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Alain Lipietz Audacia Uma alternativa para o século 21 ‘Tradugao Estela dos Santos Abreu 1991 Este livro foi impresso em papel Pélen, especialmente . denenyolvido para 0 mercado editorial. ‘Sua tonalidade, ao absorver ‘melhor 08 raios de luz, permite uma leitura mais agradével. 1. O compromisso fordista Paracompreenderacrise atual, é preciso compreender a légica dominante do pés-guerra. A longa explosio do crescimento (Jean Fourastié falou dos “trinta anos glorio- sos") representou uma verdadeira Idade de Ouro do capita- lismo. Mas o mais significativo é que o movimento operario, seus partidos e sindicatos parecem ainda hoje consideré-lo como uma Idade de Ouro coneluida. Nao era o paraiso, mas pelo menos um caminho, o caminho do paraiso, e a crise s6 teria desmantelado o que “jé” havia sido conquistado! Prova de que 0 modelo de desenvolvimento que estruturou esse perfodo era bastante “hegeménico”, que inspirava uma visdo de mundo aceita da direita a esquerda. Isso 86 se verificou nos paises capitalistas desen- volvidos, embora a maioria das elites dos pafses “subdesen- volvidos” tivesse compartilhado o ideal de “aleangar” esse modelo, por esta ou aquela via. Devemos, pois, no minimo distinguir entre o modelo de de: realiza nos Estados nacionais ( a “configuragaio internacional’ dade desses compromissos nacionais, ao mesmo tempo que Ihes reflete o éxito em um nimero limitado de paises. O que é um modelo de desenvolvimento? Sob o aspecto de sua realizagdo em nivel nacional, nos. paises onde é dominante, um modelo de desenvolvimento pode ser analisado sob trés aspectos diferentes: ele se sustenta num tripé. 27 + Um modelo de organizagao do trabalho (ou “paradigma tecnol6gico”, ou “modelo de industrializagao”, segundo os autores e sob Angulos ligeiramente diferentes). Trata-se que governam a organizagdio do tra- 0 durante 0 periodo de supremacia do ndo apenas as formas de organizagéio do trabalho no interior das empresas, mas as formas de divis&o do trabalho entre as empresas. E claro que setores inteiros, ou regides, podem ficar fora do modelo, mas no deixa de ser um “modelo” no sentido que os setores mais “avangados”, segundo esses prineipios, inspiram a evo- lugo dos outros. © Um regime de acumulagao. Sao a légica e as leis macro- econdmicas que descrevem as evolugies conjuntas, por um longo perfodo, das condigdes da produgdo (produti- vidade do trabalho, grau de mecanizagao, importancia re- lativa dos diferentes ramos), bem como das condigdes de uso social da produgao (consumo familiar, investimentos, despesas governamentais, comércio exterior). © Um modo de regulagéo. Ea combinagao dos mecanismos que efetuam 0 ajuste dos comportamentos contraditérios, de tudo, apenas... costume, adisponibilidade dos empre- sérios, dos assalariados, de se conformar aesses pri por reconhec regras do mercado, a legislagao social, a moeda, as redes financeiras. Essas formas institucionalizadas podem vir do Estado (leis, circulares, 0 orgamento publico), ser privadas (as convengées coletivas) ou semipiblicas (a previdéncia social de tipo francés). Assim, o regime de acumulacdo aparece como o resul- tado macroeconémico do funcionamento do modo de regu- ago, com base num modelo de organizacdo do trabalho. E €“oconjunto” que constitui um “modelo de desenvolvimento”. Um modelo, e ndo “o” desenvolvimento. Todos os discursos sobre os “obstdculos ao desenvolvimento”, como sobre “os fins do desenvolvimento”, parecem-me bastante viciados. 