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Violência nas Escolas Públicas do Rio de Janeiro:


notas exploratórias sobre a autoridade docente
e as percepções da violência

Helena Bomeny
Maria Claudia Coelho
João Trajano Sento-

Introdução

Este artigo apresenta resultados obtidos no projeto de pesquisa “A Violência nas Escolas do
Rio de Janeiro: dimensões do problema e percepção pela comunidade escolar”,
desenvolvido no período de agosto de 2006 a julho de 2008 pelos autores deste artigo, com
o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (FAPERJ).
O tema da violência nas escolas tem despertado interesse entre especialistas de campos
distintos e tem sido uma questão também tratada em diversos países, sobretudo a partir do
final dos anos 1980. Em parte, o interesse decorre do fenômeno da massificação do ensino e
da universalização do acesso à educação. No Brasil, a escola pública que, historicamente, foi
elitista, incluindo uma parcela da população muito menor do que a que deveria incluir,
passou, desde meados de 1990, a receber progressivamente mais e mais crianças em idade
escolar, a ponto de, em 1998, contar com 98% da população atendidos pela rede pública de
ensino. O que a maioria dos países desenvolvidos resolveu até a segunda década do século
XX, o Brasil dava sinais de resolver no início do novo século. A equação desafia porque a
inclusão em massa não significou a permanência ou sequer o êxito no desempenho dos
educadores em educar e dos alunos em aprender. Mas esta é outra questão.
Ao lado do macro processo de inclusão escolar, a sociedade brasileira assistiu nas últimas
três décadas à escalada da violência provocada, no parecer de especialistas como Alba
Zaluar, pelo crescimento do tráfico de drogas e pela ausência do Estado nas zonas mais
vulneráveis da habitação popular, reduto mais afetado pela concentração dos negócios do
narcotráfico. A extensão do problema chegou às escolas e encontrou na deterioração da
rede pública um ambiente propício à sua expansão. Com o apoio da UNESCO foi realizada
uma primeira pesquisa de nível nacional divulgada no Brasil, coordenada por Miriam
Abramovay da Universidade Católica de Brasília e por Maria das Graças Ruas, da
Universidade de Brasilia. O livro foi publicado com os resultados nacionais, e pode ser
encontrado em versão eletrônica na página da UNESCO do Brasil (Abramovay e Ruas,
2002). Estava sinalizada uma entrada de pesquisa que acabou recebendo mais e mais
contribuições de educadores, psicólogos e sociólogos. Seria a escola afetada de forma
comprometedora pela atmosfera de insegurança progressiva de que se trata na imprensa,
nos fóruns especiais, em congressos e em centros de pesquisa? De que maneira os
profissionais da educação, responsáveis pelo atendimento e orientação escolar estariam
sendo atingidos pela crescente onda de violência noticiada em mídias distintas? Quanto
sofre a escola em sua rotina com a intervenção de questões agudas de insegurança? E,
sobretudo, como se manifesta a insegurança e/ou a violência no ambiente escolar e de que
maneira a elas reagem os membros da comunidade ali atuantes?
São muitas as entradas que um tema desta envergadura viabiliza. O recorte e a maneira de
nos aproximarmos estiveram cativos do perfil dos profissionais envolvidos com o projeto e
com o investimento que cada um tem feito ao longo de suas vidas acadêmicas. A concepção
original do projeto combinou assim as áreas de sociologia da educação (Helena Bomeny),
estudos sobre violência urbana (João Trajano Sento-Sé) e antropologia das emoções (Maria
Claudia Coelho). À conjugação destas três áreas temáticas de investigação veio somar-se
uma perspectiva interdisciplinar interna ao campo das ciências sociais, também ancorada na
formação dos pesquisadores, e que nos permitiu reunir um arcabouço conceitual oriundo da
antropologia, da ciência política e da sociologia, delineando assim como foco de nossa
investigação as percepções da violência nas escolas pelos professores.[1]
Com o objetivo de mapear o modo como a violência nas escolas públicas é percebida pelos
professores, elaboramos um roteiro para a realização de entrevistas em profundidade,
dividido em quatro blocos temáticos: trajetória pessoal do entrevistado, trajetória profissional,
características da escola em que leciona e violência nas escolas. O corpus aqui tratado
consiste em trinta entrevistas realizadas em cerca de vinte escolas públicas do Rio de
Janeiro, escolhidas segundo critérios que serão expostos e comentados em detalhe mais
adiante.[2]
O foco deste artigo está na articulação entre a centralidade da noção de “autoridade” para a
representação da profissão docente e a percepção da violência escolar pelos professores.
Este tema perpassa os depoimentos, aparecendo de forma particularmente nítida em dois
aspectos das entrevistas: um “deslizamento semântico” entre as noções de “indisciplina” e
“violência”, evidenciado pela natureza dos relatos de episódios vivenciados, presenciados ou
conhecidos pelos entrevistados, e as queixas e comentários dos professores quanto a uma
suposta “omissão” das famílias dos alunos quanto à sua educação (entendida aqui, conforme
veremos, em um sentido mais amplo do que a mera escolarização).
O texto está estruturado em três partes. Na primeira, expomos a metodologia empregada
para a formação deste banco de entrevistas, incluindo critérios de escolha das escolas,
dificuldades encontradas para entrada no “campo” e perfil dos entrevistados. Em seguida,
exploramos três pontos centrais recorrentes nos depoimentos: a) a “alterização” dos relatos
sobre a violência nas escolas, ou seja, a onipresença de uma estratégia discursiva que a
atribui sempre a um “outro”, definido ora espacialmente (outras escolas, outros professores),
ora temporalmente (outras épocas, outras gestões, ex-alunos); b) uma indefinição quanto à
natureza mesma do fenômeno violência, que pode surgir descrito como agressão física,
como imposição de danos materiais, como ameaças ou xingamentos ou como desobediência
a regras relativas à rotina do funcionamento escolar, naquele processo a que nos referimos
acima como um “deslizamento semântico” entre os termos “violência” e “indisciplina”[3]; e c)
um “embate” descrito pelos professores como se dando entre corpo docente e responsáveis
familiares quanto à responsabilidade pela conduta do aluno, tanto em termos de seu
desempenho acadêmico quanto em termos mais amplos de sua socialização. Na terceira e
última seção, abordamos um tema inserido pelos entrevistados em seus depoimentos de
forma espontânea e recorrente, em um tom quase sempre crítico: a aprovação automática.
A aprovação automática é um dispositivo pedagógico introduzido no ensino público do Rio de
Janeiro como desdobramento de uma recomendação contida na Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB) de 1996. Pela lei magna da educação, as escolas teriam
liberdade de flexibilizar procedimentos de modo a preencher de forma mais adequada os
processos de ensino e aprendizagem. Um dos procedimentos mais destacados dizia respeito
ao aproveitamento dos estudantes com relação ao que era ensinado. As pesquisas feitas
em meados da década de 1980 indicavam o fracasso do sistema educacional brasileiro em
cumprir o que estava prescrito na Constituição. As crianças não permaneciam nas escolas,
era o argumento mais usualmente apresentado. Evasão escolar era a tradução mais explícita
do fracasso da escola em prosseguir em sua missão educativa. As pesquisas, no entanto,
sinalizavam em outra direção. As crianças permaneciam nas escolas, mas não
ultrapassavam a primeira série. Os índices de reprovação acenderam a luz amarela para
problemas concentrados no interior das comunidades escolares. Se o problema mais agudo
era repetência, o próprio sistema escolar entra em questão. Era preciso buscar em seu
interior razões mais plausíveis para o fracasso.
Além de muitos outros fatores – infra-estrutura precária, corpo docente despreparado, falta
de incentivos e condições de oferta de boa qualidade e atrativa para o público estudantil –
um dos que ficou em pauta foi exatamente o efeito sobre as crianças de uma reprovação
precoce. Efeitos de toda ordem: psicológicos, pedagógicos e sociais. As crianças eram
chamadas a se ausentarem dos colegas de turma e iniciarem suas atividades em outro
ambiente, com risco grande de novamente ficarem retidas. O sistema de ciclos foi pensado
para responder ou minimizar os efeitos descritos acima. E dentro dele, um dos
procedimentos adotados no município do Rio de Janeiro foi a aprovação automática, em que
os alunos seguiam até a quarta série do ensino fundamental sem que fossem retidos por
reprovação em disciplinas. Sua inserção espontânea e crítica pelos entrevistados foi o dado
que nos colocou na pista para a centralidade da questão da autoridade na compreensão do
modo como estes professores percebem o problema da violência nas escolas. É esta
reflexão que guia nossas considerações finais.

1. Notas metodológicas

Tradicionalmente celebrada por suas belezas naturais e um suposto espírito alegre e


