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Silvia Pimenta Veloso" Perspectivismo e Ontologia na Filosofia de Nietzsche Todo intérprete de Nietzsche se depara, mais cedo ou mais tarde, com o problema de conciliar a dimensao critica desta filosofia com sua dimensao positiva, Esta questdo pode ser formulada de um modo mais preciso: como conciliar o perspectivismo de Nietzsche com sua concepcéo do mundo? Com efeito, ao afirmar o carter relative, interpretative e antropomsrfico Oo de todo conhecimento, 0 perspectivismo implica necessariamente o.aban- lono de toda hips ive —ou seja, extra-pers- oss do mundo. Como indica um aforismo de Gaia Ciéncia € inutil pretender saber o que ha para além das perspectivas porque esta investiga- cdo, por sua vez, teria lugar no interior de uma perspectiva.? Ao longo de sua obra, entretanto, Nietzsche transgride incessantemen- € esse principio de agnosticismo na medida em que se pronuncia sobre a lesséncia" do mundo e formula o que poderiamos denominar, ainda que provisoriamente, uma ontologia. Essa dimensao ontoldgica tera sua ex- pressao mais acabada no conceito de vontade de poténcia, mas mesmo se este conceito € telativamente tardio e se ele ¢ desenvolvido sobretudo nos escritos postumos, a questdo se coloca para a totalidade de sua obra, a par- tir de nogdes como mundo, vida e natureza. A solugéo tradicionalmente adotada pelos comentadores consiste em Oo privilegiar um dos polos em detrimento do outro, dividindo-se entre aque- les que defendem que a filosofia de Nietzsche é uma ontologia e aquelas que the recusam esse estatuto. No primeiro caso, situa-se por exemplo a interpretacdo de Eugen Fink, que atribui a ontologia nieizscheana uma 1 Departamento de Filosofia da PUC-Rio. 2 Gaia Ciencia, § 374. © que nos faz pensar n®14, agosto de 2000 170 | Silvia Pimenta Veloso origem intuitiva. Segundo o autor, a critica de Nietzsche se restringe ao co- nhecimento conceitual; a intuicdo, na medida em que dispensa a mediacao falsificadora das categorias, permitiria um acesso direto ao mundo e a des- coberta da vontade de poténcia como sua “verdadeira esséncia’: Freqdentemente censura-se a Nietzsche por mover-se em um circulo vicioso, uma vez que por um lado ele funda o conhecimento sobre o instinto de falsifi- cago € que, por outro, ele proprio apresenta uma nova filosofia, logo um novo conhecimento (...) Essa objecdo nao procede, pois o conhecimento do devir que conduz a recusa critica de todo conhecimento por categorias, que falsifica o devir, nao deriva absolutamente das categorias que so criticadas.? Essa interpretagdo, entretanto, tem dois inconvenientes: o primeiro € que a hipétese de um conhecimento intuitive do mundo se limita as obras de ju- ventude, tendo sido posteriormente abandonada por Nietzsche. Em se- gundo lugar, uma tal interpretacao implica em hima instancia a refutagao do proprio perspectivismo, pois pretender alcancar a “verdade” do mundo, ainda que por meios nao conceituais, significa a admitir a existéncia de uma perspectiva absoluta e incondicionada. No outro pélo se encontram as interpretacdes que privilegiam a dimen- si0_perspectivista da filosofia nietescheana, negando-lhe toda pretensao ontologica. E 0 caso da andlise de Sarah Kofman, segundo a qual a vontade de poténcia é um principio de interpretacao cujo valor ¢ estritamente ope- tatorio: [A vontade de potencia] nao ¢ uma verdade ontologica apreendida por intui- 20, nem mesmo o resultado de uma deducao ou de uma indugdo. Ela é uma hipotese a-hipotética postulada em nome da exigéncia da economia do méto- do, principio aceito pela tradicao filosofica que, reavaliado genealogicamen- te, significa que é preciso levar uma perspectiva as suas ultimas consequén- cias para ver até onde ela pode conduzir.