28 Como se 0 desenvolvimento fosse um percurso bem de- finido, uma longa estrada pela qual avancariam os diversos | povos da humanidade, a exemplo de uma corrida de bicicle- | tascomalgunsciclistas na dianteira, o grupo maior concen- trado no meio e uns retardatérios na rabeira. E verdade que, em dado momento, um “grupo Ee | frente” definiu e impés sua visdo de “progresso”. Um modelo « \ ;de pode desmoronar, seja porque 0 modelo ais manifestamente garanti-la, seja porque os inconvenientes do modelo aparecam cada vez mais ni- tidos. Os povos se empenham entao num perfodo de bus- cas, de hesitagdes (no qual podem proliferar as aberragées!). As lutas sociais e polfticas nos locais de trabalho, na vida cotidiana, no Estado delineiam progressivamente as con- digdes de um novo “tripé”. Voltaremos mais adiante as con- dicdes extra-econdmicas de estal de desse tripé. Mas ‘vejamos antes 0 que foi o tripé do pés-guerra, que alguns tedricos franceses (seguindo precursores do pré-guerra, como 0 marxista italiano Gramsci e o corporativista belga Henri de Man) chamaram “fordismo”. O fordismo 0 modelo de organizacao do trabalho do fordismo era © acoplamento do taylorismo com a mecanizagao, no inte- rior de grandes empresas multissetoriais que subcontra- tavam certas tarefas a empresas subordinadas aos mesmos prineipios. Para compreenderacrise atual, convém esmiugar antes de tudo a natureza do taylorismo. taylorismo se apresenta como movimento de racio- nalizagdo da produedo, fandada numa separagio eada vez mais nitida entre os “idealizadores ¢ organizadores” da produgio (os engenheiros e técnicos do departamento de io emétodos) eos “executantes”: 0s trabalhadores , operarios néo-qualificados, nas tarefas repetiti- vas. Isso nao signifieava (ao contrério do que Taylor afirmou e por muito tempo se repetiu) que os executantes “ndo 29 precisavam mais pensar”, que os aspectos intelectuais e manuais do trabalho estavam completamente separados. De fato, a operdria téxtil mais robotizada deve pensar em seu trabalho, ainda que seja para ndo se machucar, néo deixar que o fio se solte ete. Mas essa “implicagao” (palavra ‘queutilizarei bastante!) deve permanecer “informal”, “oculta” até “paradoxal”: o engenheiro ou o contramestre nega que a operéria pense e a intima a obedecer as ordens... mas conta com o que lhe resta de iniciativa para que tudo corra bem. E a operéria — ou operario — se empenha em desco- brir macetes para que tudo corra bem e, ao fazer isso, ex- pressa sua autonomia de ser pensante... a servigo dos “criadores”, mas sem que esse know-how possa ser sistema- tizado, transformado em know-how coletivo. Isso, ao con- trério do know-how do antigo artesdo de oficio (que sobre- viveu na relojoaria, na construgao), saber que se transmi- tia de “mestre” a “companheiro”. Quando Taylor e seus discipulos introduziram esses prinefpios no inicio do século XX, a intengo era justamente —e explicitamente — generalizar os “melhores gestos” dos artesiios ou dos operérios profissionais, mas privando-os da relagio de forga que, na seeao da fébrica, omonopélio desse know-how Ihes conferia. Relagao de forca que se concreti- zava em habitos, privilégios, ritmo de trabalho controlado € outros microcompromissos no ambito da segao. As trés primeiras décadas de nosso século assistiram a longa re- sisténcia — e a derrota — desses operarios profissionais ¢ a aceitacdo por parte deles (até nos sindicatos comunistas) de um novo compromisso. Em troca das formas de controle tayloristas, os sindicatos pediram uma participagao nos ganhos de produtividade resultantes da racionalizagao. Esse grande compromisso (a participagdo nos ganhos de produtividade) foi no inicio recusado por quase todos os patrdes, exceto por alguns como... Henry Ford (oda Ford), bem como por alguns banqueiros e homens politicos como John Maynard Keynes. Ford e Keynes haviam pereebido que a aceleragao dos ganhos de produtividade provocada pela revoluedo taylorista levaria a uma gigantesca crise de superprodugo se nao encontrasse contrapartida em uma revolugao paralela do lado da demanda. E qual poderia ser 30 ‘0 mais forte componente de evolugdo da demanda dirigida empresas? O crescimento regular do poder aquisitivo dos proprios trabalhadores. Mas Ford e Keynes pregavam no deserto. O que podia obrigar todos os patroes a aumentar ao mesmo tempo 0 po- der aquisitivo de seus préprios assalariados, a ndo ser a pressio dos sindicatos que eles se empenhavam em esma- gar, sindicatos que s6 conseguiam vitérias locais, empresa por