hospitaleiro de sua população, a imagem da cidade do Rio de Janeiro passou a ser
associada, a partir dos anos 1980, por outras marcas não tão positivas. O crime, a violência
e o tráfico de drogas imprimiram na “cidade maravilhosa” o estigma do risco, da degradação
do espaço público, da insegurança e do medo. Há razões de sobra para que isso se tenha
dado. Há anos o Rio de Janeiro está entre as quatro capitais mais violentas do país.
Tomando o ano de 2005 como referência, o Rio de Janeiro apresentou uma taxa de 45,6
vítimas de homicídios por cem mil habitantes[4]. Desagregados por idade, os índices são
mais perturbadores. Mais de sessenta por cento das vítimas estavam na faixa entre quinze e
vinte e nove anos. Na faixa dos quinze a dezenove, a taxas é de 107.6 mortos por cem mil
habitantes (20.4% do total)[5]. Esses números, que apresentam variações pequenas e pouco
animadoras ao longo dos anos, impuseram a questão da violência na agenda pública e no
até então refratário universo das pesquisas sociológicas. Como lidar com o recrudescimento
da violência criminal em geral? O que fazer para salvar essas gerações que, arrastadas por
essa dinâmica, têm uma parcela sua precocemente desperdiçada? Nos debates travados
nas duas últimas décadas a escola aparece em duas chaves. Na primeira delas, o mau
funcionamento das escolas aparece como um dos fenômenos que legam aos jovens cariocas
(e esse é um dado que pode ser estendido ao país como um todo) o desamparo e o
despreparo que, em tese, os empurraria para o tráfico de drogas e outros circuitos pautados
pela violência que, em larga escala, acaba se configurando em toda sua brutalidade nas
taxas de homicídio. Em segundo lugar, e em decorrência lógica da primeira chave, a escola
aparece como potencial instrumento para a reversão da tendência hoje em curso. Um maior
investimento na rede escolar, uma aproximação maior dela em relação à comunidade a que
atende (incluindo aí não somente os estudantes nela matriculados regularmente, mas seus
pais e responsáveis, vizinhos, etc) poderiam, aposta-se, contribuir para a criação de redes de
sociabilidade que tragam para a sociedade formal uma parte da juventude que é, ano após
ano, perdida para e por causa das redes criminais. Essa, vale ressaltar, é apenas uma
aposta. Trata-se, contudo, de uma aposta plausível.
Nossa pesquisa situa-se um passo atrás do que foi apontado anteriormente. Dentre as
conseqüências das altas taxas de violência podemos observar uma espécie de
contaminação das instituições do Estado e o surgimento de uma espécie de cultura do medo
no âmbito da sociedade. A pergunta de base que fizemos ao propor a pesquisa foi em que
medida uma e outra colonizam o espaço escolar. De que modo a violência se manifesta
nesse espaço valorizado como crucial para sua reversão e como os atores que dele fazem
parte percebem a violência em seu interior?
Como ocorre em todas as grandes metrópoles, a violência no Rio de Janeiro não é
distribuída eqüanimemente do ponto de vista ecológico. Desse modo, procuramos entrevistar
profissionais de ensino que atuam em escolas situadas em áreas mais conflagradas e em
outras com taxas baixas, tomando a distribuição de casos de homicídios como referência[6].
Queríamos, com isso, verificar uma possível regularidade de casos e tipos de percepções
segundo o contexto das escolas. A dificuldade de entrevistar profissionais (freqüentemente
refratários a tratar do tema) e a não observância de variações significativas nos seus
discursos segundo o critério definido nos levou, na segunda etapa do trabalho de campo, a
abdicar do critério previamente escolhido e buscar o contato com profissionais que, em
função de vínculos com pessoas próximas aos pesquisadores, se dispusessem a tratar do
tema da violência de forma mais desarmada. A escolha mostrou-se acertada e profícua. Em
lugar de resistências e silêncios obtivemos depoimentos mais eloqüentes e esclarecedores.
O silêncio, contudo, além de por si só revelar um aspecto do tema pesquisado (tocar na
questão da violência é por si só objeto de receio. Trata-se de um tema tabu.) é revelador da
importância de mais esforços a serem envidados na direção tomada por nós.
Trinta foram os depoentes que compuseram o grupo de entrevistados (professores da rede
pública do Rio de Janeiro) sobre percepção da violência nas escolas onde trabalham.
Alguns comentários gerais podem ser úteis para identificar o perfil desse conjunto. Dos trinta
computados, vinte e um são mulheres, nove são homens. Estamos, portanto, diante de uma
tendência que ainda se manteve: 70% dos professores são do sexo feminino, o que é um
dado recorrente não apenas no Brasil mas em toda a América Latina. Mas os dados indicam
algumas particularidades que vale a pena mencionar. O grupo de professores está,
majoritariamente, acima de 40 anos de idade, e em expressiva maioria, atua no magistério
há mais de dez anos. Entre os nove professores homens, três têm mais de 50 anos,
portanto, integram uma geração para a qual o magistério não era uma saída natural ou uma
escolha preferencial, ao menos usual para o sexo masculino. Consideramos interessante a
proporção de um terço de homens entre os entrevistados. Surpreendeu-nos esta amostra
pela idade e pelo tempo de experiência no magistério.
Dos vinte e três entrevistados que declararam idade, nenhum tem menos de 40
anos, sendo que dez ultrapassaram 50 anos. Este é um dado importante que tem merecido a
atenção de especialistas em educação – profissionais envelhecidos em uma profissão
desafiada por demandas contemporâneas diante das quais os professores se sentem
despreparados e/ou resistentes, o que se materializa muitas vezes na dificuldade de
comunicação com novas gerações e pode ser um dos fatores da crise no exercício da
profissão. Novas tecnologias, novas linguagens instigantes aos interesses jovens são
estranhas aos que conduzem o processo educacional. Dinâmicas inteiramente
desconhecidas ou não praticadas destacam a defasagem entre professores e alunos com
reflexo sobre comunicação e interação entre gerações. Estes têm sido pontos levantados
nos diagnósticos que cuidam da alta faixa etária do magistério e que exprime uma tendência
mais geral, por muitas razões, entre elas, a pouca atratividade da profissão para as novas
gerações, a baixa competitividade da carreira frente às demais e, por último, e não menos
importante, o pouco retorno diante de muitas dificuldades na rotina do magistério. A
característica não competitiva da profissão interfere na pouca disputa entre jovens por um
lugar na carreira de magistério. Recentemente, com a aprovação pelo Ministério da
Educação de um piso salarial para todo o país na faixa dos R$ 900,00, reacendeu-se a
discussão na mídia impressa e eletrônica sobre a profissão de magistério. A sinalização
importante de aumento do piso é ainda insuficiente para vencer muito das barreiras
encontradas no exercício da profissão. Os perfis dos entrevistados sinalizam fortemente
para pontos que são frequentemente valorizados quando o que está em questão é a análise
do desempenho docente.
O nosso conjunto de entrevistados é experiente tanto em idade (todos acima de 40 anos)
quanto em tempo de magistério. Dos dez que declararam objetivamente o tempo de
exercício da profissão, todos ultrapassam dez anos, sendo que quatro deles ultrapassaram
vinte anos. Ainda que não tenhamos tido a declaração exata dos demais sobre o tempo de
magistério, os conteúdos das falas sinalizam para mais de dez anos. Nenhum dos trinta
entrevistados estava ou se declarava no início da carreira. Não encontramos no grupo e não
tivemos indicação para entrevista de nenhum profissional no início da carreira. Estamos
diante de um conjunto de pessoas amadurecidas. O termo maduro expressa bem o perfil dos
entrevistados. São falas que indicam experiências de vida de pessoas cuja origem social as
obrigou ao ingresso no mundo do trabalho. Os depoentes são oriundos de famílias de classe
média ou classe média baixa, na maioria, ou mesmo de famílias operárias ou de baixa
extração social. A origem familiar mais próspera tangenciou o limite da carreira militar (dois
casos) e de funcionário público (um caso), um protético (profissional liberal), um advogado.
Em nenhum desses casos, todavia, houve qualquer menção a ambiente próspero
economicamente. Estabilidade profissional e não riqueza. Os demais estão entre operários,
profissionais de contabilidade (dois), jornalista, comerciante, caminhoneiro, técnico e
bancário. As mães, em notável maioria, compõem o grupo das ”donas de casa”. Ocupam-se
das tarefas domésticas e não são profissionalizadas, com grau baixo de instrução. Nenhum
depoimento se destacou pela origem familiar de alta classe média ou de extratos superiores.
E do conjunto de mães, três apenas estão incluídas entre profissionais da educação, com
reflexo declarado sobre a escolha das filhas pela profissão docente. Este é outro ponto
interessante para futuras explorações: interferência da escolaridade dos pais sobre
desempenho dos filhos e sobre escolha da carreira dos filhos.
Por que estão na profissão? Esta é outra entrada interessante. Com exceção de duas
depoentes, todos os demais ingressaram “por acaso”. Ninguém pensava em ser professor,
com exceção de uma depoente de 42 anos:
Desde pequenininha a gente brincava. E eu sempre gostei muito de criança, de brincar no quadro
e transmitir alguma coisa. Tentar transmitir alguma coisa pras outras pessoas. [...] Tanto que eu fui
fazer escola de formação normal. Depois, eu fiz faculdade de letras. E hoje eu estou numa outra
área que não tem nada a ver com isso, que são crianças portadoras de deficiências mentais. Já
dou aula há 27 ou 28 anos, contando a primeira escola que eu trabalhei antes mesmo de fazer a
formação normal.

Este caso tem suas características próprias e esclarecedoras: tias paternas professoras,
mãe enfermeira, pai protético (profissional liberal). A conversa sobre a carreira fazia parte do
universo familiar. Este é um ponto interessante entre as falas: alguns indicam inspiração
originária do ambiente familiar, um gosto que veio da socialização familiar – uma prima, uma
tia, mãe, mas são poucos os depoimentos que sinalizam para esta freqüência. Quando
aparece a relação, o depoimento confirma a importância da socialização para a escolha ou a
permanência na profissão por opção (como no caso de uma outra entrevistada que lista
entre as influências que a levaram à escolha pelo magistério o fato de freqüentar, em
criança, a escola em que a mãe trabalhava). Uma outra entrevistada credita à mãe a
inspiração que a tomou pela carreira do magistério. Mãe professora, artista plástica, teve
influência decisiva na escolha da profissão de magistério. Alguns chegam a mencionar que
não pensaram nisso e que até resistiam à idéia. Quando começaram, no entanto, foram se
envolvendo e se comprometendo a ponto de permanecerem nem tanto por salários, mas por
motivações outras, de natureza não monetária. Se todos ou a maioria esmagadora entrou na
profissão por acaso ou contingência da vida laboral, nenhum deles declara intenção de
abandonar por falta de motivação ou declara arrependimento. É como se a experiência os
tivesse embalado a ponto de se perceberem “vocacionados” no curso da rotina profissional.
Há um envolvimento emocional na profissão que distingue tal trabalho de outros. As
entrevistas dão indicação dessa dimensão que pode ser incorporada ao perfil desse conjunto
profissional.
Passemos, então, sem mais demora, ao que foi dito. Aí estão, também, algumas pistas do
que deixou de ser explicitado.

2. Autoridade e Percepções da Violência: três eixos de análise

Uma leitura do conjunto de entrevistas realizadas revela a recorrência de alguns temas a


partir dos quais podemos abstrair três questões principais: a) a alocação da violência a um
“outro”, definido espacialmente (outra escola, por exemplo) ou temporalmente (em algum
momento passado); b) um “deslizamento semântico” entre os temas da violência e da
indisciplina, que aparecem de modo intercambiável em muitos momentos dos depoimentos;
c) uma “negociação” quanto à responsabilidade pelos alunos, muitas vezes estabelecendo
uma relação de oposição entre pais/professores ou entre família/escola.

2.1 - A Violência dos Outros[7]

Um tema que chama muito a atenção na leitura do conjunto de entrevistas é a


natureza evasiva das respostas dos entrevistados quando indagados sobre episódios de
violência ocorridos em ambiente escolar. São freqüentes as negativas de que, naquela
escola em que trabalham – no sentido do vínculo profissional que os coloca na condição de
entrevistados, uma vez que vários trabalham em outras escolas – ocorram situações de
violência. Entretanto, muitos relatam episódios que presenciaram, viveram ou de que
ouviram falar, mas sempre atribuindo-os a um “outro”, definido espacialmente ou
temporalmente – outra escola, outra época.
A alocação espacial da violência a um “outro” pode acontecer de diversas formas. A
mais evidente é o relato de episódios que ocorreram em outras escolas. Um exemplo pode
ser visto no trecho abaixo, em que, após comentar de forma evasiva sobre a possibilidade de
ocorrência de brigas entre alunos, a entrevistada afirma:
Você falou que sempre tem esses problemas de brigas, né? De alunos... mas você consegue
lembrar de alguma estória marcante de violência?
Não... porque nada que tenha acontecido assim...
Não há referência aos entrevistados (idade, género, etc.)
Ou que tenha ouvido falar... de um outro colégio...
Bom, de um outro colégio. Há pouco tempo... há pouco tempo, não... isso já tem um ano. Na (outro
bairro)... professora saiu de sala, você sabe disso?
Não sei...
A professora saiu de sala, não sei por qual motivo, o garoto atirou no outro com uma arma. Atirou
no outro. Pra você ver, isso aí a gente sabe de alguns colégios que acontecem. Alunos que entram
armados, que a gente só vai saber disso depois do...

Um segundo exemplo também nítido desta alocação da violência a uma outra


escola aparece também no relato abaixo:
Problema de que? Alguém que vendia?
Não. Alguém tinha, sei lá, cheirinho da loló, na sala de aula. Aí o que acontece. Abateu isso numa
professora, e a professora foi na direção e falou. Aí aciona a equipe. Vai o (Fulano) “olha presta a
atenção para que não aconteça de novo. Mas aí o que é que nós vamos fazer com essa turma?
Monta estratégia. Não monta? Isso pode ser dito, isso não pode ser dito”. Terminamos o ano, sem
problemas. Foi atuado, esse foco foi desfeito. Agora, esse foi o único caso, que eu me lembre, de
tóxico.
Mas e em outras escolas? Você já ouviu falar?
Ah, sim. Os relatos que nós temos são de atrocidades, de... o que eu falei, é? Galeras? Não. Os
comandos. De você, são dois turnos, né? De alojar um grupo de alunos de manhã porque não
podem estar com o grupo da tarde. Da mesma escola. De todo dia você colocar porta e, no dia
seguinte, não ter mais porta.

Um terceiro depoimento é também muito eloqüente:

Você acha que isso acaba dificultando a aprendizagem?


A violência? A violência está crescendo nas escolas assim claramente. É claro. É muito claro.
Aqui na (escola da entrevistada)?
Ainda não. Graças a Deus aqui nós ainda temos um projeto de trabalho. Nós conseguimos cumprir
esse projeto. Os alunos acompanham... porque nós ainda temos assim... essa escola ainda é uma
escola de bairro.

Uma outra estratégia de “alterização” espacial da violência é atribuí-la a outra


escola na qual o entrevistado também atua profissionalmente, mas que é distinta
daquela a respeito da qual se dá a entrevista. No caso abaixo, além de ser outra
escola, não é municipal, mas estadual e noturna. O trecho está grifado:
Você chegou a comentar essa coisa da violência. E eu acho que isso está bem presente na vida
de qualquer um. Aqui ou lá, você tem alguma estória, alguma experiência nessa área que você
tenha vivenciado, que tenha te marcado?
Tenho... na minha escola mesmo aconteceu...
Lá ou aqui?
Lá! Aqui não! Lá na escola estadual, noturna. É... um aluno – eu não vou nem dizer o nome porque
não convém – ele estava na escola... eram dois irmãos. Um deles envolvido, com essa questão do
tráfico, das drogas e o outro não. Mas só que eles viviam juntos, aquela questão de estar ali,
acompanhando. E os dois estavam na escola nesse dia. E alguém entrou na escola procurando um
desses irmãos, o que estava envolvido com as drogas.
Alguém também envolvido?
Alguém também envolvido mas pra pegar o aluno e... acabar com ele. Entrou na escola. E esse
irmão ficou sabendo antes dele chegar à turma... porque eles não eram da mesma turma. Então
um irmão era do primeiro andar e o outro lá no terceiro, o tal que estava sendo procurado. Então,
ele entrou na turma dele e disse assim... parou na porta e ninguém assim, fez barreira para que ele
não subisse. E ele subiu mesmo. Entrou pela escola e foi direto numa turma que ele começou... ele
ia fazer a busca em todas as salas. Ele chegou ali, abriu a porta, olhou – ele não perguntou nada –
ele olhou, só que nesse, entendeu? O irmão que estava na sala reconheceu a pessoa. E quando
ele foi para a outra sala, ele saiu, conseguiu sair, correu ao terceiro andar, avisou a pessoa e eles
conseguiram fazer uma pequena fuga da escola. Só que esse rapaz viu que eles estavam fugindo
e aí atirou nele, não no pátio, foi assim... porque a escola tem um portão fechado. Então fora desse
portão mas ainda dentro desse espaço escolar. Aí atirou nesse menino, no pé desse menino. Ele
não conseguiu matá-lo mas a intenção era essa. Foi aquela correria, aquela loucura. Esse menino
ficou afastado por um bom tempo, o que sofreu o ataque. E nunca mais retornou. E a gente nem
sabe se está vivo, se está morto. A gente não tem a menor notícia. Tanto ele quanto o irmão...
sumiram. Ele não estava envolvido mas ele tentou salvar o irmão, com certeza ele ia sofrer uma
represália por conta disso. Então, essa foi uma experiência que nós vivemos ali que foi uma
violência muito grande. Que até você saber que acontece, você ouve falar que o fulano está
envolvido, que aquele se meteu ali, que usa droga... ouvir falar é uma coisa. Agora você assistir
uma cena dessas...