* Este segundo tipo de interpretacéo, embora mais condizente com o espiri- to essencialmente anti-dogmatico da filosofia de Nietzsche, parece por sua 3 Fink, Eugen, La Philosophie de Nietzsche, pp. 210-211, Paris, Minuit, 1965. 4 Kofman, Sarah. Nietzscke et la metaphare, pp. 135-136. Paris, Payot, 1972, Perspectivismo e Ontologia na Filosofia de Nietzsche | 171 vez conduzir a um relativismo: se esta filosofia néo é nada além de uma oO imidade, ¢ com mais Tazo ainda, incapaz de pretender uma refutacao das demais, Além disso, esta interpretacdo s6 € possivel ao preco de ignorar a dimensao trdgica desta filosofia, que reside precisamente em sua concep- do da existéncia: destituido de toda positividade, 0 pensamento de Nietz- sche se restringiria a uma estratégia de critica da metalisica Para tornar as coisas ainda mais complexas, ocorre que ambos os aspec- tos sdo ndo apenas excludentes como encontram-se em uma relacao de cir- cularidade, pois se ¢ verdade que a ontologia nietzscheana s6 existe como uma perspectiva, perspectivismo por sua vez pressupde uma ontologia. Esta circularidade foi assim formulada por George Stack: Em dltima instancia, a teoria perspectivista do conhecimento de Nietzsche depende de sua admissio hipotética da natureza pluralista da “realidade”, € sua concep¢ao da realidade fundamental é uma tentativa frustrada de wrans- cendero ponto de vista relativista de sua teoria da interpretagdo perspectivis- ta. Ele recai, finalmente, em uma circularidade: o princtpio hipoiético e me- taftsico da vontade de potencia ¢ ele mesmo uma interpretagao perspectivista da “realidade”, e serve como fundamento para a teo nhecimento.” perspectivista do co- A filosofia nietzscheana parece assim oscilar entre 0 dogmatismo € a con- tradigo: ou bem Nietzsche “sabe” a priori o que € 0 mundo —o que lhe permitiria deduzir 0 cardter perspectivista do conhecimento mas levanta 0 problema do estatuto aparentemente dogmitico de um tal saber— ou bem ele comeca por afirmar o perspectivismo do conhecimento, o que o impe- diria precisamente de reclamar um tal saber sobre 0 mundo. Parece por- tanto imposstvel conciliar a ontologia de Nietzsche com seu perspectivis- mo: ou bem se coloca a “ontologia” de Nietzsche & margem do perspectivismo, assegurando assim a dimensao positiva de sua filosofia, ou bem se recusa a esta filosofia toda pretensio ontolégica a fim de coloca-la como uma perspectiva. No primeiro caso, o esforgo de encontrar um fun- damento conduz inevitavelmente o perspectivismo 4 sua auto-refutagao. 5 Stack, George, “Nietzsche and Perspectival Interpretation”, Philosophy Today, XXV, 3 € 4 p. 240. 172 | Silvia Pimenta Veloso No segundo, o pensamento nietzscheano parece condenado a ser nada mais do que uma critica, privada de toda positividade questao no entanto esta mal formulada, e resulta de uma falsa premissa que caracteriza a quase totalidade das interpretag6es: a de tomar o pers- pectivismo como um fenomenismo ou uma teoria do conhecimento —o que acarretaria necessariamente uma interrogacio sobre o estatuto daquilo a que as perspectivas se referem e implicaria a nogdo de ume “coisa em si” para além das perspectivas. Mas o-perspectivismo nao ¢ uma douisina so- bre o conhecimento, mas uma doutrina sobre o mundo que tem como con- Sequéncia uma determinada concepcia do conhecimenio. E 0 que pode- mos depreender da andlise do aforismo 374 de Gaia Ciencia denominado “Nosso novo