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2010

Um dia sem
tecnologias

CARLOS SANTANA

CLC5 - Cencal

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Um dia sem tecnologias

Tudo começou naquele dia, já lá vão vários meses. Nada indicava que esse meu
dia, o dia seguinte à “normalidade”, ia ser aquele caos, julguei mesmo que daquele dia
não iria passar, que o meu tempo tinha chegado ao fim e que aquele dia estava
reservado para que eu deixasse este mundo com os cabelos em pé completamente
stressado e de ataque cardíaco. Mas não! Ultrapassei esse dia, medonho, aprendi e
hoje estou aqui a escrever esta história para que fique registado para sempre o que foi
esse dia, um dia sem tecnologias.

Eram 7.30 horas da manhã, como de costume dormia profundamente, pois


normalmente deitava-me tarde depois de um serão sentado em frente ao
computador, a trabalhar, a falar com os amigos no Messenger e no Skype, a responder
aos emails, a actualizar os meus blogues, a ler as últimas novidades nos sites dos
jornais, a jogar os meus jogos preferidos, a ouvir música, a ver aqueles filmes que me
interessam no Youtube, e enfim, mais uma série de coisas que esta tecnologia me
permite fazer e às quais eu tinha aderido com todo o afinco e sem pensar duas vezes,
pois tinha que estar actualizado nestas coisas da internet, computadores e novas
tecnologias.

Naquela noite tinha-me deitado especialmente tarde, agarrado ao computador


a acabar uma apresentação que teria que apresentar no dia seguinte numa reunião
ultra importante para a companhia, tinha também estado a falar com uma amiga que
vive no outro lado do mundo, que conheci num dos muitos chats que frequento com
regularidade e que insistia naquela noite em me contar a vida dela pela milésima vez,
dos seus infinitos problemas e dúvidas. Eu, como cavalheiro que sempre fui e que me
orgulhava de ser, pois já tinha recebido muitos elogios, estive a ouvir pelo Skype até às
altas horas da madrugada acabando por me deitar já passava das 3 horas.

O meu relógio biológico não funcionava há mais de 10 anos, desde que tinha
comprado um despertador de mesa-de-cabeceira e agora o meu iPhone tocava sempre
à hora marcada. Acordava todos os dias às 7.30 da manhã ao som da minha música

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preferida. Nesse dia algo estava errado, o meu amigo e inseparável iPhone não tocou e
como consequência não acordei à hora do costume.

Abri os olhos quando um raio de sol passou pela fresta da persiana e bateu nos
meus olhos, fiquei a pensar por breves instantes; “Que dia é hoje? É domingo? Não,
ontem à noite estive a fazer aquela apresentação, e… gaita! É terça-feira, o dia da
reunião, mas que horas são? Estarei atrasado? Por que acordei agora? O iPhone não
tocou, será que ainda é cedo de mais? Que horas serão?” Peguei de relance no iPhone,
toquei numa tecla para o activar e… nada, não funcionou. “O que se passa com esta
porcaria? É novo e já está avariado?” Olhei em redor e não tinha nenhum relógio,
levantei-me de repente e corri para a sala para ver as horas no relógio que estava
pendurado na parede, nada, estava parado nas 24 horas. De repente pensei, o que é
que está a acontecer? Lembrei-me então de ligar a televisão para ver as horas, tentei
acender e para meu espanto também não funcionava. “Mas… mas que porcaria é esta?
Será que nada funciona nesta casa ou não haverá luz? Mas… porque é que o iPhone
não funciona se esteve a carregar ontem à noite? O que é que eu faço?” - Perguntava a
mim próprio.