Na seqüência deste relato, a entrevistada faz uma observação que pode ser tomada como
uma síntese deste esforço em caracterizar a violência como algo externo à escola específica
sobre a qual se fala:
E isso atrapalha, atrapalha... e até porque os professores têm um certo medo. Não vou te dizer que
vou para lá tranqüila (...) A violência ela não chega lá dentro. Eu nunca vi ali, aquela coisa da
violência dentro da escola. Eu só assisti aquela cena, assim, no meio de outro... que veio dali, não
é um de nós. O que levou o tiro era.

O ponto central destes discursos que definem a violência como “do outro” surge aqui com
especial clareza: a vítima era um aluno, mas o agressor é textualmente descrito como não
sendo um de nós.
Esta definição espacial das fronteiras entre “nós” e “eles” aparece também na atenção dada
a uma demarcação “minimalista” do espaço escolar, com a ênfase focada onde as pessoas
envolvidas com situações descritas como de violência encontravam-se em relação à porta da
escola. Este dado chamou-nos a atenção devido à recorrência a um elemento que, à
primeira vista, pode soar como uma preocupação excessiva com detalhes irrelevantes,
merece ainda assim a atenção dos entrevistados, o que pode ser interpretado à luz deste
esforço maior em caracterizar a violência como sendo do outro porque detém-se diante dos
limites do espaço físico escolar.
(...) então, por exemplo, eu nunca vi uma arma dentro da escola. E olha que a escola é grande.
Atende a uma clientela que as vezes a gente sabe que está envolvida com o tráfico. As vezes as
pessoas que estão no portão, ex-alunos ou não, podem estar envolvidos com o tráfico.

Só que esse rapaz viu que eles estavam fugindo e aí atirou nele, não no pátio, foi assim... porque a
escola tem um portão fechado. Então fora desse portão mas ainda dentro desse espaço escolar.
[8]

(...) Nós temos o problema de que se nós deixarmos os portões abertos, vão entrar os alunos e os
que não são alunos.

Aqui era assim. Foi feita uma festa. Não sei o que é que houve... brigaram e teve um tiroteio
naquele portão dos fundos, ali onde tem a quadra.

E você acha que os professores vêm para cá porque enfrentam esse tipo de problema nos outros
colégios em que dão aulas?
Ah, com certeza. A gente tem uma professora nossa que relatou um caso em uma escola de (outro
bairro) em que o aluno deu um tiro no portão.
Um tiro no portão... conta aí.
Ah, ficou com raiva da professora, brigou lá com uma professora, enfim... ficou com raiva, foi em
casa, pegou uma arma e atirou no portão.

Este “nós”, contudo, não se define apenas espacialmente. A separação se dá também no


tempo – épocas passadas da mesma escola, gestões anteriores, ou até mesmo ex-alunos.
Os depoimentos são recorrentes em afirmar que a violência, naquela escola específica do
entrevistado, não é coisa do momento presente. Embora sejam categóricos ao dizerem ser a
violência algo de “ontem”, não “datam” contudo com precisão essa época. A violência é
assim percebida como fenômeno de um passado de cronologia vaga. Dois exemplos:
Assim, o que mais a gente tem visto no jornal, que sai hoje em dia, é a violência. Você acha que a
(escola do entrevistado) tem esses problemas?
Já tivemos uns casos isolados no passado, mas que, graças a Deus a gente... até o entorno está
melhor.
Casos... mas como é que foi?
Casos não. No entorno, tivemos alguns casos que ficávamos preocupados com que o aluno saia
até... mas...

E você falou... a gente estava falando essa questão da violência nos outros colégios. Você vê esse
problema aqui na (escola do entrevistado)?
Não, não. Não que eu consiga perceber. A gente tem aqui – hoje – uma clientela que não tem esse
tipo de problema. Alguns anos atrás, eu não estava aqui, eu escuto contar pelos próprios colegas
que já estavam aqui, que havia esses conflitos de facções. Crianças que são do (nome de
comunidade) e outras que são da (nome de comunidade) e não podiam... hoje nós não vemos
esse tipo de coisa não. Hoje nós temos uma clientela única, quer dizer, única no sentido de não ter
diferenças, de não ter brigas entre eles porque um mora numa comunidade e o outro numa outra.
É briga de quê? De porrada?
De tudo. De ter que chamar a polícia. De ter tiroteio na porta da escola. Alguns cinco anos atrás
era mais ou menos assim.

Eventualmente, contudo, causas específicas para essa transformação são apontadas, como
uma mudança de gestão, a presença da guarda municipal ou a saída da escola de um aluno
filho de um traficante conhecido:
Mas de quê? De drogas?
É. Mas agora, de uns tempos pra cá, melhorou. Com a gestão do (diretor), a disciplina na
escola melhorou e o entorno também. Agora com a guarda municipal nem se fala. Ela já
está aqui há quatro anos.
Mas eram o que? Vendas?
É, usavam, né? É mas aí é capaz de... a gente não vê claramente isso. Mas a gente sabe.
Mas, aí, o que é que acontece? A gente corre o risco de nossos alunos acabarem usando.
Mas isso já há um tempo não ouço falar. Na época do filho do (traficante conhecido),
ficavam esperando os alunos justamente pra isso, pra seduzir.

A estratégia mais recorrente é contudo definir esse passado em relação com o pertencimento
do aluno à escola: são “ex-alunos” os responsáveis pela violência. Alguns exemplos:

Às vezes, porque, algum aluno que estuda aqui conhece e fala ou tem uma namorada,
que tá ligado à... então a gente conhece ex-alunos que às vezes vem, diz para a direção,
então a direção.

(...) mas existe violência em escola existe. Em muitas outras escolas, até próximas
daqui...(...) aí uma mãe denunciou e dois dias depois o carro de um professor foi roubado.
Ela tem essa liberdade de chegar ali na frente e falar “poxa, meus professores não podem
mais nem estacionar o carro aqui na frente porque roubam?”. Meia-hora depois apareceu
o carro: “olha, tá em tal lugar, mas a gente não sabia que era de professor. Galera nova
na escola”.
Ela conhece o pessoal?
(Balança a cabeça). Ela sabe quem é. Às vezes até são ex-alunos. (...)

Aí os professores tiveram que correr, se esconder. Mas aí, graças a deus... e muito dos
ex-alunos, né, eram traficantes e alguns já morreram. A gente acaba sabendo por
notícias, um ou outro fala, né? É isso.

Você já chegou a ter casos de alunos, que se envolveram?


Não, a gente saber assim, não. Teve um menino aqui na escola (...) que a gente
desconfiava. Não tinha uma certeza. Mas, aí, ele saiu naquele ano, era só a oitava, ele
chegou na oitava (...)
Este conjunto de fragmentos citados compartilha assim um primeiro traço
fundamental: a violência nunca é do aqui e agora, mas sempre atribuída a um outro espacial
ou temporalmente definido. Este traço pode ser interpretado de várias maneiras. A primeira
delas seria entendê-la como uma estratégia consciente determinada por constrangimentos
institucionais, ou seja, pelo receio de abordar explicitamente um assunto delicado para o
funcionamento da escola. Pensado desta maneira, o ato de atribuir a violência a um outro
que é da mesma natureza daquele que fala – outros professores de outras épocas em outras
escolas estiveram em contato com outros alunos que protagonizaram situações entendidas
como violentas – é uma forma de, ao mesmo tempo, negar e reconhecer sua existência,
conciliando assim uma necessidade/desejo de falar sobre o assunto e ao mesmo tempo
preservar a si mesmos e à instituição em que trabalham.
Ainda seguindo essa linha interpretativa, as vocações institucional e profissional estariam
preservadas. Como vimos anteriormente, a natureza do trabalho do professor é
repetidamente associada a categorias que lhe conferem uma aura especial, asséptica, quase
religiosa. O professor seria uma espécie singular de profissional que realizaria seu trabalho
com desvelo e dedicação, a despeito dos baixos ganhos monetários e das dificuldades
implicadas no exercício da profissão. O professor é uma espécie de “vocacionado”. A
escola seria o espaço em que seu trabalho é realizado, alimentando-se da vocação
(expressão recorrentemente usada pelos professores para dar conta de sua escolha
profissional) dos profissionais ali envolvidos, da sua devoção, da boa organização
administrativa, tornada possível invariavelmente pelas qualidades pessoais das equipes
pedagógica e de direção. Embora aparentemente óbvia, a linha interpretativa que aponta
para a preservação consciente da instituição em que o professor atua não deve ser
meramente desconsiderada. Afinal, as escolas em que atuam são descritas pelos
entrevistados como espaços que funcionam a contento, a despeito das dificuldades
estruturais enfrentadas, A ocorrência de episódios de violência poderia funcionar, em sua
percepção, como máculas, contra-exemplos da excelência de seu bom funcionamento.
Uma segunda interpretação seria atribuir a esse discurso um estatuto diverso
daquele da estratégia consciente, inserindo-o, ao invés, no registro de um recurso de
elaboração simbólica da violência: a “alterização”, conforme apontou, entre outros autores,
Caldeira (2000), ao examinar os discursos sobre a violência entre moradores da cidade de
São Paulo.
Nesse tipo de mecanismo, fartamente percebido em estudos sobre discursos acerca da
violência, a alterização funciona como uma espécie de cordão sanitário simbólico. A
violência estaria associada à desordem, ao caos, do mesmo modo que ao sujo, ao impuro.
Essa linha interpretativa remete nosso próprio campo a outros que já podem ser
considerados clássicos no estudo da violência, como aqueles dedicados a meninos de rua
(Silva & Milito, 1995), às classes perigosas (Coimbra, 2001), ou mesmo a agentes do Estado
cujo trabalho os coloca diretamente em contato com as populações marginais, como os
agentes penitenciários (Coelho, 1987) ou os policiais (Bittner, 2006). A alterização da
violência, nesses casos, decorre de uma percepção difusa, mas fortemente estruturante, do
risco de contaminação implicado no contato com a violência, assim como com os
personagens identificados como seus agentes preferenciais. O mero contato com um ou
outro (a situação de violência ou seus supostos atores) arrastaria a todos, por efeito de
contágio, para o mesmo ciclo imprevisível, fora de controle, sujo, feio e ameaçador que
caracteriza aquilo a que damos, de modo por vezes indiscriminado, o nome de violência;
tornaria-os pares de infortúnio e perdição.
Importante frisar que a primeira e a segunda linhas de interpretação aqui sugeridas não são
de modo algum incompatíveis ou auto-excludentes. Assim como os muros da escola
funcionam em alguma medida como recursos de isolamento do espaço escolar do mundo
precário e ameaçador que vigora em seu exterior (como os muros dos condomínios
paulistanos descritos por Caldeira), a distância espacial e temporal também funciona
simbolicamente como isolamento simbólico do universo contaminado daqueles que sofreram
o contágio fatal.
Vale notar que tais estratégias discursivas ocorrem mesmo quando casos entendidos como
violentos são admitidos. Isso se dá pelo modo de narração que os isola no tempo ou no
espaço. É o que ocorre na descrição minuciosa do local em que se deu um dado episódio ou
na ressalva de que uma outra ocorrência se dera à noite (a noite, esse marco temporal
habitado por personagens sombrios, perturbadores, irresolutos).
Uma terceira forma de pensarmos essa “alterização” seria colocá-la em relação com
um outro fenômeno presente nos depoimentos: uma certa dificuldade em “nomear” eventos
ocorridos no ambiente escolar como sendo “violentos” ou, colocando de outro modo, uma
imprecisão quanto à definição de “violência” neste ambiente. O relato abaixo é especialmente
ilustrativo deste mecanismo:
Você já sofreu algum tipo de ameaça, uma briga com aluno?
Não. Até já mas o aluno depois até se desculpou. Estava meio, sabe?
Drogado?
É.
O que aconteceu?
Ele levantou, começou a gritar e nem sabia porque estava gritando. Nem eu sabia porque ele
estava gritando. Depois que tinha esclarecido. Pediu desculpas. Sabe quando você acha que a
pessoa falou um negócio e (incompreensível) não falou. Que falaram para ele que falou. Mas
depois veio a mãe dele falar. E ele já tinha vindo fugido de outra escola. Não tinha nem três meses
de escola. Ele saiu de uma escola no (bairro) para cá e estava envolvido com drogas. Em casa ele
havia tentado bater na mãe. Só que a mãe esconde. Por que? Porque ela tem medo de que a
escola exclua o filho dela. Porque na verdade, se ela tivesse falado, a escola poderia ter
encaminhado o cara para tentar solucionar o problema dela. Ou por um psicólogo, ou sei lá, por
uma clínica de dependentes químicos já que ele era menor. E a coisa explodiu assim. Só veio à
tona por conta disso. E ela perdeu o domínio mesmo porque ele saiu da escola, não quis mais ficar
na escola, por pressão de ninguém... ele nem dormia mais em casa direito. E hoje ele perambula
por aí. Eu acho que ele tinha 16 anos para 17. Era menor de idade. Estava na sétima.

