bem a utilizacao de tantos fatos extraidos da minha experiéncia empfrica, Particularmente na gestao da Sehab/Prefeitura de Sao Paulo. O auxilio buscado em tantos ¢ téo licidos pensadores talvez tenha sido a tnica forma de a autora adquirir seguranga necessaria para tdo graves afirma- Ges aqui feitas. Resta alertar que dois textos de minha autoria, publicados em outrar oportunidades, serviram de ponto de partida para este livro e foran integrados ao conjunto ora apresentado: 1. “O urbanismo na periferi do capitalismo: desenvolvimento da desigualdade e contravencao sis tematica’, foi publicado em uma coletanea organizada por Maria Flore Goncalves sob 0 titulo O novo Brasil urbano, impasse, dilemas, pers- pectiva. Porto Alegre: Editora Mercado Aberto, 1995, e 2. “Exclusao social e reforma urbana”, que faz parte de um némero especial da re- vista Proposta, n° 62, editada pela Fase, Rio de Janeiro, em setembro de 1994. ‘Apesar das dimensdes modestas deste livro os agradecimentos envol- vern um grande ntimero de entidades: Proaim— Programa de Aprimo- [METROPOLE NA PRE 00 CARTALSMO - Ex MACAO ramento das Informagées de Mortalidade no Municfpio de Sdo Paulo/ Servico Funerario; Seade — Fundagao Sistema Estadual de Anilise de Dados; Fipe — Fundacao Instituto de Pesquisas Econémicas da FEA- USP; Cesad — Laboratorio de Dados/FAUUSP; Sempla — Secretaria Municipal de Planejamento do Municipio de Sao Paulo; NEV-USP — Nicleo de Estudos da Violéncia/USP; IBGE — Instituto de Geografia e Estatistica; CAP — Coordenadoria de Analise e Planejamento/Secreta- ria de Seguranga Publica do Estado de Sao Paulo; Instituto Lidas. Agradego também aos funciondrios da FAUUSP Elizabeth Aparecida Casemiro e Claudio Faria Sarti; aos alunos Marcio Luiz e Cid Blanco Junior; a historiadora Vera Lcia Vieira; ao urbanista Flavio Villaga e a0 cientista social Ricardo Neder. Erminia Maricato Sao Paulo, 1995 Inmoougio 19 Parte I URBANISMO NA PERIFERIA DO CAPITALISMO: DESENVOLVIMENTO DA DESIGUALDADE E CONTRAVENCAO SISTEMATICA Fatos da cidade controversa © uso ilegal do solo e a ilegalidade das edificagdes em meio urbano atingem mais de 50% das construcdes nas grandes cidades brasileiras, se considerarmos as legislacdes de uso e ocupagao do solo, zonea- mento, parcelamento do solo ¢ edificacao®. O profundo descolamento entre a norma e o fato suscitam estranheza a qualquer analista diante deste concreto ignorado. A pretensdo da cidadania burguesa é de que o Estado se organize para cumprir a norma e puna os que a contrariam. Quando, porém, 0 contrério predomina e a impunidade ou a punigao aleatéria se generaliza, estabelece-se um “faz-de-conta” geral das insti- tuigdes que se estruturam baseadas numa legislacao que se diz regula- mentadora da globalidade urbana. Aconstrugao ideolégica hegeménica da representa¢ao do urbano pro- cura ignorar a articulagao contraditéria entre norma e infracdo. Essa conceituacao que filtra, mediando, a realidade concreta, perpassa 0 Estado e a sociedade incluindo-se af intelectuais e técnicos do planeja- mento urbano. Antes de buscar o nexo da unidade do conjunto fratu- rado e suas possiveis raizes, vamos procurar elucidar o fato: sua ambigiiidade, suas contradigdes, seu descolamento, ou seja, vamos buscar esclarecer a fratura, que esta na base da relacdo tensa entre o urbano real e 0 urbano virtual, mesmo que correndo risco de lancar mo, temporariamente, da abordagem dualista, Comecemos pela re- presentacao que a maquina governamental municipal faz do urbano, cujo controle do desenvolvimento é de sua competéncia, de acordo com a Constituigao brasileira. Grande parte das dreas urbanas ocupadas nao existe nos cadastros municipais. No municipio de So Paulo, cidade-nticleo da area metro- politana, havia em 1989 aproximadamente 30.000 ruas ilegais que, portanto, nao tinham nome, o que nao dava dieito aos moradores (em sua maioria de loteamentos ilegais) de terem sequer enderego. Em 1990 moravam nos loteamentos ilegais do municipio de Sdo Paulo 2,4 mi- Unwrosio NA PRR DO CATALIN 2 Essa afirmagSo se basela no nosso conhecimento empirico adquirida profissionalmente em diversas prefeituras. Em relac3o ao municipio d Sio Paulo, ver: cadastio de favelas em Habi/Sehab, cadastro de loteamentos Ilegais no ResoloSehab, previsdes sob populago moradora de cortgos na Sempla,estimativa sobre iméveisilegai CCasefSehab. Estima-se que a ilegalidad anja 70% dos iméveis do municipio. 2 2 Ihdes de pessoas de acordo com estimativas do Resolo/Sehab. Apesar da importancia da a¢ao do municipio na regularizacao de loteamentos (ela é condicao para o registro legal do imével), a gestio municipal do periodo 1985/88 fechou o drgao especifico que tinha essa competén- cia e desinteressou-se pelo assunto causando desorganizagao de cadastro de 2.600 processos de regularizagao de loteamentos em an- damento na Prefeitura. Essa cidade ilegal inexiste, freqiientemente, para o planejamento urba- no oficial. Embora as grandes cidades brasileiras contem com respeité- vel ntimero de profissionais envolvidos com o tema, ndo raramente estes trabalham com uma realidade virtual mediante representacoes nos gabinetes, longe do territério sem lei, sem seguranca ambiental, sem saneamento, constituido pelas areas de moradias pobres. A pratica do planejamento urbano oficial tem irresistivel atracao pela regulamentacao do mercado imobiliario por meio de leis detalhadas de uso do solo e zoneamento (Giaquinto, 1995). O fascinio exercido pela proposta do “solo criado” nos debates que envolveram até mes- mo pensadores de esquerda (durante os anos 1970 a 1980 0 assunto quase que monopolizou os debates académicos, influenciados por intelectuais franceses) contrasta com o pouco acumulo nas andlises € busca de solugdes para os graves conilitos entre a propriedade priva- da e a ocupacao ou parcelamento ilegal do solo urbano, ou seja, a exclusdo, a segregacao territorial que se da por meio das relacdes juridicas. Os Planos Diretores — PDs tém-se prestado a busca idealizadora da unidade e da totalidade do urbano tao ao gosto do urbanismo moder- nista. A incorporagao do conceito pés-moderno de fragmentacao, va- lorizando o desenho urbano, nao implica, necessariamente, a visio alienada do planejamento oficial, encarar a cidade real que exige in- tervencao emergencial, menos generalizante e abstrata. Para grandes areas do territ6rio urbano essa regulamentacao nada significa. Gestéo € nao simples regulamentacao, operacdo, aco administrativa e nao apenas planejamento de gabinete, é 0 caminho para a prevengao das (MetROPOLE WA RIERA D0 CAPTALSMO - Extn MaRicaTO tragédias cotidianas que vitimam moradores dos morros e encostas que deslizam a cada chuva, ou moradores das beiras dos cérregos atingi- dos por enchentes, ou bairros inteiros atingidos por epidemias. Enotivel o distanciamento entre quem pensa a cidade nos executivos municipais e quem exerce o controle urbanistico. A aprovacao de plantas € 0 poder de policia sobre uso e ocupacao do solo esto diluidos em uma estrutura fragmentada que favorece, numa ponta, a a¢ao do pla- nejamento alienado e, na outra, a ago dos “pragmaticos” fiscais, cuja pratica € bastante mediada pela corrupcao (Maricato, 1993). ‘OCédigo de Obras de Sao Paulo (Lei 8.266), vigente de 1975 até 1992, fixava, por exemplo, exigéncias em relacao a dimensao de uma sala de espera para uma cabeleireira que se instalasse em qualquer bairro da cidade (desde que a lei do zoneamento © permitisse, ¢ claro). Fixava ainda a espessura das paredes externas e intemnas ou do lastro para 0 piso nas edificagdes. Para mudar uma porta de lugar ou executar pe- uenas reformas no interior da residéncia o morador deveria abrir pro- cesso € solicitar permissao a Prefeitura, respeitando todos os procedimentos formais (e informais) que costuma caracterizar a obten- (20 de alvards para edificios. A Lei de Andincios do Municipio de Sao Paulo proibe, por exemplo, andincios em empenas cegas de edificios (parede continua, sem abertu- ra de janelas), mas eles estéo presentes por toda a cidade. Alegislagao detalhista e “rigorosa” contribui para a pratica de corrup- Gio e constitui exemplo paradigmético da contradi¢ao entre a cidade dodireito e a cidade do fato. Pois em um ambiente em que “a infracao, além de infragao é norma e a norma além de norma é infracéo, como se deveria esperar de uma Contravencao sistematica”, qual é 0 papel das leis que pretendem regulamentar procedimentos detalhados do universo individual do interior da moradia, quando a maior parte das moradias e do contexto urbano constituem imenso universo clandesti- no que ignora normas mais gerais e basicas?? (Unnioasig MA PRR 00 CATAL 2 Durante 0 govern de Luiza Erundina, ‘quando atingidos por alguma medida Sancatlra, os agentes vistres de $30 Paulo (iscais manicipas de uso € cocupacio do sole, se vingavam aplcando a lei “indiscriminadamente”, multando quisquer moradores da cidade legal e jogendo-os contra a prefeitra. © universo dome gal 6 aioe do que o legal nas metpoles brasileicas como jd eegistamos.£ por isso que utllaamos aqui a expresso de Roberto Schwarz — "contravencso Sistematica” — 1a fase consruida por ‘Arantes. A expresso est fora do contest (Schwarz se rela 9 ete brasileira promotora do tfico de afecanos), mas é bastante adequada 30 Uubanismo perifrico, Schwarz, 1991; Arantes, 1992. 23 © Legislativo também tira partido dessa situagdo. Em vez de buscar adequar a legislacao a realidade ou a realidade a lei, podemos afirmar que, mais como regra do que como excecdo, parlamentares se apro- veitam desse descolamento entre norma e conduta na produgao e uso do espaco, para “beneficiar” vastas camadas da populacdo com anis- tias periddicas para os iméveis ilegais. Alias, 0 assentamento ilegal re- sidencial constitui inesgotavel fonte de clientelismo politico que é historicamente praticado no Brasil pelo Legislativo e também pelo Exe- cutive Se a ambigilidade e a contradi¢ao marcam profundamente a aco do Executivo e do Legislativo, o que nao dizer do Judiciario? O que nao dizer dos sistemas jurfdicos encarregados de assegurar os direitos pre- vistos nas leis? A criacdo de leis historicamente articuladas a formacao do mercado imobilidrio e os conflitos que emergem na aplicagao dessa legislacao as areas ocupadas ilegalmente, com especial destaque & aco contradi- toria do Judicidrio, sao relatados em um estudo elaborado por Falco Neto & Almeida Souza (1985), cuja analise empirica € centrada na cidade do Recife, © Recife apresenta aproximadamente 50% de sua popula¢ao vivendo em mocambos desde 0 inicio do século XX até seu final. Segundo o estudo citado, em 1914 essa proporgao era 43% e em 1960, 60%. Em 1988 essa taxa era de aproximadamente 50% segundo outra fonte: 0 projeto de lei do Plano Diretor, enviado a Camara Municipal nessa data. Recife é a metr6pole brasileira que apresenta maior proporcao de moradores de favelas em sua populagdo. Vamos acompanhar o relato do referido estudo: As leis do Império, as ordenagGes, os alvards, tinham validade apenas para as transacdes com os sobrados. As negociacdes que envolviam os mocambos eram regidas por usos, normas e costumes néo formaliza- dos pelo Estado. Os dois sistemas conviviam na produgio do espaco social da cidade do Recife. Merncroxe Na FER 90 CARTISAO - Eta MARCO Enquanto a cidade manteve espaco fisico dispontvel no seu interior, 0 desenvolvimento urbano permitiu uma convivéncia contraditéria entre o direito (de fato) de moradia das populacdes de pouco ou nenhum valor econémico e o direito (legal) de propriedade, que regulava as transagdes nas éreas mais valorizadas (p. 77). Quando essa condicao se esgotou 0 conflito tornou-se inevitavel, com ocorréncia de grande nimero de ocupacoes de terra, fruto de acdes coletivas que faziam surgir novas favelas da noite para o dia. Existe uma diferenga essencial entre esse tipo de agao (que no mesmo perio- do, meados dos anos 70 em diante, ocorreram nas principais cidades brasileiras) e a ocupacao lenta e tradicional que marcou o surgimento das favelas ou das periferias urbanas ilegais durante décadas. Diante dos conflitos relativos & ocupagao de terra, como reagiu o Judi- ciério? Continuemos com o relato sobre os mocambos do Recife: Ao contrario do que se pode pensar, os conflitos dela resultantes rara- mente foram solucionados por meio de violéncia ilegal de proprieté- rios ou da policia, ou pela aplicagao judicial do Codigo Civil e da legislacao pertinente. Na imensa maioria dos casos, a solu¢ao foi nego- ciada: dentro, fora, ou 4 margem da lei (p. 77). ‘Aquestdo ganha relevancia, segundo os autores, porque nao setrata de um ou outro caso, mas inimeros casos cujas negociacdes envolveram, durante anos, os governos estadual, municipal e o Poder Judiciario. Nao faltou até mesmo, no relato, 0 caso de um juiz que sentenciou as partes s6 julgar 0 processo quando estas entrassem em acordo. E 0s autores concluem: (..) diante do agravamento do conflito urbano, o Poder Judiciério tem aparecido como instancia onde se tenta nao sé fazer cumprir o direito de propriedade, como também nao fazé-lo cumprir (p. 77). Essa impressdo de que o Judiciario age de modo “‘lexivel” no que se refere a aplicacao da lei aos casos de ocupagGes de terras urbanas de- Urea NA PERF D0 CARTALSHO 235 “+ Em alguns casos 05 jutzes exigiam dos proprietirios tempo para a busca de alternativas, caminhoes para mudangas € ainda cesta bésica de alimentos para o ‘ocupantes. N2o fol incomum encontrar comandantes de policia, além de juzes, preecupados e desejosos que uma solucio fosse encontrada antes da ago de despejo, sobretudo depois do confito da “Vila Socialista", no ‘municipio de Diadema, em 1990, cuja ‘eintegracio de posse pedida pelo overno do estado transormou-se em uum conflito armado com a ocorréncia de uma morte vitiosfeidos, entre 0 ‘quais estava um vereador que perdew uma das mas, 26 saparece diante de outros relatos, os quais apontam para outras con: clusdes. Durante os anos 80 acirrados conflitos na disputa pela terra urbana suscitaram diferentes reagdes dos executivos ou judiciarios. Em Sao Paulo pudemos participar (como governo) de negociacées entre ocupantes e proprietarios, legitimadas por juizes sensiveis & possibili- dade de ocorréncia de conflitos violentos nos despejos executados por ordem judicial’. Outros casos, entretanto, tomaram rumos diferentes. Durante uma agao de despejo que teve lugar na zona leste de Sao Pau- lo, um trator contrataclo pelo proprietario do terreno colocou abaixo casas de alvenarias que ainda abrigavam moradores no seu interior (pessoas idosas e criancas neste caso). Essa a¢do foi acompanhada (as- sistida) por forga policial. Diante da esdrixula situagao na qual o proprio Judiciario aplica ou nao a leie por vezes, em vez de aplica-la, propde a negociacao (na methor das hipéteses), surge uma indagacao: afinal, qual é o critério de aplica- ¢40 da lei? Voltamos a situacao apontada inicialmente: unidade articu- lada entre norma e infracao abre espaco para a subjetividade, 0 clientelismo, o favor, a arbitrariedade. A decisao judicial é socialmente muito valorizada nessa situacdo. A lei pode ser aplicada ou nao, de- pende de cada caso. Ela esta a mao para ser usada ou ndo. E além dos aspectos apontados, ela cumpre seu papel em relacdo ao mercado imo- biliario capitalista formal, restrito e concentrado. Enquanto os iméveis nao tém valor como mercadoria, ou tém valor ittis6rio, a ocupacao ilegal se desenvolve sem interferéncia do Estado, A partir do momento em que os iméveis adquirem valor de mercado (hegeménico) por sua localizacao, as relagdes passam a ser regidas pela legislacao e pelo direito oficial. E 0 que se depreende dos dados historicos e da experiéncia empirica atual. A lei do mercado € mais efetiva do que a norma legal. Deixemos momentaneamente a esfera do Estado em sua relacio como urbano para verificar qual é a representagao da cidade que predomina em certos setores da sociedade. (MerRoPOUr a merenn D0 cams - Een MaRicaro O desconhecimento da cidade real pelas classes médias e dominantes da sociedade é reforcado pelo seu confinamento a uma drea de circu- lacdo restrita pelas “ilhas de primeiro mundo”. A concentragao de in fra-estrutura € equipamentos urbanos aliada ao mau funcionamento dos transportes publicos vao determinar a ocupacao densa da cidade hegeménica. Esses circuitos fornecem a ilusdo de um espaco relativa- mente homogéneo, contando com comércio e servigos requintados. Nao séo apenas a estrutura administrativa municipal, os cadastros ur- banos e 0 orcamento puiblico que se organizam em virtude desse espa- ¢0 restrito. Uma imprensa dedicada ao “estilo de vida” ai existente reforca a idéia predominante que toma o global pela centralidade oficial Entre 1989 e 1992, os empresrios imobilidrios reunidos em torno de seu sindicato, 0 Secovi, se opuseram a aprovacao do projeto de lei relativo a regularizacao fundiaria de favelas em Sao Paulo, proposto pela Prefeitura e modificado por vereadores da Camara Municipal em negociacdo com os movimentos de favelados. Suas idéias foram ex- presses ra revista do Secovi (sobretudo em dois artigos publicados no ano de 1992). Neles, empresérios imobiliarios propunham a remocao das favelas de areas publicas e a devolugao dessas dreas a0 uso puibli- £0. Uma posicao pretensamente correta — incorporar ao patriménio pablico éreas ocupadas privadamente por moradias — revela o desco- nhecimento da impossibilidade de aplicar tal medida a uma cidade na qual quase 20% da populagao, ou mais de um milhao e meio de pes- soas, mora em favelas A populacao favelada tem crescido a taxas muito maiores que a popu- lacdo da cidade como um todo. No inicio da década de 70, menos de 1% da populacao do municipio morava em favelas. Em 1987 essa taxa era de 8% (Shab, 1987). Em 1993 levantamento da Fipe resulta em uma taxa de 19,4%. O crescimento de favelas foi espetacular em rela- Gao & populacao total do municipio de Sao Paulo, nas décadas de 70, 80, e mantém aumento progressivo nos anos 90. Durante esse periodo ‘ou mais exatamente de 69 a 89 a Prefeitura promoveu a construcao de aproximadamente 97.000 unidades de habitacdo pela Cohab-SP, ou seja, durante vinte anos a Prefeitura, contando com recursos federais, Ursroaso nn PRR 60 CARTALIMO a7 28 hoje escassos, construiu moradias para um ntimero equivalente a apro- ximadamente metade da populagio moradora de favelas em 1987. Ela nao conseguiu sequer frear 0 crescimento das favelas quanto mais eli- miné-las. (Sem contar 0 crescimento de cortigos e adensamento dos loteamentos da periferia.) Certamente algumas razGes levaram os representantes do Secovi aessa atitude, jé que muitos dos terrenos ocupados por favelas estao situados no niicleo hegeménico, pressionando para baixo o valor dos iméveis do entorno. Muito possivelmente eles ndo estavam referindo-se a todas as favelas do municipio, mas apenas as que estavam situadas na 4rea eleita como o novo “filé-mignon’ do capital imobilidrio em Sao Paulo, situadas nos arredores do rio Pinheiros. O empenho da gestao do pre- feito Paulo Maluf, agindo em parceria com empreiteiras e demais em- presarios da regiao, em retirar ou dar nova fachada as favelas localizadas, exatamente nessas areas, durante 0 ano de 1995 € no inicio de 1996, mostram que nao se tratou de simples coincidéncia ou necessidade técnica relacionada as obras vidrias (Fix, 1996). As politicas saneadoras que, a julgar pelos discursos e exposigao de motivos, se destinavam a resolver problemas sociais de moradores de favelas e corticos, no Brasil, se ocuparam concretamente, desde 0 co- meco do século XX, em retira-los das areas mais valorizadas pelo mer- cado imobilidrio, sem nunca apresentar nenhuma eficacia em relacao A questo social. Foi assim nas reformas urbanas higienistas do inicio da Repablica, foi assim durante 0 populismo varguista e foi assim du- rante 0 