Tenho que me arranjar depressa, tenho que tomar um duche, tenho que me
despachar, mas… e o esquentador, é eléctrico e portanto não vai funcionar! E água,
será que há água e se houver está gelada. Fui até à torneira, abri-a e como já esperava,
só corria um leve fio, quase a conta gotas e era escura e barrenta. “Como é que me
vou arranjar e desfazer a barba?” Perguntei a mim próprio. Aí lembrei-me dum
garrafão de água que normalmente tinha na dispensa, a empregada da limpeza
sempre que lá ia a casa insistia em encher e eu por teimosia despejava porque achava
que não precisava daquilo ali a ocupar espaço, podia ser que lá estivesse, fui ver e lá
estava. Peguei nele e fui à casa de banho. Por sorte a minha casa de banho tinha uma
janela e por isso não precisava de luz para ver.

Agora deparava-me com um outro problema: Desfazia a barba todos os dias


com a máquina eléctrica que a minha namorada me tinha oferecido no último Natal e
não havia electricidade, por isso também não iria funcionar. Lâminas de barbear, será
que tenho lâminas por aí? Não uso disso há meses, será que tenho alguma? Procurei,

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procurei e lá estava, uma já com muitos sinais de ferrugem, mas não havia outra, tinha
que desfazer a barba com aquela. Assim fiz, com aquela velha lâmina de barbear
consegui desfazer a barba, tive alguma dificuldade, cortei-me em dois ou três sítios,
mas lá consegui desfazer a barba.

Não tomei duche, pois a água não era suficiente, lavei os dentes e a cabeça com
a bendita água do garrafão, o meu cabelo é algo oleoso e se não for lavado todos os
dias fica com um aspecto horrível. Naquele dia em especial tinha que estar
apresentável para a reunião. Corri para o quarto para me vestir, sem saber as horas e
completamente desorientado. Peguei na primeira camisa e nas primeiras calças que
me vieram às mãos, vesti-me a correr, coloquei a gravata, vesti o casaco e saí de casa
apressadamente.

No patamar dirigi-me aos elevadores, carreguei no botão para chamar e só aí


me apercebi que também não funcionavam. E agora? Pensei eu. Moro num 14º andar!
Tenho que descer esta escadaria toda até à garagem? Mas quem é que faz estes
monstros de betão com tantos pisos, esquecem-se que se não houver electricidade
ficamos aqui praticamente encurralados? Tenho de descer, tenho de descer, pensava
eu em frenesim, são só 14 andares mais dois até à garagem, se fosse a subir seria pior,
dizia a mim mesmo para me tentar animar.

Comecei então a descer lance a lance, parecendo que nunca mais chegava ao
fim. Pelo caminho encontrei algumas pessoas, vizinhos talvez, nunca os tinha visto, o
que até era normal naquela vida que levávamos, era inacreditável que conhecíamos
pessoas que viviam do outro lado do planeta, através da internet, e não conhecíamos
os nossos vizinhos que viviam logo ali mesmo ao nosso lado, mas era assim a vida
moderna com as novas tecnologias.

Finalmente cheguei ao piso da garagem, pois claro… luz não havia, estava
escuro como breu, mas tinha que encontrar o meu híbricar. Às apalpadelas lá fui
andando, indo conforme o meu instinto me dizia, bati aqui e ali, até que finalmente
encontrei-o estacionado no lugar do costume, coloquei então o indicador no leitor de
impressão digital para o abrir, mas… nada! Não fez nada, não funcionava também.
Tinha uma salvação, a chave, sim a chave do carro, aquele pedaço de metal que já não

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usava, desde que tinha comprado aquele novo modelo recheado de tecnologia do
mais avançado que havia. Introduzi a chave na ranhura da porta, rodei e abri, tinha
funcionado, que maravilha! Entrei, sentei-me, dei as instruções ao carro para este ligar
e mais uma vez nada, não funcionou também, não respondeu à minha voz. Mais uma
vez peguei na chave, coloquei-a na ignição e rodei, rodei e voltei a rodar. Nem queria
acreditar! Não funcionava, o meu híbricar simplesmente não funcionava. Ainda ontem
o tinha deixado ali, quando cheguei do trabalho, e hoje não trabalhava, mas porquê? O
que é que se estava a passar? Por muito que pensasse não conseguia perceber.