Embora possamos reconhecer nesse trecho alguns traços já comentados antes – o


rapaz veio “fugido de outra escola”, estava há apenas “três meses” ali -, o interesse maior
deste depoimento está na oscilação inicial da entrevistada. Indagada diretamente se já havia
sido ameaçada por algum aluno, ela primeiro diz que não, em seguida diz que sim, para
então “concluir” alegando que o aluno depois se desculpara, prosseguindo então com uma
série de explicações que de certa forma “inocentam” o aluno da agressão a ela endereçada:
ele estava “drogado”, “não sabia porque estava gritando”, sua mãe escondera sua história
escolar e familiar por medo de que ele fosse excluído, com isso privando-o de formas de
ajuda que poderiam ter solucionado seu suposto problema (clínicas, psicólogos).
A questão central aqui parece ser um esforço de “ressemantização” da noção de
“violência”: qual a lógica implícita em um relato no qual desculpas posteriores a uma
agressão parecem descaracterizá-la enquanto tal? Ou seja: se o aluno, após agredi-la
verbalmente, em seguida se desculpou, isso faz com que a situação não possa ser
inequivocamente classificada como “violenta”? O ponto-chave, que nos conduz ao próximo
eixo analítico que perpassa o banco de entrevistas formado, parece ser um “deslizamento
semântico” entre as noções de “violência” e “indisciplina”, que surgem muitas vezes de forma
intercambiável na fala dos entrevistados. “Violenta” em um primeiro momento, a atitude do
aluno pode ser reclassificada como “indisciplinada” quando ele se desculpa, reconhecendo
neste movimento a “autoridade” do professor e permitindo assim uma redefinição do evento.
Este é o ponto que exploraremos na próxima seção.[9]

2.2 – Violência versus Indisciplina

Você disse que a (escola da entrevistada) não tem esses problemas de violência. Mas tem a
guarda municipal aqui. Como é que é isso?
A gente cedeu o espaço para a guarda. Pô, a guarda dá a maior força. Mas eu te falo da violência,
eu te falo também da (outra escola). A (outra escola) não tem guarda municipal lá dentro. E as
brigas que acontecem, são brigas normais. “Você pegou o meu boné e bateu na minha cabeça”?
não são violências pesadas. A escola quando ela é administrada de uma maneira a evitar esse tipo
de conflito ela realmente funciona.

A expressão “violência pesada” sugere a existência de um tipo de evento que, embora


vizinho da “violência”, seria “leve”, não se encaixando plenamente nesta rubrica.
Paradoxalmente, esta afirmação surge na seqüência de uma exposição sobre a importância
da guarda municipal na inibição da violência na escola da entrevistada. A guarda municipal é
representada como um fator ao mesmo tempo importante e desnecessário no controle da
violência, porque na outra escola não há “violência pesada”, mesmo sem a presença da
guarda. O recurso a essa expressão apresenta bem o esforço dos entrevistados em
qualificar a violência, muitas vezes entrelaçando-a com o tema da indisciplina a ponto de
torná-las indistintas.
Este deslizamento entre “violência” e “indisciplina” tem como mediador principal o
tema do “respeito”. A “falta de respeito” é apontada por vários entrevistados como uma
mudança na atitude dos alunos que responderia pela emergência de episódios de
indisciplina/violência:
Você acha que mudou, de uma maneira geral, as escolas, os alunos, o colégio... houve alguma
mudança desde quando você entrou até hoje?
Mudou o respeito. O aluno hoje está... não vem uma palavra, não sei. Ele está mais ousado, ele te
enfrenta mais, ele briga do nada. Agora mudou também o relacionamento com os professores. A
gente está mais próximo do aluno, (inaudível). Eu lembro o seguinte, a gente é o orientador dos
alunos. Não é o dono do saber. Mas mudou muito, mudou o relacionamento. (...)
Você lembra de alguma história, com você ou com outra pessoa, disso, de falta de respeito?
Olha, eu não posso nem falar porque eu tenho, assim, um jeito de lidar com eles. Eu não grito, eu
não faço uma ameaça de alguma coisa que eu não vou fazer, entendeu? Agora, se disser que vou
tirar um aluno de sala, com certeza ele sai de sala. Eu lembro de que quando eu fiquei com uma
turma de 8ª série – a professora não veio e fui lá passar um trabalhinho que ela pediu - aí um lá eu
falei assim “você só tem duas opções: ou você participar ou sair”. (inaudível) tirar de sala, chamar o
responsável... aí eu tenho que seguir, né? Agora, eu não tenho nenhum problema com aluno. Mas
eu sei de professor que já levou na cara, isso acontece.
Brigando com o aluno?
Não, de chegar e desrespeitar mesmo. De xingar, de o professor chamar a atenção e o aluno sair
xingando. Um pouco disso...
Você acha que isso mudou muito então?
Eles estão mais ousados, eles enfrentam mais os professores. Antes eles falavam escondidos.
Agora eu não posso te dizer onde é que está, o que aconteceu, são tantas coisas. Se tá melhor ou
não eu acho que também não posso dizer. Antes era tudo mais tradicional, hoje... (...)

(...) Eu vejo assim: no primeiro dia de aula é o dia das questões. Vamos acertar o ano inteiro agora.
Eu coloco o que gosto, o que não gosto, a questão do respeito, da conversa durante a explicação.
Eu peço que eles não tenham vergonha de perguntar nada porque se estão todos ali no mesmo
nível, com certeza a sua dúvida será a mesma do colega. Então, não tenham vergonha de
perguntar. Não tenham medo, mas só não perguntem durante a explicação, senão me atrapalha
porque meu chip aqui – eu brinco com eles – que meu chip aqui tá ligado e se sair daquela linha eu
erro tudo. Até para deixar eles, assim, um pouco mais à vontade. Então, eu não tenho problemas
com eles não. Na questão da disciplina, tem uns mais saidinhos e tem outros que não. A questão é
a que eu digo. Quando eles gostam de você, você conversa com eles na sala, eles vão fazer de
tudo para te agradar. Se realmente alguém estiver saindo da linha... não espero todos santos na
aula, mentira. Eles não vão ficar todos quietinhos. Tem sempre um ou outro que fala mais alto,
que faz uma brincadeira. Aí, você já chama a atenção, fica quieto ali. Porque se ele não está
gostando do professor, não tem aquela afinidade, ele vai seguir adiante com a brincadeira, vai
acabar... aí quem sofre é ele. Aí o professor fica irritado, coloca para fora. Então a questão é de
você tentar ser amiga desse aluno... também você não vai deixar... ser amiga, você também não
pode deixar isso ser muito paternalista. “Ah, benzinho. Está não vai fazer o trabalho? Ai que
bonito.” Não, não é isso. Você tem que deixar ele bem à vontade para perguntar, mas tem que
cobrar dele. “Você fez isso, não fez?”, não é para ser tão paternalista assim.

(...) Na (comunidade) a gente tinha uma subqualidade de vida, falta de saneamento básico, não
tinha calçamento mas tinha também o problema da violência. Já tinha os comandos, já tinha a
marginalidade mandando em determinados... eram determinados por territórios, cada território era
um bandido diferente que comandava. Então, lá a gente tinha esse tipo de entrada para
desenvolver o trabalho. Mas naquela época a escola era muito respeitada até pelos marginais.
Hoje em dia eu acho que não seja mais desse jeito.
Por que você acha isso?
Porque hoje em dia não respeitam mais nada, não é? Acho que não respeitam mais nada. A gente
tinha uma pobreza muito grande, as crianças eram carentes realmente mas de tudo, até de
atenção e carinho. Muitos pais saíam para trabalhar de madrugada e quando chegavam eles já
estavam dormindo. Então, quer dizer, era complicado nesse sentido. Mas foi uma experiência
muito gratificante... eu costumo dizer que quem trabalhou na (comunidade) depois trabalha em
qualquer lugar.

Esse “respeito”, quando há, é demonstrado pelo fato de que os alunos “atendem” ao
professor quando são chamados a atenção, cabendo a este ter “pulso” para conseguir
“respeito”:
Você já teve algum problema com aluno? Tem alguma estória para contar?
Não. Sempre, graças a Deus, até hoje... todas as vezes que a gente chama a atenção eles
atendem.
E os professores? Já tiveram algum problema... tem alguma estória?
A gente tem sempre um ou outro professor que não é tão enérgico. Às vezes o professor fala e o
aluno finge que não está ouvindo. Mas nada assim gritante... algo, né? Mas a gente tem, tem
alguns professores que não têm o mesmo pulso, como a gente costuma dizer, que às vezes fala e
entra por um ouvido e sai pelo outro. O aluno faz o que ele disse para não fazer. Mas não é
comum, não é uma regra da escola isso não. E eles sabem exatamente, esses professores que
não têm essa rigidez... então aí eles aproveitam. Adolescentes conseguem identificar isso com
rapidez.

O deslizamento entre indisciplina e violência aparece explicitamente no depoimento


abaixo. É na forma como os temas se sucedem que podemos perceber essa articulação. O
entrevistado passa do tema da “levadice” dos alunos, capazes contudo de “atender” e
“respeitar” o professor, a uma violência “entre eles”, expressa de forma física com socos e
pontapés. Chega em seguida a admitir conexões eventuais com o tráfico, retornando então
ao tema da capacidade do professor de “conter” a violência “chamando a atenção” de alunos
por sua vez capazes de “atender”, reeditando assim o movimento discursivo com que
abrimos esta seção (“até já fui ameaçada, mas depois ele se desculpou”). Vale acompanhar
o depoimento (o grifo é nosso):
Por que você acha que aqui na (escola da entrevistada) não tem esse problema... da violência?
Porque a gente não consegue perceber isso. A gente tem uma clientela mais ou menos dentro da
faixa etária regular. A gente tem... eles são levados? São. Mas são mais calmos no sentido de
respeitar, de atender, de respeitar as ordens que são estabelecidas pela escola. Hoje em dia,
realmente, a escola não tem esse tipo de problema.
Eu já entrevistei alguns professores e eles sempre apontam essa questão da violência...
Violência assim, de briga entre eles, há. Qualquer coisa eles dão soco, dão chutes. Isso há. Mas,
aí, voltada para o tráfico. Violência há. Mas são alunos que atendem. É chamada a atenção e eles
atendem. Agora de briga... se a gente deixar eles brigam o tempo inteiro.

Um segundo depoimento reforça explicitamente a importância atribuída à disciplina escolar


como forma de contenção da violência, mais uma vez “qualificada”, desta vez como “gritante”
(em lugar de “pesada”):
Só voltando um pouco nessa questão da violência – que acaba sendo um grande problema, a
gente lê toda hora nos jornais – a (escola da entrevistada) você disse que não passa por esse tipo
de problema. Mas qual seria o porquê disso?
Nós ficamos o tempo todo em cima, lá fora e em cima. Quando tem alguma coisa a gente sinaliza
para o responsável e a gente não deixa crescer essa questão da violência. Então, a gente está
sempre, como eu digo, fazendo a poda. Se você deixar crescer fica complicado. Se houver alguma
coisa a gente chama, conversa, coloca de castigo.
Você lembra de algum caso?
Assim, gritante? Não.

Esta disciplina escolar, se aparece por vezes como “antídoto” contra a violência, pode ter
contornos mais ou menos tradicionais, assumindo formas de organização do cotidiano
escolar distintas. Os dois depoimentos seguintes concordam quanto a este poder da
organização disciplinar do cotidiano como forma de inibição da violência, embora divirjam
quanto à necessidade do recurso a estratégias convencionais tais como a organização do
deslocamento dos alunos pelo espaço da escola, em filas ou não, “formados” ou não:
(...) Alguns alunos não precisam ser vigiados mais. Não precisa mais de professor. Aquilo já está
introjetado neles. Alguns são rebeldes, se rebelam, incomodam. “O professor está aí? O professor
chegou?” Eles incomodam. São justamente esses que a gente reclama. Esses são aqueles que
“poxa, acabo de bater o sinal e esse garoto já”, porque esses incomodam de alguma forma. Esses
incomodam a essa escola. Escola arcaica, do século XIX, em que os alunos se levantavam quando
o professor entrava. Discurso de que “na minha época”. Então, muitos de nós... eu sou formado em
escola pública. Eu sempre estudei em escola pública. Na minha época, eu não tinha a relação que
eu tinha com meus alunos. Nem sonhava em, sei lá, abraçar o meu professor. Era uma relação
diferente. (...)
(...) E pra escola?
Ela é necessária. Nesse momento pra ela é necessário porque você tem uma organização. É uma
instituição. É um poder instituído. Ela tem regras? Tem regras. Se você deixar 800 alunos – não
que eles formem – mas que você organize eles para subirem, são 800 alunos. São adolescentes.
Aí vão subir essa escada feito uns loucos. Há o risco de alguém esbarrar no outro e a pessoa cair.
Duas semanas atrás eu levei um com corte no pulso, outro com corte no dedo, que na brincadeira,
um estava bebendo água – e o bebedouro é de ácido inox, né? – alguém puxou a mão dele e aí
rasgou, né? Levou 8 pontos. Então se você não tiver um mínimo de organização, que é necessária,
a gente não pode, pelo menos nesse momento a gente não tem... aqui não é Escola da Ponte, lá
em Portugal, em que o aluno entra a hora que ele quiser.