empresa? Era melhor explorar os assalariados como produtoresdo que tosquié-loscomoconsumidores! Ostemores de Ford, de Keynes... e dos sindicatos diante do conservan- tismo liberal dos Hoover, Lloyd George ou Laval encontra- ram por isso, na Grande Depressdo dos anos 30, naquela gi- gantesca crise de superprodugao, uma trégica confirmagao. nizagio da demanda social além da concorréncia das em- presas, trés alternativas ao conservantismo lit giam como competidoras (com passarelas entre eram usadas por te6ricos, politicos e até sindicalist fascismos e o stalinismo: ambos propunham a organizacéo estatal da demanda, com sérias divergéncias quanto a sua orientagdo, B, enfim, a social-democracia, versio “de es- ‘querda” do que Keynes e Ford propunham “da direita’: um ‘compromisso global e organizado entre patronato e sindi- cato, que permitisse a redistribuigdo dos ganhos de produ- tividade aos assalariados. Felizmente, a coalizéo de todos os outros permitiu a derrota dos fascismos durante a Segunda Guerra Mun- dial, E, em menos de dez. anos, 0 confronto entre o stali- nismo e 0 que passaremos a chamar de compromisso for- dista evoluiu a favor do segundo. Esse compromisso se materializou em um regime de acumulagao e em um modo de regulagao. (© regime de acumulagao pode ser assim resumido: ¢ uma produgio de massa, com polarizagao crescente entre idealizadores qualificadose executantes sem qualificacdo, com mecanizagao crescente, que acarretava uma forte al- ta da produtividade (o produto por habitante) e alta do vo- lume de bens de equipamento utilizado pelo trabalhador; aL © uma repartigao regular do valor agregado, isto é, um cres- cimento do poder aquisitivo dos assalariados, paralelo ao creseimento de sua produtividade; e assim, a taxa de lucro das firmas permanecia estvel, com a plena utilizagao das méquinas e com 0 pleno emprego dos trabalhadores. Em outras palavras, 0 “compromisso fordista” reali- zava a conexéo entre produgdo de massa crescenté con- sumo-de massa crescente. Foi recebido pelo mundo inteiro~ no-desfecho-da guerra como 0 american way of life, um ‘modelo produtivista e “hedonista”, isto é, fundadona busca da felicidade através do aumento das mercadorias con- sumidas por todos. Apenas alguns intelectuais, como Her- bert Marcuse, o contestavam. Essa concepeao do progresso eda busca da felicidade era considerada a meta a perseguir, por.um arco de forgas politicas que se estendia dos conser- vadores aos comunistas, passando pela democracia cristae pelos socialistas. Até as forcas politicas conservadoras impuseram 0 modelo as resisténcias dos patrdes indivi- duais, que s6 viam seu interesse imediato na contengao da renda de seus assalariados. Restava convencer esses empresérios individuais a respeitar dia a dia os prineipios desse compromisso, que eram entretanto conformes com seus interesses a médio prazo. Foi a tarefa dos modos de regulagdo instaurados no 6s-guerra. Variveis de pais para pais, eles comportavam em diferentes proporgdes os seguintes ingredientes: ¢ uma legislacao social referente ao saldrio minimo, A gene- Talizago das convengdes coletivas, induzindo todos os {patrées a conceder aos assalariados ganhos anuais de poder aquisitivo correspondentes ao crescimento da pro- Gutividade nacional; «um “Estado-providéncia’, um sistema de previdéncia so- cial desenvolvido, permitindo aos assalariados (e, de fato, a toda a populaco) continuar como consumidores até no caso de estarem impedidos de “ganhar a vida”: doenga, aposentadoria, desemprego etc.; e 32 * uma moeda de crédito (isto 6, pura moeda de papel) emitida pelos bancos privados, em fungao das neces- sidades da economia (e nao mais em fungao do estoque de ouro disponivel), mas sob 0 controle dos bancos centrais. Todas essas instituigdes ofereciam um novo quadro, uma nova “regra do jogo”. Investiam o Estado de uma responsabilidade ativa no controledaconjuntura econémica. Por seus déficits orgamentérios, por suas despesas, ele podia estimular o crescimento. Por esse papel de tutor do