E agora? E agora? O que é que eu faço? Não sei que horas são, não tenho
transporte para ir para o trabalho, a apresentação do projecto era importantíssimo
para mim e para a companhia, não podia falhar, era o projecto da minha vida. E agora?
Estou desgraçado, vou perder esta oportunidade única, posso perder o emprego, e se
isso acontecer como é que vou pagar as contas, os empréstimos, tenho o híbricar para
pagar, o plasma 3D de 75 polegadas, o portátil de último modelo que me custou uma
fortuna, a virtualgame que comprei no Natal a pagar em 24 prestações. Como é que
vou pagar tudo isto? Estou feito, estou desgraçado, estou perdido, o que é que eu faço
agora? O que é que eu vou dizer na companhia e que desculpa vou arranjar? Oh meu
Deus, ajuda-me que eu não sei o que fazer! Nesse momento pensei, estou a pedir
ajuda a Deus? Eu que passo a vida a dizer que não acredito em nada disso, que tudo
não passa de histórias que nos são contadas desde pequeninos por pessoas que
viveram noutros tempos e que não sabiam nada de nada, que não tinham acesso a
nada de moderno, a nenhuma cultura nem a nenhum conhecimento, que viviam umas
vidinhas miseráveis sem nada de realmente avançado, sem nenhuma tecnologia, não
tinham um simples iPhone ou um híbricar, um plasma, um computador, o GPS ou a
internet, sabiam lá o que é a vida…! Acreditavam em qualquer coisa que lhes
contassem e agora queriam que nós acreditássemos também, agora, com toda a
evolução, com todas as maravilhas modernas, com tanto conhecimento e tantos
estudos sobre tudo e mais alguma coisa, como era possível acreditar? Eu pelo menos
tinha muitas dúvidas.

Lembrei-me então, vou de electricar, tenho que ir, não sei a que horas vou chegar, mas
tenho que ir.

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Voltei aos apalpões até ao patamar do prédio, cheguei à entrada e desloquei-me até à
porta da rua, a porta como era electrónica não funcionava, as portas não abriam, tirei
mais uma vez a chave do bolso e à moda antiga abri a porta.

Cheguei à rua, a primeira coisa que me apercebi foi do barulho, ou melhor da ausência
dele. Vivia numa zona da cidade muito movimentada, com muitos transportes a
passarem de um lado para o outro, as pessoas a correrem, sabe-se lá para onde, cada
uma na sua vida do dia-a-dia, atarefados, os electricars não se viam, logo ali onde
passavam constantemente. Estranhei mais uma vez, mas o meu objectivo principal era
chegar ao local de trabalho.

Não tinha híbricar, não havia transportes colectivos, só me restava ir a pé, a pé até à
companhia, mas isso ia levar horas, a empresa ficava do outro lado da cidade, tinha
que percorrer talvez 7 ou 8 km, não sei bem, também nunca me tinha preocupado
com isso, o meu híbricar levava-me e trazia-me, para quê preocupar-me com a
distância a que ficava o trabalho? Não fazia sentido! Ou será que fazia e nunca me
tinha apercebido?

Comecei a andar, apesar de tudo do que se estava a passar o meu objectivo não podia
ficar para trás, tinha que chegar a horas à companhia para fazer a apresentação, eles
tinham que ver que me tinha preocupado, que apesar de todas as contrariedades
daquele dia tinha-me esforçado por não falhar.

Na rua havia pessoas, pareciam alheias ao que se estava a passar, andavam


normalmente, umas falavam com as outras, havia crianças a brincar umas com as
outras, velhinhos sentados nos bancos a conversarem. Abordei algumas delas para
perguntar as horas, não me responderam, olhavam para mim, como não percebessem
o que eu estava a dizer e continuavam o seu caminho.