(...) Nós fizemos uma festa aqui pra eles. Eles quiseram fazer um Halloween. Estava a guarda
municipal, seis diretores, todos os professores, estavam todos ali. Geralmente... não tem bebida
nenhuma. Mas numa hora dessas, pode, às vezes, né? Por serem rapazes novos. As vezes, uma
briga sai, assim, de repente. Mas, olha, foi uma coisa assim tão saudável, tão legal. Uma coisa
organizada, foi excelente. Mas você tem que estar sempre... prevenida.
Você falou que esses problemas foi durante um tempo... melhorou...
Até porque eu moro aqui. Então teve um período que a indisciplina aqui dentro... eles não
formavam, eu trabalhava aqui e ficava até desestimulada com a casa. Isso foi antes da gestão do
(novo diretor).
(Novo diretor) é esse novo diretor...
Novo não. Já tem há 9 anos. É diretor. Mas é um trabalho que... aqui, por exemplo, na entrada
dessa porta, ele leva os alunos até... o professor espera os alunos em sala de aula. Eles dão uma
linha, eles formam direito. Quando... aqui tem muitos daqueles cursos de capacitação e muitos
outros professores, de outras escolas, participam. E eles ficam assim... só escola particular tem
isso. Mentira! Nem o (outra escola) que é excelente. Os alunos vão todos pro recreio assim, né?
Vai todo mundo junto. Aqui, não. Aqui ainda forma. É um trabalho que ele vem investindo. Voltar
aquela coisa inicial, puxar a fileira. Por isso, ele está resgatando. Então, melhorou a disciplina. (...)

Esses mecanismos de uma “microdisciplina cotidiana”, contudo, aparecem mesclados a


outras formas institucionais de controle associadas ao uso (ou possibilidade de) de força
física, como a presença da guarda municipal no ambiente escolar. Encontram-se, assim, os
dois mecanismos do que David Garland (2001) chama de cultura do controle. A combinação
nem sempre eficiente (sobretudo nos tempos atuais) de estratégias de incorporação e
legitimação subjetiva de normas de conduta, através de hábitos, inventivas, normas e
preceitos, com a possibilidade exibida acintosa e ostentivamente do acionamento do uso da
força através de mecanismos, invariavelmente institucionais e estatais do uso da força, a
quem tem cabido às polícias, às agências prisionais e, no nosso caso, à Guarda Municipal,
instituição que tem na guarda de escolas e patrimônio público a sua razão de ser. Notemos,
ainda, que o uso desse segundo recurso é tratado como situação limite e, ainda assim,
atravessado por eufemismos. Afinal, o uso da força é reservado apenas para as exceções,
para aqueles que, por limitações extraordinárias, não se adequam à norma civilizada. O uso
da guarda, no entanto, por ser elemento externo e estranho à escola, pode ser visto como
sinal de fracasso da dinâmica escolar no cumprimento de sua própria missão, ela própria,
com suas liturgias, regras e rotinas, sendo um poderoso recurso de conformação dos corpos
dóceis de que fala Foucault. É por isso que o possível acionamento da guarda municipal
aparece descaracterizado no discurso dos entrevistados, que enfatizam a natureza de
“auxílio” ou “apoio” dos guardas municipais na manutenção da disciplina escolar (“separando
brigas” ou “chamando os responsáveis”), bem como outras formas de atuação possível,
como a prestação de “primeiros socorros” em caso de acidentes com os alunos:
E os alunos? Convivem com a guarda?
Nós tivemos há pouco tempo um evento, aí não é a guarda que está aqui dentro. Nós realizamos
isso pra trazer cães adestrados, eles tiveram atividades de recreação. Aí é um grupo que trabalha
só com isso. Como a base está aqui, a gente pede requerimento, aí eles vêem fazem o trabalho
deles. E os que estão aqui dentro ajudam muito a gente na questão da disciplina. Pô, separam
uma briga. Até ajudam naquele momento de ir lá, falar com ele, entendeu... de ligar pra casa,
chamar o responsável, entendeu...
Mas os alunos têm algum problema...
De relacionamento?
É. Eles interferem quando tem esses problemas de briga...
Não, não tem não. Eles vêm, ajudam. Quando eles vêem uma situação assim, eles vêm. As vezes
pegam lá na quadra, quando tem algum problema na aula de educação física, vão lá já pegam, já
vêm trazendo. Ajudam assim...

Por morar aqui eu sei que tem uma base da guarda municipal aqui. E ela está aí por que?
Esse é um projeto da própria guarda municipal em que eles instalam a base e são chamados de
guardas comunitários. Eles estão aqui dentro da escola só ...
(Mudança de lado da fita – Lado B)
É relevante?
só por questão de espaço físico. Eles precisavam de um prédio público aqui nessa região para se
alojar e nós tínhamos esse espaço e cedemos esse espaço.
Não é comum ter a guarda dentro dos colégios?
Não, não é. São seis postos e, até por coincidência, esses seis postos estão dentro de escolas.
Eles nos dão um apoio muito grande. Para nós foi um ganho ter a guarda comunitária mas não é
específico para escola mas para a comunidade também.
Você acha que a escola ganha em que com a guarda municipal?
Acho que impõe um pouco mais de respeito. São pessoas que estão lá fora no pátio e se vêem
uma briga eles vão lá e separam. Se os alunos se machucam, eles têm noções de primeiros
socorros que nós não temos. Então, assim, foi um ganho, foi um ganho para nós termos a guarda
municipal.

Temos assim uma oscilação entre duas formas extremas de controle da conduta dos
alunos: a primeira de exercício coercitivo e institucional (a guarda municipal), a segunda
de domesticação cotidiana da conduta (a normatização detalhada das atitudes dos
alunos em ambiente escolar). Na maior parte dos depoimentos, contudo, fala-se em sua
eficácia para conter a indisciplina, com a menção explícita à violência sendo rara e
surgindo evasivamente de forma “alterizada”. Neste quadro, o depoimento abaixo é
ímpar em sua riqueza, por traçar em linha reta uma relação quase que de causalidade
entre o “afrouxamento” das micro-regras do funcionamento escolar na relação
professor-aluno e a eclosão de uma violência física com uso de armas de fogo:
Ou que tenha ouvido falar... de um outro colégio...
Bom, de um outro colégio. Há pouco tempo... há pouco tempo, não... isso já tem um ano. Na Ilha...
professora saiu de sala, você sabe disso?
Não sei...
A professora saiu de sala, não sei por qual motivo, o garoto atirou no outro com uma arma. Atirou
no outro. Pra você ver, isso aí a gente sabe de alguns colégios que acontecem. Alunos que entram
armados, que a gente só vai saber disso depois do... mas, aí a questão do professor não deixar
uma turma sozinha. Eu tenho falado isso todo dia. A gente tem essa preocupação. Se realmente
precisa sair, tem que ir atender o telefone, tem um inspetor no corredor, ele tem que ir lá olhar sua
turma, pra você poder sair de sala. Mas parece que foi na hora do recreio. Todos desceram e ...
aqui na escola, ninguém fica lá em cima.

Encontramos assim nos depoimentos dos professores uma acentuada recorrência na


identificação de indisciplina como violência. Os professores sinalizam situações de violência
no interior da escola apontando para uma alteração historicamente datada (últimos vinte
anos) no comportamento de crianças e jovens diante das regras e normas estabelecidas. Tal
alteração teria produzido o vínculo entre comportamento indisciplinado e agressões à
autoridade docente, aos próprios colegas, aos membros da comunidade escolar. A ponte
entre comportamento indisciplinado e atitudes de violência aparece quase sem mediação.
Esta recorrência nos impressionou. No entanto, encontramos na literatura sobre violência
escolar a mesma referência a nos indicar que o fenômeno não está restrito à percepção dos
docentes do Rio de Janeiro contemplados nesta pesquisa.
Exemplo da notoriedade da associação entre violência e indisciplina foi a edição de
um número especial da Revista Educação inteiramente dedicado ao tema. Trata-se de uma
revista de grande circulação que tem, em seu projeto editorial, o compromisso de divulgar
pesquisas e avaliações de especialistas sobre temas de grande repercussão nacional. O
balanço é interessante porque os autores, cada um em seu próprio texto, acabaram por
sistematizar o conjunto de pesquisas, teses e publicações dedicadas a responder
analiticamente ao que alguns qualificam como “fronteira débil”, imprecisa, entre uma e outra
noção. A dificuldade em precisar o conceito de violência contribuiu definitivamente para as
associações mais óbvias entre comportamento indisciplinado e agressão de todo tipo (física,
psicológica, moral). Nesta nota, o termo sempre realçado nos relatos é “desrespeito”, falta de
consideração ou abuso na transgressão às normas estipuladas para a convivência escolar. O
comentário de Luiza Camacho, citado em um dos artigos da revista, deixa clara a extensão
de tal associação em outros ambientes escolares fora do Rio:
Ao analisar o fenômeno da violência, deparamo-nos com uma série de dificuldades. Uma delas se
refere justamente a essa multiplicidade de compreensões a seu respeito. Essa diversidade
evidencia a fragilidade de suas fronteiras. A violência se confunde, se interpenetra, se inter-
relaciona com a agressão de modo geral e/ou com a indisciplina, quando se manifesta na esfera
escolar. [10]

E não apenas o conceito de violência é deslizante, impreciso, difícil de unificar – o