infinito”, que apresenta uma das formulacées centrais do perspectivismo Até onde vai o cardter perspectivo da existencia? Possui ela de fato outro cara- ter? Uma existéncia sem explicacao, sem “razao", nao se torna precisamente uma “irrisao"? E por outro lado, nao é qualquer existéncia essencialmente “a interpretar”? E isso que nao podem decidir, como seria necessério, as andlises mais zelosas do intelecto, as mais pacientes e minuciosas introspeccdes: por- que o espirito do homem, no decurso dessas andlises, nao pode deixar de se ver conforme a sua propria perspectiva e s6 de acordo com ela. Sé podemos ver com nossas olhos.® E preciso aqui ir além da adverténcia aparentemente agnostica de que “so podemos ver com nossos olhos”: a questao que este aforismo coloca nao é a de saber que ha para além das perspectivas, mas decidir até onde se es- \endeoperspectivismo da existencia. Esta idéia de uma existéncia perspec- livista sera retomada em um fragmento postumo: “Nao existe nenhuma coisa em si, nenhuim conhecimento absoluto. O cardter perspectivista, ilu- ——e rrr a perspectivista lt sério, falsificador é intrinseco 4 existéncia”.’ O que significa atribuir um 6 Guia Ciencia, § 374 T Volonié de puissance, Ul, 11], § 591. Trad. Irancesa de Genevitve Bianquis, Paris, Gallimard, [Samitiche Werke, Kritische Studienausgabe. Berlin, Waker de Gruyter, vol. 11, § 460. CI. tam- bem vol. 12, § 38] Perspectivisma e Ontologia na Filosofia de Nietasche | 173 Galaler perspectivista a extsténcia endo somente 20. conhecimenta? Sigaiti- oO ca que a propria existéncia é desprovida de toda forma e medida, de todo sentido, valor e Tinalidade a nao ser 0s que Ihe sio atribuidos pelas diferen- mundooé Ou ainda: se as perspectivas ndo encontram jamais um fundo queassuporie, ¢ potaue o proprio mundo ¢ destituido de fundamento. E preciso notar que, embora a pratica dos comentadores tenha consa- Oo grado o termo perspectivismo para designar a “teoria” nietzscheana do co- nhecimento, o proprio Nietzsche utiliza o termo antes como um adjetiva do que como um substantivo que designaria uma teoria ou doutrina cons- tituida. Uma das raras excecdes a este princtpio é um fragmento péstumo que apresenta a formulagéo mais proxima de uma “definicao” do perspecti- vismo: “Tanto quanto a palavra conhecimento tem_um sentido, o mundo ¢ cognoscivel; mas ele ¢ interpretdvel de diferentes maneiras, n4o tem sentido por tras dele, mas incontdveis sentidos —perspectivismo”.” Em uma leitura apressada, o inicio dessa passagem pode parecer contraditério com a afir- macao —incessantemente reiterada ao longo da obra de Nietzsche— de que o mundo ¢ incognoscivel. Mas ¢ fundamental observarmos a restri¢ao que ela enuncia: tanto quanto a palavra conhecimento tem um sentido signifi- ca que, se n&o existe um conhecimento absoluto e incondicionado, 6 po- demos denominar “conhecimento” a atividade humana de ordenar o mun- Oo do a nossa medida, 4 poténcia humana de en: -=efésomente, nesta medida que o mundo ¢ efetivamente “cognoscivel”. Mas o mais im- Portante ¢ a segunda parte da passagem: ela afirma ndo apenas que ¢mun- Oo do admite incontaveis sentidos, mas que ele_ndo iem sentido por trds dele. 7 io tem qualquer sentido por tras que el admite incontaveis sentidos. Longe de constituir um agnosticismo que in- terdita todo conhecimento do mundo, esta formulacdo enuncia alguma coisa sobre o mundo: seu caréter desprovido de sentido ¢ fundamento & Seo compreendernos como uma doutrna sobre CATO Paes negasto.da coisa emsi. De fato, a nocao de perspectiva —do mesmo modo que as nocoes de interpretacao e de avaliacao, que lhe sio afins— parece implicar necessariamente um substrato ontolégico, algo como uma coisa em si ou um “texto” que seria objeto das construgdes perspectivas. Este 8 Volonte de puissance, (op. cit.) {, 11, § 133. 