Olhei em redor e onde ainda no dia anterior havia enormes painéis de publicidade,
agora havia paredes despidas, com aspecto de muito velhas, só algumas lojas estavam
abertas, mas eram diferentes do habitual tinham alguma coisa de diferente, mas de
imediato não consegui perceber muito bem o que era, umas tinham à venda algumas
roupas que pareciam já usadas e outras vendiam calçado, também com aspecto de

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velho. Encontrei algumas lojas tipo mercearia, dois ou três cafés e lojas de velharias,
como estava diferente aquela cidade, estava mesmo muito diferente.

Apressadamente continuei o meu caminho, apeteceu-me beber um café, entrei


num que achei com melhor aspecto, dirigi-me ao balcão e pedi um café. A pessoa que
se encontrava atrás do balcão trouxe-me uma chávena que era enorme, com um
líquido escuro mas que não parecia nada café, era quente, escuro mas definitivamente
não era café.

Virei-me para o indivíduo e perguntei:

- O que é isto? Eu quero um café normal, um expresso, uma bica!

O indivíduo, com um ar admirado, disse-me:

- Mas senhor, isso é um café normal, uma bica ou seja lá como lhe quer
chamar.

Sem perceber nada do que se estava a passar, resolvi aceitar e beber aquela
espécie de café. Era saboroso, mas muito diferente da bica a que estava habituado a
beber todos os dias.

Olhei com atenção em redor e as poucas pessoas que estavam por ali estavam
a beber a mesma coisa. Olhei então para detrás do balcão e em cima da bancada, que
era bastante extensa, havia uma máquina de tirar cafés expresso, igual a tantas outras
que eu estava “farto” de ver, mas esta estava semi-tapada e com aspecto de velha,
deveria estar avariada, pensei eu.

Acabei o café e saí. Lembrei-me então que tinha que ir buscar a Joana ao
aeroporto, chegava às 15 horas, vindo num voo directo da Bruxelas, mas ao mesmo
tempo pensei também. E se não vem? E se já não há voos, ou aviões, ou sei lá mais o
quê? Outra ideia atormentou-me, e como a vou buscar? O aeroporto fica a mais de 20
kms, do outro lado do rio, não tenho híbricar, não há transportes colectivos, como é
que eu vou? Nem sei bem que dia é hoje nem o que se está a passar, tudo isto é muito
esquisito, pensava eu. Cada vez fazia mais perguntas a mim próprio para as quais
parecia não encontrar respostas. Estava perdido, completamente perdido.

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Percorri a avenida à minha frente, depois voltei numa rua à esquerda e qual foi
o meu espanto quando verifiquei que a loja de telemóveis, onde tinha comprado o
meu iPhone dias antes era agora uma loja vazia, como é possível, pensei. A partir
daquele momento comecei a olhar para tudo e para todo o lado para ver o que
conseguia descobrir de diferente em relação ao que conhecia.

Aí comecei a aperceber-me que havia muita coisa de diferente. Os prédios


alguns eram-me familiares, apesar de estarem muito mais estragados, outros mais
novos que nunca tinha visto antes, mas também com muito mau aspecto, as lojas
praticamente estavam todas fechadas e não havia nada eléctrico, não havia luz em
parte nenhuma, nem reclamos, nem anúncios publicitários, esses agora aqui e ali
tinham sido substituídos por placas de madeira pintadas à mão. Que estranho pensei
mais uma vez. Reparei melhor nas pessoas que de vez em quando se cruzavam comigo
e ninguém falava ao telemóvel, o que era uma coisa mais que normal no meu mundo.
Passei na loja de equipamentos electrónicos e agora estava também fechada, montras
tapadas, parecia abandonada, logo ali naquele lugar, um dos mais caros da cidade e
onde todas as companhias queriam ter o seu espaço. Era realmente um local
privilegiado da cidade, passavam ali milhares de pessoas todos os dias, mas agora não,
quase não se via ninguém. Olhei para o outro lado da rua e onde antes era a
Blockbuster agora era uma loja de velharias.