que pode ser considerado violência? Agressão física? Desprezo? Agressão verbal? – mas
igualmente o conceito de indisciplina padece da mesma profusão de significados. Quando é
que uma brincadeira, uma conversa, uma fala mais enfática pode ser incluída no rol de
atitudes indisciplinadas? Indisciplinadas com relação a que normas? Que padrões? Que
expectativas? Quem percebe como desrespeito? O professor? Os estudantes? A percepção
de disciplina ou indisciplina interfere na categorização de uma atitude como indisciplinada ou
disciplinada? De que maneira a percepção se altera se incluímos na análise a questão de
gênero? Se proveniente de meninos certos gestos são considerados mais “naturais” do que
de meninas, mais facilmente identificados como transgressores e violentos? A dimensão
relacional de ambos os conceitos – violência e indisciplina – impede qualquer
universalização, embora as pesquisas desenvolvidas reforcem a percepção de ambos os
fenômenos em diversos estados brasileiros (norte a sul), a despeito de suas posições na
hierarquia de maior ou menor desenvolvimento. A pesquisa de Longarezi (2001) reforça a
tese da identificação, pelo corpo docente, de indisciplina com violência. A polissemia agora é
reconhecida na identificação das múltiplas faces do que é considerado ou pode ser
considerado como indisciplina.
Há certo consenso na literatura de que a emergência de estudos que reforçam a
associação entre indisciplina e violência floresceu no Brasil em estudos realizados no final
dos anos 1980, e particularmente, em meados da década de 1990. Não apenas no Brasil. A
inspiração francesa também se fez presente aqui. A sociologia da educação no Brasil tem na
França forte referência teórica e inspiração empírica. Estudos sobre escolas francesas no
período em questão denunciaram os efeitos perversos da massificação do atendimento da
rede pública de ensino, e as grandes questões políticas tiveram bastante interferência na
forma como os especialistas recortaram seus objetos de análise.
O enfraquecimento do Estado de Bem Estar, o recrudescimento de políticas liberais não
protecionistas, a crise de empregabilidade, a reconversão industrial, a alteração profunda no
mercado de trabalho e, consequentemente, na estrutura da divisão do trabalho social, tudo
isso contribuiu para vulnerabilidade da Escola como instituição capaz de preparar indivíduos
para inserção no mundo produtivo e participação na vida social. Quebrou-se no imaginário
social a idéia de escola como produtora de acesso a melhores oportunidades. A promessa
da Escola como mediadora entre vida doméstica e participação pública foi abalada com
tantos constrangimentos macro-sociológicos de repercussão imediata nas dimensões da vida
pessoal. Os efeitos gerais de tal contexto tiveram sua materialização mais ou menos aguda
dependendo das realidades locais.
No Brasil, a abertura política foi a um só tempo vetor de dois movimentos coetâneos:
irrupção da crítica à tradição autoritária de que também havia sido alvo a instituição escolar
nos vinte e cinco anos do regime militar (1964-1985), e, emparelhado ao mesmo movimento
democratizador, a universalização progressiva do acesso à escola de contingentes
importantes da população a quem foi negado por décadas sucessivas tal direito. A entrada
progressiva e volumosa de grande contingente populacional somada à autorização crítica a
todos os procedimentos identificados com autoritarismo produziu efeitos ainda não
controlados e que começam a ser mapeados nas pesquisas sobre os temas da qualidade de
ensino, da comunidade escolar, do desempenho estudantil e da violência escolar, mas
também da reciprocidade, da vida comunitária, da integração social e da vida democrática.
E a questão inquietante seria assim traduzida: teria a democracia produzido seu contrário? A
pergunta desafiadora nos leva de volta a outras que precisam ser enfrentadas pelos
educadores, intelectuais e pelos formadores de opinião. Que relação possível se pode
estabelecer entre autoridade e autoritarismo? Como compatibilizar vida social democrática
com atenção às normas e regras estabelecidas para a manutenção da vida coletiva? Toda
norma é legítima? Defensável? Justificável em qualquer ambiente de socialização?
Não há respostas generalizáveis a tais inquietações. Os dilemas da vida coletiva
enfrentam, em cada realidade específica, solução com maior ou menor possibilidade de
sucesso. No caso das regras e normas, por exemplo, acompanhando Howard Becker (1977)
em escrito muito anterior a toda essa movimentação, é possível pensar em suas
transgressões sempre e quando ferem o estabelecido por elas próprias. Em uma quase
tautologia, não é possível imaginar a vida social sem regras e não será possível imaginar
regras sem transgressões. São feitas para serem transgredidas, poderíamos pensar no
limite, a não ser que apostemos em algo mais inusitado – a uniformização das consciências
individuais. As transgressões fazem parte da dinâmica da vida coletiva e como tal têm que
ser incorporadas em pretensões de análise e na definição de parâmetros de compreensão da
vida social. Mas boa parte das análises recentes tomam a transgressão – o que vale dizer, a
indisciplina – como sinal ou como prenúncio de seu conseqüente desdobramento: a
violência. Esse nos pareceu ser o sentido da afirmação dos que identificam nos fenômenos
da indisciplina e da violência raízes indistintas. Tal associação ou a quase indistinção entre
indisciplina e violência tem sido também objeto de crítica entre os especialistas em
educação. Indisciplina e violência não têm a mesma raiz epistemológica, ainda que atos
violentos possam indicar alto grau de indisciplina.
Se não é possível imaginar sociedade sem transgressão é possível conceber vida social sem
violência, indicam-nos alguns dos especialistas. Violência pode remeter ao sentimento de
dano, sofrimento por dano; indisciplina pode não passar de uma mensagem de desacordo
com relação à obediência a certas normas estabelecidas. Há distância entre os dois
fenômenos vistos como manifestações humanas possíveis. E como as escalas são móveis,
há igualmente proximidade quando reações de indisciplina degeneram para gestos ou
comportamentos de agressão causando danos efetivos e fazendo vítimas.
Podemos assim encontrar no discurso sobre a violência nas escolas diversas matizações
deste deslizamento indisciplina-violência, que vão desde uma simples indiferenciação até a
procura, pelos entrevistados, de identificação de uma lógica capaz de estabelecer uma
relação de quase causalidade entre o afrouxamento das micro-regras de organização do
cotidiano escolar e a eclosão de episódios de agressão física, conforme vimos acima.
Esta ênfase na importância da micro-regulação cotidiana da conduta aparece ainda sob uma
outra versão. Alguns depoimentos estabelecem uma relação direta entre a não-observação
de regras consideradas básicas de polidez em outros ambientes que não o escolar e a
eclosão de violência física na relação dos alunos com seus professores, em um raciocínio
que pode ser entendido com base na descrição do processo civilizador de Elias (1993) como
sendo essencialmente uma internalização das formas de controle dos impulsos agressivos
inatos ao ser humano. O relato abaixo – um episódio em que um aluno deu um soco na
cabeça de uma professora, fazendo-a desmaiar - é exemplar ao equacionar o descaso pelas
pequenas convenções cotidianas de polidez (como a falta de hábito de pedir licença ou
desejar bom-dia) à ocorrência de agressões físicas:
E nesse colégio como era a sua relação com os alunos? Você tinha algum problema?
Não... era boa. Para você ter uma idéia, a primeira dama lá da comunidade quis dar o filho dela
para eu batizar. Eu que não quis. “Não! Você foi minha aluna... da 5ª até a 8ª série”.
Mas você via algum conflito de professores com os alunos? Lembra de alguma estória?
Só tinha. Até hoje tem. Tem professores que estão porque na verdade são heróis. Porque há esse
conflito, sim. De aluno pegar e ficar com o dedo “Pá, pá, pá... vou te matar!” Você fica assim. Tem
que encarar. “Vai matar? Matar por que? Que isso, garoto! Toma seu rumo!”. Entendeu... tentar
pedir a atenção. Tem professores que levaram soco. Tem uma professora – ela tinha 52 anos,
agora deve ter mais – (nome da professora)... levou um soco na cabeça! Desmaiou.
De um aluno?
De um aluno. Aluno... ele já partiu. O (nome do aluno). E aí, tentar contornar a situação. Vai dar
queixa, não vai? O que faz? Vai aonde? Vai voltar a trabalhar?
Mas ele bateu nela por que?
Porque é de graça, às vezes, as coisas. Ele não era nem aluno dela. Bateu! Deu um soco, assim,
puft... ela caiu. Não era nem aluno dela nem nada. Bateu. É questão mesmo da coisa da falta de
valor, de pedir licença, de dar um bom dia, um boa tarde. A gente aqui cria esses hábitos. A escola
ela tem que criar essa noção. Hoje em dia ela tem que criar essa noção. De manhã, quando você
acorda, você dá bom dia para sua mãe, seu pai, para quem estiver na sua casa, não dá?
Huhum...
Com certeza eles dão? Não!
Você acha que aqui na (nome da escola) é diferente?
É diferente, é diferente. Primeiro porque está no asfalto bem longe do ambiente que... se alguns
são, está longe do ambiente. E segundo que a gente tem aqui um projeto... a nossa política
pedagógica aqui é qualidade de vida. Então a gente bate em cima dessa tecla do por favor, do dá
licença, do não brigar...

O trecho abaixo, formulado pela mesma entrevistada em outro momento de seu depoimento,
é ainda mais claro quanto a essa articulação entre violência/indisciplina e processo
civilizador:
(...) Eu acho que a escola perdeu a força dela, de ensinar, porque as mães... os filhos traziam
alguma coisa para cá. Agora a gente tem que ensinar um monte de coisa para haver o retorno. Às
vezes o aluno em casa não é questionado. Eu aprendi na escola isso. Não foi nem meu pai nem
minha mãe quem me ensinou não. Quando você come uma bala e não tem lixo, você guarda o
papel de bala com você. Eu sou incapaz de cuspir no chão. Pode me dar uma vontade louca de
cuspir mas eu não vou cuspir no chão não. Às vezes você vê aluno que cospe, escarra no chão.
Isso eu aprendi em casa e reproduzia na escola. Eu não fazia. Então, são trocas: a casa, a família.
A casa troca com a escola e a escola troca com a família. Quando não tem essa comunicação é
quando esquentam as coisas.

Este depoimento adiciona ainda um novo ingrediente a esta forma de conceber a relação
entre violência, indisciplina e formas de contenção/cultivo da conduta cotidiana: o problema
da responsabilidade por este processo socializador. A quem cabe “civilizar”? À família ou à
escola? Esta relação família e escola é o tema da próxima seção deste nosso esforço de
mapeamento das principais questões que perpassam nosso banco de entrevistas.

2.3 - Família versus Escola: o lugar da responsabilidade


(...) “a senhora é responsável. Não sacode o braço dizendo que não sabe como faz não porque é
teu. Ele vai ser meu só um ano ou dois, no máximo quatro. Ele vai ser seu para o resto da vida”.
Esse tipo de conscientização a gente tenta fazer aqui.

Então, o que a gente diz pra eles: “Mãe, antes de vir pro colégio, ele é seu filho. Vai ser seu filho a
vida toda. Ela vai passar por aqui e vai embora, mas ele não vai deixar de ser seu filho.”

Estas falas de duas professoras sintetizam bem uma percepção recorrente entre os
entrevistados: aquela de que a família é omissa na educação de seu filho, estabelecendo
muitas vezes com a escola uma relação de delegação da responsabilidade por seu filho, ao
invés de uma relação idealizada de parceria.
A “ausência” dos pais é percebida sob várias formas, desde a ausência física no espaço
escolar – não-comparecimento às reuniões de pais, não-atendimento a convocações feitas
pela escola, etc. – até outras formas mais sutis, como a omissão na ajuda/estímulo às
atividades escolares. O desinteresse ou a indisponibilidade dos pais para acompanhar o
desempenho escolar dos filhos é apontado como uma dificuldade para os professores:
É, porque aqui você já vê assim... até a ausência de alguns pais porque tem a questão do trabalho.
Eles precisam trabalhar. Tipo, um pouco ausente. E eu acho que isso faz muita falta para o aluno.
Muita mesmo. Porque você faz o seu trabalho aqui, mas em casa tem que haver a continuidade. E,
às vezes, não tem isso. Eles não estimulam esses alunos a continuar aquilo que você plantou aqui.
Então quando eles retornam, eles voltam com aquela preguiça, aquela coisa... às vezes voltam
com trabalho de casa sem fazer. Não tem aquele interesse. Aquele estímulo dos pais: “Olha a
escola!”.

Quais são esses problemas?


Assim, por exemplo... as mães que trabalham. Todo mundo tem que trabalhar, isso também é uma
realidade nossa. Mas tem aquela mãe que trabalha mas também não dá conta da criança em casa.
Chega tarde, não abre um caderno, não sabe o que a criança fez. Quando chega uma nota, vem a
mãe assustada. “Mas por que?”. Aí você vem com o histórico dele. Porque ele não faz trabalho.
Porque ele falta. Então aquela surpresa... a mãe trabalha todo mundo sabe. Eu também trabalho,
mas quando eu chego em casa “cadê o caderno? Tem dever de casa? Você lê bilhete, lê agenda,
lê isso. Então você tem que dar conta. Eles não pediram para você trabalhar. Você precisa
trabalhar. Também “ah, vou ficar em casa cuidando dos meus filhos”, tá? Mas e aí? E a grana?
Vem como? Você não pode fazer essa opção. Todo mundo gostaria de ficar cuidando das
crianças. Mas aquela presença de ficar ali, cobrando do filho. Aí, esses casos de que aí a mãe não
cobra dos filhos, chega aqui e a criança não faz trabalho.

Eu faço a ciranda de livros. Os pequenininhos não sabem ainda pegar. Seria tipo o CA, né? Isso no
ano um, no ano dois eu faço uma ciranda. Eu seleciono, entrego na mão da professora, cada um
leva um pra casa. Eles ficam com ele durante uma semana. A mãe conta a estória. A professora
conta a história porque tem mãe que não conta.

Entretanto, o maior problema causado pela ausência dos pais, na percepção destes
professores entrevistados, não é a omissão no acompanhamento cotidiano do desempenho
escolar de seus filhos. Esta ausência far-se-ia sentir, principalmente, sob a forma de uma
carência afetiva, carência essa que alguns professores esforçam-se por sanar. Este esforço,
contudo, nem sempre é bem sucedido, como nos mostra o depoimento abaixo:
Nós temos assim a questão do ensino religioso. Então, a professora que nós recebemos ela é
muito boa. Ela não centraliza o ensino religioso realmente na coisa da religião, em nenhuma
religião. Ela faz uma coisa bem ecumênica, porém, ela encontra também dificuldades. Então ela
coloca temas para tentar humanizar um pouco aquelas pessoas que estão ali. Então ela coloca
textos falando de paz, textos falando de amor, de amizade, de doação, aquela coisa toda assim.
Mas o engraçado é que ela sente dificuldades, porque eles não ... (tempo)... Eu acho que eles não
têm essa coisa do sentimento tão enraizado neles. Porque a gente ainda tem uma família, tem
aquela questão do amor que o seu pai te ensina, sua mãe te ensina e você passa para os seus
filhos. Pelo menos eu ainda vivo isso, né? Acredito que também muitas pessoas. Mas lá eles não
têm isso. “A minha mãe me largou não sei com quem... eu moro com não sei com quem. Eu tenho
um filho mas o pai dele está preso ou, então, o pai dele morreu”. Que sentimento essas pessoas
vão ter para analisar um texto... a paz, o amor, a harmonia.
O que você acha disso?
Eles acabam se tornando pessoas... insensíveis. Eles estão se tornando pessoas insensíveis. Têm
alguns ainda. Mas numa realidade como essa, em que a violência domina, que a mãe abandona a
criança, que eu tenho um filho com uma pessoa que morreu, ela está presa, é um traficante, não
sei o quê... tem tempo de você ter uma questão afetiva nesse meio todo? Eu não sei se... eu
duvido. Então, eu acho que o trabalho acaba ficando em vão. Eu acredito assim. É muito difícil.
Engraçado que quando você chega e você tenta se doar para eles, eles bloqueiam isso. “Quem
essa louca que tá pensando o quê? Isso é mentira, ela está...”.
Neste depoimento, é clara a expectativa pelo professor de que seu afeto poderia ser uma via
alternativa para suprir a lacuna deixada pela família. Esta omissão familiar, contudo, somada
a um ambiente definido como “dominado pela violência”, é percebida como mais forte,
gerando seres “insensíveis” e “incrédulos” diante da possibilidade de uma doação afetiva
autêntica como aquela tentada pela professora.
Esta mesma articulação entre a omissão afetiva da família e a “compensação” pelo
afeto do professor pode contudo aparecer em uma versão “otimista”, com o afeto do
professor sendo capaz de superar um embrutecimento que seria somente
“aparente”:
(...) Voltei a trabalhar porque, por incrível que pareça eles são super amorosos. É só
saber falar. Se você chegar para eles “vocês são tudo um bando de favelados, bandido! O pai de
vocês... a mãe de vocês...”. aí você não chega nem vivo do outro lado. Agora, se você chega numa
de trabalhar com eles com calma, até mesmo para falar de drogas. (...)