sistema bancério, podia, ao facilitar ou ao restringir a ‘emissao de novos créditos, acelerar ou diminuir o inves- timentodas firmase dos particulares. Ousodessas “alavan- cas” foi chamado “politica keynesiana”. ‘Mas esse novo papel ndo implicava necessariamente crescimento da propriedade ptblica sobre o setor produ- . De fato, foi o que aconteceu na Franga, na Itélia..., mas s Estados Unidos e nem mesmo na Suécial Alias, a nacionalizagao jurfdica nao implica em absoluto a transfor- magao das relagdes sociais. Os operarios da Renault sempre souberam disso: patrao pablico, patrao privado, continua- va sendo sempre o taylorismo. Outro grande erro a e imaginar que o tecido das formas reguladoras tivesse sido implantado com 0 objetivo de “fazer funcionar” o fordismo. E claro que é assim que, depois dos fatos, acabo de apresentar o que se passou, Mas as convengées coletivas e a previdéncia social nao foram “conquistas do fordismo” e, sim, conquistas operdrias: 0 prego do sangue de Adalen, na Suécia, das lutas do novo iicato CIO, sob Roosevelt, 0 prego do sangue da Re- éncia francesa ou italiana, da tenacidade da classe ope- réria britdnica sob 0 Blitz. Conquistas estendidas, pelos vencedores da guerra, ao Japao e & Alemanha, contra 0 renascimento do bloco militarista-industrial. O fordismo nasceu do encontro desse avaneo social com a reflexio de uma fragdo do patronato; os pensadores que teorizaram esse encontro (Beveridge, na Gra-Bretanha; Pierre Massé ou Bloch-Lainé, na Franga) nao foram os criadores do movimento (mesmo que, as vezes, tenham sido os ar- quitetos da institucionalizagao desse encontro). © novo modo de regulacéo, apropriado a um novo modelo de desenvolvimento, foi o produto de lutas sociais nacionais, no quadro de uma competi¢ao mundial e san- grenta com os modelos fascistas e stalinista. ©, alids, por isso que as instituigdes reguladoras conheceram graus dife- rentes de desenvolvimento, segundo os paises. Por exem- plo, depois da guerra e do perfodo Roosevelt, os Estados Unidos sofreram um nitido retrocesso, com a Guerra Fria ¢ © macarthismo. Mesmo as reformas de Kennedy e de Johnson (que foram nos anos 80 o alvo de Reagan) nao for- neceram ao povo americano uma previdéncia social equivalente & da Europa do norte. Quanto & Franga, 86 chegou a consumagao do fordismo nos acordos de Grenelle ‘em junho de 1968. Acordos que encerravam os “aconteci- mentos de maio” — o que se pode considerar como 0 primeiro grande movimento de massa antifordista! espirito da histéria é dos mais tortuosos: convém lembrar essa experiéncia quando se observa hoje a ‘emergéncia de solugdes para a crise atual! A hegemonia americana No plano internacional, porém, a economia mundial nunca atingiu um nivel equivalente de regulacao organiza- da, negociada entre “parceiros”. Primeiro, omodelo fordista 86 se tornou hegeménico nos paises da OCDE — Organiza- ‘¢do de Cooperaeao e de Desenvolvimento Econ6micos, com ‘excepao da Turquia, masincluindoa Finlandia, que énoen- tanto um dos “paises menos avangados” do erra. Des- se regime se excluiu ou foi exclufda (ndo discutiremos isso aqui) a maioria dos paises doTerceiro Mundo, que, por esse fato, se viram marginalizados, durante os anos 50, em re- Jago ao comércio dos bens industriais. Umsemilivrecomércio foi instituido entre as nagies fordistas, que encontravam ‘em si proprias o principal mercado. O volume dos produtos industriais trocados sofreu, no entanto, um crescimento acelerado; surgi a questo de uma regulagéo do comércio mundial e, sobretudo, de uma moeda internacional. A res- posta foi a aceitagao, de fato, do délar como moeda mundial a4 de crédito, e a regulacao das balancas comerciais através da langa de paridade das moedas, bem como das politicas nacionais de “resfriamento” dos mercados internos. Esse privilégio do délar tornou-se possivel gragas ao favango dos Estados Unidos no modelo de organizacao do trabalho (industrial ¢ agricola). As mereadorias america- naseram, aomesmo tempo, supercompetitivase(atémeados