Cada vez mais intrigado, sem repostas e sem saber o que se estava a passar,
sentia-me perdido, deslocado, sei lá, aquele mundo não era o meu, não queria estar
ali, mas estava, porquê? Seria que estava a ficar louco ou estaria a sonhar? Não, a
sonhar não devia estar, estava acordado, bem acordado, sentia sede, tinha a cara
cortada de ter feito a barba com a lâmina velha, tinha que estar acordado!

Dirigi-me a uma espécie de banca de jornais que havia ali com o preceito de ver
se descobria a data que estava na capa dos jornais. Quando lá cheguei verifiquei que
não havia revistas nenhumas e jornais muito poucos. Estes tinham um aspecto muito
diferente, pareciam velhos, não tinham fotos, apenas alguns desenhos e com uns
textos escritos à mão.

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Olhei para a senhora que estava a tomar conta da banca, tinha um aspecto de
camponesa, e perguntei pelo jornal que costumava ler todos os dias, ela encolheu os
ombros e disse:

- Desculpe senhor, mas nunca ouvi falar de tal jornal. Só tenho estes, não há
mais nenhum.

Peguei num exemplar que estava mesmo à minha frente e olhei afincadamente
à procura da data, não encontrei. Peguei em outro, procurei, procurei e também não
encontrei, não tinham data. Então perguntei à senhora que parecia espantada com a
minha atitude;

- Por favor, que dia é hoje? Em que anos estamos?

Respondeu com um ar de estranheza.

- O senhor não sabe em que ano está? – Retorquiu. - Pois olhe, não é o único,
parece que ninguém sabe, eu cá não sei, não sei nada.

Neste momento virou-se e continuou a arrumar uma pilha de jornais velhos


que por ali tinha.

Resolvi ir embora, reparei como era estranho as ruas estarem tão vazias, não
havia híbricars, hibrimotas ou electricars, nada, aliás onde eram as ruas, agora apenas
havia sinais do que fora anteriormente alcatrão, havia rachas por todo o lado e muita
vegetação a sair delas, tudo num estado de grande degradação.

Que mundo é este? Onde está toda a evolução que ainda horas antes havia, à
qual estava habituado e sem a qual não queria viver, eu e a maioria das pessoas que
conhecia. O mundo a que estava habituado parecia já não existir mais, que o tempo
tinha recuado ou avançado, mas se tinha avançado tinha sido para pior, muito pior,
essa era a verdade.

Continuei o meu caminho deambulando pelas ruas, com estas ideias e dúvidas
que não saiam da minha cabeça. Tudo parecia igual, percorri uma e outra e outra rua e
tudo era igual, velho, estragado, deteriorado e uma calmaria, uma calmaria muito
grande, nunca tinha visto nada assim. Só se ouvia as poucas pessoas que encontrei a

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falarem umas com as outras e os pássaros, sim os pássaros, ouvia-se os pássaros a
cantar nas árvores, praticamente já tinha esquecido o som dos pássaros a cantar,
como era bonito, não ouvia o cantar de um pássaro há anos, como era bonito aquele
chilrear…

Uma ideia não me saía da cabeça, tinha que saber o que se passava, encontrar
respostas para que tudo aquilo fizesse sentido. Pensei, pensei e quanto mais pensava
mais aterrorizado ficava, as perguntas surgiam na minha cabeça a uma velocidade
estonteante. Se não há nada eléctrico, nenhuns equipamentos eléctricos e
electrónicos funcionam, como… sim, como funcionam agora os hospitais, as escolas, as
empresas, as fábricas, os satélites, as comunicações, a televisão, a rádio, o metro e os
aeroportos? Neste momento lembrei-me da Joana que era para chegar naquele dia. A
Joana… nunca mais a irei ver? Não pode ser, eu adoro a Joana, a Joana é a minha vida!