regime militar (Sevcenko, 1993; Vaz, 1994; Barboza, 1995, Maricato, 1995). Mas, além do interesse econdmico, esta presente tam- bém boa dose de desinformacao sobre a dimensdo da miséria urbana e as condi¢des de habitago. Se a exclusdo social é omitida no discurso utilizado € porque a auséncia de informagbes na chamada opiniao pa- blica permite a mistificagao. Arepresentagao que muitas entidades ambientalistas, situadas em opo- sigao ao capital imobilidrio fazem da cidade, revela também notivel desinformacao. MeTROPOLE NA PRFERA 00 CARTS ERAN, MABICATO Por ocasiao do Tribunal das Aguas, encontro promovido em 17/11/90, pela ativa Apedema — Assembléia Permanente de Entidades em Defe- sa do Meio Ambiente do Estado de Sdo Paulo, que discutiu 0 conflito entre habitago e mananciais, diversas entidades ambientalistas reivin- dicavam a remo¢ao de populagao que habita a area da bacia da repre- sa de Guarapiranga. A regio foi ocupada por loteamentos clandestinos durante a vigencia da Lei Estadual de Protec dos Mananciais, promulgada em 1975. Crescentemente ocupada por trabalhadores pobres que nao contam com alternativas no mercado privado legal ou nas politicas piblicas, contando com a conivéncia da fiscaliza¢ao municipal e estadual, au- sentes, a regido apresentava o maior indice de crescimento populacio- nal do municipio de $a0 Paulo, no final dos anos 80 (8,88% a.a. no Subdistrito de Parelheiros — Fonte Seade). Em 1990 a Prefeitura de Séo Paulo procurou tracar uma estratégia para, antes de mais nada, diminuir progressivamente a taxa de ocupa¢ao da bacia mediante fiscalizacao integrada com o governo estadual. Em se- Buida, como parte do programa de saneamento e recuperago ambien- tal da bacia, buscou-se definir 0 saneamento e urbanizagao das reas de ocupacao jé consolidadas, removendo apenas os domicilios indis- pensveis para o saneamento ambiental, apontados em levantamento técnico, para depois colocar em pratica um plano de desenvolvimento sustentavel?. Nao foram raros os representantes de entidades ambienta- listas que se colocaram contrarios a urbanizacio e regularizacao das areas ocupadas exigindo a remocao da populacao de um modo geral Certamente havia uma desinformacao sobre a dimensao da populagao moradora na area da bacia, ou entéo despreparo a respeito do que significa remover aproximadamente 600.000 pessoas de seu lugar de moradia, em termos sociais e econdmicos. Muitos dos que defendiam essa proposta argumentavam que era necessario cumprir a lei, sem aprofundar muito a discussao sobre os aspectos que a impediam de ser cumprida, A defesa de propostas formais inviaveis, que abstraem a base social, Unseen RETR 00 CAMA * Ver a respeito 0 Programa de Saneamento Ambiental da Bacia de Guarapiranga, elaborado sob a coordenacio da Secretaria de Energia e Saneamento do govero estadual de S30 Paulo, com a partcipacto da Sehab/ PMP. 29 30 econdmica e fisica a qual se referem, nao pode ser generalizada a cha- mada militancia ecol6gica. Podemos afirmar, entretanto, sem temer exageros, que a abstracdo em relacdo a realidade urbana brasileira, que esta presente em toda a sociedade, esta também fortemente pre- sente nas entidades ecoldgicas que, embora reconhecendo os males de uma concentracao demografica considerada “excessiva”, desconhece a real dimensdo da ocupagao andrquica do solo ¢ as contradigées que sio inerentes a esse proceso. Esse “desconhecimento” da realidade proxima é acompanhado de uma construcao ideol6gica da representa- Gao sobre 0 urbano, que repete a marca das “idéias fora do lugar”, também entre muitas das entidades ambientalistas, atrasando a urgente e necessaria defesa do meio ambiente. Toda temporada de chuvas é acompanhada anualmente por tragédias urbanas no Brasil. Enchentes e desmoronamentos com mortes fazem parte do cotidiano da populacao pobre que habita as grandes cidades A midia repete continuamente acontecimentos desse tipo, sem fazer, entretanto, nenhuma referéncia ao processo anarquico de uso ¢ ocupa- 40 do solo. A auséncia do saneamento basico 6 o fator principal da disseminacao de epidemias. A rede hidrica e os mananciais transfor mam-se em depésitos de esgotos comprometendo a captacio de agua. Além das conseqiiéncias que sao percebidas, nao existe a consciéncia social sobre o fio que une esses fatos: a dimensao da tragédia urbana brasileira, A violéncia que eclodiu a partir dos anos 80, nas metrépoles brasilei- ras, com mais visibilidade na cidade do Rio de Janeiro, é que finalmen- te tem atraido atencao para a imensa massa de excluidos do mercado de trabalho e do mercado de consumo regular, além de excluida dos servigos ¢ infra-estrutura urbanos. © desempenho recessivo da econo- mia brasileira durante os anos 80, o aumento da pobreza, esto mos- trando aos setores privilegiados da sociedade que nao ha condominio fechado, seguranca privada, dispositivo de seguranca, edge cities, zo- neamentos segregados e demais normas urbanisticas, que a protejam da realidade concreta, IMETRCPOLE NA PERERA D0 CARAS - ERMINA MARIO Os movimentos urbanos, mais frequentes e crescentes a partir de mea- dos dos anos 70, também contribuiram bastante para revelar a ponta do iceberg (dimensao da pobreza urbana), porém, fora a ocupacao de terras privadas que acarreta conflitos envolvendo proprietarios e Esta- do, a violencia urbana contida nos assaltos, roubos, chacinas tem sido mais eficaz para trazer a tona essa realidade de exclusio. Raizes da ordem invertida: trabalho e terra (..)insistiremos ainda um pouco na ambivaléncia ideolégica das elites brasileiras, um verdadeiro destivn>. Estas se queriam parte do Ocidente progressista e culto, naquela altura jé francamente burgués (a norma), sem prejuizo de serem, na pratica, e com igual autenticidade, membro beneficiério do Gitimo ou peniiltimo grande sistema escravocrata do Ocidente (a infragdo). Ora, haveria problemas em figurar simultanea- ‘mente como escravista ¢, individuo esclarecido? (Schwarz, 1990, p. 4)). A evolucao urbana no Brasil contrariou a expectativa de muitos, da superacao do atraso, do arcaico e da marginalidade, pelo moderno capitalista. O processo de urbanizacao, acelerado e concentrado, mar- cado pelo “desenvolvimento modemo do atraso”, cobrou, a partir dos anos 80, apés poucas décadas de intenso crescimento econdmico do pais, um alto preco, mediante a predaco ao meio ambiente, baixa qualidade de vida, gigantesca miséria social e seu corolério, a violén- cia, O desenvolvimento urbano desigual em vez de eliminar a heranga do atraso, reproduziu-a e deu-Ihe novas conformagées. Segundo Martins, (..) 0 capitalismo na sua expansdo, ndo s6 redefine antigas relacées, subordinando-as 4 reproducao do capital, mas também engenda rela- 6es nao capitalistas igual e contraditoriamente necessarias a essa re- producao (Martins, 1979, p. 19). Unuaesio Na PUR D0 CARTALIMO a +05 mesmos efeitos dinamicos do padrdo dependente de moderizagso acarretam a necessidade da perssténcia fda revitalizagio de dinamismos que 130 sio especficamente ‘modemos’, cembora sejam essencias, em graus vatiiveis, 3 eficécia dos fins visados através da modernizacio dependente, Isto quer dizer que a modernizaci0 processa-se de forma segmentada © segundo riimos que requerem a fusko do ‘modemo’ com 0 ‘antigo’ ou, entéo, do ‘enoderno’ com 0 ‘arcaico’, operando-se ‘que se poderia descrever como a ‘modernizagso do arcaicc’ ea simultinea ‘arcaizacio do moderna" (Fernandes, 1977, 9. 210), 2 A reprodugao do atraso pela moderniza¢ao, ou como tembra Florestan Fernandes, a “modernizagao do arcaico” que é simultanea a “arcaiza- 40 do modemo”, constitui marca do capitalismo periférico que acaba por Ihe conferir caracteristicas proprias (Femandes, 1977)*. A compreensao de que os paises capitalistas chamados de centrais so como sao porque o proceso de acumulagao € global (e no final do século XX esse fato é muito mais evidente, nao deve impedir a busca das especificidades que caracterizam 0 capitalismo dito perifé- rico. A relacao de dependéncia é biunivoca mas alguns ganham mais com ela. ‘Aambigitidade foi a marca da sociedade colonial. A producao na Co- lonia nao foi pré-capitalista e nem feudal ja que combinava producao para subsisténcia e produgao para o mercado internacional. Isto é, a produgao colonial era capitalista sem ser. O produtor colonial no era burgués e nem senhor feudal. Aemergéncia do trabalhador livre em substituicao a mao-de-obra es- crava nao implicou trabalho assalariado, e aqui novamente as rela- {G6es nao sio definidas como capitalistas apesar de fazerem parte do proceso de acumulacao de capital (Martins, 1979). Relacdes basea- das no mando, na dominacao pessoal e no favor, sobreviviam (e ain- da sobrevivem) num mundo em que se afirmavam os direitos civis: igualdade perante a lei, direitos individuais, liberdade de expresso etc. Assim a ligacao do Pats & ordem revolucionada pelo capital e das liber- dades civis, ndo s6 ndo mudaram os modos atrasados de produzir, como 05 confirmava e promovia na pratica, fundando neles uma evolugao com pressupostos modernos (...) (Schwarz, 1991, p. 37). A convivéncia do ideério liberal europeu com relagées de trabalho que 9 contradiziam marcou a formacao ideolégica e moral da sociedade brasileira, segundo Schwarz. Citando Felipe de Alencastro, aquele au- tor lembra que, durante a negociacao para o reconhecimento diploma- IMaerorous ware 90 CARAS - ERM Macro lico da Independéncia, o novo governo brasileiro buscando legitimar- se prometia, externamente, a abolicao e intemamente a continuidade da escravidao. Ser abolicionista ou nao, dependia da ocasido. No mais das vezes era-se as duas coisas. ‘As autoridades, apesar de eventuais declaracées em contrario, faziam vista grossa a pirataria que facultava o transporte de carne humana, formalmente ilegal desde o acordo com a Inglaterra em 1826 ¢ a lei regencial de 7 de novembro de 1831 (Bosi, 1992, p. 196). Entre 1830 e 1850, entraram no pais, segundo Bosi, 700.000 africanos. O contetido do liberalismo brasileiro se definia no plano econdmico por: comércio, producao escravista, compra de terras (apés 1850). Eno plano politico por: eleigdes indiretas e censitarias. Tratava-se do libera- lismo dos possuidores, ou do respeito 2 individualidade e autonomia do cidadao proprietario. Um liberalismo adaptado as “circunstancias” eas “peculiaridades” nacionais (Bosi, 1992). O surgimento da burgue- sia brasileira nao se faz em oposi¢ao aos privilégios do sistema colo- nial, mas sim em oposi¢ao ao “jugo colonial”. Com a destrui¢ao da ordenacao juridico politica deste, os demais privilégios ndo s6 subsis- tiram, mas foram até reforgados (Fernandes, 1977). ‘A forma como se deu a passagem do Brasil-colénia para 0 pais inde- pendente, o final da escravidao, a substituigdo dos escravos pela forca de trabalho imigrante européia e a emergéncia do trabalhador livre so de fundamental importancia para entender o processo de industrializa- go e a formacao do proletariado urbano. Caio Prado lembra que a produgao escravista afastou 0 trabalhador livre da atividade produtiva: Quem nao fosse escravo e nao pudesse ser senhor, era um elemento desajustado que nao podia se entrosar normalmente no organismo eco- nomico e social do pais (Prado, 1956, p. 203). (Unaroaso na run 00 C¥RTALSHO 3B a” De uma populagao de trés milhdes de pessoas residentes no Brasil do século XVIII, quase a metade estava na condicao de livre ou liberto, a qual, praticamente excluida da producao organizada, vivendo da cul- tura de subsisténcia ou de tarefas ocasionais (embora cumprindo papel importante para a dinamica econémica), era tida pelo pensamento pre- dominante como composta de vadios, indolentes e imprestaveis para 0 trabalho (Franco, 1969). A maneira como os senhores tratavam o cativo, passivel de ser explora- do até os limites de sua sobrevivéncia, influenciava tanto a percepcao que os livres tinham acerca do trabalho disciplinado e regular como a percepcao que os proprietérios faziam da utilizacao da mao-de-obra livre (Kowarick, 1994, p. 42) Para o trabalhador livre, o trabalho organizado nessas condigées era visto como degradante. Allibertagao dos escravos se consumou apés muitas resisténcias, quan- do o processo de sua substituicao pelo trabalhador imigrante europeu j@ estava em curso, por um caminho que tentou, novamente, marginali- zar 0 trabalhador brasileiro da produgao organizada. No limiar da Reptblica, parte da forca de trabalho fabril era escrava e 68 trabalhadores assalariados recebiam parcela da remuneracéo em espécie (Reis, 1994). Essa pratica fez parte da relacao dos fazendeiros com as primeiras levas de trabalhadores imigrantes. Ela sobrevive ain- da apés 1930, especialmente no campo, nao atingido pela regulamen- tagio das relacdes de trabalho promulgadas em 1935. No final do século XX, 0 pagamento em espécie e, o que é mais grave, o trabalho escravo ainda s4o encontraveis no campo brasileiro. ‘A questo fundisria teve papel central em todo esse processo. Se antes de 1850 a terra nao exigia “cautelas juridicas” nem da Coroa portuguesa e nem do Império brasileiro, sendo a ocupacao ou posse praticas legitimas para adquirir a propriedade, apés essa data o Estado METROPOXE NA PORERIA DO CARTALSWO - ER MARICATO passa a regular o acesso a terra. Antes de 1850, “a terra era praticamen te destituida de valor” (auséncia de mercado imobilidrio e abundancia de terras devolutas), ao passo que o escravo, sim, era mercadoria que contava entre os bens do seu proprietario, ndo como capital, mas como renda capitalista (Martins, 1979). Aterra nao tinha importancia econémica sem os escravos, que, inde- pendentes da terra, eram valiosos, utilizados também como objeto de penhores e hipotecas. Hé uma perfeita articulagao entre o processo de extingao do cativeiro do homem eo processo subseqiiente de escravizagao da terra (Baldez, 1987). Oano de 1850 é marcado pelo fim do trafico de escravos e pela Lei de Tetras n.° 601, de 18 de setembro. Nao é por coincidéncia que as duas leis s0 promulgadas com uma semana de tempo entre uma e outra. De acordo com a lei, as terras devolutas poderiam ser adquiridas apenas mediante compra e venda, o que afastava a possibilidade de trabalha- dores sem recursos tornarem-se proprietarios. Dessa forma garantia-se a sujeicao do trabalhador “livre” aos postos de trabalho, antes ocupa- dos por escravos (Martins, 1979; Baldez, 1987). O proceso de definigio da terra como mercadoria, que caminhou pa- ralelamente ao processo da emergéncia do trabalhador livre, foi mar- cado, como este, por muitos conflitos, como mostra Roberto Smith (Smith, 1990). Atransferéncia do sistema portugués de sesmarias para a realidade da Colénia significou, 14 como aqui, a concessao da terra pela Coroa, em troca de lealdade. Diferentemente de outros paises da Europa, a monar- quia portuguesa controlava as atividades econdmicas e as terras. Caso a exigéncia de ocupar, produzir e pagar os tributos nao fosse satisfeita, a terra se tornaria devoluta, isto 6, a concessao seria cancelada e ela retornaria para o Estado. As regras que regulamentavam a aplicacao das concess6es no Brasil nao foram aplicadas rigorosamente em virtu- [Urs NA FRA DO CARTALSIMO 35 36 de da abundancia de terras. Mais importante do que a relacao legal, era a capacidade de ocupar a terra e nela produzir, ¢ esta estava vincu- lada 4 propriedade de escravos. Os colonos, senhores de terra, proprietarios de escravos, compunham as Camaras Municipais. Definidos como “homens bons’ além de gran- des produtores rurais, eles deveriam, segundo as normas, residir na ci- dade, adotar a religiao catélica, apresentar a pele branca e oficio ndo-manual. Como autoridade municipal e representante da Coroa, esses latifundirios, juntamente com os burocratas administradores, ti- nham autoridade sobre o destino das coisas e das pessoas (incluindo 0 poder de policia). Eles podiam até mesmo doar terras, as “datas”, por- Ges do territério que faziam parte do patriménio publico municipal, sob a forma de uma gleba de terra (denominada rossio), que acom- panhava a concessio da autonomia municipal (Marx, 1991). Apratica atbitraria do poder exercido dessa forma, confirmou-se no Império, quando 0s latifundiarios tornaram-se autoridades militares como coro- néis da Guarda Nacional. Nio faltou motivo, portanto, para fortes manifestacdes contrarias, a pri- meira tentativa de regularizar a propriedade da terra, em 1795. O siste- ma de sesmarias continuou em vigor até 1822 quando foi suspenso, mas foi somente em 1850 que a Lei de Terras foi promulgada. Entre 1822 e 1850, com a indefinicao do Estado em rela¢ao a ocupacao da (erra, esta se dé de forma ampia e indiscriminada. E nesse periodo que se consolida de fato o latiftndio brasileiro, com a expulsao de peque- 1nos posseiros por poderosos proprietarios rurais. Apesar do fim das ses- marias, algumas provincias continuaram a fazer concess6es, irregulares e arbitrarias. A demorada tramitagao do projeto de lei que iria definir a comerciali- zacao e a propriedade da terra devia-se ao medo dos latifundiarios em ndo ver “suas” terras confirmadas. Rejeitaram também o imposto tert torial que constava na primeira reda¢ao do anteprojeto de lei Divisao de Terras e Colonizagao, de 1843. -MerRO*Oue NA PERERA 00 CATALIN ~ ENA MARCATO A proposta liberal que alimentou o longo debate sobre a definicao da Lei de Terras, pretendia, em sintese, utilizar as terras devolutas para com sua venda financiar uma colonizagao branca (com imigrantes europeus), baseada na pequena propriedade. Dela, na redacao final da lei, pouco sobrou sendo uma pomposa e avancada exposi¢io de motivos fundamentada nas virtudes do progresso das relagdes capita- listas (Smith, 1990). Novamente aqui esté a marca da fratura entre intencdo manifesta e pratica concreta. Como foi anteriormente men- cionado para 0 caso da proibicao do trafico de escravos, a argumen- tacao liberal encobriu a manutencao das relades de poder. Apenas no sul do pats, a colonizacao branca, vinculada & pequena proprieda- de, foi implementada. No restante do territ6rio, os imigrantes substi- tuiram a mao-de-obra escrava no latifandio, que passava a constar como propriedade privada ‘Ademora na demarcacao das terras devolutas deveu-se as resisténcias eimprecisées com que as solicitagGes do governo central eram respon- didas pelo poder local. Durante esse processo, um vasto patrimonio piblico, sob a forma de terras rurais e urbanas, passou para maos pri- vadas. Murilo Marx lembra que até 1911 a Camara Municipal de $0 Paulo apresentou iniciativas de concessao de terras municipais. Apenas em 1917, com 0 Cédigo Civil, a proibigdo dessa pratica se consolida. ‘Apés a promulgacao da Lei de Terras, de 1850, é engendrada, segundo o jurista Miguel Baldez, “uma densa malha de leis, regulamentos e for- mas processuais” com a finalidade de costurar “em torno da proprieda- de, um sistema de protecao eficiente e gil, capaz de assegurar-Ihe 0 carater preponderante de mercadoria” (Baldez, 1987). Apesar da pou- ca importancia do mercado fundiario urbano, a partir de meados do século XIX, surgem as necessidades, até entdo desprezadas, de dar maior precisao ao loteamento, suas fracdes e suas dimensdes, 0 alinhamento das fachadas, 0 nivelamento das vias e o que era chao ptiblico ou pri- vado. Como lembra Murilo Marx, o lote comercializado passa a ser 0 médulo dominante quadrangular e ortogonal, que orienta a producao do espaco urbano. Tudo mudou a partir dai (Marx, 1991). [Unrousio NA PERFERIA D0 CAPITALS 37 38 O aparato legal urbano, fundiario e imobiliério, que se desenvolveu na segunda metade do século XIX, forneceu base para 0 inicio do merc do imobilidrio fundado em relagées capitalistas e também para a ex- clusao territorial. Os Cédigos de Posturas Municipais de Sao Paulo (1886) e Rio de Janeiro (1889) proibiam a construgao de corticos ou “edifica- ges acanhadas” nas