dos.anos80)indispensdveis, Todosos outros paisesaceitavam, por isso, o délar como moeda de pagamento internacional: vra sempre bom ter. Nessa época, a balanga comercial dos is podia ser estruturalmente defi luxo dos délares que saiam dos Estados Unidos para serem stidos em outros lugares (ou financiar exércitos) podia permitir-se exceder por longo tempo o fluxo dos délares que | entravam (para comprar mereadorias). Assim, os Bsta- Unidos ofereciam ao Japao e a Europa, sob forma de .cnologia ¢ de capitais (0 Plano Marshall), 0s meios de ‘angé-los”. Em troca, podiam oferecer-se, ao prego do papel que emitiam, uma parte da produgdo de seus aliados. Talvez seja ttil destacar a semelhanga entre essa atitude dos Estados Unidos — atitude autenticamente hegeménica, de leadership como eles dizem — e 0 compro- misso fordista interno. Assim como 0 patronato se resignou a conceder aumentos salariais que afastavam a classe ope- réria do comunismo e a transformavam em multidao de consumidores, também as elites e 0 governo dos Estados Unidos acabaram rejeitando a tentagao de esmagar seus suais concorrentes, de reduzir a Europa e 0 Japio ao nivel de paises subdesenvolvidos, inundando-os, por meio de um implacdvel livre coméreio, de produtos americanos. Muitoao contrério, depois de 1947, compensaramos déficits europeus e japonés com uma “ajuda” multiforme. Tolera- ram o protecionismo dos novos aliados ¢ a consolidagao de suasmoedas. Aceitaram uma discriminagao que os prejudi- cava no comércio comum. Financiaram a reconstrugao de sua inddstria e sua futura capacidade exportadora. 0 ob- jetivo desse “altruismo” era reconstituir a seu lado merca- dos présperos... e anticomunistas. 35 eee, "No Terceiro Mundo, em compensacao, a protecao de seus interesses, numa visdo estreita, levou-os a destruir as veleidades de desenvolvimento independente, apesar das tentativas da Alianga para o Progresso, preconizada por alguns “liberais” e experimentada por Kennedy. Nao houve Plano Marshall para o Terceiro Mundo. Houve uma terrivel seqiiela de assassinatos de Iideres nacionalistas, de blo- queios imbecis, de golpes de Estado manipulados, de apoio as ditaduras mais abjetas, de guerras neocoloniais, de “tragédias sem importancia”. A visao fordista de mundo Podemos agora voltar ao que foi a “visdo de mundo” gue alicergava 0 compromisso fordista, 0 que j4 propus chamar de “paradigma societal”. Antes de tudo, uma obser- vagio sobre o jargao. “Paradigma” (da palavra grega que significa modelo, exemplo, emblema) 6, em primeiro lugar, il: o conjunto de palavras que se podem: yantendo uma frase do mesmo género. Por exemplo, em “tenho uma caneta azul”, pode-se substi- tuir “azul” por outros adjetivos de cor; ter-se-4 assim decli- nado o paradigma das cores. Mas “tenho uma caneta fun- ‘cionar” nfo faz sentido; saiu-se do paradigma. Em “para- digma” hé portanto a idéia de um “tronco comum” sus- cetivel de variantes, mas dentro de certos limites. A visio de mundo que, ao impregnar uma época, define 6 acordo “quanto a certo modo de vida em sociedade— que pressupde ‘ceria concepeio do que é moral, normal, desejavel—consti- “tui um “paradigma societal” que reforga, quanto as idéias e ‘a0s comportamentos, 0 modelo de desenvolvimento. Quais foram as bases do paradigma fordista? De modo esquematico, as seguintes: « 6eficiente que a organizacao da producao fique reservada a grupos dominantes (patronato, tecnocratas), de acordo com uma aplicagao extensiva do modelo industrial tay- lorista, que nega aos “executantes” sua implicacdo in- telectual na organizacao do trabalho; 36 + 6 normal que os assalariados e toda a populagdo vejam involuir parte de seus ganhos de produtividade por uma série de formas de regulacdo de tipo legislative ou contra- tual, de tal modo que, o poder aquisitivo crescendo na pro- poreao da produtividade, o pleno emprego fique pratica- mente garantido; « essa involugao deve ser efetuada pelo salério direto ou pelo Estado-providéncia, mas, em qualquer caso, em moeda que dé acesso A produgao mercantil; ¢ +s pleno emprego e progresso de consumo para todos so as metas do progresso técnico e do crescimento econdmico; ‘compete ao Estado prover a isso. Em outros termos, o paradigma fordista oferece uma concepedo de progresso que se apéia em trés pés: progresso | Lécnico (concebido como progresso teenolégico incondicio- | nalmente conduzido pelos “trabalhadores intelectuais srogresso social (concebido como progresso do poder aqui: ro, extensao do reino da mercadoria), progressado Estado (concebido como fiador do interesse geral contra as “in- vasées” dos interesses individuais). Tal concepedo de pro- ggresso dé a primazia ao “hierdrquico” em relagao ao 1 ‘cado; 6 “organicista” no sentido de nao excluir, em prin\ ninguérfida“repartigao dos frutos do progresso” (na prati que sempre h4 exclufdos). Em compensacao, ela\ ‘istematicamente 08 produtores pouco qualificados | que é 0 dominio de suas atividades, os cidadaos que é a deciséo quanto ao que se deve aceitar como progresso (em matéria de consumo, servigos piblicos, ur- banismo e, mais geralmente, no que se refere as con- seqiiéncias ecol6gicas do “progresso”) etc. A propria solida- riedade, organizada pelo Estado-providéncia, toma assim uma forma estritamente administrativa. Esse paradigma foi imposto a partir de 1945 nos patses capitalistas avangados, sob a pressdo dos roosevel- tianos ou « , com base na derrota da alternativa fascista ao liberalismo cldssico, e como rival da alternativa soviética. Mas pode ter sido gerado por forcas politicas conservadoras ou democratas-cristas tanto quanto por social-democratas, com ou sem 0 apoio dos comunistas. a7 Foi por isso que constituiu um “paradigma hegemdnico”, que se impés a todos e mereceu onome de social-democrata Esse compromisso entrou em crise sob todos os aspec- tos ao mesmo tempo: baixa de rentabilidade do modelo produtivo fordista, internacionalizagdo dos mercados » da produgdo comprometendo a regulacao nacional, revolta dos produtores diante da alienagao do trabalho e diante da onipoténeia da hierarquia e do Estado, aspiragao dos cida- daos a maior autonomia, omissées crescentes diante da solidariedade “administrativa”, Podia-se considerar o Programa Comum da esquerda francesa (firmado em 1971 entre 0 Partido Socialista, 0 Comunista e um pequeno partido de centro-esquerda): como © coroamento radicalizado do compromisso fordista. Essa esquerda, partidos Comunista e Socialista, que, na ibe- ago, depois na IV Republica, e até na oposigao, sob De Gaulle!, tinha contribufdo amplamente para a consoli- dacdo do modelo, aparecia assim como “a esquerde do compromisso fordista”. Nao foi por acaso que, em maio de 1968, 0 imenso movimento da juventude e dos assalariados fugiu de todo ao controle da esquerda, a qual ele se opés certas vezes com tanta intensidade quanto ao regime gaullista. O movimen- ‘to de maio de 68 marcou a primeira reve de massa contra © paradigma fordista. Foi interrompido pelo acordo de Grenelle dejunho de 1968, em que os sindicatos obtiver:m, em contrapartida ao término da maior greve da historia (9 milhdes de grevistas durante trés semanas), uma extensdo substancial das “vantagens sociais” no seio do fordisno. Todos os movimentos sociais ulteriores — antifordis.as, ecologistas, regionalistas, feministas—desenvolveramse, de inicio, longe da esquerda classica. Mas acrise econémica, as derrotas sucessivas provocaram nos anos 70 uma adesao progressiva e pouco entusiasta dos ativistas de maio de 68 (0s soixante-huitards) aos partidos do Programa Comam (principalmente o Partido Socialista), percebidos comoquem podia representar, ao menos em parte, uma saida politica Para suas aspiragées e, em todo caso, como defensores de uma safda ndo-reacionaria para a crise. 38 Infelizmente, quando os partidos de esquerda porta- dores dessa visio de progresso chegaram ao poder em 1981, fas bases materiais de suas esperangas haviam se evapo- rado. © modelo fordista de desenvolvimento estava em coma agudo.

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