Não pode ser! Lembrei-me também da empresa onde trabalhava como


desenvolvedor de projectos robóticos e de todas as outras empresas ligadas a estas
áreas. Que aconteceu a todas estas empresas? E às pessoas que lá trabalhavam e
dependiam delas para viverem as suas vidas? O mundo tinha parado! Era o caos!
Pensei como as pessoas estavam dependentes das novas tecnologias, como se tinham
deixado aprisionar por esse mundo moderno e como já não sabíamos viver de outra
forma, como nos tínhamos tornado totalmente dependentes da tecnologia. Este
mundo tinha surgido aos poucos e poucos de uma forma natural, as pessoas gostavam
das novidade que iam constantemente aparecendo e pensavam que estas novas
tecnologias iam continuar a evoluir mais e mais, até onde ninguém sabia mas também
não se importavam com isso, queriam sempre mais e estavam sempre abertas a
receber essas novidades, desde que fosse mais moderno e mais evoluído era bem-
vindo, sem sequer pararem para medirem as possíveis consequências disso. E agora?
Agora estava ali num mundo completamente diferente, vazio de tudo isso, era horrível
e não me sentia nada preparado para enfrentar um mundo assim.

Eu gostava da tecnologia e de tudo o que estava ligado a esse mundo, aliás


sabia que era dependente disso e gostava, não me via a viver de outra forma. Era um
mundo maravilhoso, mas ao mesmo tempo começava a perceber como era uma prisão

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onde as pessoas viviam em função dessas tecnologias e não em função uns dos outros,
dos familiares e dos amigos. Há quanto tempo não estava com os meus amigos de
carne e osso, agora os amigos mais próximos que tinha estavam do outro lado da
linha, do outro lado do mundo e contactava-os constantemente pela internet, e agora
sem internet nunca mais os ia contactar, nunca mais ia falar com eles. Era horrível só
de pensar nisso, como eles iam fazer-me falta, tanta falta, tinha perdido tudo, tudo
aquilo que tinha construído ao longo de anos e que afinal não dava a devida
importância. A minha irmã, que não vejo há anos, desde que decidiu ir viver para a
Austrália, quando lhe ofereceram uma oportunidade de emprego única, numa
empresa de alta tecnologia. Falávamos todas as semanas através da internet, uma ou
duas vezes por semana. Várias vezes estive para a ir ver, e sempre adiei a viagem,
apesar de estar a pouco mais de 5 horas de distância, mas aparecia sempre alguma
coisa inadiável, agora se calhar nunca mais a iria ver, era de mais, era mesmo de mais.

Não queria mesmo pensar que tudo aquilo estava a acontecer. O que ia ser de
mim e da minha vida? Como é que ia viver neste mundo? Não sabia fazer mais nada.
Tinha estudado anos e anos para ser o que era, os computadores eram tudo o que eu
sabia fazer, nunca tinha aprendido mais nada, como é que iria sobreviver?

Olhei para o céu e pela posição do sol já deveria ser tarde, talvez 3, 4 ou 5 horas
da tarde. Não tinha comido nada nesse dia, mas não sentia fome, talvez da excitação e
ao mesmo tempo do medo que percorria o meu corpo todo, sentia-me perdido, não
sabia o que fazer nem para onde ir. Se pelo menos encontrasse alguém que me
ajudasse, que me ajudasse a compreender tudo aquilo. Estava farto de procurar
respostas e só encontrava perguntas.

Estava neste novo mundo apenas há algumas horas e já sentia tanta falta da
confusão, do burburinho, das buzinas constantemente a apitar, dos condutores a
chatearem-se uns com os outros, as pessoas a correrem de um lado para o outro,
como se o mundo fosse acabar dali a um bocado; tudo funcionava, era uma vida onde
um certo caos imperava mas por outro lado tudo parecia organizado e funcional, para
mim era melhor, bem melhor!

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O que eu dava para saber a verdade! Quem me podia ajudar e responder às
minhas perguntas? Talvez alguém mais velho soubesse o que se tinha passado, alguém
como eu, que tinha vivido no outro mundo, de onde eu vinha, mas que por alguma
razão também se encontrasse ali, que tivesse efectuado todo o percurso e não como
eu que parecia ter saltado no tempo. Mas quem? Quem me poderia ajudar?