reas mais centrais (Maricato, 1995). As exigén- cias da propriedade legal do terreno, plantas, responsavel pela obra, tudo obedecendo as normas dos cédigos, afastou a maior parte da massa pobre do mercado formal. A atividade empresarial imobiliaria é regu- lamentada em 1890 (Reis, 1994). E com 0 inicio da Republica que se afirma o urbanismo modemista segregador. As cidades brasileiras mais importantes, em especial o Rio de Janeiro, passam por grandes transformagdes que procurarao adapt: las aos novos tempos, isto é, as novas necessidades econdmicas liga- das & administracao e exportacdo dos produtos agricolas, em especial © café, eo combate as epidemias por meio do saneamento. Um cenario que nao é determinado apenas pela eficdcia econémica e sanitaria acom- panha as mudancas. Busca-se adequar as cidades a fachada progressis- tae modernizante que a Republica requeria e sepultar a simbologia do passado escravista. Annecessidade de se afirmar levou o Estado republicano a incentivar uma sucessao de reformas urbanisticas nas cidades do Rio de Janeiro, Sao Paulo, Manaus, Belém, Curitiba, Santos e Porto Alegre, reformas essas que se inspiraram no que o Bardo de Haussmann fizera, alguns anos antes, em Paris. As cidades adquiriram importancia que nunca tiveram antes, como lugar da crescente producao industrial e como mercadoria, elas proprias, por meio de um mercado imobilidrio cres- centemente importante. Com 0 objetivo de eliminar os resquicios da sociedade escravista, er- guer um cenario modernizante e consolidar © mercado imobilidrio, as reformas urbanisticas expulsaram a “massa sobrante” (negros, pedin- tes, pessoas sem documentos, desempregados de modo geral) dos lo- cais urbanos mais centrais ou mais valorizados pelo mercado em _MerRO®OuE NA PRFERA 00 CAPTALSMO ~ EBAINIA MARICATO transformacao. Mais do que a cidade colonial ou imperial, a cidade, sob a Republica, expulsa e segrega (Vaz, 1986). As epidemias provoca- das pela densidade habitacional e pela falta de saneamento forneceu 0 argumento para a “limpeza” social que implicava nova disciplina ética e cultural, novo tratamento estético e paisagistico, além da remogao dos pobres com seu estilo de vida, para as periferias, morros, varzeas, suburbios (Sevcenko, 1993). A repressio que se seguiu a revolta da vacina, quando a massa enfurecida tomou conta das ruas no Rio de Janeiro, por trés dias, durante o ano de 1903, terminou coma expulsdo, para 0 exilio no Acre, ndo s6 dos lderes da revolta, mas também de uma parte da “massa sobrante”. Aurbanizagao da “industrializagao com baixos salérios”” ‘\ industrializagao brasileira, que se afirma decisivamente a partir da chamada Revolugio de 1930, combinou crescimento urbano industrial com regimes arcaicos de producao agricola. Um “pacto estrutural” entre antigos proprietarios rurais e a burguesia urbana garantiram mudangas sem rupturas e a convivéncia de politicas contraditérias® Anova correlagao de forcas sociais, correspondem a reformulacao do aparelho estatal, a regulamentagao da relagao capital/trabalho e as no- vas regras de expansao do mercado interno. Um Estado centralizador, interventor e protecionista da acumulago urbano-industrial institui, de cima para baixo, legislacao trabalhista e regula o preco da forca de trabalho, privilegiando o trabalhador urba- no, em detrimento do trabalhador rural. Examinando a participacao do “salario no produto industrial” de qua- renta paises (capitalistas centrais ou periféricos, além de socialistas), Joao Eduardo Furtado (Unesp — Universidade Estadual Paulista) revela que o Brasil esté situado no Gltimo lugar juntamente com o Kuwait (citado em Schilling, 1994, p. 66). Essa “industrializacao com baixos [Unaroasu 9n PeReERA DO CAPTASMO » Medeiros, 1992. * Ao contriio da revolusio burguesa ‘clissca’, a mudanga das classes proprietirias rurais pelas novas classes ‘burguesas indusviais, no exigirs, no Brasil, uma ruptura total do sistema, nfo apenas por razdes genética, mas estrturais” (Oliveira, 1972, p. 34). 39 salarios” é predat6ria com a forga de trabalho, incidindo em altas rota- tividades, auséncia de treinamento e mas condicdes de trabalho. A in- corporacao crescente dle mulheres e criangas ao mercado de trabalho é uma estratégia para fazer frente a crescente queda do poder aquisitivoe aumento da demanda de consumo por produtos industriais modernos que ¢ produzida pelo modo de vida urbano. ‘A manutengio de relagées arcaicas de propriedade rural resulta, no final do século XX, numa situacao de profunda concentragao fundisria: 14,16% da Area rural do pats, ou aproximadamente 58,3 milhées de ha, estdo distribufdos entre 2.174 estabelecimentos ou 0,04% do ni- mero de propriedades. As propriedades rurais de mais de 1.000 ha cor respondem a 43,77% das terras rurais (Schilling, 1994). ‘Alguns fatos esto na base do gigantesco processo de migracao que ocorreu no territério brasileiro, neste século, do campo para as cidades: a referida concentracao fundiaria em primeiro lugar, seguida da intro- dugao de tecnologia em certos setores da produgao rural destinada so- bretudo a exportacao e também o desprezo pelo avanco das relacdes trabalhistas no campo. De 1940 a 1980 a populagao urbana passa de 26,35% do total para 68,86%. No final desse periodo, aproximadamente quarenta milhdes de pessoas (33,6% da populacao) haviam migrado do lugar de origem. Somente entre 1970 e 1980 se incorporam a popula¢ao urbana mais de trinta milhdes de novos habitantes. Em 1960 havia no Brasil duas cida- des com mais de um milhao de habitantes — Sao Paulo e Rio de Janeiro. £m 1970 havia cinco, em 1980 dez e em 1990 doze (Santos, 1993, p. 74). Crescimento industrial ligado ao fenémeno da metropolizacao é uma constante nos chamados NICs — New Industrialized Countries. Segun- do Lipietz, o desenvolvimento do chamado fordismo periférico nao se estendeu a todo o territério, mas se reduz e se concentra em alguns pontos do pafs, a0 contrario do que aconteceu nos paises centrais (Li- pietz, 1985). Esse process, entretanto, tem impacto em todo 0 territé- rio nacional, sem davida, METROPOLE NA PRIFEUA DO CARTALSMO - Exnbun MARAT Industializacao, urbaniza¢ao, expansao da classe média, assalariamen- to, produgao de bens de consumo duravel, o Brasil pés-anos 50 consti- tui osimulacro da modernidade. Ha uma ampliacao da integragao do territ6rio (infra-estrutura de transportes e comunicagao) e do mercado interno, Uma nova divisio social do trabalho, a partir dos anos 60, trouxe mudangas no padrao de urbanizacao, nas dinamicas regionais, coma modemizacao agricola (sul, sudeste, leste e centro-oeste), agro- industria (sudeste, sul e leste) e expansdo metropolitana industrial (nor deste, lest, sudeste e sul) (Santos, 1993). Os simbolos do consumo pos-moderno extravasaram as regides metropolitanas e podem ser en- contrados, por exemplo, nos centros urbanos do interior do Estado de Sao Paulo, Minas Gerais, Parana, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, ‘que crescem e se industrializam. De 1940 a 1980 o PIB brasileiro cresceu mais de 7% ao ano. Os indi- ces de natalidade e mortalidade apresentam quedas espetaculares. ‘Apesar disso, o aprofundamento da desigualdade se acentuou, inicial- mente pela cooptacao que caracterizou 0 “populismo desenvolvimen- tista” e, depois de 1964, sob a repressao do regime militar. ‘Atabela da pagina seguinte mostra a variag3o do poder aquisitivo do salario minimo real regulamentado por lei, entre 1940 e 1980: Uneanso NA PER 00 CARTALHO a a VARIAGAO DO SALARIO MINIMO REAL — BRASIL 1940/80 Indice ‘Ano Indice 98,02 7960 . . 100,30 89,35 y961 | 11,52 80,22 1962... 101,82 7878 1963. | .89'51 33,19 1964 || 192.49 67.03, 1965. 89,19, 5882 1966 | 76,03 44,94 1967 |. 171,92 4161 1968 || -70,39 4219 1969. | 67,73, 39,84 1970 || 68,93 36.80 1a7t 165,96 98,77 1972 || .6478 28135 1973 |. .59,36 198/88 1974.54.48, 11,04 1975 |. 18791 11281 1976. 5654 122,65, 1977.58.92 106,70 1978 | 16070 119,45 1979 | 61.27 1980 Fonte: Dieese £m 1981, no final do periodo referido, de intenso crescimento indus- trial, 0 1% mais rico da populagao concentrava 13% da renda nacional a0 passo que os 10% mais pobres receberam 0,9%. Mediante a con- centracao da renda foi possivel criar um mercado de consumo para os bens industriais modernos e luxuosos. Como lembra Alain Lipietz: (...) quando se & 120 milhdes, é suficiente que 20% da populagao se aproprie de dois tercos da riqueza para que se constitua um mercado para os bens durdveis e mesmo luxuosos, equivalente a um pais médio da Europa do Norte (Lipietz, 1985, p. 30). Se a maior parte da populagio nao constitul mercado para os bens lu- xuosos, ern compensa¢ao constitui ampla oferta de mao-de-obra bara- ta para a sua producao. MerRceous nn PFERA DO CARLIE - Exnbn Manco Cidade, Estado e mercado: a modernizagao excludente ‘As cidades refletem 0 processo industrial baseado na intensa explora- so da forga de trabalho e na exclusao social, mas o ambiente cons- truido faz mais do que refletir. Como parte integrante das caracteristicas que assume o processo de acumulacao capitalista no Brasil, 0 urbano se institui como pélo moderno ao mesmo tempo em que 6 objeto e sujeito da reprodugao ou criagao de novas formas arcaicas no seu inte- rior, como contrapartidas de uma mesma dinamica. Nao é somente o trabalhador do extensivo e atrasado tercidrio urbano informal (e que tantos autores denominaram de “inchado” nas analises comparativas), que habita as favelas, ocupando ilegalmente a terra € langando mao do expediente arcaico da autoconstrucao para poder morar em algum lugar. Nossas pesquisas mostram que até o trabalha- dor da inddstria fordista (automobilistica), é levado freqiientemente a morar em favelas, j4 que nem os salérios pagos pela industria e nem as politicas publicas de habitagao sao suficientes para atender as necessi- dades de moradias regulares, legais (Maricato, 197). Em 1980, 57,3% dos chefes de familia ativos, moradores das favelas de Sao Paulo traba- lhavam no secundério (Taschner, 1993). Trata-se do “produtivo exclui- do” (MNMMR, 1994). A produgao ilegal de moradias e o urbanismo segregador esto, portanto, relacionados: as caracteristicas do proces- so de desenvolvimento industrial — uma vez que o salario do operario industrial nao o qualifica para adquirir uma casa no mercado imobilié- rio legal; as caracteristicas do mercado imobilidrio capitalista— sobre cujos agentes nao pesa nenhum constrangimento antiespeculativo como seria 0 caso da aplicacao da funcao social da propriedade, e também as caracteristicas dos investimentos publicos — que favorecem a infra- estrutura industrial e 0 mercado concentrado e restrito. Aanalise do SFH — Sistema Financeiro da Habitagao e o BNH — Ban- co Nacional da Habitacao fornece um exemplo muito adequado da modernizacao excludente. (Unsresso Na prin 00 Comtausve a “ Criados pelo regime militar, em 1964, 0 SFH € 0 BNH foram estratégi os para a estruturacao e consolidacao do mercado imobilidrio urbano capitalista. O investimento de vultosa poupanga, parte compulséria (FGTS) e parte voluntaria (SBPE) no financiamento a habitacao, sanea- mento basico e infra-estrutura urbanos, mudou a face das cidades bra sileiras, fnanciando a verticalizacao das areas residenciais mais centrais; contribuindo para 0 aumento especulativo do solo; dinamizando a pro- mogao e a construcao de iméveis (0 mercado imobilidrio atinge novo patamar e nova escala); diversificando a indistria de materiais de cons trugao; subsidiando apartamentos para as classes médias urbanas; pa- trocinando a formagao e consolidacao de grandes empresas nacionais de edificacao e mesmo de construcao pesada, nas fara6nicas obras de saneamento basico (Maricato, 1987). Apesar de 0 SFH ter financiado 4,8 milhdes de moradias ou pratica mente 25 % do incremento do nimero de habitagdes construfdas no Brasil entre 1964 a 86 (estimativa), 0 ndimero de moradores de favelas cresceu acentuadamente no periodo, Das 4,8 milhes de unidades resi- denciais, financiadas pelo SFH, um tero foi objeto da promocao piibli- ca (conjuntos habitacionais) supostamente destinados a moradores com tenda menor que cinco salérios minimos. (A “distribuigao” das mora- dias populares foi uma das maiores fontes de troca de favores que con- tribuiu para reeleicdes sistematicas de politicos clientelistas, além de contribuir também para a alta inadimpléncia no pagamento das presta- GOes, j4 que a relagdo de favor nao permitia a cobranca mais rigorosa.) Nunca é demais lembrar que essa politica foi criada e praticada em nome dos desassistidos e que grande parte dos recursos assim utiliza- dos vieram do FGTS, espécie de seguro desemprego que “flexibilizou" as relagdes de trabalho no mercado formal, promovendo a rotatividade no emprego e barateando as demissdes. Sobre esse fundo incidem ju- ros abaixo dos de mercado. Os trabalhadores subsidiaram um dos ca- pitulos mais vergonhosos das politicas pablicas brasileiras, no qual a Corrupsao, 0 superfaturamento e o uso do dinheiro pablico para fins privados se generalizaram. Tudo leva a crer que a extingao do BNH em 1986 e o incéndio do seu arquivo, ento no Ministério da Habita- -MeTRoPOLE WA PRFERA D0 CHETAN ~ ERANIA MAICATO 50 e Desenvolvimento Urbano, nao foram acidentais (Maricato, 1987). A politica praticada pelo SFH combinou 0 atendimento dos interesses dos empresarios privados (construcao, promotores imobiliarios, ban- queiros e proprietarios de terra) com interesses de politicos clientelistas (overnadores, prefeitos, deputados, vereadores), quando nao aconte- ceu de estes fazerem parte daquele grupo. Na verdade essa politica foi fundamental para a estruturacao de um mercado imobilidrio de corte capitalista. Ela constituiu também um dos expedientes de concentra¢ao derenda, uma vez que privilegiou a produgao de habitacao subsidiada para a classe média em detrimento dos setores de mais baixa renda. Durante a vigéncia do regime autoritario essa equagao era clara apenas para 0s pesquisadores académicos que a descreveram em um sem- nero de trabalhos a partir da tese pioneira de Gabriel Bollafi (Bollafi, 1975). A partir do momento em que se deu a instala¢ao regular do Conselho Curador do FGTS, em 1989, 0 qual contou com a participa- lo da bancada de representantes de trés centrais sindicais (Forca Sin- dical, Central Unica dos Trabalhadores e Confederagao Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Crédito), a manipulacao dos recursos de acordo com a troca de favores ficou evidente para o movimento sindical. Os dados detalhados podem ser encontrados nos trés relat6- rios elaborados pela bancada de trabalhadores do Conselho Curador do FGTS, de abril a agosto de 1991. Entre a extincdo do BNH, em 1986, ea instalacdo do novo conselho do FGTS, a administraco dos recursos se deu de forma ilegal. Instado legalmente a responder sobre a situacao dos recursos do FGTS, pelo entdo deputado federal Luiz Ignacio Lula da Silva, o presidente da CEF — Caixa Econémica Federal, Paulo Mandarino, respondeu que, na ocasido, nao tinha como esclarecer a questo j4 que a CEF nao tinha informagdes completas sobre 0 fluxo de caixa dos recursos do FGTS, que administrava, o Estado ga- Combinando investimento piblico com acao regulador: i lista para uma rante a estruturacao de um mercado imobil Unaansno Na penn Do cAaisMD 45 46 parcela restrita da populagao, ao passo que para a maioria restam as opcées das favelas, dos corticos ou do foteamento ifegal, na periferia sem urbanizacao, de todas as metr6poles. Estudando a construcao do mercado imobilirio em Salvador, Maria Brando mostra a articula¢ao entre a nova legislago urbanistica segre- gadora, a quebra da velha estrutura fundiaria, a produgao ilegal da pe- riferia e 0 financiamento do SFH, nos anos 60. Como a cidade passou por relativa estagnagao, resultante das caracteristicas da economia re- gional, a Prefeitura pemaneceu como proprietaria da maior parte das terras municipais até meados do século XX. Até esse periodo a ocupa- a0 de dreas ociosas era consentida e mesmo estimulada pelos proprie- tarios e enfiteutas que buscavam extrair alguma renda dos ocupantes. Com a chegada de alguns grandes projetos industriais & regido, a situa- G40 se modifica. No final da década de 50, a questo fundiaria assume a configuracao de crise politica. O Estado populista intervém ambigua- mente como era de se esperar. Essa atitude vai mudar, entretanto, com © autoritarismo do regime militar. Em 1968 é aprovada lei municipal que “abriria a aquisi¢ao particular em propriedade plena milhées de ‘metros quadrados de terras municipais”. Acompanhava o projeto de lei arrazoado técnico fundamentado no “desenvolvimento da cidade” E esgotam-se 0s vazios — terras devolutas, terras publicas, terrenos com donos ausentes, terrenos de posse pouco esclarecida — passados a outras maos. Solda-se assim toda a estrutura de controle privado do solo, sem deixar brechas, exceto escassas reas ainda sob controle pii- blico com destinagao prevista (Brando, 1981). Complementando o processo de monopolizacao da terra, ou de parte dela, a parte que interessava, os governos investem em infra-estrutura, especialmente a vidria, a qual dara condicdes indispensaveis para 0 acesso e para a realizagio da renda fundisria Nos anos 70, ainda segundo Brandao, metade dos domicilios da cida- de so construgdes ilegais. As mudangas na estrutura fundiaria e a aber- tura da rede vidria produziram, paradoxalmente, a escassez. MeraGrote na extn Do CARAS ~ Ex, MARCATO Outro fato que, ao lado da criacao do sistema SFH/BNH, foi paradig- matico para modernizacao nas relacdes de producao do espaco urba- no € que, ao mesmo tempo, acarretou o crescimento de favelas foi a promulgacao da Lei federal 6.766, em 1979. Achamada Lei Lehman estabelece regras para parcelamento do solo urbano, Apesar da concep¢o embasada em anilise correta, 6 0 tipo de acao reguladora que acarretou significativa restrigao da oferta de mo- radias para a populagao trabalhadora. O loteamento ilegal, combi nado a autoconstrucao parcelada da moradia durante varios anos, foi a principal alternativa de habitacao para a populacdo migrante instalar- se em algumas das principais cidades brasileiras. Dessa forma foram construfdas as imensas periferias de Sao Paulo e Rio de Janeiro. (Até a década de 70, a favela nao representava alternativa importante para a populagao pobre em Sao Paulo, como acontecia no Rio de Janeiro. No final dos anos 80 podemos dizer que tanto a favela cresceu de impor- tancia em Sao Paulo como o loteamento ilegal no Rio de Janeiro.) £m 1981 a Secretaria Municipal de Planejamento de Sao Paulo identi- ficou 3.567 loteamentos ilegais, ocupando 35% da area do municipio. Em 1989, apés oito anos de uma politica assistematica de regulariza- 0, com a utilizacao da nova lei, a Secretaria de Habitacdo e Desen- volvimento Urbano do municipio constatou a existéncia de aproxima- damente 2.600 processos de loteamentos ilegais onde vivem perto de 2,4 milhdes de pessoas. ‘Apoiada pela luta de movimentos de moradores de loteamentos irregu- lares, a Lei federal 6.766/79 atende a uma reivindicagao popular: cri- minalizacao do loteador “clandestino”, possibilidade da suspensao do pagamento para efeito de viabilizar a execugao de obras urbanisticas e atribuigdo, a0 municipio ou Ministério Pablico, da representacio das. comunidades por meio do interesse difuso. A lei contribuiu para a mobilizacdo popular e a politizagao do direito de aco como destaca Miguel Baldez (Baldez, 1986). E nossa hipstese entretanto que, em Gl- tima instancia, ela contribuiu também para o fortalecimento do merca- do capitalista formal e para a segregacao ambiental, ao evitar que a Unsreasino NA Pere Do CARMI a 48 terra urbana, bem cada vez mais escasso nas metr6poles, fosse parce- lada irregularmente (mercado informal) por causa de exigéncias urba- nisticas e burocraticas. De