174 | Silvia Pimenta Veloso postulado é aceito como evidente ¢ inquestionavel pela maior parte dos in- térpretes, que divergem apenas sobre o estatuto supostamente metafisico de uma tal instancia. Assim, um comentador afirma: “Parecera absurdo li- gar o perspectivismo a tese da existéncia de uma coisa em si e, no entanto, s¢ pensarmos na excluséo dessa entidade (...) verifica-se que o perspecti- vismo como tal deixa de ter sentido.” Mas uma tal exclusao sé parece des- tituida de sentido se tomarmos a nogdo de perspectiva como sindnimo de Teptesentacdo, e se entendermos o perspectivismo como uma teoria do co- nhecimento. De fato, imerpretado como uma teoria do conhecimento, a recusa da coisa em si parece conduzir a um solipsismo ou idealismo cético que nega a realidade exterior as representagées. Ora, nada mais distante da filosofia de Nietzsche, que nega a possibilidade de se distinguir sujeito objeto, e com isso a propria possibilidade de representacao. De certa for- ma, podertamos dizer que esta filosofia € um realismo ontologico, na medida em que aexisténcia nao depende do ato de conhecer ou da ocorréncia de representacdes. Pot outro lado, poderiamos dizer que ela ¢ um idealismo epistemoldgico, uma vez que nada existe pata o homem que nao seja dado a sua consciéncia. Mas a rigor, nenhum dos termos se aplica ao perspectivis- mo, pois a distingdo entre realismo ¢ idealismo so faz sentido no quadro de uma Wort Ahecimento que suj Lo e mundo, entre sujeito e objeto. E por isso que Nietzsche pode se contra- por simukaneamente a ambas as posicées."” Se nao ha coisa em si é porque falta precisamente © ponto de vista a partir do qual a soma das perspectivas apareceria como uma totalidade, condicao necessiria para determinar a “natureza” do objeto e constituis sua “esséncia’: "A questio‘o que ¢ isto” ¢ um modo de impor um sentida partir de um ponto de vista. Avessencia’, 0 ‘ser € uma realidade perspecti- vista e supde uma pluralidade. No fundo, trata-se sempre da questao: “o que é isto para mim?” (para nés, para tudo 0 que vive, etc.)"” Alguns autores argumentam que, sem a hipétese de uma instancia ex- tra-perspectivista, uma perspectiva sequer apareceria como tal ¢ a doutrina nao poderia ser formulada. Como assinala Heidegger, uma perspectiva é também um horizonte —isto ¢, seguindo a etimologia do termo, aquilo 9 Marques, Antonio, Sujeo e perspectivismo, p. 49. Lisboa, Publicacées D, Quixote, 1989 10 Por exemplo, em Gaia Ciencia, § 57 “Aos realistas” e § 372 “Por que nda somos idealistas”. 11. Volonte de puissance, 1,1, § 204 (op. cit.) Perspectivismo ¢ Ontologia na Filosofia de Nietzsche que limita." Mas 0 que uma perspectiva encontra como seu horizonte ¢ que-constitui o'seu Timite nfo € uma coisa em si ou uma “Tealidade” incon- dicionada, mas outras perspectivas com suas rias di s. E com relagao a saber que determinacées seriam estas que se deve suspender © juizo, como esclarece a sequencia do texto de Gaia Ciéncia que analisa- mos acima: “é uma curiosidade va procurar saber que ouiras espécies de imelectos e de perspectivas poderiam ainda existir: se, por exemplo, alguns seres Sao capazes de sentir o tempo retroativamente, ou ora progressiva- mente, ora retroativamente (o que daria lugar a uma outra direcao da vida € 2 uma outra concepgdo de causa e feito). Mas creio que estamos hoje longe da ridicula pretensao de decretar, a partir de nosso angulo, que ape- nas seriam vdlidas as perspectivas a partir desse angulo".”