Continuei a minha caminhada, perguntando a este e àquele. Ninguém parecia


querer responder às minhas perguntas. As pessoas pareciam vazias, desligadas
daquela realidade, algo tristes ou indiferentes. Alguém que encontrei disse-me;

- Meu caro amigo, são histórias antigas que se contam entre dentes, mas na
realidade não sei nada de concreto.

Outra pessoa que abordei, uma pessoa já com alguma idade, talvez de 70 e tal
80 anos, foi um pouco mais longe e depois de uma longa conversa indicou-me o
caminho para a casa de alguém que talvez me pudesse esclarecer. Muito agradecido
com aquela preciosa informação, despedi-me e prossegui apressadamente o caminho.

Corri para chegar ao destino o mais depressa possível, queria respostas e tinha
finalmente a esperança de naquela morada as encontrar.

Cheguei ao local talvez 20 minutos depois, pelas indicações que me deram


parecia ser ali. Era um prédio muito velho e em muito mau estado de conservação,
pelo aspecto diria que tinha mais de 200 anos, no r/c lá estava a loja de velharias, via-
se que estava aberta. Por cima da porta havia um letreiro, para aí com 2 metros de
comprimento, podia-se ler “Velharias e Ferro-velho do Sr. Bernardo”. Questionei, seria
este senhor Bernardo que teria as respostas que eu tanto procurava?

Não quis perder mais tempo e apressei-me a entrar. Era uma pequena loja com
muitas coisas espalhadas por todo o lado, havia um balcão ao fundo e dirigi-me logo
para lá. Pelo caminho olhei para um e para outro lado e à primeira vista não vi nada
que me chamasse especialmente a atenção, muita tracalhada no chão, outras por cima
de prateleiras e de mesas, nas paredes também havia muita coisa. Atrás do balcão
estava sentado um senhor, de meia-idade, à minha presença nem sequer se levantou.
Dirigi-me para lá e perguntava a mim mesmo, seria o Sr. Bernardo?

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Ali estava eu, possivelmente perto das respostas que tanto queria, mas não
sabia muito bem como começar a conversa. Iria ele pensar que era doido ou que teria
ido ali para gozar? Sem demoras decidi perguntar se era o senhor Bernardo. O senhor
Bernardo que estava indicado no letreiro por cima da porta. O indivíduo, com uma voz
algo rouca, olhou para mim com um ar de admiração e retorquiu;

- O senhor Bernardo! Quer falar com o senhor Bernardo!

- Sim, indicaram-me este local e o senhor Bernardo.

- Ele não está aqui, vive por cima da loja no primeiro andar, eu sou o filho.

- Mas posso falar com ele? - Perguntei.

- Olhe, ele está um pouco doente, não sei… Mas quem é o senhor? - Perguntou.

Respondi-lhe, dizendo-lhe o que me levava ali e como me encontrava aflito


com tudo aquilo. Ele mais uma vez olhou ao mim, franziu ligeiramente a sobrancelha e
depois de alguns segundos, como que estivesse a pensar, disse-me;

- Pode ser que o meu pai lhe possa dizer alguma coisa. Sim… pode ser.

E continuou…

- Passe ali naquela porta e suba as escadas até ao primeiro andar. Não sei se o
meu pai está em condições de o atender, mas pode tentar.

Agradeci de imediato e dirigi-me para a porta indicada. Neste momento os


meus olhos pararam num objecto que estava em cima de uma prateleira, estava muito
sujo e com muito pó, mas ali estava. Era um objecto que conhecia muito bem,
aproximei-me dele e peguei-lhe, assoprei para tirar o pó, e ali estava, um aparelho de
GPS, era um GPS! Via-se perfeitamente, apesar do estado em que se encontrava, que
já tinha sido usado, já tinha funcionado. Com o GPS nas mãos, olhei para o senhor que
estava atrás do balcão, ele viu o meu espanto e apressou-se a dizer-me.

- Não me pergunte nada, fale com o meu pai.