modo geral as leis municipais de parcela- mento do solo so mais exigentes do que a lei federal. Mas ela trouxe a novidade da criminalizacao do loteamento ilegal. Hé evidente correlacao entre a diminuigao da oferta de lotes ilegais no ‘municipio de Sao Paulo e a explosao do crescimento das favelas. Du- ante o periodo de 1989 a 1992 a Prefeitura de Sao Paulo aprovou o des- prezivel ntmero de dois projetos de loteamentos residenciais por ano, € todos se destinavam a classe média ou de nivel de renda superior. Apesar das intengées louvaveis, a Lei 6.766 56 conseguiu entravar, no dia-a-dia, as negaciagdes e interacées que tinham fortes motivagdes légicas para ser como eram. Resultado: o parcelamento desenfreado de franjas e periferias parou, é bem verdade. Em compensacao, nao se esta registrando qualquer indicio de ocupa¢ao e adensamento de va- ios intermedirios. Se nao estio mais sendo oferecidos lotes irregula- res e desprovidos de servicos e infra-estrutura aos pobres, também cessou de haver alternativas. A médio prazo ha grandes ameacas de colapso, pois $6 esto restando as intervengdes oficiais, que so minimas, e as favelas, relativa novidade longe dos nacleos dos grandes aglomerados (Santos, 1986, p. 10). Mas € preciso acrescentar também que nem a abertura de loteamentos ilegais estancou totalmente apés a promulgacao da Lei federal 6.766/ 79, nem se tem noticia de que os poderes piblicos se esforcaram em sua aplicagao rigorosa, Talvez o esgotamento de terra pouco valorizada no municipio de Sio Paulo, que é central na regido metropolitana, tenha contribuido mais para a queda da oferta de loteamentos ilegais do que a propria lei. Esse exemplo mostra claramente que 0 avanco das relacdes formais capitalistas trazem no seu bojo, no processo de acumulagao brasilei- 0, a exclusio. O loteamento ilegal, predatério ao meio ambiente e (Mertcrote a PER D0 CAPTALSHO ~ ERIN MABiCATO que acarreta deseconomiay profundas para as metropoles brasileiras, uma vez que promove ocupacdo extensiva sem servicos, infra-estru- tura urbana ou Areas livres, era (e ainda continua sendo nos muni pios periféricos das metrépoles), a forma de acesso do trabalhador pobre a propriedade urbana. A lei fechou essa alternativa que est muito longe de satisfazer requisitos satisfatorios de qualidade am- biental, sem que outra fosse aberta. Por outro lado ela assegura que 0 estoque de terras ainda existente fique submisso a producao capitalis- ta formal. Esta envolve a participacao de diversos capitais: incorpora- dores, construtores e financiadores, ao passo que no parcelamento ilegal participam apenas alguns personagens pré-modernos: 0 pro- prietério de terra e 0 loteador, mais freqiientemente. O mercado tam- bem nao é mais 0 mesmo (massa de trabalhadores pobres), mas sim compradores com poder aquisitivo para pagar o que a lei e uma me- thor localizacao exigem. Num processo de urbanizacao assim engendrado, a exclusdo é estrutu- ral, o que exige teflexao mais aprofundada sobre o papel da regulacao urbana na construgao da cidadania ou da qualidade ambiental urbane para todos. O fim do desenvolvimentisma: globalizagao e violéncia nos anos 80 O Estado e seu projeto desenvolvimentista dos anos 30/50 estao mor- (os Fiori, 1994, p. 143). De 1981 2 1992 o PIB cresceu 1,3% ao ano ao passo que o crescimen- to populacional foi de 1,9%. O crescimento da informalizacao na rela- 0 de trabalho tem correspondéncia direta com 0 desempenho econémico nacional. Do inicio ao fim do periodo, cai o némero de trabalhadores com carteira assinada nas seis principais regides metro- politanas do pafs e cresce o ntimero de trabalhadores por conta pro- pria. Em So Paulo, cidade com menor grau de informalidade nas relacdes de trabalho, havia em 1982 aproximadamente 64% da popu- (Urmeso NA Pun 00 CATAL 9 50 lagdo ocupada com carteira assinada. Em 1992 essa relacdo é proxima 2 58%. Os trabalhadores por “conta propria” compunham aproxima- damente 5% no inicio do periodlo considerado e aproximadamente 20% no final. Segundo Jo3o Saboia, de quem extraimos os dados aqui utili- zados sobre mercado de trabalho, independente da regiao do pais, a evolucao do mercado de trabalho nas metrépoles apresenta configura~ go semelhante, (..) com a substituicdo de empregados com carteira assinada, por em- pregados sem carteiras e/ou trabalhadores por conta prépria, em perio- dos de recessao e comportamento simétrico em periodos de recuperacio (Saboia, 1993, p. 7). Saboia chama atencdo para 0 dinamismo do mercado de trabalho no Brasil, demonstrado pela capacidade surpreendente de absorgao da PEA — Populacao Economicamente Ativa, e pelo baixo nivel de de- semprego aberto (em torno de 6% em seis regiGes metropolitanas). Esse comportamento do mercado de trabalho difere bastante do que ocorre ‘nos paises de economia desenvolvida, em que o quadro é mais estatico € 0 desemprego aberto maior. O fim dos recursos externos no final dos anos 70 € o inicio do paga- mento da divida externa marcaram 0 comeso da recessao. Outro dado da conjuntura internacional, a elevagao da taxa de juros (0s emprés- timos foram feitos a juros flutuantes) causou forte explosio da divida brasileira. De 1983 para 1992, ela cresceu de US$93,5 bilhées para US$135 bilhdes, apesar de o pais ter desembolsado US$67,7 bilhdes como pagamento. De 1981 a 1989, a concentragao da renda continua a se aprofundar, seguindo a tendéncia apontada: DISTRIBUICAO DA RENDA — BRASIL 1981/89 ‘50% mais pobres.. 10,496 da renda 01% mais ricos... _17,3% da renda Fonte: Prad/BGE. [Mernorott na FERRER 0 CARMAN - ERuta Mascaro Em 1995, 0 Relat6rio de Desenvolvimento do Banco Mundial aponta o Brasil como 0 pais de maior desigualdade social do mundo. Segundo o relatério, ao passo que 10% da populaco concentram 51,3% da ren- da, 05 20% mais pobres ficam com 2,1%. Atrajet6ria do salario minimo real confirma a tendéncia ao decrésci- mo: EVOLUGAO D0 SALARIO MINIMO REAL BRASIL — 1980/1992 ‘Ane __ladice 1980. . 6178 year Sd 6334 roa) 2 2+ 66,02 1983. 2 | 56,10 1984 cL 52,04 isco 5 5324 was Dt 52 5036 1987 eae + + 3631 wes ll ll aea2 wa lt 2 + 4070 1990 29,09 wre + + 30,08 wt 1s 26,07 Foie: Dees. (Obs: £ importante lembrar que 53% da populagSo economicamenteatva gana até dois sal: fos minim. Durante 0 anos 80 a populagao urbana brasileira cresceu, chegandoa representar 76,3% do total. Apesar de apresentar algumas mudangas no padrao de urbanizacao, o censo de 1991 aponta para um aprofun- damento da “periferizacao” das grandes metropoles, ou seja, maior au- mento populacional nos municipios da franja metropolitana, reprodu- zindo e expandindo formas de favelas e corticos também na periferia. O ajuste do capitalismo internacional nos anos 70 trouxe aprofunda- mento das caracteristicas de exclusao social, aqui tratadas, mas, como pudemos ver, nao se trata de tendéncia nova ou recente na realidade brasileira. [Unsiusao NA PRR DO CARTAN st 32 De novidade, o aprofundamento da miséria que ver com a globaliza- ‘0 acarretou a explosio de violéncia em escala até entao desconheci da, e que seria denominada de violéncia urbana. ‘A forma como 0 figurino neoliberal enfrenta essas questées constitu mais um conjunto de “idéias fora do lugar”, como veremos adiante. Antes vamos deter-nos para voltar a explorar um pouco mais as contra- digdes sociais € as ambigtiidades, ja apontadas, que esto no cere da aplicagao do direito urbano no Brasil. METROPOXE NA PERFRIA 90 CARTLISHO - EAA MARCATO Parte Il ENTRE O LEGAL E O ILEGAL — MERCADO E ESCASSEZ As constituigées feitas para nao serem cumpridas, as leis existentes para serem violadas, tudo em proveito de individuos e oligarquias sao fend- menos correntes em toda a hist6ria da América do Sul (Holanda, 1971, p. 137). Segregacao ambiental e exclusao social Sena década de 40 as cidades brasileiras eram vistas como a possibili- dade de avango e modemidade em relacao ao campo que representa- va Brasil arcaico, na década de 90 sua imagem passa a ser associada avioléncia, poluigao, crianga desamparada, trafego cadtico, entre ou- ‘tros inameros males. O processo de industrializacao/urbanizacao, sob o lema positivista da ordem e do progresso, parecia representar um caminho para a inde- pendéncia de séculos de dominagao da produgao agraria. Aevolugdo dos acontecimentos mostrou que, ao lado de intenso cres- cimento econémico, o processo de urbaniza¢io com crescimento da desigualdade resultou numa inédita e gigantesca concentra¢ao espa- cial da pobreza. ‘Nao foi s6 0 governo. A sociedade brasileira em peso embriagou-se, desde os tempos da aboli¢o e da republica velha, com as idealizacdes sobre progresso e modernizacao. A salvacao parecia estar nas cidades, onde o futuro jé havia chegado, Entao era s6 vir para elas e desfrutar de fantasias como emprego pleno, assisténcia social providenciada pelo Estado, lazer, novas oportunidades para os filhos... Nao aconteceu nada disso, é claro, e, 20s poucos, os sonhos viraram pesadelos (Santos, 1986, p.2). As oportunidades que de fato havia nas primeiras décadas do século XX para a populacao imigrante e depois para a populagdo migrante (insergao econémica e melhora de vida) se extinguiram. A exclusio social tem sua expresso mais concreta na segregacao espacial ou ambiental, configurando pontos de concentracao de pobreza a seme- lhanga de guetos, ou imensas regides nas quais a pobreza € homoge- neamente disseminada. Gu 0 uc €O REGAL — MERCADO EGON 55 56 A segregacdo ambiental ndo é somente uma das faces mais importan. tes da exclusao social, mas parte ativa e importante dela. A dificuldade de acesso aos servicos e infra-estrutura urbanos (transporte precério, saneamento deficient, drenagem inexistente, dificuldade de abasteci- mento, dificil acesso aos servicos de satide, educacao e creches, maior exposicao a ocorréncia de enchentes e desmoronamentos etc.) somam- se menores oportunidades de emprego (particularmente do emprego formal), menores oportunidades de profissionalizagio, maior exposi- 40 a violéncia (marginal ou policial), discriminagao racial, discrimi- na¢ao contra mulheres e criancas, dificil acesso a justica oficial, dificil acesso ao lazer. A lista 6 interminavel, Nao hé como definir um limite preciso entre o “inclufdo” e 0 “exclui- do”, Como ja expusemos, trabalhadores do setor secundario, € até mesmo da inddstria fordista brasileira, sdo excluidos do mercado imo- bilidrio privado e freqiientemente moram em favelas. Trata-se do “pro- dutivo excluido” que é resultado da industrializacdo com baixos salérios. Como ja apontaram alguns pesquisadores, as camadas populares urba- nas desenvolvem uma ética do trabalho com a finalidade de fugir da discriminagao do pobre como criminoso: trabalhador x marginal, 6 a oposi¢do que dé alguma sustentago num universo crescentemente estreito (Zaluar, 1985; Valladares, 1986). Desenvolvendo uma reflexao te6rica sobre as classes sociais na Améri- ca Latina, Florestan Fernandes reconhece que os “dinamismos nuclea- res e determinantes” nessas sociedades provém das relacées “mais adiantadas ¢ ativas do regime de classes”. Ha especificidades, entre- tanto, em relaco as sociedades capitalistas européias e norte-america- nas, ja que as sociedades latino-americanas “nao se organizam pare um desenvolvimento auténomo da economia, da sociedade e da cultu- ra”. A divisio repartida (externa e interna) do excedente econdmico, continuidade de privilégios senhoriais na formacaio da mentalidade bur- Buesa e portanto adaptacao de herancas coloniais no processo de mo- dernizacao, a exclusao das classes “baixas” dos processos historicos € sociais (negando também sua existéncia como classe com direitos a serem respeitados como ocorreu no capitalismo “maduro”) sio carac- ‘MerROrOu wa rr 00 CARTS - ERMA MARAT teristicas as quais se soma um decorrente “complexo padréo de mer cantilizagao do trabalho”. Aexclusdo social nao é passivel de mensuraco, mas pode ser carac- terizada por indicadores como a informalidade, a irregularidade, a ile- galidade, a pobreza, a baixa escolaridade, 0 oficioso, a raga, 0 sexo, a origem e, sobretudo, a auséncia da cidadania. Acaréncia material é a face externa da exclusdo politica (Demo, 1993, p.3). Segundo Pedro Demo, a caracterizacao da pobreza com base em nt- meros mensurdveis relativos a caréncia material obscurece o “cere politico da pobreza” ou o que o autor chama de “pobreza politica”. Ser pobre ndo é apenas ndo ter, mas sobretudo ser impedido de ter, 0 (que aponta muito mais para uma questdo de ser do que de ter (p. 2). A ilegalidade é sem davida um critério que permite a aplicagio de conceitos como exclusdo, segregacao ou até mesmo de apartheid am- biental. Nao que a elite brasileira nao recorra historicamente & utiliza- Gio de expedientes ilegais quando Ihe convém. Citamos anteriormente Oclissico, hist6rico e paradigmético exemplo do trafico de escravos no Brasil do século XIX, mas poderfamos utilizar tantos outros atuais. Bas- ta lembrar levantamento de Saboia que aponta uma variagao de um minimo de 13,4% (Porto Alegre) para um maximo de 27,4% (Recife) de trabalhadores empregados sem carteira assinada nas metrépoles brasi- leita, no inicio dos anos 90 (Saboia, 1994), A.legalidade em relacao a propriedade da terra, entretanto, tem sido o principal agente da segregaco ambiental e dai a exclusio social, no campo ou na cidade. A legislacao urbana nao emergira sendo quando setome necessiria para a estruturagio do mercado imobiliério urbano, de corte capitalista. Os Cédigos Municipais de Posturas, elaborados no final do século passado, tiveram o claro papel de subordinar certas areas da cidade ao capital imobiliario, acarretando a expulsao da mas- EXTRE © UAL EO HEGAL — MERCADO ESASSER * “Ela (a ordem social competiiva) reconhece a pluralizagio das estrutura. econtmicas, sociais e poltcas como “fendmeno lega'’.Todavia, nfo a aceta ‘como ‘fendmeno social e, muito menos ‘como “fendmeno politico”. Os que so ‘excluidos do privlegiamento econdmico, scio-culturale politico também so excluidos do ‘valimento social’ e do “valimento politica’. Ot ‘excluidos si0 necessrios para a existéncia do estilo de daminacio burguesa, que se monia dessa manera” (Fernandes, 1977, p. 222). 37 58 sa trabalhadora pobre do centro da cidade. A nova normatividade contribui para a ordenacao do solo de parte da cidade, mas também vai contribuir para a segregacao espacial. A escassez alimenta a extra- 640 da renda imobiliaria. A submissao da terra aos capitais de promo- 40, construgao e financiamento imobilidrio nao se tornou homogénea Como nos paises avancados, convivendo com formas arcaicas de pro- dugao do espaco como a autoconstruco em loteamentos ilegais ou em Areas ocupadas. Hegalidade e exclusio A relacdo — legislacao/mercado fundiario/exclusiio — talvez se mos- tre mais evidente nas regides metropolitanas. E nas areas rejeitadas pelo mercado imobiliario privado e nas areas publicas situadas em regides desvalorizadas que a populaco trabalhadora pobre vai instalar-se: beira de c6rregos, encostas dos mortos, terrenos sujeitos a enchentes ou ou- tros tipos de riscos, regides poluidas, ou... reas de protecao ambiental (onde a vigéncia de legislacao de protegao e auséncia de fiscalizacio definem a desvalorizacao). ‘Apenas para dar alguns exemplos, 49, 3% das favelas de Séo Paulo tém alguma parte localizada em beira de cérrego, 32,2% esto sujeitas a enchentes, 29,3% localizam-se em terrenos com declividade acentua- da, 24,2% esto em terrenos que apresentam erosio acentuada e 0,9% estdo em terrenos de depésitos de lixo ou aterto sanitario. Do total, 65% estao situadas em area publica e 9% em terrenos de propriedade mista, ou seja, publica e privada. Esses dads so de 1987, quando o niimero de favelas era de aproximadamente 1.600 niicleos onde mora- vam aproximadamente 8% da populagdo. Em 1993 essa proporcao é de 19,8%, ‘orrendo sobre as ocupagées ilegais da regio metropolitana de Por- to Alegre e a relacdo juridica de propriedade da terra, Wranna Panizzi registra que em catorze municipios cujo crescimento demogrifico atinge Merncrots Na PRE D0 CAPTALISMO - Ean MARCARO 4% a0 ano, dos 2,3 milhdes de habitantes, aproximadamente 500.000 vivem em situagao ilegal. Em relacao ao aumento da populacaio que ocupa progressivamente as areas livres, configurando as “vilas irregu- lares", a autora registra: Ocrescimento dessa populacao, que sobrevive inserida normalmente no processo de producao, é rapido e se produz por acréscimos sucessi- vos: 65.000 em 1965, 105.000 em 1973, 171.000 em 1980, 274.000 em 1985... Em 1986 a taxa de crescimento foi de 9,8 %(Panizzi, 1989, ».85). Oesforco de resisténcia contra a remogao pode incluir regras e estatu- 10s pr6prios elaborados coletivamente. Esias novas constituicdes urbanas locais propdem um tipo de sociedade altemativa, mesmo se elas se esfor¢am para compor o maximo possivel com as formas técnicas dominantes para ndo suscitar a confrontagao e 0 recurso ao Estado da “violéncia legitima” (Idem, ibidem, p. 89). Panizzi lembra que numerosos agentes intervém mediando a relacao entre o Estado e essas comunidades (partidos politicos, prefeitos, ve- readores, deputados, agentes técnicos de assessoria e também as agén- cias prestadoras de servicos publicos) e pergunta se essa direcao nao nos levaria a uma nova legalidade, ao promover a elaboracao de novas referéncias juridico-legais. Durante o regime militar, o Planasa — Plano Nacional de Saneamento Basico abandonou os critérios legais de uso e ocupacao do solo para estender o fornecimento de agua a populacdo até entao nao atendida em diversas areas metropolitanas. A Sabesp, empresa piblica respon- savel pelo saneamento basico no Estado de Sao Paulo, ampliou a rede de aguas até os loteamentos ilegais, mesmo os situados em area de protecdo dos mananciais, desenvolvendo para isso instalacao leve e de baixo custo. Essa atitude teve repercussao direta na queda do indice de sotiditrabenfrantih, Wopetive bo PRA. ENIRE 0 LEGAL EO REGAL — MERCADO E SCASEZ 59 ° Durante minha gestio na Sehab foi claborado um caderno de encargos inttulado Especifcagao de Obras em Favelas e Formas de Medigio © Pagamento, por uma equipe formada por ‘chicos da superinendéncia de habitaczo popular, que contou com a ajuda de tecnicos da Sabesp, Ese trabalho € sem davida uma contribuico fundamental para a construgdo de ormas altemativas que permitam a ‘eneralizag3o da cidadania no espaco urbane e garantam um minimo de qualidade ambiental para todos, As ‘sormas aplicadas na cidade formal no si aplicaveis para as areas de ocupacio imegular. As novas posturas permitem levar 0 saneamento com qualidade ¢ baixo custo as favelas,respeitando nas linkas gerais a ocupagzo j8 consoidada, ‘com um niimero minimo de remogaes, Pela Sehab participaram desse trabalho a arquiteta Lavra M. De Mello Bueno e eng, Eduardo Marques. ‘Com a mesma intencio e contando com a colaboraga0 do IPT — Instituto de Pesquisa Tecnologia do Estado de Sao Paul, foi elaboradlo 0 cademno Risco Geotéenico em Ocupasio Urbana, Manual de Seguranca. Sehab/ Habi/PrsP, 1992. Pela Sehab, Paticipou dese trabalho 0 gedgrafo Nelson Fugimoto, Jd entre 1989 e 1992, a mesma companhia se recusou a estender a rede de aguas a loteamentos ilegais situados na mesma regiao de protecdo dos mananciais, e que apresentavam intimeros casos de hepatite (ar- dim Marilda, na Capela do Socorro, municipio de Sao Paulo, por exem- plo) com a argumentacao de que o loteamento estava ilegal, A mesma dificuldade a Sabesp manifestou ao resistir em ligar a rede de dgua em diversas obras de urbanizacao de favelas executadas pela Sehab no perfodo. Algumas sedes regionais da companhia estatal concordavam e até colaboravam na extensao da agua aos favelados e outras se nega- vam, sempre com argumentagao legal ou regulatéria. Aparentemente 0s técnicos da empresa tinham opinides diferentes sobre o assunto € influfam nas decis6es