* Nao ha aqui ne- mhuma alusao ao que seria o “tempo em si" ou a causalidade “em si”, mas apenas a especulagao do que seriam o tempo ea causalidade para uma ou- tra perspectiva que nao a humana. E verdade que a interpretacdo fenomenista é de ceria forma favorecida pelo proprio Nietzsche, que eventualmente se refere ao “em si", 20 “real” ou as “proprias coisas”. Mas isto ocorre na maior parte das vezes nos textos de juventude, marcados pela influéncia de Kant e Schopenhauer. Nas obras de maturidade, estas expressdes vém invariavelmente grifadas, indi- cando uma problematizacao ou um distanciamento critico de tais nocées. Alem disso, se algumas passagens dao efetivamente margem a esta leitura fenomenista, outras se encarregam de desqualific-la da maneira mais clara ¢ inequivoca possivel. Dentre estas, destaca-se um fragmento de 1886, que embora um tanto longo merece ser integralmente transcrito: Pouco me importa que atualmente alguém diga, com a modéstia do ceticismo filos6fico ou com uma religiosa resignacdo: “a essencia das coisas me é desco- nhecida”, ou um outro, mais ousado, que ainda nao aprendeu suficientemen- te acritica ea desconfianga: “a esséncia das coisas me é em grande parte des- conhecida”. Eu objeto a ambos que, seja como for, eles ainda pretendem—ou imaginam— saber demasiado, como se a distingao entre "a essencia das coi- sas” eo mundo fenomenico, que eles pressupdem, fosse real. Para poder fazer 12 Nietzsche, vol. Hl, p. 86, San Francisco, Harper, 1991, Trad, J. Stambaugh, D.F. Krell e F Capuzzi. 13. Gaia Citncia, § 374, 175 176 | Silvia Pimenta Veloso uma tal distincdo, seria preciso representar 0 nosso intelecto como afetado por uma natureza contraditoria: por um lado, organizado segundo uma visdo perspectivista (como ¢ necessario para que seres de nossa especie possam se conservar); por outro lado, dotado de uma faculdade de conceber esta visto perspectivista como perspectivista, 0 fenomeno como fendmeno; em outras palavras, acreditando na “realidade” como se ela fosse tnica, e ao mesmo tempo, capaz de julgar esta crenca como uma limitagdo perspectivista com relacao a uma realidade verdadeira. (...) Suprimamos a coisa em si e com ela um dos conceitos mais obscuros que existem, o de “fendment Esta antino- mia, assim como aquela entre “matéria” ¢ “espirito”, relevou-se inteiramente inutilizavel. ‘he O_que Nietzsche recusa aqui ¢ a hipétese de uma exterioridade com rela- cdo ao perspectivismo, a suposicao de um ponto de vista imune As vicissi- erizam uma perspectiva enquanto tal —andlogo neste sen: tide a.um ponto de vista transcendental. Nao se trata portanto de recusara —tATerizando uma espécie de “feno- menismo integral", como sugerem certos intérpretes*— mas de descartar a coisa em si ¢ o fendmeno, e com ambos a suposic¢ao de um ponto de vista que nos permitiria fazer esta distingdo. Para nao ficarmos restritos a um fragmento pdstumo, cujo estatuto poderia ser considerado problemético, podemos evocar um aforismo de Gaia Ciencia que apresenta a mesma recu- sa: “Nao é, como se adivinha, a distingdo entre sujeito € objeto que me pre- ocupa aqui: deixo esta distin¢ao aos tedricos do conhecimento que perma- necem presos nas teias da gramética (esta metafisica do povo). E ainda menos a oposicao entre a ‘coisa em si’ eo fenémeno’: estamos longe de co- nhecer o suficiente para sequer fazer esta distincao.""