Os professores descrevem-se assim como desempenhando um papel na vida de seus


alunos que poderia ser caracterizado como “substitutivo” em relação a pai/mãe, em especial
em sua função afetiva. Entretanto, embora este papel possa ser visto como algo positivo,
eventualmente produzindo resultados relatados como muito gratificantes, pode também gerar
um outro tipo de problema justamente por “confundir” os lugares simbólicos de pai/mãe com
professor(a), com este último vindo por vezes a desempenhar uma função paterna/materna
junto a seus alunos. Vários professores expõem em seus depoimentos sua visão desta
“confusão”, que apresenta vantagens ao mesmo tempo em que é capaz de criar outras
formas de conflito:
O problema deles era com a autoridade. Eles estavam com a autoridade dúbia. Tinha professor
que fazia uma coisa, tinha professor que fazia outra. Eles não sabiam o que fazer. São
adolescentes em formação. Se você não dá um referencial, eles acabam não sabendo o que fazer.
Isso pode se dar em atos violentos, que às vezes não são depreciativos para fazer isso para
agredir ao professor. Então tem uma série de coisas aí... figura de pai e de mãe que se confundem
com a do professor.
Você acha que eles vêm o professor como pai, é isso?
Sim. Às vezes eles têm um problema com a figura paterna, que quando professor reproduz essa
figura eles reagem. Eles não estão reagindo ao professor. Eles estão reagindo à figura paterna.
Você acha legal? O professor assumir essa função?
Ele assume inconscientemente. Isso aí é uma coisa que acontece inconscientemente. Nós temos
agora uma turma que, nitidamente, houve esse problema, da figura materna/paterna que estava ali
confusa com a do professor.
Na turma ou com alunos específicos?
Não na turma como um todo. Porque o que acontece. Tinha alunos específicos, lidando mal com
essa questão, e isso envolveu a turma toda. Às vezes envolve a turma toda. Às vezes é focado,
num grupo determinado de alunos. Às vezes não. Até que um dia eu cheguei para eles e falei:
“gente, sai da figura de pai. Pai e mãe vocês já têm. Nós vamos fazer isso e isso, minha função é
essa e essa”.

Você acha que o aluno às vezes tem uma relação de pai com o professor?
Tem, tem, muita. Tem alunos aqui muito carentes, que não têm os pais presentes e eles cobram
coisas, assim, de você que o pai deveria estar cobrindo. Então eu tenho um exemplo de uma
menina aqui que, realmente... ela estava até aí, aquela que me perguntou se eu ia embora? Aquela
é muito carente também, a mãe dela não liga para ela, não liga. Ela era uma menina assim: não
assistia à aula, faltava muitas aulas...
(...)
Eu acho que eu não terminei o meu raciocínio. Então essa menina é assim. Quando ela começou
aqui na escola, ela era uma pessoa muito nervosa, que brigava muito, não assistia à aula. Quando
vinha, brigava muito e a maioria das vezes ela não freqüentava a escola. Ela estava na sexta
série... ela já era de idade, 17 anos. Só que ela mudou o comportamento. Ela se tornou minha
amiga e da professora de português também. Nós nos tornamos amigas dela. E também é assim,
são muitos os problemas aqui na escola mas a gente desenvolver uma família aqui, aconselhando,
não é assim que ela deveria fazer. O que uma mãe deveria estar fazendo por ela. E aí ela se
transformou. Nunca mais faltou à escola, ela se esforça para fazer... não é uma aluna brilhante,
mas ela se esforça muito para tirar um R e ela consegue. As pessoas dizem... a diretora da escola
diz que ela se transformou. Ela conseguiu vencer uma batalha. Ela sozinha, sem mãe orientando,
ela conseguiu caminhar sozinha de uma maneira correta, assim, perfeita seria a forma como nós
queremos que seguissem nossos filhos. Mas não sei se será verdadeira: e quando ela sair daqui?
Não vai ter mais o nosso conselho e não sabemos o que vai acontecer. Mas muito são assim, por
causa do professor, ou a professora, que viram pai e mãe que eles não têm em casa.

Aí eu estava falando do menino. Eu fiquei injuriada com ele. Quando eu soube da estória
dele eu disse “não, vamos resgatar isso daí”. Hoje ele é meu assistente. “apaga o quadro
para mim”. Detesto que eles apaguem o quadro que eles jogam pó pra tudo quanto é
lado. Aí eu falo “tem que ser assim para o pó ir caindo”. Entendeu? “ah, vai pegar não sei
o que para mim. Pega o livro, recolhe o livro do pessoal aí para mim. Anota, não esquece
não”. Eu não conseguia entender aquela letra... só Jesus Cristo... mas eu comecei a fazer
com que ele começasse a participar da minha aula, participasse daquilo. Por que? Ele
ama muito o pai, o pai construiu outra família e literalmente não liga para os filhos. Não
liga. Faz festa para a outra família, para a outra filha, faz tudo do bom e do melhor e para
o filho nada. Esse é o problema. E isso se repete na escola. “Eu não posso dar um soco
no meu pai, eu dou na professora, eu vou agredir a professora, eu vou sacudir o braço
para ela”.
Você acha que isso às vezes faz o aluno ver o professor como um pai, uma mãe?
Vê... como pai e mãe. Ah, porque eu não tenho a cartinha aqui. Essa menina perdeu a
mãe com câncer, (nome da aluna). Ficou muito ruim, muito mal. Aí eu virei para ela “Você
vai perder o ano por causa disso? Sua mãe acha que vai ficar feliz? Acho melhor você
começar a voltar”. Isso aqui é o que vou juntando para depois separar o que presta do
que não presta.
(A professora procura a carta da aluna.)
E ela mandou essa cartinha para mim... de despedida. Ela diz que perdeu a mãe mas é
como se eu fosse a mãe dela. Sabe por que? Ela ia perder o ano. Simplesmente ficou
rebelde, não queria fazer mais nada. Se juntou com quem não prestava.
Aqui no colégio?
Não no (nome de outra escola). Se juntou com quem não prestava...
Ela diz assim “professora, você é muito legal, muito inteligente. Você é a melhor
professora que eu já tive. Eu não nós te adoro. Minha mãe morreu mas eu ganhei outra
que é você.”

Estes três depoimentos juntos mostram duas formas principais como esta atribuição
das figuras parentais aos professores pode se dar. O primeiro depoimento narra uma
situação em que a atribuição ao professor de uma função paterna ganha os contornos de um
desafio à autoridade, entendido pelo entrevistado como um “deslocamento” do alvo original
da contestação, que em sua visão seria o pai. O segundo depoimento fala de uma situação
em que a mescla entre os papéis de mãe e professora se deu pela via do afeto, expresso
sob a forma de um aconselhamento realizado pela professora em substituição ao
desinteresse da mãe da aluna.
Autoridade e afeto parecem assim constituir-se nos dois pólos extremos da atuação
do(a) professor(a) como pai/mãe. A relação, contudo, não é necessariamente de simples
oposição, podendo os dois termos aparecer sob a forma de uma articulação, como no
terceiro depoimento, em que o afeto da professora é uma forma de resgate da sua
autoridade.
Na etnopsicologia ocidental, as emoções são percebidas como associadas ao descontrole,
sendo potencialmente perigosas, em especial quando opostas à racionalidade; nesta
dicotomia, as emoções são também descritas como femininas (Lutz, 1988). O modo como
estas professoras recorrem ao afeto para recuperar/constituir sua autoridade junto aos
alunos nos permite assim nuançar estas associações recorrentes no senso comum ocidental
entre emoção-feminino-descontrole, sugerindo uma terceira forma de construção da
autoridade pela via do afeto, forma esta que viria assim compor, juntamente com as duas
outras maneiras de controle delineadas anteriormente (coerção institucional e controle
civilizatório da conduta cotidiana), uma tipologia das representações da autoridade presentes
neste universo.
Esta fusão entre as funções parentais e professorais tem assim um caráter ambivalente,
podendo ser ora solução – como no caso em que a “rebeldia” é descrita como sendo
domada pelo afeto substitutivo da professora – ora problema, na medida em que o
desempenho pelos professores destas funções parentais acabaria por reforçar a omissão da
família em relação a responsabilidades que, na visão destes professores, lhe caberiam. O
depoimento abaixo descreve esse tipo de ambivalência causada por esta indiferenciação:
Você acha que o aluno pode vir a ver o professor como um pai?
Com certeza, isso acontece muito. Até pela carência de atenção que essas crianças têm, isso
acontece o tempo todo.
Você acha isso bom ou ruim?
Eu acho bom no sentido de fortalecer mais os laços de amizade entre o aluno e o professor. Mas é
ruim porque a família pode acabar achando que determinadas funções que outrora seriam da
família, a família acha que é de responsabilidade da escola. Quando na verdade não é.

Os problemas, contudo, podem ainda ir mais longe, atingindo a própria relação entre
professores e pais. Estes são descritos pelos primeiros como eventualmente desrespeitosos,
precisando ser “domados” pela mediação da direção da escola:
Mas como é que foi isso?
Um brigou com outro. O pai veio tomar satisfação, descobriu que morava numa outra facção.
Depois acabaram descobrindo que na verdade primos, parentes, que não sabiam. Acabou tudo
bem. Tem um trabalho que interessante, que é fundamental, que não chega às vezes, diretamente,
aos professores que é o que tá acontecendo lá no portão. Pai vir aqui querer tirar satisfação com
professor porque chamou o filho de burro, jogou alguma coisa que poderia ter machucado ou por
causa da nota... a intervenção da direção é tão imediata que o pai não sobe mais. Ou quando vai
falar com o professor, já vem numa postura...
Amansado?
É amansado, mas numa postura do diálogo. Porque às vezes vem aqui querendo dar na cara do
professor. Eu já tive reunião aqui de pais que “tudo bem professor, mas nós não queremos falar
com o senhor. Nós queremos falar com o professor fulano de tal”. “Tá bom, só um instante”. Aí vai
chamar a direção até porque o professor não vem a essas reuniões, que não é obrigatória. Aí a
direção vai “olha...”

Este “desrespeito” pode assumir mesmo uma forma mais belicosa, em que aos pais
é atribuída uma visão do professor como um “rival”. Nesta percepção, surge uma visão
“infantilizada” e “psicologizada” da atitude dos pais, descrita como uma substituição de
natureza semelhante àquela que os alunos realizariam entre seus pais e seus professores.
Nesta percepção, os pais se comportariam como “alunos”, contestando a autoridade dos
professores de seus filhos como uma forma de “reedição” dos sentimentos de hostilidade que
teriam nutrido em relação a seus próprios professores:
Olha só... eu costumo dizer que são poucos os pais que costumam reconhecer o trabalho dos
professores. E eu costumo dizer que os pais, quando o aluno tem um bom desempenho, o aluno
está de parabéns. Quando ele tem um péssimo desempenho, o errado é o professor, o errado é a
escola. Então, a gente tem esse conflito de aceitação porque alguns pais enxergam o professor
como um rival. Quando, na verdade, não é. Eu acho que às vezes dificulta mais até o fato do pai
não ter uma formação porque aí a rivalidade aumenta. Porque se não tem uma formação, eles
acham... eles transferem a raiva que eles têm dos professores que foram dele para os professores
dos filhos. Eu acho isso uma coisa que dificulta muito o trabalho.

É interessante, contudo, realçar que esta visão não parece estar em conflito, na
lógica nativa destes depoimentos, com a percepção de que os professores desempenham
funções substitutivas parentais, o que, se percebido igualmente pelos pais, poderia
evidentemente explicar a imagem do professor como um “rival”. Ter que desempenhar
funções parentais e ser alvo de hostilidade/rivalidade dos pais são ambas razões para
queixas quanto à dificuldade de realizar seu trabalho como professores. Como explicar esta
aparente contradição?
Uma professora, que iniciou sua carreira há 25 anos, expõe assim sua visão das
transformações por que a educação teria passado nesse período:
Você acha que desde quando você entrou, você acha que mudou muito essa questão da
educação?
Mudou. Mudou para pior. No sentido de... os professores continuam trabalhando do mesmo jeito?
Sim, acredito que até mais do que trabalhava antes. Mas a valorização do professor mudou. A
escola não é mais respeitada pela sociedade como era antigamente. Antigamente a gente
costumava dizer que o quê o professor falava era lei. Hoje em dia não. Hoje em dia algumas leis,
alguns estatutos que foram criados, né? A gente não pode isso com o aluno, a gente não pode
aquilo com o aluno. Você não pode revistar uma mochila, você não pode chamar a atenção de uma
forma mais ríspida porque é constrangimento público. Você não pode deixar de castigo depois da
hora porque é cárcere privado. Enfim, eu acho que tudo isso veio dificultar o trabalho do professor
porque hoje o próprio professor tem a consciência de que a gente não tem artifícios de fazer uma
cobrança. E outro, antigamente a gente... o que o professor falava estava certo. A mãe aceitava e
dizia que estava certo. Hoje em dia não... hoje em dia a mãe vem aqui e questiona. O professor
não pode brigar, independentemente do motivo de ter chamado a atenção o importante não é o
professor estar corrigindo meu filho não. Ele não pode chamar a atenção do meu filho, você está
me entendendo?
Você acha que isso se deu de que forma?
Olha, por exemplo, o Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, eu acho que foi um
estatuto que veio para derrubar o nosso trabalho porque a gente não pode chamar a atenção
porque é constrangimento público, não pode colocar de castigo depois da hora porque é cárcere
privado, a gente não pode revistar uma mochila porque é invasão de privacidade e os alunos... e
quais são os argumentos que nós temos? Nenhum. Então, os alunos hoje, se ele faz uma coisa
errada, ele sabe que não vai ser punido. Então, se perde o respeito não tem nada a fazer. Aí você
chama o responsável, o responsável fica irritado porque teve que sair de casa para vir até aqui ou
teve que largar o trabalho para vir até aqui. Ontem, inclusive... a gente teve essa semana aqui uma
situação de uma aluna, seis alunas, fazendo guerra de água no banheiro das meninas.... uma na
outra, se molharam toda, uma arranhou o rosto da outra, podiam ter caído, batido com a cabeça,
se machucado feio. Quando eu chamei a mãe de uma delas, eu chamei a mãe de todas, mas só
uma mãe veio. Quando ela veio, a primeira pergunta que ela fez foi “a mãe das outras a senhora
também chamou?”. A questão que estava sendo discutida ali não era a mãe das outras. Era a
postura da filha dela. Então, o essencial deixou de ser importante, deixou de ser essencial. Se
tinha outras pessoas envolvidas então o erro são dos outros não é o erro do filho.
Você acha que mudou essa idéia de que o professor não pode punir?
Ele não tem mais autonomia, voz ativa. Isso é uma coisa que dificulta muito o nosso trabalho.