regionais, mas existia também o fato de a Com- panhia estar em dificuldades financeiras (endividamento) e cortar in vestimentos nao atraentes'”. A ilegalidade em relacao a posse da terra parece fornecer freqiiente mente uma base para que a exclusdo se realize em sua globalidade. Em um estudo que trata da dimensao juridico-social de uma favela que 0 autor chama de Pasérgada, Boaventura de Souza Santos mostra que 0 medo do despejo ou de chamar atencao para suas condicdes de ilega- lidade na ocupacio da terra € motivo (ou um dos motivos) para que os moradores nunca procurem a justica. A mesma explicacdo 0s morado- res deram para o habito de a policia invadir suas casas “quando bem entende” (p. 45). A legislagao oficial nao é seguida na favela ea policia € 05 tribunais sao vistos como ameaca (Santos, 1993). A expressao “nds éramos e somos ilegais” (de um antigo morador da favela), que, no seu contexto semAntico, liga o status de ilegalidade com a propria condi¢ao humana dos habitantes de Pasdrgada, pode ser interpretada como indicaco de que nas atitudes destes para com 0 sistema juridico nacional, tudo se passa como se a legalidade da posse da terra repercutisse sobre todas as outras relagées sociais, mesmo 50- bre aquelas que nada tém com a terra ou com a habitacao (p. 45). Nao é de se estranhar que em tais situacdes possa ocorrer 0 desenvolvi- mento de normas, comportamentos, mecanismos, procedimentos ex- Mertorott na PERFERA D0 CARTS - Ekin Manicato tralegais que sao impostos a comunidade pela violéncia ou que sao accilos espontaneamente e até desejados. Aindisponibilidade estrutural dos mecanismos oficiais de ordenacao e controle social e a auséncia de mecanismos ndo oficiais comunitarios criaram uma situagao que designarei por privatizacao possessiva do direto,(..). A privatizagao possessiva do direito constitui-se por uma dialética entre a tolerancia extrema e a violéncia proxima (p. 47). ntreo legal e o ilegal, arbitrio e ambigiiidade Nao e rata de um “Estado paralelo” ou universo partido. A realidade € bem mais complexa. Uma ambigidade entre o legal e 0 ilegal perpas- s2 todo 0 conjunto da sociedade do qual nao escapa, mas, ao contré- tio, ganham posicao de destaque as instituigées publicas. Wanderley Guilherme dos Santos lembra que 0 Brasil constitui uma poliarquia (acumulagdo material diversificada, intenso crescimento econémico de 1949 a 1980, diversidade e multiplicidade de grupos de interesses etc.), mas que acaba ndo funcionando como tal (desperdi- ios continuados, ndo-revisdo de erros etc.). Por qué? Ao lado de abundante e continua legislacao regulatéria, que 0 autor chama de face poliarquica, o Brasil mostra outro lado de desprestigioe desconfianca nas instituigdes (por exemplo na justica e na policia), fal- tade interesse pelo voto € pelos politicos. Some-se a isto a imprevisibi- lidade sobre a vida futura, inseguranga, impunidade associada a puni¢ao aleatéria, desmoralizacdo das normas e cédigos de conduta coletiva etc, A fratura nao seria, segundo Guilherme dos Santos, nem geografica enem entre classes sociais, mas se trata de uma “dicotomia institucio- nal" (p. 101). Transitamos todos, segundo © autor, entre as instituigoes polidrquicas para as nao-poliérquicas, como se estas constituissem um Linico universo institucional (Santos, 1993). ENIRE 0 UGAL EO REGAL — MERCADO € CASE 6 Falco desenvolve a nogao de pluralismo juridico em oposi¢30 20 diretoestatal como Gnica forma juridica dz saciedade. Apenas numa situago de pluralismo juriico, © descolamento enirejustiga social ejustica legal, segundo 0 autor, pode ser evitado, \wranna Panizzi discorre sobre 0 engendramento de novas “relagdes juridicas” que so fruto de indimeras negociagBes: Simples acordos verbais _2cabam se transformando em regulamentagdes escrtas, consagrando 3 nova preeminéncia loca, certos interesses sociais negligenciados pelo Estado Panizzi, 1989, p. 84), 2 Enotavel a tolerancia que o Estado brasileiro, especialmente o judicis rio, tem manifestado em relacao as ocupagces ilegais de terra urbana. Esse processo é significativo em suas dimensées, se levarmos em con- ta, sobretudo, a grande massa de migrantes que rumou para as cidades neste século e que se instalou ilegalmente jé que nao teve acesso a0 mercado imobilidrio privado e nem foram atendidos pelas politicas piblicas de habitacao. Investigando nove casos de conflitos envolvendo ocupagao e proprie- dade de terra, Joaquim de Arruda Falco nota que: A ideologia juridico-liberal (os preceitos legais do Codigo Civil) que reduz os conflitos sociais a conilitos individuais, nao prevaleceu. (..) As partes e mesmo 0 Judiciario ignoraram se seus atos eram legais ou nao. Simplesmente abandonaram o Cédigo (p. 114). Em varios dos casos, a ordem legal é ignorada de forma deliberada e consensual. A resolugao do conflito recorreu a outra ordem juridica, “a ordem juridica informal” (Falcao, 1993)". Analisando um caso de rein- tegracao de posse de um terreno do lapas ocupado por uma favela, Eduardo Guimaraes de Carvalho caminha no mesmo e aparentemente surpreendente sentido: Muito embora as ages de reintegracdo se encaminhassem, em tese, para uma remocao de verdade, os processos pararam. Nenhuma das agdes andou desde a réplica do Instituto. O Instituto nao impulsiona a acao, nem os réus peticionam. Um escrevente me assegurou que 0 juiz também nao desejava ver o processo andar (Carvalho, 1991, p. 65). autor nota que o direito institui normas genéricas que implicam con- trole social para toda a sociedade e no apenas para parte dela, e é justamente ai que se abre espaco para a contradi¢ao. A justiga se reali- aria, neste caso, pela forma como a lei é esquecida e nao pela forma como ela é colocada em pratica. A decisao fundada na necessidade nao corresponde nenhuma lei (apesar do grande esforco das correntes IMeTROPOXE Na FERRI 00 CAPMALSMO = Eadea MaRCATD do direito que buscam argumento para uma sociedade mais cidada), a0 asso que a decisdo baseada na lei nao se mostra vidvel. Nem sempre, entretanto, a tolerancia prevalece, o que evidencia que a lei pode ser aplicada como pode nao ser. Ambigtidade e arbitrio como convém a uma sociedade patrimonialista e clientelista ou como con- vém ao mercado imobiliario formal, para o qual a escassez aumenta as oportunidades de ganhos. Direito 4 ocupagao, sim. Direito a cidade, nao ‘Amaior tolerancia e condescendéncia para com a produgao ilegal do espaco urbano vem dos governs municipais aos quais cabe a maior parte da competéncia constitucional de controlar a ocupacao do solo. Alégica concentradora da gestéo publica urbana nao admite a incor poragao ao or¢amento publico da imensa massa, moradora da cidade ilegal, demandatéria de servicos piblicos. Seu desconhecimento se impoe, com excecao de aces pontuais definidas em barganhas politi- cas ou periodos pré-eleitorais. Essa situacdo constitui, portanto, inesgo- tivel fonte para o clientelismo politico. Em 1987, 0 desmoronamento de diversas encostas ocupadas por lo- teamentos ilegais na cidade de Petropolis, apés intensa chuva, resultou em tragédia sem precedentes por causa do ntimero de desabrigados e mesmo de mortos. Além de nao impedir a ocupacaio das encostas que nao apresentavam condi¢des fisicas favoraveis e cuja seguranca ficou mais Comprometida com a infiltragao das fossas individuais cavadas 10s morros, 0 governo municipal a incentivou executando um progra- ma de obras pontuais de iluminacao publica e asfaltamento do acesso para a entrada do transporte coletivo, sem levar em consideragdo um diagndstico geotécnico. Com isso 0 governo atendeu a pressao da po- pulacdo moradora dos loteamentos!?, O poder de policia sobre o uso das terras piblicas urbanas é exercido Esrme 0 uA £0 Mica — seRcA0o € cca & autora pbde viver pessoalmente uma ‘experiéncia que comprova o que foi dito ‘aqui sobre Petiopols: apds panicipar de ‘uma reuni3o com uma comunidade de um loteamentailegal em Petrépalis, meu retorno foi impedido por causa de uma boarrera de tera que havia fechado a “nica passagem de veiculo que dava acesso 20 loteamenta, © acess tinha sido asfatado ha pouco tempo (pelo qual a comunidade muito satisfita agradeceu 20 entio prefete) endo correspondia & boa técnica de ‘engenharia, so era evidente pela ‘auséncia de embasamento adequadlo ¢ pela espessura da pavimentagso,além do temersrio corte realizado na encosta do morro para a execucao do acesso que ppermitia a passager de um veiculo ‘apenas, em alguns trechos, 6 de forma discriminatéria nos diversos bairros da cidade. Areas de pro- te¢ao ambiental, desvalorizadas para o mercado imobilisrio, nao rara- mente sao priorizadas para ocupagao pela populagao pobre, seja nas favelas, seja nos loteamentos irregulares, abertos sob os olhares da con- descendente fiscalizacao. A tolerancia pelo Estado, em relacao a ocupagio ilegal, pobre e preda- toria de areas de protec ambiental ou demais areas piblicas, por camadas populares, esta longe de significar, 0 que poderia ser argu- mentado, uma politica de respeito aos carentes de moradia ou aos di- reitos humanos, j4 que a populacao aise instala, sem contar com nenhum servico ptblico ou obras de infra-estrutura urbana. Em muitos casos os problemas de drenagem, risco de vida por desmoronamentos, obsté- Culos a instalagao de rede de agua e esgotos, torna inviavel, ou extre- ‘mamente cara, a urbanizacao futura. Entre fins de 1995 e inicio de 1996, a Prefeitura de So Paulo removeu das Areas lindeiras ao Cérrego Aguas Espraiadas, cinco favelas com aproximadamente 9.600 moradores. O conjunto das remocées nao tinha uma justificativa técnica nas obras vidrias locais. Ela, a justifica- tiva, obedeceu a outra légica: a area esta situada em pleno coracaoda regido de maior potencial de valorizagao imobiliaria da cidade de S30 Paulo, nos anos 90. Mariana Fix mostra em seu estudo que, alternando presses e incentivos mediante diminuta compensacao pecuniéria in- formal, a Prefeitura, em parceria com a empreiteira que executava a obra viaria, e um grupo de empresérios, lograram remover os morado- res que foram distribuidos em varios lugares muito distantes daquele. Um dos destinos de parte dos moradores da favela situada em area nobre (de propriedade parcialmente privada) foi a area de protecdo ambiental da bacia da represa de Guarapiranga, manancial de agua de Sao Paulo, Sob os auspicios do poder publico municipal, aliado a empresérios que reuniram recursos para pagar uma indenizacio infor. mal para os moradores, parte da favela Jardim Edith 1 foi transferida Para a area de protecao ambiental, cuja preservacao, diga-se de pas- sagem, € de competéncia legal do mesmo poder puiblico municipal (em concorréncia com 0 Executivo estadual) (Fix, 1996). MetRoPoLe Na ERA 90 CAFTAUSHO - ER MARIATO Exemplo semelhante foi obtido durante uma reuniao do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (fevereiro de 1995, na cidade de Goia- nia), quando uma lideranca de movimentos de moradia do Estado do Espirito Santo revelou toda sua angiistia e perplexidade porque um pre- feito de uma cidade litoranea daquele estado incentivava a populagao pobre a ocupar as areas de mangues, ao passo que as liderancas do movimento buscavam evitar a ocupacao dessa area exigindo outra so- lugdo. Autoridades que detém o poder de policia e deveriam garantir a preservacao do patriménio ambiental incentivam sua deterioracao. As liderancas populares que supostamente deveriam perfilar-se ao lado dos que desesperadamente lutam por um pedaco de terra para morar, encontram-se at6nitas, em conflito com seus iguais que véem no pre- feito mais “compreenséo” para seu desespero. ‘Aocupacao pela populacao pobre e o progressivo aterramento de man- gues nas cidades litorneas brasileiras é praticamente a regra. Esse ca- minho combina a auséncia de investimentos em programas habitacionais, {a precaria e lenta urbanizagao do mangue alimentara a relacao clien- telsta durante muitos anos) e a preservagao dos terrenos privados para o mercado formal. A a¢ao pratica do Estado, no Brasil, fornece exem- plos freqiientes nos quais o patriménio fundirio privado merece mai cuidados que © patriménio publico, incluindo ai as areas legalment. submetidas a preservacao ambiental. A ocupacao ilegal como as fave- las so largamente toleradas quando nao interferem nos circuitos cen- trais da realizago do lucro imobilidrio privado. Qualquer analise superficial das cidades brasileiras revela relacao dire- {a entre moradia pobre e degradacao ambiental. Isso nao quer dizer que a producao imobiliria privada ou que o Estado, pela producao do ambiente construfdo, nao causem danos ao meio ambiente. Séo abun- dantes os exemplos de aterramento de mangues em todo o litoral do pats para a construcao de condominios de lazer. Ou poderfamos citar as indefectiveis avenidas de fundo de vale com canalizacdes de cérre- 80s to a0 gosto dos prefeitos municipais e de uma certa engenharia “urissica" (para ficarmos em apenas dois exemplos relativos & ocupa- ¢f0 urbana do solo). © que interessa chamar atencao aqui é que gran- ENIRE 0 LEGAL €. MEGAL — MERCADO €KScASEZ de parte das reas urbanas de protecao ambiental esto ameacadas pela ocupacao com uso habitacional pobre, por absoluta falta de alternat- vas. As conseqiiéncias de tal processo atingem toda a cidade, mas es pecialmente as camadas populares. Luiz Jorge Perez mostra a relacao direta que existe entre degradacao ambiental e a satide na cidade do Rio de Janeiro, A ma qualidade da gua e a contaminagao dos rios urbanos por Sguas servidas e lixo do- méstico é responsdvel por enfermidades como leptospirose, doencas diarréicas, dengue hemorragico, hepatite e outras (Perez, 1993). As ocupacées predatorias dos morros, mangues e fundos de vales sio a causa de freqiientes desmoronamentos ¢ enchentes. Se, de um lado, o crescimento urbano foi intenso e o Estado teve difi- culdades de responder as dimensGes da demanda, de outro, a toleran- cia para com essa ocupacao andrquica do solo esta coerente com a légica do mercado fundiario capitalista, restrito, especulativo, discrimi- natério e com o investimento puiblico concentrado. Sendo vejamos. Exame superficial dos orcamentos municipais das capitais brasileiras é suficiente para revelar que a circulacao do automével reina absoluta como item prioritario, ha varias décadas. Apés um governo que priori- zou historicamente 0 investimento em politicas sociais, a gestio do prefeito Paulo Maluf, que tem inicio em 1993, no municipio de Sio Paulo, volta a seguir um modelo que acompanha a politica urbana ha décadas, iniciando onze megaobras (sobretudo vidrias) orgadas em US$754,5 milhées. Em 1994 a Prefeitura investiu 39,7% do orcamento em politicas sociais, em 93 investiu 49,4%, ao passo que em 1992, na gestdo de Luiza Erundina, a proporcao foi de 56,8%. A gestao Erundina partiu de um patamar, em 1989, no qual aproximadamente um quarto dos investimentos municipais estavam destinados a seis megaobras viarias iniciadas na gestao anterior (Janio Quadros). Ela inverteu priori- dades entre 89 € 92 ampliando os orgamentos de satide, educacao, transportes, abastecimento e habitagdo. Na gestdo Maluf, de corte tra dicional conservador, essas areas perdem recursos (Folha de S.Paulo, 2/1/95). Comparando os orgamentos de 1993 com 1992, a satide per- MErRGPote NA FERFERA D0 CAMLISHO - ERAN MARCATO dev 35% ea habitacdo 56%. Em compensacao, vias piblicas cresce- ram 26% de acordo com o sistema de acompanhamento orc¢amentario da Camara Municipal. O investimento concentrado na cidade hegeménica ¢ em megaobras viarias esta coerente com a representa¢ao ideol6gica que desconhece a cidade real. Essa representagdo que toma a parte (cidade oficial) como sendo 0 todo, abre espaco para a manipulacao da chamada opiniao piblica. Busca-se tradicionalmente dar visibilidade a gesto publica ‘mediante interveng6es simbdlicas, mesmo nas areas sociais. Em vez de um Plano Habitacional complexo, que leve em conta a diversidade dos aspectos urbanisticos (cortigos, areas de risco, falta de saneamento etc.) investe-se na construgio de um conjunto habitacional “modelo” (muti- ‘fo de Goiania da gestado Iris Rezende) ou de obras pontuais em lugares Visiveis (projeto Cingapura da gestéo Paulo Maluf) que, potencializa- dos pelas campanhas publicitarias, passam a idéia do todo por meio do simbolo. Durante a construgao de conjunto habitacional em Goidnia, em 1985, cujo apelo publicitario se referia ao fato como “O mutirao de Goids: mil casas em um dia”, uma camara de TV foi fixada em um mesmo ponto durante as 24 horas de montagem das casas, montagem essa que {oi eita com os components e painéis previamente produzidos e loca- lizados em cada lote. Toda a producao para 0 performatico evento foi minuciosamente planejada, com varios meses de antecedéncia. O fil- me resultante, projetado largamente na midia, em velocidade acelera- a, mostrava o milagre do erguimento das mil casas em um minuto, ‘Apés esse dia, 1.000 familias foram retiradas da cidade e isolacas em um conjunto situado a doze quilémetros das areas urbanizadas de Goidnia, Perderam as poucas oportunidades de ganho por causa da precariedade e do alto custo dos transports, mas, em compensacao, 0 entéo governador de Goids conseguiu indicar seu secretério de plane- jamento, idealizador do “mutirao das mil casas em um dia”, para o Ministério do Desenvolvimento Urbano do governo federal, logo de- pois (Maricato & Moraes, 1986). Bae 0 GAL €0 LEGA — MERCADO E BASS 6 Durante trés anos de governo, a gestdo do prefeito Paulo Maluf (1993) 1995) entregou 840 apartamentos do chamado projeto Cingapura,cue onsistiu na substituigao de barracos ou casas de favelas por edifices de apartamentos, 0 que representa menos de 0,05% do universo de domicilios de favelas do municipio. Potencializado por imensa campa- nha publicitaria e pela visibilidade fisica (os edificios foram constr dos apenas em pontos de grande visibilidade ou lugares valorizades pelo mercado imobilidrio), 0 projeto construiu a idéia de que todas s favelas de Sao Paulo estavam sendo substituidas por edificios de apar- tamentos. De acordo com o sistema de acompanhamento orcaments rio da Camara Municipal de So Paulo, apenas no ano de 1995, a Prefeitura investiu aproximadamente US$4 milhées na publicidade do Cingapura, o que daria para construir 220 apartamentos pelo preco que estava sendo praticado entdo. Se, como dizia a publicidade, 0 governo tivesse entregue 8.000 apartamentos, a Prefeitura levaria 112 anos para alocar em apartamentos os moradores de favelas da cidade, sem contar seu crescimento nesse perfodo, A verticalizacao de favelas foi iniciada na gestio de Luiza Erundina, como um subprograma do Programa de Urbanizacao de Favelas. Ape nas quando a densidade, a andlise técnica urbanistica e 0 valor da tera recomendavam, a favela era substituida por edificios de apartamentos Do contratio, a favela era urbanizada ja que 0 custo da urbanizagao era pelo menos seis vezes mais econémico, por familia, do que a cons- trucao de edificios. Um numero seis vezes maior de pessoas poderia ser atendido, com a urbanizagao de favelas e sua integracio urbanist- ca ao contexto do bairro. A gestdo posterior paralisou todos os progra- mas habitacionais em andamento, com excecao da verticalizacao de favelas a0 qual deu o nome fantasia de Cingapura, numa alusio a um pais com regime politico autoritério, que conseguiu de fato fazer uma reforma urbana, com base em intenso investimento estatal e rigorosa regulamentacao fundiaria. O investimento no chamado projeto Cinga pura, se restringe especialmente as favelas localizadas em areas valor- zadas pelo mercado imobilidrio hegeménico. Nesse sentido nao foge & tradi¢ao iniciada com a Repiblica, de eliminar as manifestagées de pobreza das areas valorizadas. (METROROLE WA PRFEIA DO CARTALSIO - ER MACAO Harvey insiste na crescente importancia da imagem como mercadoria. Se, para 0 capital privado, o investimento em imagem passa a ser tic importante quanto 0 investimento em maquinas e edificios, para gover nos que se apdiam em tdo “extravagante” distancia entre o discurso e a pratica, ela é fundamental (Harvey, 1993). Uma intensa campanha publicitaria, que explora o desejo de moderni- dade (apartamentos no lugar de favelas), ou de solugdes magicas (mil casas em um dia ou um minuto), atribui cardter de universal ao que é feito em territ6rio restrito e limitado, por meio de cenarios ou perfor- ‘mances.Uma politica de fachada para uma pratica de faz-de-conta em uma cidade de ficcao. 