® OQ que significa dizer que nao existe coisa em si? Significa primeiramen te_que ndo ha “coisas” i a substancia que permaneca inalterada por tras dos sucessivos acidentes e que seja suporte de diferentes atzibutos O conceito de coisa em si supd tituigao ob: jetiva, independentemente da organizacao que Ihes impomos mesmo. 14 Volonté de puissance, 1.1, § 167. (op. cit.) KSA, 12, 240-1 15 Como sugerem por exemplo Granier, Jean “Le Probltme de la Vérité dans la Philosophie de Nietzsche” Paris, Seuil, 1966, p. 322 e Haar, Michel “Nietzsche et la Métaphysique”, Pans, Gallimard, 1993, p 89. 16 Gaia Ciencia, § 354. Perspectivismo e Ontologia na Filosofia de Nietzsche | 477 que uma tal constituicao permaneca, como para Kant, impossivel de ser conhecida. Dizerque néo hd coisa em si equivale a dizer que, uma vez reti- Oo Tadas as perspectivas, nada resta de permanente que o- suporta-lo, uma coisa seré apenas a soma de seus atributos e a sucessao de seus diferentes “acidentes”, Uma coisa é o efeito que uma determinada con- figuragao do devir tem sobre o homem. Ela éj40 produto de uma constru- ca nterpyetacdo perspectiva. “As propriedades de uma coisa S40 95 a “coisas! feitos sobre outras ‘coisas’; se remove, sang rt aobs ein Outras coisas, isto é, na ha ‘coisa.em si.” © homem é uma “coisa” sobre a qual as demais produ- zem seus efeitos, Abstrair destes efeitos é retirar ao mesmo tempo as pro- priedades da “coisa”, é priva-la de suas determinagdes, Supor de um lado a Oo ordem das “coisas” ¢ de outro a ordem das construcdes perspectivas é du- jicar o mundo das aparéncias com. de esséncias, e reintroduzir Em segundo lugar, significa que ndo existe um ponto de vista absoluto e incondicionado a partir do qual o que exi; leterminado como um objeto, Imaginary um outro mundo por detras ou para além deste s6 ¢ possivel se nos colocarmos, por um exercicio de abstragao, em um ponto de vista ab- soluto € incondicionado. Ora, o proprio fato de nos colocarmos em um tal ponto de vista o torna por isso mesmo subjetivo ¢ retira o seu carater incondi- cionado. Um tal exercicio consiste na ficgao inatingivel de “um ver subsisten- le em si proprio e sem orgao visual”."® Mas a questao de saber o que ha para além das interpretagdes nao apenas nao pode ser respondida como, a rigor, Dio é existencia deste para além: “Se perguntarmos o que podem ser as coisas ‘em OQ si’, abstraidas da receptividade de nossos sentidos ¢ da atividade de nosso en- tendimento, é preciso responder por esta quest4o: como poderfamos saber ue existem coisas?” Isso si co em si, visio que supée a existénci; qual seria dada. E precisamente a existéncia deste ponto de vista supra-sens{- vel, fora do tempo e Nietzsche. 17, Will to Power, § 557 New York, Vintage Books, 1967. Trad. W. Kaufmann e RJ. Hollingdaie, Ed. W. Kaufmann, 18 Genealogia da Morai, 3* disseriacao, 8 XII. 19 Volonté de puissance. 1,1, § 202 (op. cit.), 178 | Siwia Pimenta Veloso Dizer que o Scuaee mundo é be cae ndo sess aust dizer % ocentrismo ¢_a_um relativismo anédinos_ So nem, como propée Jean Granier, que “o Ser tem por esséncia mostrar-se, mas mostrar-se segundo uma infinidade de pontos de vista” —interpretacao fenomenista que mantém a hipétese de um Ser por tras das aparéncias. Signilica antes que toda e qualquer interpretaco tem origem no préprio de”. Assim, ao contrario do que propoe Granier, nao se trata de um “plura- lismo ontoldgico”, mas antes de um niilismo ontolégico. Uma vez que se re- tirou o fundamento metalisico do mundo, retirou-se ao mesmo tempo a distancia que poderia separar sujeito e objeto, a transcendéncia que é con- digao do conhecimento e o solo que poderia fundar esta operacao. Se “o proprio ver é ver abismos™”, ¢ porque também