Em seu depoimento, a professora enumera uma série de fatores que dificultariam o


trabalho do professor. Estas dificuldades apontadas, contudo, não dizem respeito a fatores
de ordem didática – por exemplo, o acesso a recursos tecnológicos, livros ou a participação
em cursos – ou de infraestrutura – as condições materiais da escola. Suas queixas
concentram-se em um tipo de dificuldade que incide sempre sobre a autoridade do professor
e que provém de diversas fontes distintas. Em primeiro lugar estaria “a sociedade”, que não
“respeita” mais a escola, “desvalorizando” com isso o professor. Em segundo lugar, haveria
as mudanças de natureza legal (o Estatuto da Criança e do Adolescente), que em sua visão
aproximariam atitudes disciplinares tradicionais de determinados ambientes escolares
(“chamar a atenção” ou “colocar de castigo”) a infrações legais (“constrangimento público” ou
“cárcere privado”). Em terceiro lugar estaria a família, que contestaria as atitudes do
professor, assumindo uma postura de “defesa” de seu filho.
Algumas passagens deste depoimento iluminam a lógica destas queixas, que
apresentam um tom nostálgico em relação a um passado em que “o que o professor falava
era lei” e “o que o professor falava estava certo”. Se dispositivos legais sobrepõem-se agora
a práticas disciplinares tradicionais e se a família, ao invés de aliar-se ao professor, contesta
seu saber pedagógico, o efeito é a perda do respeito do aluno pelo professor, como
decorrência da certeza de impunidade diante de qualquer malfeito. Em decorrência, o
professor é descrito como “não tendo mais autonomia, voz ativa”, o que teria como efeito o
solapamento da autoridade do professor perante o aluno.
Este tema da autoridade pode ser assim entendido, em nosso conjunto de
depoimentos, como um fio que alinhava os diversos tópicos aqui tratados. Em primeiro lugar,
temos a recusa, seja ela estratégica (preservação consciente de si e de seu local de
trabalho) ou simbólica (a “alterização” da violência), a nomear como “violentos” episódios
ocorridos em sua escola, o que pode ser entendido, de um ponto de vista genérico, como um
esforço de negar o solapamento desta autoridade (“aqui isto não acontece”); em segundo
lugar, a ressemantização da violência, (con)fundida com episódios de indisciplina; e em
terceiro, a negociação com a família quanto à responsabilidade por educar/conter/controlar o
aluno.
A centralidade da temática da autoridade nos conduz ao quarto e último ponto de
nossa análise: a presença do tema da aprovação automática em vários depoimentos.
Inserido de forma espontânea por vários entrevistados, a recorrência deste assunto pode
causar estranheza devido à sua inexistência no roteiro original das entrevistas. À luz do tema
“autoridade”, contudo, o interesse dos professores por este tópico ganha enorme relevância,
pois nos dá uma pista para entender o modo como “violência” é compreendida no contexto
escolar.

Considerações Finais
O depoimento dos professores trouxe um dado interessante para o qual não
havíamos feito qualquer hipótese no início da pesquisa: relação entre aumento da violência e
a política de aprovação automática do município do Rio de Janeiro. Tal associação,
expressa sob a forma de uma introdução espontânea por vários entrevistados do tema da
aprovação automática no decorrer de seus depoimentos, provocou na equipe um conjunto de
pequenas e/ou mais refletidas ligações para as quais chamamos a atenção neste relatório.
A política de aprovação automática não pode ser classificada apressada e levianamente
como “politiqueira”, “ideológica”, “irresponsável” ou “oportunista”. Os especialistas que a
fundamentaram o fizeram com base em ponderações persuasivas dos pontos de vista
pedagógico e psicológico. O que significa reprovar uma criança nas primeiras séries do
ensino fundamental, o que vale dizer, nos primeiros anos de socialização escolar? Estamos
falando de crianças na faixa etária de seis a dez anos, sem considerarmos o fato de poder
haver defasagem idade/série, o que elevaria a faixa etária acima dessa referência.
Educadores e psicólogos ponderam sobre os efeitos perversos, emocionais e psicológicos,
advindos da decisão ou do anúncio da reprovação, com desdobramentos profundos sobre a
experiência de socialização das crianças, sobre o rendimento escolar e a convivência
humana. Ser reprovado é perder o convívio com a turma e significa estigmatizar crianças
com efeitos negativos duradouros dificultando a recuperação posterior. Não reprovar
crianças no início da vida escolar pode ser fundamental para sua permanência na escola,
para o interesse pelo estudo e a possibilidade de motivação com reflexos positivos para o
melhor rendimento e para um desempenho mais adequado na rotina escolar.
Como fazer então para evitar que crianças entrem e sigam as séries fundamentais, não
aprendam o básico e sigam em progressão negativa acumulada? O complemento da política
de aprovação automática seria o sistema de ciclo – um processo constante de
acompanhamento individualizado dos alunos de modo a perceber fragilidades e agir sobre
elas sem que se marque o estudante com reprovação em disciplinas. E neste ponto o
desafio iminente seria viabilizar a combinação entre aprovação automática e efetivação do
sistema de ciclo. Isso não acontece na rede pública do Rio de Janeiro. As razões do
fracasso ou da extrema dificuldade do sistema de ciclo formam uma lista nada desprezível:
1) turmas com número excessivo de alunos impedindo o acompanhamento individualizado;
2) sobrecarga ao corpo docente não preparado para essa alteração de função e para as
exigências pedagógicas que tal intervenção reclama; 3) problemas endógenos às escolas
(materiais, infra-estruturais, humanos etc); 4) problemas externos à escola com impacto
sobre a rotina escolar (desestruturação familiar, ambientes afetados pela insegurança são
desafios permanentes que atingem o ambiente escolar e que se interpõem ao corpo
docente). A combinação das dificuldades interpostas ao bom rendimento do sistema de
ciclos com a efetivação da aprovação automática produziu o contrário do esperado
originalmente. Os estudantes obtiveram “licença para seguir adiante” sem qualquer
correspondência de acompanhamento e avaliação individualizada. Pesquisa recente de um
aluno de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ confirmou
as dificuldades encontradas em uma escola da rede pública para a implementação da
política de ciclos e a junção feita no discurso dos professores do desacerto de ambas as
iniciativas: o ciclo e a aprovação automática (Jaime, 2007). Também ali encontramos reforço
à fala de professores que vêem com muita apreensão os desdobramentos de tais políticas
sobre a melhoria da educação pública no Rio de Janeiro.
No caso de nossa pesquisa, as falas dos professores ampliaram o cenário crítico com a
observação de que a aprovação automática retira do professor aquilo que o distingue do
corpo discente: a autoridade de avaliação. A despeito de sua interferência sinalizando o
despreparo do estudante para seguir, o aluno segue por séries continuadas sem que a
apreciação pedagógica docente seja considerada. Podada na base, naquela dimensão que
mais obviamente identifica a posição do professor diante da turma, a autoridade se esvai
com implicações para além da fronteira estritamente conteudista, de conhecimento,
pedagógica. Os professores estariam “desmoralizados” diante da turma como atores
qualificados para orientar sobre o percurso de aprendizado e, em correspondência, sobre o
percurso das relações intra-escolares. O esvaziamento da dimensão de autoridade nos
pareceu ser a fonte de muitas outras avaliações que atravessaram os depoimentos, exigindo
dos analistas uma postura mais atenta aos seus desdobramentos e às conseqüências daí
advindas. Estaria a autoridade docente dependente de um único aspecto da atividade de
magistério, a possibilidade de reprovação? Seria tal percepção um estreitamento da
percepção do sentido de autoridade pelo corpo docente? O que significa reduzir o sentido de
autoridade à sua dimensão repressiva? Há uma ponte direta entre esvaziamento da
autoridade de reprovar e perda da capacidade de se fazer obedecer em outras orientações
de vida? Aprovação automática e indisciplina se casam nos depoimentos dos professores
como sinais da perda de controle e do aumento da violência entendida aqui em uma escala
muito mais ampla das relações humanas que se efetivam no universo escolar.
A inserção espontânea do assunto “aprovação automática” aponta assim para o tema da
autoridade como eixo central organizador das percepções dos professores entrevistados
sobre o tema da violência nas escolas, interligando: a) o deslizamento entre as noções de
violência e indisciplina; b) a interpretação nativa “eliasiana” das relações entre ausência de
socialização primária para o respeito para com o outro e a eclosão da violência/indisciplina
na escola e c) a relevância da discussão sobre a quem cabe a “responsabilidade” pelo aluno,
se à escola ou à família, com o esmaecimento da fronteira entre os papéis de pai/mãe e
professor(a) surgindo como denúncia recorrente. Este banco de entrevistas constitui assim
um conjunto precioso de dados para a análise do modo como o problema da violência nas
escolas é percebido pelos professores, evidenciando um processo de ressemantização que o
vê não como uma questão isolada, mas sim como algo que possui articulações profundas
com outros aspectos do cotidiano escolar e da própria identidade da profissão de professor.

Referências Bibliográficas

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[1] O projeto original, tal como sugerido em seu título, previa a realização de um survey, bem como a extensão da
abordagem qualitativa a todos os segmentos que integram a chamada “comunidade escolar” – professores, funcionários,
pais e alunos. Em função de cortes orçamentários drásticos na verba concedida, não foi possível realizar a parte quantitativa
do projeto, sendo também necessário reduzir o escopo da pesquisa qualitativa, restringindo, por opção da equipe, o universo
pesquisado aos professores.
[2] As entrevistas foram realizadas pelos cientistas sociais Carlos Costa Rodrigues Luz, Fabíola Matheus Cordeiro dos
Santos e Raphael Bispo dos Santos, graduados pelo Departamento de Ciências Sociais da UERJ, com base em roteiro
elaborado conjuntamente pela equipe.
[3] Esta imbricação entre “violência” e “indisciplina” vem sendo discutida por outros pesquisadores. Comentamos alguns
aspectos da produção nesta área na seção 2.2 deste trabalho.
[4] Nos últimos anos, as taxas do Rio de Janeiro só são mais baixas do que as de Vitória, capital do estado do Espírito
Santo, e Recife, capital de Pernambuco.
[5] Cálculos feitos pelo Laboratório de Análise da Violência da UERJ com base em dados do DATASUS – Ministério da
Saúde.
[6] Tomamos como referência espacial as Áreas Integradas de Segurança Pública (AISPs), unidades utilizadas pela
Secretaria de Estado de Segurança Publica para a divisão do estado do Rio de Janeiro e sistematização dos dados no que lhe
concerne.
[7] Nos trechos citados das entrevistas, as frases em itálico são as perguntas do entrevistador. Eventuais
inserções entre parênteses também em itálico são supressões de dados que poderiam identificar a escola, o
entrevistado ou outra pessoa, e que foram então substituídos por expressões genéricas tais como “Fulano” ou
“outro bairro”, preservando assim o sentido da citação sem permitir identificações nominais de pessoas, escolas
ou locais.
[8] Esta citação poderia, a princípio, parecer contrariar o que afirmamos acima sobre a violência ser descrita
como algo que ocorre fora do espaço físico escolar, uma vez que a entrevistada explicitamente afirma que o tiro
foi dado dentro do espaço escolar. Entretanto, optamos por inseri-la aqui por entender que, em seu detalhismo
(“não no pátio, fora do portão, mas dentro do espaço”), este fragmento apresenta o mesmo “espírito” dos
demais, no sentido da preocupação em precisar com minúcias onde a violência ocorre em relação ao espaço
físico escolar.
[9] Esta relação não é necessariamente da ordem de uma equiparação inconsciente entre as duas ordens de
fenômenos no discurso dos entrevistados, podendo aparecer explicitada em sua fala, como no seguinte
depoimento: “(...) A escola que não é disciplinada... aí tem uma série de discussões. Se a indisciplina é um tipo
de violência ou ela é uma manifestação do cotidiano escolar...”.

[10] Citado em Paulo Neves, “Indisciplina e violência na escola, frágeis fronteiras”. Revista de Educação.
Especial Grandes Temas (Violência e Indisciplina), p.79-87. São Paulo, Editora Segmento. A tese referida é
CAMACHO, L.M.Y. Violência e indisciplina nas Práticas Escolares de Adolescentes: Um estudo das realidades
de duas escolas semelhantes e diferentes entre si. São Paulo: USP: Tese de Doutorado, Feusp, 2000.

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