0s investimentos na periferia nao contam para a dinamica do poder politico, como os préprios excluidos nao contam para a cidadania ou para 0 mercado. E, 0 que é mais tragico, a priorizagaio das politicas sociais, de complexa visibilidade, freqiientemente nao conta nem mes- ‘mo para os proprios excluidos, cujas referéncias sao a centralidade e a modernidade dominantes. Occontrole urbanistico e o poder de policia sao exercidos apenas na cidade oficial. A fiscalizagao rigorosa que levou a Prefeitura de Sao Paulo a multar o restaurante do clube de elite por manter em estoque leite com o prazo de validade vencido um dia, convive com a falta de lengdis nos hospitais publicos municipais da periferia. A radical aco contra 0s cigarros nos restaurantes da cidade oficial convive com o cha de folhas de goiabeira, colhidas pelos funcionérios de hospital infantil, uiilizado como antidoto contra a diarréia. O embargo de 21 imoveis cujos usos contrariavam a lei do zoneamento nos Jardins, bairros con- centradores das moradias de alta renda em Sao Paulo, foi anunciado em manchete por um dos jornais de maior circulagao na cidade, a mesma que apresenta centenas de milhares de imveis completamente. ilegais em relaco a todas as leis urbanisticas. A midia que endossa essa dindmica (0s fatos mencionados estao na imprensa escrita do ano de 1995 em Sao Paulo) fortalece a representacao urbana ficcional, se- guindo 0 interesse dos seus eleitores que residem na cidade oficial, ENIRE © ECAL £0 REGAL — MERCADO € CASE cy Em fevereto de 1993, fi realizado na cidade do México encontro intemacional: Managing the Access of the Poor to Urban Land. New Approaches for Regularization Polices in the Developing Countries, promavido por The World Bank, UNDP, Habitat, Ministre des Affaires trangeres — France, Universidad Nacional Auténoma ide México, Institut Frangais d'Amérique Latine. 0 encontro pari de estudos de casos em diversos paises: Delhi e Bhopal na india; Bangkok na Taléndia; Cordoba na Argentina, Lima no Peru; S30 Paulo e Recife no Brasil, Santiago no Chile; © México no México, e produziu direrizes © recomendacées, 70 O direito a cidade para todos passa pelo acesso a urbanizacao como também pelo acesso a condicao habitacional legal. Embora a ocupa ao ilegal da terra urbana seja genérica e crescentemente tolerada, seu reconhecimento legal é raro. £ evidente que estamos diante de um con- flito generalizado que exigiré alguma resolucao institucional a propor. G40 que as relacdes democraticas se ampliem e com elas a univer salizacdo dos direitos como reza a Constituicao. Mas, aparentemente, tudo caminha para estender essa contradicao até o limite do possivel Comentando encontro internacional sobre regularizagao fundidria em paises nao-desenvolvidos, o boletim da Aitec— Association Internatio. nale de Techniciens, Experts et Chercheurs destaca'?: Os programas de regulariza¢ao permanecem freqiientemente ao nivel do projeto piloto e de experimentacao. O problema principal é 0 da mudanga de escala, da passagem a verdadeira dimensao, da medida do deficit a resolver (Aitec, 1994). Os projetos-pilotos que sio a razao de ser de muitas ONGs bem-inten- cionadas (e que podem até servir de paradigma para propostas altemna- tivas) nao sao passiveis de generalizac6es, pois exigiriam transformacoes sociais mais profundas. © mesmo boletim da Aitec lembra: A questo é a da relacao entre mercado, Estado e democracia A generalizacio da cidadania e do direito acarreta transformagées no mercado privado, na propriedade da terra e na relagao entre os capitais que participam da produgao do espago. Por isso a superacao da exclu- sao social no espago exige profundas transformagGes na sociedade, nao bastando, embora seja importante, garantir no texto da lei os direitos fundamentais dos quais esta privada a maioria da populacao brasileira |METROROUE NA PREERIA DO CAPIALSMO - Een MARICATO Parte III SEGREGACAO AMBIENTAL E VIOLENCIA URBANA Violéncia urbana Agente sé vé 0 fundamentalismo religioso (...) mas a verdade verdadei- raéque o fundamentalismo que estd fazendo mal mesmo € 0 mercantil (Celso Furtado, Folha de S.Paulo, 5/6/94). Em 1994, 0 Brasil elegeu um presidente da Republica que nao apresen- tou em seu programa de governo, concebido sob o signo da modemni dade, uma proposta de politica urbana. Esse fato se insere na significativa relagdo de outros que comprovam 0 desprezo da sociedade brasileira em relagao ao assunto, como ja cha- mamos atenco anteriormente. O projeto de lei do desenvolvimento urbano ou também chamado estatuto da cidade, esta em anélise no Congreso Nacional desde 1983, quando sua primeira versao foi para afenviada. O artigo 182 da Constituicao Brasileira de 1988 permanece sem regulamentagao. Durante os anos 80 foi criado, modificado e ex- tinto um Ministério da Habitacao e do Desenvolvimento Urbano, sendo queas areas de habitagao e saneamento ficaram subordinadas & pol cade "bem-estar social” no Ministério da Promogao Social até meados dos anos 90. As instituigdes brasileiras nao despendem muito tempo e tengo com a questo urbana, o que é grave se considerarmos que 0 indice de urbanizacao é bastante alto ou que 75% da populacao mora em cidades, ou ainda que 43,7 milhGes de pessoas (praticamente um terco de toda a populagao) mora em apenas nove metrépoles. As areas metropolitanas, por sua vez, est4o com sua administracao pulverizada pelos municipios, o que significa uma quase total fragmentacao, de- pendente para uma ago articulada, apenas da boa vontade e disponi- bilidade dos prefeitos que a corstituem ou da colaboracao entre governos municipais e governos estaduais (o que é raro). Sobre essa questao (politica urbana), Carlos Nelson dos Santos chama- vaatengao, durante debate que precedeu a Constituigao Brasileira de 1988: SEGREGAGHO AMHENTALE VOUENC URRANA B ry ‘Nem partidos, nem seus candidatos estado muito atentos a tais assuntos ‘Nao usam falar deles, nem apresentam programas especiais. Em com pensagao, nao ha muita gente fazendo cobrangas neste sentido. £ for- 050 aceitar que o tema é incipiente para a opiniao em geral. Dever ganhar destaque daqui a uns dez ou vinte anos (Santos, 1986). ‘A auséncia da politica urbana, ou a pratica vigente de gerir as polit- cas de habitagao, saneamento e transportes urbanos como setoriais é grave porque denota incompreensao da importancia da gestao do uso e da ocupacao do solo. Além da profunda injustica social, agressio ambiental e deseconomias resultantes de um processo que, em gran- de parte “corre solto”, ilegalmente, sem a presen¢a do chamado con- trole urbanistico, queremos chamar atencao para outra consequéncia: a violéncia urbana, assunto que preocupa atualmente toda a socieda- de, pobres e ricos. Queremos demonstrar que ha relacao entre forma urbana e violéncia, ou que a segrega¢o ambiental nao ¢ simples re- flexo ou suporte de uma sociedade que produz e reproduz avioléncia, mas é parte importante de um processo que tem no funcionamento do mercado imobilidrio segregador um expediente central de exclusao. A nova “(des)ordem internacional” ou “(des)ajuste global” ea explosio da violéncia O neoliberalismo trouxe os desempregados e sem-teto as ruas das principais cidades européias e norte-americanas. Gragas a “precati- zacao" nas relacées de trabalho, trabalhadores jovens perambulam com a familia em traillers, em busca de trabalho temporario em va- rias regides da Europa (Virilio, 1994). Em 1993, a CEE apresentava 17,7 milhdes de desempregados, a OCDE, 35 milhdes (Mattoso, 1994). ‘Ainda em 1993, a CEE apresentava 2,5 milhdes de pessoas sem abri go, ou 7,5 para cada 1.000 habitantes (Feantsa). Sem a ameaca do Comunismo, sem a forte pressao dos grandes sindicatos, hoje enfra- quecidos, e sob forte crise fiscal, 0 capitalismo dos anos 70 abandona a fase fordista/keynesiana. MeTRGPOLE NA PERERA 0 CAPTALISMO - ERMA MARICATO Como nota Harvey, a fragmentacao, a dualizagao, a favelizacdo eo isolamento da pobreza, atingem as cidades britanicas e norte-america- nas causados por uma transi¢ao no regime de acumulacao (e também no modo de regulacdo, adenda o autor, que se apropria de conceitos da escola francesa da regulacao). O paradigma da flexibiliza¢ao (tanto 1na produgao quanto no mercado), substitui o da rigidez, caracteristico da producao massiva fordista (Harvey, 1993), Enfim a palavra eficiéncia, antes subordinada a palavra equidade, foi algada a0 primeiro plano (Cano, 1994). Anova ordem ou ajuste (desordem como quer Wilson Cano, desajuste como querem Maria da Conceicao Tavares € José Luis Fiori) determina: desregulamentacdo/re-regulamentacao do mercado, redugao e privati- zaca0 do Estado, producao flexivel e “precarizacao” nas relacées de trabalho, incorporagao de tecnologia complexa, predominancia da es- fera financeira, maior internacionalizacao da producao e do mercado, em contraponto ao dominio baseado em territérios nacionais, apenas para dar um quadro muito esquematico da chamada modemizacao conservadora (Tavares & Fiori, 1994; Cano, 1993; Lipietz, 1989; Har- vey, 1993 e Mattoso, 1994), Nos paises desenvolvidos a nova ordem politica e econdmica partiu de um patamar (fordista/keynesiano) de relativa homogeneizacao da es- trutura produtiva, do mercado de trabalho e também do consumo, cons- truidas sobretudo apés a segunda guerra mundial. Pela primeira vez em sua hist6ria, 0 capitalismo nos paises avancados combinou, entdo, crescimento econdmico e pleno emprego; mecanis- mos de mercado e politicas estruturantes com ampliacao e diversifica- c4o da intervencao estatal; economia intemacionalizada e administragao da demanda agregada; descentraliza¢ao das decisdes capitalistas e con. tratacao coletiva crescentemente centralizada; eleva¢ao da produtivi dade e distribui¢ao de renda (Mattoso, 1994). O mundo periférico entretanto nao viveu a generalizacao das politicas SeCRECAGAO AMBRNTAL € MOLENGIA URBASA 75 1 Nunca 6 demais lembyar 0 intenso crescimento econdmico brasileiro das iimas décadas, como fazem Schilling e Fiori, que resultaram nos grandes contrastes pelo qual o Brasil & conhecido. Segundo a Prad/BGE, em 1990, de tum total de 1.362.119 jovens ttabalhadores entie 10 ¢ 14 anos, 91,4% nao tinham carteira assinada. Dos 5.873.772 jovens entre 15 e 19 anos, 60,4% ndo tinham carteita assinada, Esses dados mostram que a maior parte dos jovens trabalhadores nio t&m direitos previdencisrios e trabalhisas e {que sua entrada no mercado de trabalho se faz, sobretudo, pelo setor informal. A inddstia de transformagao € a principal fonte de emprego para criangas e adolescentes na Srea metropolitana de ‘io Paulo. 76 keynesianas. Sua situagao era bem diferente no final dos anos 70, quan: do 0 impacto das mudangas internacionais atinge fortemente esses pa- ises. Como lembra Conceicao Tavares: O custo dessa politica de coordenacao dos grandes paises capitalistas foi, durante uma década, pago mais duramente pelo mundo periférico, seja capitalista ou socialista (Tavares, 1994), Aexclusio social acompanha o processo de industrializacao/urbaniza- a0 brasileiras. Exclusdo e concentragao s4o, como vimos, paradigmas constantes do capitalismo brasileiro. A década de 80 € marcada pelo fim do modelo desenvolvimentista adotado no Brasil a partir de 1930" Gracas as altas taxas de juros internacionais incidentes na divida exter. na, 0 Brasil passa a ser exportador de capital para os paises ricos, ao lado de outros paises pobres (Fiori, 1994). A concentragao de renda se aprofunda, diminui o consumo de alimentos per capita, assim como diminui 0 poder aquisitivo do salario minimo e aumenta o ntimero de mulheres e criangas que se incorporam a forca de trabalho como expe- diente para aumentar a renda familiar. © censo de 1991 revela um namero de 3,2 milhdes de criangas e adolescentes entre zero e dezes- sete anos que trabalham e estudam e quatro milhdes que trabalham exclusivamente (Schilling, 1994)". Se na Europa e nos Estados Unidos parte dos trabalhadores se torna mais e mais descartavel com a nova ordem que combina altos salérios na inddstria integrada, com desemprego ou terceirizacao a partir dos anos 70, nao é de se estranhar que um caminhao da administragio municipal de Sao Paulo tenha esmagado a cabeca de uma crianga que dormia na rua confundindo-a com lixo, numa operagao de “limpeza urbana” em 1994, Durante os anos 80, uma quantidade inusitada de mendigos, moradores de rua e criancas abandonadas se incorpora a Paisagem central das grandes cidades brasileiras. E agora mais ainda, quando a dinamizagao do capital se mostra ligada estruturalmente a criacao de desemprego, recolocando a divisdo social ea destrutividade da modemiza¢3o competitiva no centro do debate _MerRo?OUe Wa PeartRA 60 cAerALSM - Een Manto europeu. Como serd no Brasil, onde estes resultados ndo se produzem depoise sim antes de integrada a populagao ao mercado e as garantias sociais? (Schwarz, 1994). ‘Aexclusdo social, como vimos, ndo é uma caracteristica que chegou & sociedade brasileira com a chamada “globalizacao”. A novidade trazi- da pelo aprofundamento da pobreza nos anos 80 foi a explosdo da violéncia urbana, que apresenta nmeros e dimensao até ento inédi- tos, Estamos nos referindo aqui a violéncia expressa na criminalidade, em particular nos homicidios, mas é necessario lembrar que constitui expressio de violéncia a exclusao econémica, social, cultural, legal e ambiental da qual viemos tratando até agora. Numa sociedade tao de- sigual o conceito de violencia esta freqientemente ligado a delingién- cia proveniente dos marginais ou dos mais pobres. Trata-se de conceito classista de uma sociedade que prioriza a defesa do patrimonio indivi- dual antes de priorizar por exemplo a integridade do trabalhador ou da crianca, Varios autores j discorreram sobre a violéncia institucionali- zada presente nas relagdes de trabalho, no sistema publico de atendi- mento a satide, nos acidentes de transito, na concentracao da renda privilegios, nos transportes congestionados durante longos percursos, nas migracdes forcadas, ou na injustiga de um modo geral (Ant & Ko- warick, 1981; Oliven, 1981; Santos, 1989, entre outros). Outros traba- thos analiticos destacam a violéncia institucionalizada na agao da propria policia (MNMMR, 1991; Bicudo, 1988; NEV-USP, 1990; Benevides, 1983). O crescimento dos homicidios e latrocinios, entretanto (ao lado de roubos, seqiiestros, assaltos etc.), é tdo espetacular a partir dos anos 80, que se impde como evidéncia, uma vez que passa a fazer parte da experiéncia pessoal de cada dia, ndo apenas como assunto dos que tém muito a perder, mas também e sobretudo dos que tém apenas a propria vida. Intimeros so os levantamentos que revelam 0 que qual- quer cidadao morador de metropole brasileira percebe: o aumento da violéncia criminal. Uma pesquisa do Centro Latino-Americano de Estudos sobre Violéncia e Saude (Claves), da Fundacdo Oswaldo Cruz, mostra que as mortes Violentas passaram de quarto para segundo lugar entre as causas das SECREGAGAO AVENTALE VORENGIA URBANA 7 78 mortes nas grandes capitais do pafs, sendo suplantadas somente por doencas cardiovasculares, durante o periodo de 1980 a 1988. Em levantamento feito em um setor especifico da regio metropolitana Composto pelos municipios periféricos, que abrigam uma maioria de populacao pobre (Guarulhos, Franco da Rocha, Santa Isabel, Francisco Morato, Mairipord, Caieiras e Cajamar), o Estudo Comparativo da Vio léncia aponta aumento de 47% no ntimero de homicidios acima do crescimento populacional.. O trabalho apresentado no 13.° Congreso Brasileiro de Medicina Legal, que teve lugar em Brasilia em 1994, com- Parou os periodos de tempo que vao de 1/6/83 a 31/5/84, com 1/6/93. 31/5/94. No primeiro periodo ocorreram 2,9 mortes para cada grupo de 10.000 habitantes. No segundo periodo esse numero foi de 4,3, ov seja, 0 nmeros de homicidios dobrou. O Centro Luiz Freire — Cultura, Educacao, Direitos Humanos consta- tou aumento de 22% do ntimero de homicidios em todas as faixas eta- rias entre os primeiros seis meses de 1993 € os primeiros seis meses de 1994, em Pernambuco. Entre os adolescentes 0 aumento de homicfdios € muito maior (94%) no mesmo period. © Censo de 1991 confirma o que todos os levantamentos locais ¢ re- gionais mais detalhados apontam: o sensivel aumento da violéncia e, 0 que € mais notavel, a elevacao do ntimero de mortes de criancas e adolescentes assassinados. Apenas no Estado do Rio de Janeiro, 1.081 criangas e adolescentes foram mortos no periodo de 1985 a 1989. Na Baixada Fluminense e Volta Redonda, foram registrados assassinatos de 306 criangas entre janeiro de 1987 a junho de 1988 (MNMMR, 1991), De acordo com evidéncias cientificas 0 Rio de Janeiro aparece comoa cidade onde a violéncia € mais alarmante. De 1980 a 1990 a taxa de homicidios cresceu de 33 para 59. Sao Paulo também apresenta cresci- mento radical no ntimero de homicidios nesse periodo: no inicio dele, a taxa de homicidios foi de 17,3 e no final 43,3, No inicio dos anos 90 as taxas de homicidios se mantém altas, com pequenas variacoes, € Merscrote na mts 90 CARTS - ERA MARCO alguns dados parciais para 94 e 95 induzem interpretag6es sobre a queda da taxa de homicidios no Rio de Janeiro e seu aumento em Sao Paulo. Ganha relevo especial o ntimero de mortes — um total de 219 — nos feriados do carnaval de 1996 em Sao Paulo (Folha de S.Paulo, 3/3/96). EVOLUGAO DO NUMERO DE HOMICIDIOS NAS CIDADES DE SAO PAULO E RIO DE JANEIRO 1980/1993 (TAXA POR 100.000 HAB,) 30 Palo io de Janeiro 73 330 433 53.0 438 500 aor. 55,2 a 397, 55,0 Fontes Proaim/Seade/Secretaria de Sade do Rio de Janeiro Mas 6 engano pensar que o ovo da serpente nao esta presente em toda grande cidade brasileira. Até mesmo em capitais de médio porte, em que a qualidade de vida média é razoavel e a violéncia ainda nao apre- senta indicadores alarmantes, alguns sinais ja indicam sua presenca. Levantamento feito pela prefeitura da agradavel cidade praiana de Flo- riandpolis (menos de 300.000 habitantes), entre os favelados da cida- de, surpreendeu os funcionérios municipais. Amaior preocupacao dessa populacdo, que é carente de indimeros servicos urbanos, nao foi trans- porte, satide ou abastecimento, mas sim tréfico de drogas. Em Joao Pes- 0a, capital do Estado da Parafba, cuja 4rea metropolitana tem perto de 500.000 moradores e graves problemas de saneamento, a seguranca é a maior preocupacao da populacao, segundo a Secretaria Municipal do Planejamento. Sao José do Rio Preto, cidade de porte médio, relati- vamente rica, do interior do Estado de Sao Paulo, jé apresenta contlitos entre comerciantes do centro e menores abandonados. Em outras cida- des que apresentam nivel médio alto de renda como Santos, Campinas € Sao José dos Campos, a morte por homicidio comegou a influir na esperanca de vida entre os homens, como acontece nas maiores cida- des (Seade]. Esses exemplos se referem as cidades de porte médio, que apresentam boa qualidade de vida e que esto longe de apresentar a situagao de violéncia generalizada das grandes Areas metropolitanas. ‘SEGREGAGSO AUBIEIAL E VOLENCA URBANA 79 80 5 indicios mostram, entretanto, uma mesma e comum direc. Se nos referimos mais a Sao Paulo e Rio de Janeiro, é porque a situagao é mais, evidente e paradigmatica. ‘Aemergéncia