o mundo repousa sobre o abismo ¢ nao pode constituir uma base para de fundar este ato. E nesse sentido alias que podemos compreender esta enigmatica passagem de Para Alem do Bem e da Mat: “Se vocé olhar durante muito tempo para 0 abismo, © abismo também olha dentro de vocé”.” Conceber o proprio mundo Sionat_como suporte paraesias interpretacées. Se o mundo voltou a se tor- nar infinito —como afirma o aforismo 374 de Gaia Cténcia que transcreve- mos acima— no é apenas porque ele admite uma infinidade de terpretagdes, mas porque nenhuma destas interpretages pode reclamar seu fundamento. Dissemos acima que o perspectivismo recusa a hipétese de uma instancia extra-perspectiva; mas € preciso notar que o proprio fato de negar uma tal instancia nos ensina alguma coisa sobre o mundo: seu cardter sem funda- mento, sem sentido e sem finalidade, Inveiramente imanenie~ ontologia de Nietzsche ¢ por 19- talidade da existéncia, o mundo néo dispde de um “outro mundo” para 20. Granier, Jean, op. cit. p. 314. 21 Assint falou Zaratusira, “Da visio e do enigma”, § 1 22 Para Alem de Bem e Mal, 8 146. Perspectivismo e Ontologia na Filosofia de Nietzsche | 178 funda-lo. Ele nao tem ser, pois nao apresenta nada que esteja subtraido a0 movimento do devir; ele nao tem sentido ou finalidade, porque falta o ponto de vista que poderia conferir-the um fim; ele nao tem unidade, por- que nao ha uma consciéncia infinita para pensa-lo. Ele nao tem valor, “pois falta-nos aquilo com que medi-lo, a norma pela qual a palavra ‘valor’ teria um sentido”? : Assim, podertamos defini a filosofia nietzscheana como uma ontologia egative —para evocar a expresso proposta por Clément Rosset™— uma vez que ela concebe 0 mundo como destituido de ser. De fato, o conceito de ser nao designa apenas aquilo que 6, mas aquilo que é necessariamente, em oposicao ao que é de forma apenas contingente; aquilo que permanece identico a si mesmo, e que portanto pode suportar a mudanga, ser seu su- Oo jeito e seu substrato; finalmente, o ser é aquilo que é em si mesmo e para si mesmo, independentemente de seu aparecer. Em todo pensamento metafi- sico, a aparéncia $6 “é” na medida em que é expressdo de uma esséncia, da qual ela retira seu ser e que lhe da consisténcia ontologica. Esse mecanis- mo de duplicag4o, como mostrou Rosset, constitui a prépria esséncia da metafisica, que superpde ao mundo senstvel, do devir e da contingéncia, um mundo inteligivel, de necessidade e permanéncia.” E precisamente esta duplicago que é recusada por Nietzsche, cujo pensa- mento se desenrola em um tnico plano: ao contrario de uma interpretacao bastante estabelecida, nao se trata de uma inversao do platonismo, que man- teria a doutrina dos dois mundos apenas invertendo-lhe os sinais, mas da aboligao de uma tal duplicagao e da recusa de um tal desdobramento metali- sico do mundo. A “esséncia” do mundo se esgota em seu aparecer: clenfotem co ser se resume ao movimento do devir, uum eterno vir-a-ser que nio deriva eG ERNTG anENUTE GUE TONGS ange on estade final O que Nicusch que nunca atinge um estado final, O. que Niewsche Tecusa ao negar o Ser nao ¢ portanto uma instancia ontol6gica, mas a hipstese de_uma duplicacdo ontoldgica: a hipétese de que_a realidade aparente seia a expresso de uma esséncia, de que o fluxo do devir seja a manifestacao de um 23. Volonté de puissance. 