do crime organizado e do trafico de drogas, os grupos de exterminio, a matanga de criangas € adolescentes so fatos que ga nham dimensdes novas a partir dos anos 80. Os militantes de esquer da, 0 militantes catélicos da teologia da libertacao, as ONGs criadas partir do inicio dos anos 70 com auxilio internacional, que foram ao: bairros populares e aos sindicatos ajudar na organizacao popular como forma de superar o regime autoritario, puderam perceber claramente essa mudanca. As diversas assessorias a movimentos populares, que sempre se depara- ram coma violéncia da autoridade, passaram a enfrentar também a ques- to do chamado crime organizado (CDDH Bento Rubido, 1994, p. 16). Impossivel nao recorrer a minha historia pessoal como testemunho de evidente aumento da violéncia numa regido da cidade de Sao Paulo. Estou me referindo ao sul do municipio, a uma regio denominada In- terlagos ou Capela do Socorro onde surgiram em meados dos anos 70, ainda sob o regime militar, movimentos pioneiros de lutas por: queda do custo de vida, melhores transportes, urbanizacao e regularizacao dos loteamentos clandestinos, acesso a agua tratada, servigo pablico de sadide, entre outras. Presentes nas reunides que discutiam as con- quistas desses direitos basicos estavam representantes da Igreja Catoli- ca, poucas ONGs que organizavam cursos de alfabetizacao ou cursos profissionalizantes e alguns militantes egressos da universidade ou de ‘organizacdes que se formaram na luta contra o regime militar. A cons- truco da consciéncia sobre os direitos basicos de cidadania, da parti- cipacao na gestao do bairro e da cidade, da solidariedade as greves operdrias, da organizacao de associagées e foruns de bairros, foram atividades que convergiram na construgao do PT — Partido dos Traba- Ihadores e mais tarde da CUT — Central Unica de Trabalhadores. O PT foi um desaguadouro natural para as numerosas iniciativas que emer- giam por todas as regides, mas que estavam, até ento, fragmentadas. MernoPott NA PERIL DO CARTAN - Eda MARCI Arecesso econdmica acompanhada por desemprego, que tem lugar no inicio da década de 80, causa forte impacto nessas atividades que se desenvolviam em alguns dos bairros mais pobres de Sao Paulo. A organizacio social e politica de cunho transformador e solidario se enfraquece juntamente com a debilitacao das emergentes liderancas democraticas. A coesao familiar também se debilita. © desemprego do chefe ou da chefe, de uma familia de baixa renda, tem conseqiiéncias dramaticas. Liderancas respeitaveis tornaram-se alcoslatras. Nao falta- ram casos dos que espancaram as mulheres, de mulheres que foram abandonadas pelos maridos com filhos pequenos, de mulheres que perderam os filhos (em um dos casos, arrimo de familia que morreu durante um roubo de ténis) e até mesmo de um ativo e considerado lider de bairro que se envolveu em homicidio apés dois anos sem em- prego fixo. A ocupacao anarquica de terras se acentuou, resultando num espaco promiscuo, predatério, sem saneamento, marcado pelas disputas individuais e pela exploracao intracomunidade. Foi possivel notar 0 aumento das “pessoas doentes da cabe¢a”, como eram chama- das, das quais todos queriam livrar-se (algumas eram agressivas) por quendo havia tempo nem disponibilidade para cuidar delas e nenhuma entidade piblica aceitava recebé-las. Pela primeira vez surgiram indi- viduos estranhos as comunidades, cobrando “pedagio” na entrada de alguns loteamentos. As disputas selvagens destruiam as minimas regras de ustica e de convivéncia coletiva e solidaria fazendo com que nossa pretensdo transformadora se defrontasse com uma realidade cujas di- menses pareciam ser maiores que nossa utopia". Alevantamento do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Bento Ru- bido, sobre as principais mudancas ocorridas nos dltimos dez anos, moradores de favelas do Rio de Janeiro responderam: 0 aumento da violéncia, cujas causas sao, segundo eles, externas a favela. Avioléncia e o medo passam a fazer parte do cotidiano nas areas con- centradoras de pobreza. A violéncia presente nas condicdes ambien- tais e urbanas de vida e também na rela¢do de trabalho, soma-se a convivéncia com a execucao sumaria de parentes, amigos ou vizinhos, mais freqiientemente de jovens. As mortes podem ter origem nas brigas SEGRECACAO AMHENTAL€ VOUNCA URBANA "0 espaco politico de pantcipago ‘popular continuou se ampliando até 0 final dos anos 80, provando que nossa Utopia ndo se esvaziou durante esse periodo, Mas também é verdade que a violencia também se acentuou, especialmente na regio 8 qual nos teferimos. a 82 de gangues, mas também podem resultar de aco de bandidos ou dos proprios policiais Neste contexto os setores populares terminam estabelecendo uma re- lacdo ambigua e permeada pelo temor, tanto com os agentes da lei quanto com seus transgressores. A protecao e a agressao podem tanto partir de um como de outro (MNMMR, 1991, p. 46). Tiata-se de uma populagao que vive cotidianamente alarmada entre a violéncia policial e a dos bandidos (CDDH Bento Rubido, 1994, p.64). James Petra, professor da Universidade do Estado de Nova York, pes- quisou a relacao entre desindustrializacao e delingiiéncia em cinco cidades norte-americanas — Detroit, Nova York, Boston, Chicago e Newark — durante um periodo de 38 anos, de 1950 a 1988, para con- cluir que ha relacdo direta entre desemprego industrial e aumento da delingiiéncia. Segundo Petra, nao é apenas a pobreza a causa direta do aumento de roubos e homicidios, mas a perda da integragao a socieda- de, a estabilidade da familia, como também a perda da autoridade do chefe de familia desempregado. Sem perspectiva de trabalho ou pelo menos da seguranga de um tra- batho regular; sem estimulo para estudar, discriminada pela core pela pobreza; envolvida por intensa publicidade que liga felicidade ao pa- dréo de consumo inatingivel; participe de uma realidade social de- sigual e arbitraria além de fetichista, na qual convivem extremos de caréncias basicas e 0 consumo conspicuo; submetida a uma relacao de favor com os politicos; crescendo em contato com a violéncia no cotidiano e tendo 0 crescente aumento das drogas como possibilidade de fuga e eventualmente de ganhos rapidos e fartos, essa é a realidade da imensa massa de jovens que habitam as periferias metropolitanas. Coma auséncia da cidadania, 0 terreno é fértil para o desenvolvimen. todo crime organizado, especialmente por meio do trafico de drogas. Essa realidade nao poderia ser mais bem descrita do que foi, na letra dos raps elaborados pelos jovens do conjunto Racionais MC, todos Mertoroxe na Pies 00 CARTAN ~ Een MABICATO eles oriundos e moradores da regiao mais violenta de Sao Paulo (ver Parte IV). Aexclusao é um todo” No capitulo anterior destacamos que a exclusio ambiental parte do Processo de excluséo como um todo. Ela tem aspectos sociais (discri- minaao em relagao a raca, cor, origem, género, idade), culturais, eco- nomicos (menores oportunidades de emprego, salrios mais baixos, dificuldade de acesso a previdéncia), politicos (auséncia da cidadania), © ambientais (dificuldade de acesso aos servicos e infra-estrutura ur- banos). Avioléncia também discrimina os moradores por renda, lugar de mo- tadia e nivel educacional como mostrou pesquisa do Iser para 0 Rio de Janeiro, Se vocé é branco, prospero, instrufdo, provavelmente mora em uma regido da cidade em que é raro o crime de morte. Para pretos e pardos, do sexo masculino, jovens entre 18 e 29 anos, pobres, residentes em reas caracterizadas pelo baixo indice médio de escolaridade, 05 ris- 0s se elevam e a situagao pode chegar a ser grave (Iser, 1994). pesquisa do Iser mostra que as éreas de menor nivel de escolaridade apresentam maior numero de vitimas. Uma das faces centrais da exclusao é a ilegalidade generalizada, como jé apontamos anteriormente: ilegalidade nas condi¢des de moradia (favela, aluguel informal de comodo, loteamento ilegal), ilegalidade nas relagdes de trabalho, ilegalidade na acao da policia ou desconhe- cimento de tribunais para a resolucao de conflitos, além da impunida- de. O Estado nao esté simplesmente ausente, mas sua presenca pode dat-se de forma ambigua e arbitrdria: repressor, paternalista, ou clien- telista. ‘SECRECAGHO AUBIEWAL WOLENCA URBANA "Essa expressio foi retrada da Charte Européenne pour le Droit 3 Habitr et la Lutte contre Exclusion. Ver bibliografa. a Nas eleigdes municipais de 1992, 0 prefcitoeleto de Si0 Paulo tinha a ‘seguranga como um dos seus principais Pontos de plataforma eleitora. Idem o Senailor da Repablica, eleto em 1994, Romeu Tuma, ex-chefe da Policia Federal do governo Color, além de diversos deputados que durante 0s anos 80 se reelegeram continuadamente sob a promessa de seguranca polical Ignorancia, baixas taxas de escolaridade, condigées indignas de vida, manipulacdo da informacao pelo oligopélio das comunicacées, tor nam a massa excluida campo fértil para as politicas clientelistas que contribuem para reproduzir e etemnizar a exclusao. Nas eleigées de 1994, candidatos com posicées conservadoras tiveram éxito eleitoral prometendo o que nunca poderao garantir a seus eleitores: seguranca. A inseguranga, que é resultado da ordem injusta, torna-se fonte de manipulacao e de manutencao da injustiga por efeito da “pobreza po- litica” (Demo, 1993)'*, Auséncia do Estado, ou sua presenca ambigua e arbitréria, ilegalida- de generalizada, isolamento e segregacao ambiental, tornam as areas de exclusao social solo fértil para as “subculturas locais”, que convi- vem contraditoriamente com a regulacao hegeménica estatal, embo- ra seja fundamental lembrar, como fez Vanderley Guilherme dos Santos, que a fratura da sociedade brasileira nao se restringe ao espa- 0 informal, mas se estende também as instituigdes (Guilherme dos Santos, 1993). Nos textos e pesquisas que tratam da escalada e emergéncia da violén- cia, uma constata¢ao é recorrente: Essa gente passa a depender de seus mecanismos pessoais de defesa e 2 contar consigo mesma para uma rea¢ao (C.* Cruz, Jornal da Tarde, 2/8/94). “Entregue a propria sorte”, “aqui vale a lei do mais forte”, so expres ses que revelam a existéncia de um territ6rio sem lei no qual a cidada- nia inexiste, Oliven critica 0 termo violéncia urbana, por entender que ele desloca © foco sobre as verdadeiras causas da violéncia, vista como engen- drada pelo espaco, considerado pelo autor “apenas 0 contexto no qual esta se manifesta” (Oliven, 1982). Clara Ant e L. Kowarick tam- bém entendem que as origens da violéncia estao nos “processos s6 cio-econémicos e politicos e nao ecolégicos”. Mas é exatamente a MerR¢PoXe Na PERERA 90 CAPTAUISWO - En MARCATO paticipag3o do ambiente construido como agente ativo nesse quadro que queremos ressaltar. Se 0 conceito de violéncia urbana nao sa- tisfaz porque permite ocultar a real fonte dos conflitos, ignorar 0 am- biente construido como parte integrante da sociedade que produz essa violencia (e esse espago discriminatério) também nao satisfaz. Segregagao ambiental e violéncia Erealmente impressionante a ignorancia e o desprezo que a maior par- te dos economistas (hegemOnicos em assessorar governos para definir os rumos do desenvolvimento) demonstram, em relacao ao espa¢o, a0 territ6rio, aos recursos ambientais. € também notavel, como ja destaca imos, a ignorincia e o desprezo das instituicdes brasileiras de modo geral, em relaco as deseconomias aos problemas advindos do uso € ocupacao irregulares. Ai esta certamente mais um aspecto comporta- mental decorrente das raizes coloniais. Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Junior chamam atengao para as caracteristicas dos ciclos econdmicos brasileiros ligados a atividade exportadora: exploracao pre- datoria, descuidada e extensiva, visando o retorno rapido, levou sem- pre ao esgotamento das reservas naturais desde o ciclo do pau-brasil até os numerosos exemplos do final do século XX. Mas é nas regides metropolitanas que vamos encontrar possivelmente a face mais dramatica da ocupacao irracional do solo (racional para 0 mercado}, uma vez que este drama é visceralmente social e atinge quan- tidade imensa de pessoas e uma vez que o territério € palco, além de objeto e sujeito, de profundas contradigdes e desigualdade. Impossivel separar ambiente construido e sociedade. © espaco é meio. de produgao submetido a determinadas relacdes de apropriacao. Seu design, ou seja, a forma do ambiente construido resultante é forca pro- dutiva. Segundo Lefebvre, o espaco é um elemento ontoldgico de mes- ma importancia do capital e do trabalho. Nao pode ser tomado portant apenas como suporte, recepticulo ou reflexo (Lefebvre, 1974), SeCREGAGAG AMMENTAL€ VOU, URBANA 85 a6 Para Lefebvre, o Estado engendra a construcdo de uma estrutura espaci- al de poder, com relacdes hierarquizadas, essencial a sobrevivéncia do capitalismo. A hegemonia do que o autor chama de espaco abstratoem contraposigaio ao espago social, é embasada em valores, regras, nor mas, que transformam o espago em mercadoria e acarretam a segrega- G0 espacial. O urbanismo, que para Lefebvre € 0 pior inimigo do urbano, contri- buiu sem davida para a construcao de um mercado imobilidrio capi- talista, de relagdes de subordinacao, de repressdo, ou de segregacdo ‘no espaco urbano. O estatuto da propriedade imobilidria esta no centro da questo que estamos tratando. Observando as dreas de concentra- 0 de pobreza nas metrépoles brasileiras, entretanto, 0 conflito que se estabelece nao ¢ entre 0 espaco social, construido mediante rela- oes complexas, libertarias, no cotidiano e o Estado normalizador e homogeneizador, apenas. Esse conflito de fato esta presente nas lulas pela regulariza¢ao fundiaria (reconhecimento pelo Estado normali- zador) ou pela implantacao de infra-estrutura nas areas de ocupagio ilegal. Mas existe, paralelamente, um anseio por integrar-se a cidade legal. £ notavel a satisfacdo que os moradores de loteamentos que passam por regularizacao fundidria manifestam, ao receber o primei to camé do imposto predial e territorial contendo seu nome e ende- rego. A cidade do capitalismo periférico apresenta, como nos paises cen- trais, a classica luta de moradores de bairros tradicionais, contra a re- mocao motivada pela construcao de megaprojetos, que invariavelmente esto associados a renda imobiliria. Ela apresenta também o fenéme- no da gentrification — expulso da populagao pobre dos bairros rec clados. Mas apesar de ambigua, arbitraria e repressora, a presenca do Estado tem sido desejada nas areas em que predominam relagdes que lembram o far west sem lei. Talvez seja possivel afirmar que as cidades do capitalismo periférico no apresentam diferencas estruturaiscom as do primeiro mundo como afirnam alguns estudiosos (Balbo & Bouchanine, 1993; Balbo, 1992). MeraGrote Na FEE 90 CARMA - Caatan MARATO Talvez elas apresentem, dependendo de cada caso, aprofundamento maior da fragmentacao, da desigualdade, da segregaco, dos conflitos, dos problemas e contradi¢Ges, na linha do “desigual combinado”. Cer- tamente os tempos e espacos dos fluxos financeiros, sociais, da produ- io etc. apresentam configura¢des diversas. Essa questao exigiria maior detalhamento, o que ndo € nosso propésito aqui. O que interessa des- tacar é a imbricacao entre espaco, economia e sociedade no desenvol- vimento da violéncia. E nunca é demais repetir que esse espaco é produto social de relagdes que sao destruidas e do desenvolvimento de novas relacdes, arcaicas ou modernas, ambas determinadas pelas formas he- geménicas de producao. A estratégia segregadora de investimento concentrado nas “ilhas de primeiro mundo” ou bairros de alta qualidade de vida urbana, auxilia- da por uma construcao ideolégica que oculta a cidade real da midia e da chamada “opiniao publica” (espago abstrato homogeneizador) pa- rece estar sendo levada ao limite possivel como ja ressaltamos antes, sobretudo se tivermos em conta o extravasamento da violéncia para 0 exterior das areas de pobreza, Obbairro mais elitizado e valorizado de Sao Paulo, nos anos 60, 0 Mo- rumbi, apresentou grande queda de precos dos imoveis (suas mansées) no decorrer dos diltimos trinta anos, por causa do aumento da violén- cia, © que levou muitos dos moradores a se mudarem para condom nios de apartamentos luxuosos contando com exército de servicais, entre os quais consta a seguranga privada. Tiveram sucesso mercadolégico, também nesse periodo, as chamadas edge cities, construidas na fron- teira da érea metropolitana. No municipio de Barueri, a elite paulista habita doze niicleos residenciais fechadissimos, cercados de altos mu- tos € de razoavel infra-estrutura de seguran¢a. Um canal de TV privat vo expée & comunidade homogénea o talento de seus iguais na misica (especialmente os filhos adolescentes) e nas artes em geral, entre outros assuntos. Tanto nestes nticleos de Alphaville, em So Paulo, quanto em guetos semelhantes na cidade de Belo Horizonte (Azevedo, 1993), a ocupagio de areas de subtirbio com moradias de alta renda contraria a regra do capitalismo periférico, segundo a qual os subUrbios so gene- ‘SECREGAGHO AMBENTAL E VOLE URBANA 7 ® Azevedo faz mengio 3 “diminuigao perversa da segregacio espacial’, em Becorténcia do convivio forgado dos condominios de alta renda na periferia metropolitana. Esa proximidade fsica ‘Ao implica diminuigao da segregagso 20 nosso ver. A pobreza se expandi, ficou mais visvel e mais ameagadora, rmecanismos de seguranga e protec30 so desenvolvidos, entretanto, com a finalidade de manter 0 expago objetivo e subjetivo, segregado e hegeménico. 2 Levantamentos de dados urbanisticos sobre Sdo Paulo poderdo ser encontrados ra Secretaria Municipal de Planejamento/Coordenadoria de Informagbes; Empresa Metropolitana de Planejamento — Emplasa e Funda¢30 Sistema Estadual de Andlise de Daclos — Sade, Em especial a respeito de favelas ‘no municipio de Sao Paulo ver: PMSP/ Sebes/hiabi/Coped — Estudo sobre o fendmena favela no municipio de S30 Paulo, 1974; PMSP{Cobes — Favelas no Municipio de So Paulo, 1980; PMSPY SehabyHabi — Censo de favelas do ‘municipio de Sio Paulo, 1987, ¢ finalmente levantamento Fipe para 1993, 88 ricamente ocupados pela moradia pobre (diferentemente do que suce- de com as cidades norte-americanas™ Paralelamente ao crescimento do investimento em seguranga e auto- protecao nas ilhas de primeiro mundo, as favelas, 0s corticos e 0s lotea- mentos periféricos ilegais passaram por adensamento na ocupagao. A participacao da populacao periférica na populagao total das areas me- tropolitanas aumentou entre os censos de 1980 e 1991. A maior parte das areas metropolitanas teve declinio da taxa de crescimento popula- ional. Nos municipios periféricos, entretanto, verificou-se queda me- nor. A metropole de Sao Paulo apresentou no periodo queda na taxa de crescimento de 4,46% para 1,88%. No Rio de Janeiro esses dados fo- ram de 2,44% para 1,03%. Nas periferias a queda foi menor. Os muni- cipios periféricos de Sao Paulo cresceram 3,21% e no Rio de Janeiro 1,49% (IBGE). Os maiores incrementos porcentuais de domicilios no municipio de S30, Paulo, entre 1980 a 1991, foram em Guaianases (191,36%) e Sao Miguel Paulista (42,01%) no extremo leste; Parelheiros (63,28%) e Capela do Socorro (50%) em areas de preservacao dos mananciais no extremo sul € finalmente Jaragua (59,61%) e Perus (52,01%) no extremo norte. Trata- se do tradicional padrao de extensdo da periferia, sendo acompanhado agora também por sensivel adensamento, apesar da auséncia de servicos urbanos satisfat6rios entre os quais se inclui 0 transporte. Levantamentos sobre o congestionamento habitacional mostram o que qualquer observador menos atento pode perceber: 0 adensamento das reas de favelas, especialmente as mais bem-localizadas, e dos lotea- mentos periféricos, cujas edificacdes ganharam a configuragao de cor- ticos, antes quase restritos a 4rea central. Esse adensamento se da com pouca ou nenhuma verticalizacdo e com a ocupagdo quase total do solo, com estreitas passagens para a circulagao de pedestres. As areas livres e institucionais dos loteamentos sao freqientemente ocupadas por favelas®. Alguns distritos de Sao Paulo que apresentam maior ocorréncia de vio- (MrRoPoKE Na PERERA 90 CAPMAISO - ERA MARCATO léncia também se destacam nos levantamentos de satide, renda, con- gestionamento habitacional, ocorréncia de favelas e analfabetismo ou baixa escolaridade, o que revela quo profunda é a marca da segrega- 0. Sendo, vejamos. Cruzando dados relativos a renda, instrugao e padrdo residencial em distritos do municipio de Sao Paulo (Lei municipal 10.932), o levanta- mento do Instituto Lidas chegou a uma classificacao que retine distritos demais baixo padrao: Capao Redondo, Jardim Angela, Jardim Sao Luis, Marsilac, Parelheitos, Cidade Tiradentes, Guaianases, Itaim Paulista, Lajeado, Sapopemba, Vila Curucd, Perus (Lidas, 1993; IBGE/PMSP). Muitos desses distritos lideram a classificacao que mediu, entre ou- tubro de 1993 e setembro de 1994, a taxa de dbitos por homicidio: Grajad, Jardim Sao Luis, Jardim Angela, Capao Redondo, Cidade Ade- mar, Brasilandia, Sapopemba, Cachoeirinha, Cidade Dutra, Jabaquara, ltaim Paulista (ProaimyPMSP)*". Nao é apenas mera coincidéncia en- contrar a maior parte desses nomes de locais nas relacoes que medem as maiores taxas de analfabetismo, as maiores taxas de mortalidade proporcional em menores de um ano de idade, a maior proporcao de populag3o morando em favelas, as maiores taxas de congestionamento habitacional, e finalmente as mais altas taxas de homicidio conforme é possivel verificar pelos mapas das paginas 96 a 100. Por meio deles Cconstata-se que nossa sociedade produz verdadeiras “bombas socioe- coldgicas”, ou regides que retinem os piores indicadores socioecond- micos e ambientais, que sao resultado da desigualdade e da segregacao espacial. Os mapas aqui reproduzidos se referem ao municipio de S40 Paulo onde € possivel encontrar dados detalhados sobre causa ¢ lugar da mortalidade na cidade, mas poderiam tratar da situagao de qual- quer outra metrépole brasileira neste final de século. (Ver também a respeito levantamento detalhado no “Mapa da exclusao social da cida- de de Sao Paulo”, PUC/SP, 1995.) O grafico da pagina seguinte revela as curvas de mortalidade propor- cionais entre 0 Jardim Angela (maior taxa de mortalidade infantil do municipio de Sao Paulo entre marco de 91 a fevereiro de 92) o Jardim ‘SecatcngHo sexta, £ MOUNCIA URBANA Os dados da Secretaria de Sepuranga Pablica do Estado de S30 Paulo, Coordenadoria de Anslise ¢ Planejamento também confirmam esas localizagdes, no inicio dos anos 90, A base teritorial uilizada pela SSP entretanto nlo & a mesma uiilizada para 105 outtosindicadores que escalhemos, ‘motivo pelo qual suas informagbes no foram aqui registadas. cy Paulista, um bairro que apresenta caracteristicas de satide do primeiro mundo: CCURVA DE MORTALIDADE PROPORCIONAL Jardim Angela x Jardim Paulista Porcentual 100 +- 99} 80 - 79 |}—_______ eo + 50 49 : 20+ 20 - 10 SS ra <1 ta45a19 20849 >50 Fonte: Proaimns. Lidas. Como se pode observar e por mais estranho que possa parecer, a curva de mortalidade do Jardim Angela cai apés a idade de 49 anos. Compa- rada 8 curva de mortalidade do Jardim Paulista, todas as faixas de idade do Jardim Angela, até essa idade, apresentam nimeros maiores, a co- megar pela mortalidade infantil (menores de um ano de idade). A ten déncia a violéncia continuou acentuando-se no bairro, pois durante o ano de 1995, 205 moradores morreram assassinados. Os efeitos per- versos das “bombas socioecolégicas” recaem sobretudo sobre os pro= prios moradores dessas dreas. ‘no periodo entre maio de 1990 a abril de 1991, o homicidio repre- sentou 38% das mortes violentas na regido central enquanto que nas periferias 0 percentual foi cerca de 60%... (ProaimVPMSP). No ano de 1991, segundo o Proaim, foram assassinados 506 criangase jovens menores de dezoito anos no municipio de Sao Paulo. Em Santo Amaro, nesse periodo, ocorreram 93,5 mortes por homicidio para cada 100.000 habitantes. Esto na regio de Santo Amaro, ao sul do munici- METROPOLE NA PIRFERA 00 CARTAISMO ~ ERIK MARAT pio de Sao Paulo, os bairros Capo Redondo, Jardim Angela, Parque Santo Ant6nio, Parque Sao Luis, Grajati Parelheiros, Marsilac e Pedrei- ra, entre outros. Santo Amaro retine 39,5% dos domicilios em favelas de todo 0 municipio de Sao Paulo. Analisando a metrépole paulista, Milton Santos se refere a imobilidade telativa do morador da periferia e de seu isolamento em guetos em virlude das dificuldades com o transporte coletivo, que exige um longo tempo e um custo muito alto em seus percursos. Milton desenvolve a idéia de metropole fragmentada a partir da constatag3o do isolamento dos pobres em seus bairros. A imobilidade de téo grande nimero de pessoas leva a cidade a se tomar um conjunto de guetos e transforma sua fragmentacao em de- simegracao (Santos, 1990). Milton lembra que a metrépole de Sao Paulo, ao contrario de outras metr6poles do primeiro mundo, apresenta crescimento do ntimero de viagens em transporte individual. E nesse aspecto Sao Paulo se asseme- tha a Caracas. Quem mais ganha mais viaja. Quem ganha pouco ndo se locomove Gantos, 1990). Para contrariar a impressio que os exemplos acima podem deixar, ou seja, de que a concentrac3o homogénea e segregada de pobres se de- veapenas a auséncia do Estado, vamos lembrar que as politicas habita- cionais oficiais promoveram com muita frequéncia esse fendmeno, em todo o mundo. ‘Na Franga, por exemplo, a concentracao de trabalhadores imigrantes (arabes, hindus, africanos etc.) em grandes, massivos e isolados con- juntos habitacionais, resultaram em areas consideradas “doentes” por causa do grande ntimero de conflitos e & deterioracao ambiental, além dos aspectos relativos & qualidade da construgdo. As reformas desses Conjuntos, que incluem até a implosao de edificios de quinze andares, SeGRECAGAO MBIA E VOUENGA URBANA 9 92 seguiram diretriz tardiamente aprendida: reinserir a area na cidade para favorecer a insercao social (Ensembles, 1994). Uma imagem detestével, um habitat ao abandono, uma populagao 4 deriva. Assim se refere Louis Marie a um conjunto habitacional construido no inicio dos anos 60 em Dreux e habitado na maioria por estrangeiros. No man’s land foi outra expresso utilizada no mesmo texto para se referir a esse conjunto. Na historia da politica habitacional brasileira, a ma localizacao (segre- ga¢do ambiental) dos conjuntos habitacionais tem sido mais regra es- magadora do que excecao. A Vila Kennedy no final dos anos 60, 0 mutirdo das mil casas de Goiania em meados dos 80 ou o desastre representado por Cidade Tiradentes em Sao Paulo, em 1990, sio alguns casos exemplares de uma politica que, além de demagégica, dispen- diosa e ineficaz para a solucao de problemas sociais resultaram, ao contrario, em espacos segregados que contributram, ao lado de outros, para a geracdo de conflitos e violéncia (Maricato & Moraes, 1986; Ma- ricato & Pedrosa, 1990). (Os exemplos pretendem mostrar que o ambiente construido nao pode ser dissociado da sociedade desigual e discriminatoria, Discriminaao social e segregacdo ambiental andam juntas. A diferenciacao é uma das caracteristicas sobre as quais se realiza 0 mercado imobilidrio, na sociedade capitalista. © aumento do desemprego acarreta aumento da violéncia. A segregacao urbana com concentracao da pobreza fornece ambiente favoravel 3 disseminagdo e a reproducao da violéncia, A re- verso desse quadro nao dispensa investimento na qualidade ambien- tal dessas regides ao lado de programas destinados a geracao de empregc erenda e também programas culturais para 0s jovens. O municipio de Diadema apresentava um dos piores quadros sociais e ambientais da metrépole paulistana no inicio dos anos 80, com 25% da populacao morando em favelas e alta densidade de ocupagao do solo. No entanto essa condigao tem apresentado mudanga muito gran- -MerR6PoLs 04 PRFERIA 90 CAFTAUSO - Eta Mancina de e significativa. Em 1983 Diadema exibia 82,96 dbitos de criangas com menos de um ano de idade para cada mil nascidos vivos. Em 1994 essa taxa 6 de 23 (PM Diaclema). Essa grande mudanga se deveu a investimentos diretos na area de satide somados aos investimentos na melhoria da qualidade ambiental de vida. Os exames pré-natais atin- gem a praticamente 100% das mulheres de Diadema. Das 194 favelas existentes, 129 foram urbanizadas, 0 que vale dizer que aproximada- ‘mente 60.000 pessoas passaram a contar com agua tratada, rede de esgotos, iluminagao publica, galerias de 4gua pluvial, muros de arrimo contra desmoronamentos e um sistema viario e de pedestres, Esse sis- tema permitiu a entrada, nos locais, da coleta do lixo, da ambulancia, do gas a domictlio, além de melhorar acesso aos transportes. Segundo a Delegacia Sede de Diadema da Policia Civil, os crimes, sob cuja rubrica sao contabilizados homicidios, tentativas de homicidios, assaltos, roubos, agressoes, porte de armas e porte de drogas, tiveram diminuigo em todas esas modalidades durante 0 periodo de 1991 a 1994: NOMERO DE CRIMES EM DIADEMA 1991/1994 owalidads fro 191 avo 1992 no 1995 Ano 195 emis Fi 30 78 5 Tents de homies 3 3 ‘ * ator n0 PA a % routes 1 10 3% te geste FA e ” 8 Pate de dogs $ 3 3 2 fas apes 6s 9 2 2 foal wa 387 a3 28 Font Poca Gl, Dalegica Sele de Din dana As autoridades policiais argumentam que 0 aumento dos quadros equipamentos da policia foram fundamentais para obtenco desses re- sultados, mas reconhecem também, ao lado da populacao e liderancas do comércio, que a urbanizagao pela pavimentagao de quase cem por cento das ruas do municipio e a iluminago piblica foram fundamen- tais (Didrio do Grande ABC, 23/3/94). ‘SEGRUGAGHO AMBHENTAL E MOLENCIA URBANA 93 94 E preciso relembrar que Diadema representava um dos piores casos de qualidade de vida ambiental e social na area metropolitan de Sao Paulo, e que essa mudanga se dé num contexto de aumento da violéncia e do desemprego na regio e em todo o pais. Um aumento dos recursos policiais em outras éreas nao deram 0 mesmo resultado. Testemunhos da popula¢ao dao conta da diminui¢ao da violéncia ap6s a urbanizacao. O medo de sair de casa a noite também diminuiu (Dié- rio do Grande ABC, 26/3/94). Amelhoria geral das condicdes de vida da populagao, a partir da urba- nizacao e da regulariza¢ao fundiaria de favelas, € dbvia para quem tem vivéncia com 0 assunto, mas apenas 0 caso de Diadema permite com- provagao mais rigorosa do impacto que a continuidade administrativa de semelhante politica publica pode causar em areas de concentracéo de pobreza. Durante trés gestdes municipais (Diadema esta na terceira gestio de governo petista), a prefeitura rompeu com o ciclo conven- cional da politica municipal conservadora ¢ investiu em politicas so- ciais. Ap6s dez anos de continuidade administrativa democratica, 0 que é raro no Brasil, os indicadores comprovam as mudangas de um dos piores quadros de metrépole no capitalismo periférico. Evidéncia cartogréfica da segregacao ambiental no municipio de Sao Paulo ‘Os mapas que seguem pretendem demonstrar 0 que foi exposto aqui. Mais adequado seria utilizar como base cartorial para o langamento de dados, a area metropolitana de Séo Paulo (ou qualquer outra drea metro- politana). Se utilizamos o territ6rio do municipio de Sao Paulo e nao a regido metropolitana, foi porque a informacdo indispensavel para medir a violéncia, 0 nimero de homicidios, relacionado com o local (defini- ‘mos 0s distritos como base cadastral), s6 estava disponivel para o muni- cipio de Sao Paulo. A Prefeitura Municipal mantém um servico criado em 1992, 0 Proaim — Programa de Aprimoramento das Informagées de Meroe a EIA 90 CARUSO - Exnah MARCATO Mortalidade no Municfpio de $a0 Paulo, vinculado ao Servigo Funerario, que é municipal, e que constitui fonte de rara fidedignidade sobre o as- sumnto, no pais. Infelizmente, a mortalidade infantil néo péde ser obtida pela mesma fonte, pois, foi impossivel obter dados sobre natalidade por distrtos (informacao necessaria para calcular esse indice). Entre 0s intimeros dados que poderiam evidenciar a segregagio am- biental escolhemos os seguintes: — proporcao de analfabetos, —renda do chefe da familia, —densidade domiciliar, e —ntimero de homicidios. SECRECAGAG AMIENTAL E VOUENCA URBANA 95 KS NS SS \ LY a WN w BSC SRS eee “SOS \\ RRR KS Vs \ « \ oy z £5 |2 a 3 28 af o ¢s Qe ge 2 3: Ea 2 88 £8 6 cin ag 28 fone 8 i ag 25 g 288 a ae 8 ¢4466 fs 38 3E g@ 3 ee Ba 8 #§ 3 Be 3 WW a” °2 sm #2 3 WN, ss Be Is re we Zé g be Bs & ja #3 +» ee < 3 S83 = g 85 23-6458 9 <3 g3 & 2 a. 55 #2 ¢ & BS Z2= 285 4 tes 23 52 28 a8 ° 2 55 to SN NNS \y LY YY me ROI Na 98 Meréroxe na re 7M a lg Lie PORCENTAGEM DE ANALFABETOS Distritos Municipais — Municipio de Sao Paulo BOS AS Legenda?) Bh mais de 15 A wais 7ai0 0a 6 Fonte: Sempla-Deinfo/IBGE. Censo 1991. SEGREGAGAO AMBENTAL E VOLENCA URBANA 99 on Lyf GY p aids B TAXA DE HOMICIDIOS (mortes/100.000 hab.) Distritos Municipais — Municipio de Sao Paulo Legenda Bi mais de 45 GB 30045 20a 30 O 0a20 Fonte: Proaim, 1991. 100 MeTROPGXE Na PERERA D0 CAPTALISMO - Ex MARCATD A guisa de conclusao: um alerta militante As postulagdes neoliberais que se tomaram hegeménicas em todas as instituigdes de regulacdo econdmica internacional soam como “idéias fora do lugar”, diante do quadro aqui exposto. A agenda do Banco Mundial para a politica urbana dos anos 90 que pretende orientar os financiamentos internacionais para o mundo periférico menciona a necessidade de flexibilizar a regulamentacdo urbana como forma de eliminar obstéculos a atividade privada e aumentar a produtividade urbana. © aumento da pobreza fica por conta do crescimento demo- Brético e das restri¢des a produtividade que seriam obstaculos ao cres- cimento do emprego e causa do acesso restrito aos servigos piblicos (Banco Mundial, 1990). Cabera a um Estado mais diminuto, mais pro- dutivo e privatizado dedicar-se as politicas sociais e ao arrefecimento da pobreza, como também a defesa do meio ambiente. ‘Anovidade presente nas posturas das agéncias internacionais de ajuda (em alguns casos, “ajuda”) as cidades do mundo periférico, sob a hege- monia do neoliberalismo, € a incorporacao de reivindicacées cons- truidas durante anos de luta do movimento popular: regularizacao fundiaria para os chamados “assentamentos espontaneos”, incentivo a0 associativismo e ao cooperativismo para a geracao de trabalho, in- centivo as iniciativas comunitarias de mutirdes e autogestdo na provi- séo de moradias e de infra-estrutura urbanas. Ha uma necessidade urgente de reconhecer e apoiar os esforcos dos pobres, a nivel da unidade familiar e da comunidade, para fazer frente a suas proprias necessidades através de iniciativas comunitarias e orga- nizacées (Banco Mundial, 1990). que até entio era uma pratica clandestina e ilegal da populacao excluida, nao apenas pela regulacao urbanistica, mas especialmente pelo mercado, passa a constituir virtucle e exemplo de como é possivel *solucionar” problemas sem a presenca do Estado, mediante participa- StcREcAGko AMBENTAL E MOLEC URBANA 101 102 40 ativa da populacao. As praticas resultantes do desprezo alimentado historicamente pelo Estado em relagao ao assentamento residencial das massas trabalhadoras pobres, quando os recursos eram abundantes, tornaram-se alternativas recomendadas em tempos de vacas magras. Trata-se em ultima andlise da reiteragao do modelo caracterizado pela captura do Estado pelos setores avancados/influentes/modernos da so- ciedade, combinado a entrega do restante da sociedade a sua prépria sorte ou seus préprios meios. A novidade é apenas que antes este Uiti- ‘mo segmento da sociedade era contemplado no discurso e ndo na pré tica, e agora nem mais no discurso! (Smolka, 1992). Uma das conseqiiéncias do novo tratamento dado a pobreza no ideé- rio neoliberal é a institucionalizagao da dualidade, mais clara nas pro- postas de regula¢ao do uso do solo urbano e mercado de trabalho. O quadro é bem mais complexo do que parece a primeira vista e exigiria reflexdo mais profunda que nao pretendemos fazer aqui. A realidade urbana de paises como o Brasil combina regulacao excessiva e deta- thada para o mercado formal imobilirio que é bastante excludente, com total desregulagao e abandono da maior parte do solo urbano. Quando os neoliberais criticam a excessiva regulacao do Estado sobre © solo urbano e quando algumas agéncias internacionais relacionam essa excessiva regulacao com a caréncia de moradias, eles esto corre- tos. Mas nao ha como fazer omeletes sem quebrar 0s ovos. A excessiva regulacao no se deve apenas a “irracionalidades” (embora elas exis- tam) presentes na burocracia estatal. Ela é fundamental para assegurar a realiza¢ao da renda imobilidria, num mercado altamente concentra- dor. A tradi¢ao do Estado brasileiro, como jé vimos, foi de empenhar-se mais na defesa do patrim6nio privado do que do piblico, j que as raizes nacionais mostram profunda imbricacdo entre os patriménios pablicos e privados. Além de nao investir de forma eficaz, € até por isso mesmo, o Estado ignora a ocupacao generalizada das reas publicas e até mesmo das areas de proteg’o ambiental. E realmente surpreendente como as camadas dominantes conseguiram METROPOLE NA PERFERA D0 CAPTALSMO - Een Manic infundir na desinformada opiniao pablica brasileira que: a)o bode ex- Piat6rio da atual crise é o Estado que foi até agora por ela moldado, b) que a privatizacao do Estado é a principal altemativa para a crise, € ¢) atribuir as forgas organizadas e democraticas a responsabilidade pela defesa desse Estado marcadamente ineficaz para os interesses da maio- ria (Souza, 1992). Além da publicidade massacrante, essas idéias ga- nharam legitimidade na opiniao publica brasileira, como mostram 0s levantamentos de opiniao feitos pelos jomais Folha de S.Paulo e O Estado de S. Paulo em meados dos anos 90, por causa do reconheci- mento amplo ¢ difuso da ineficacia e burocratizacao do Estado. Cons- truido a imagem e semelhanca do pacto entre os setores arcaicos e modernos (internos e externos) presentes no desenvolvimento da so- ciedade brasileira, suas mazelas passam a ser atribuidas ao conjunto dos trabalhadores organizados. Mediante ataque frontal ao corporati- vismo de trabalhadores das empresas estatais (como nao reconhecé. lo?) buscam-se eliminar algumas das poucas manifestaces modemas no mundo do trabalho. (Enquanto o sindicalismo moderno das empre- sas privadas é acusado de “elite” dos trabalhadores brasileiros, que atenta contra a estabilizac3o econémica dos pafs com suas reivindicacées salariais “abusivas”, conforme declaragao do ex-ministro da Fazenda Ciro Gomes durante a negociacao salarial dos metalirgicos do ABCD em 1994.) Sem divida trata-se de armadilha na qual os setores demo- créticos e populares organizados cairam: a que Ihes atribui a defesa do Estado que af esta. A conquista do direito & cidade para todos, ou, como jé convenciona- mos chamar, a Reforma Urbana visando a justica social, exige sem divida nova normatizagao que seja extensivel a toda a populacao. Ao lado da generalizacao das agdes de urbanizacao e regularizacao fun- didria nas areas j4 consolidadas é necessario construir parametros ge- raise democraticos pata toda a cidade e nao somente para uma minoria {Aitec, 1994). € isso, como ja fizemos notar, significa nao apenas trans- formar os parmetros que regulam o mercado altamente restrito e espe- culativo, mas também democratizé-lo, generalizar a cidadania, criar € colocar em pratica 0 conceito de gestao publica do Estado. Nao se trata portanto de praticar politicas compensatdrias para mitigar a pobreza SEGREGAGAO MHBENTA E MEXENCIA URBANA — 103

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