24 Rosset, Clément, L'objet singulier, p. 28, Paris, Minuit, 1979. Eugen Fink utiliza uma expressio semelhante quando define a filosofia nietzscheana como uma “ontologia negativa da coisa” (op. cit., pp. 204-216). Mas esta formula exprime para o autora recusa apenas da idéia de coisa, deixando intacta a idéia de ser, 25 Rosset, Clement. O Real ¢ seu Duplo. Porto Alegre, LPM, 180 | Silvia Pimenta Veloso mundo do ser, que a existéncia sensivel seja o desdobramento de uma instin- cla supra-sensivel, que as consirugdes perspectivas sejam a representacao de um mundo conslituido. Se podemos dizer que a filosofia nietzscheana constitui uma ontologia negativa € nao apenas porque ela nega o ser mas porque, ao fazé-lo, nega aquilo que por definicao caracteriza toda ontologia: a possibilidade de co-| nhecer o mundo. Se o mundo ignora toda forma, substancia e medida, ele esta condenado a permanecer inalcangavel pela razéo humana, que opera necessariamente com formas e medidas: “A verdade tiltima que € a do flu- xo eterno de cada coisa ndo suporta ser incorporada por nés”.’* Nao se pode pensar o devir —e quanto a isso Nietzsche esta de pleno acordo com Parménides. Ocorre que se Parménides toma o partido do pensamento para deduzira ilus’ fretzsche Taz 0 comtario. alirm: dade do devir, juz a ilusio do pensamento. Estamos aqui bem longe do agnosticismo e do fenomenismo que carac- terizam ume certa leitura do perspectivismo. Conceber o mundo como in- cognoscivel é ainda sustentar um conhecimento —ainda que paradoxal— sobre o mundo. Nao se trata porianto do saber socratico de que nada sabe- mos, nem do “saber” cético de que nada podemos saber, mas do saber tra- gico de que nao ha nada a saber. Uma tal concepgao nao é somente mais ra- dical do que toda teoria do conhecimento ou toda critica da razdo, ela é sobretudo uma outra coisa, O conhecimento é questionado nao em sua ex- tensdo ou eficacia, mas em seu principio mesmo: nao existe nada a ser co- nhecido, Assim, a filosofia de Nietzsche é uma ontologia na medida em que pro- poe uma concepcao do rhundo, mas esta concepeao define o munda preci- samente por seu caraler incognoscivel. Essa onlologia negativa nao sc identifica com a negagdo da ontologia que caracteriza por exemplo a posi- Gao agnéstica, na medida em que ela pretende ainda constituir um sabes sobre aexisténcia: saber irdgico, que recusa ao homem a seguranca de uma instancia capaz de atribuir sentido e valor a existéncia; mas também saber paradoxal, cujo “contetido” se resume a constatagao da impossibilidade de todo conhecimento. Vemos assim que o problema de conciliar a ontologia de Nietzsche com seu perspectivismo é uma falsa quest4o porque em ultima anfilise, o que 0 26 Volonté de puissance, M Il, 8 582. (op. cit). Perspectivismo e Ontologia na Filosofia de Nietzsche | 181 perspectivi a € precisamente a possibilidade de isolar uma ques- 140 epistemoldgica de uma reflexio sobre o mundo. Se nao pode haver uma teoria do conhecimento € porque nao dispomos de um ponto de vista exterior & razdo para empreender esta investigaco; mas por outro lado tampouco pode haver uma ontologia, porque nao existe um ponto de vista exterior ao mundo a partir do qual se possa dizer —ou mesmo pergun- tar— o que é o mundo. Ao negar a existéncia de um mundo do Ser, a pré- pria distingdo entre ontologia e teoria do conhecimento que é problemati- zada: “Se tentarmos contemplar o espelho em si, nao descobriremos nada além das coisas que ai se refletem. Se quisermos apreender as coisas, ndo nhecimento”.” Sem duvida, Nietzsche nao se furtou a colocar estas duas questdes, mas para cada uma delas encontrou uma resposta rigorosamente negativa: do mesmo modo que sua "ontologia” ensina que nao ha Ser, sua “teoria do conhecimento” ensina que nao ha verdade. 27 Aurora, § 243,

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