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Acenei afirmativamente com a cabeça, pousei o objecto no mesmo local e
dirigi-me à porta que me dava acesso ao primeiro andar.

Passei a porta e encontrei umas escadas à minha direita, via-se que já tinham
sido umas escadas bonitas, mas agora estavam cheias de tracalhadas velhas e muito
sujas. Aliás, naquele lugar estava tudo muito sujo, de certeza absoluta que não havia
por ali ninguém do sexo feminino e que quem ali vivia não ligava nada a esses
pormenores. Subi até ao primeiro andar. Havia uma campainha ao lado da porta,
toquei, mas como era de esperar não funcionou. Bati então à porta com algum
cuidado, esperei um pouco e ninguém respondeu, voltei a bater, desta vez com um
pouco mais de força, nesse momento ouvi uma voz do outro lado da porta;

- És tu Joaquim? - Perguntou. - Entra, não tens a chave?

Respondi de imediato;

- Não, não é o Joaquim. Gostava de falar com o senhor Bernardo. - Continuei.

É só um momento, respondeu o senhor. A porta abriu-se e surgiu uma pessoa


do outro lado. Era um homem com aspecto bastante velho, 90 e tal anos talvez, era
baixo e a cara cheia de rugas, sobre os olhos tinha uns óculos de lentes garrafais, tinha
um aspecto descuidado, barba por desfazer e com aspecto de doente.

Perguntou com uma voz algo debilitada.

- Quem é o senhor? E o que é que deseja?

Retorqui apresentando-me e expliquei-lhe o que me levava ali, como tinha sido


difícil encontrar alguém que me pudesse ajudar e que precisava muito de saber o que
se estava a passar.

Ele olhou para mim de cima a baixo e fixou o olhar nos meus sapatos, eram
novos de design italiano, tinha-os comprado na última viagem que tinha feito a Milão,
havia pouco mais de um mês. Nesse momento fitou-me nos olhos e disse.

- Não tenho a certeza se o posso ajudar.

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Avancei. - O senhor é a minha única esperança, não sei onde procurar mais. Por
favor ajude-me!

Então disse-me. - Entre e venha comigo. Levou-me pelo corredor da casa, era
um corredor comprido, passámos por várias portas, todas elas fechadas, nas paredes
havia muitos quadros, conheci dois que eram de um pintor muito conhecido e por isso
muito valiosos. Aquelas pessoas tinham dinheiro, pensei para mim, mas porque têm
tudo tão mal arranjado, com tão mau aspecto? No final do corredor entrou numa sala
à direita e mandou-me segui-lo.

A sala não era grande ou então não parecia grande, tal era a quantidade de
coisas que ali estavam, havia muitas resmas de jornais e revistas empilhadas junto às
paredes, muitos móveis, dois sofás e uma pequena mesa entre estes, havia também
muitos livros em alguns móveis, duas grandes janelas que estavam encobertas por dois
grandes e velhos cortinados escuros, mas nada de tecnologia, não havia nenhuma
televisão, nenhum rádio, nada de tecnologia. Mandou-me sentar num dos sofás, o que
eu fiz agradecendo, sentou-se na minha frente e disse.

- Espero que o meu amigo esteja preparado para aquilo que lhe vou contar.

Acenei afirmativamente e disse-lhe; - Estou ansioso para ouvir o que tiver para
me contar.

Nisto levantou-se e dirigiu-se a um canto da sala, onde estavam empilhados


vários jornais. Procurou durante alguns minutos e finalmente voltou com um na sua
mão.

- Tome, e veja! - Disse com uma voz um pouco tremida.

Era um jornal normal, como aqueles a que estava habituado a ler todos os dias,
mas o papel era diferente, não parecia papel, parecia um material diferente que
imitava o papel. Perguntei.

- Isto não é papel, pois não?

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- Não! No tempo em que esse jornal foi feito já não se usava papel, sabe…
devido ao aquecimento global foi proibido abater árvores, desflorestar as florestas, e
tiveram que arranjar um material novo que substituísse o papel.

- Estou a ver. Já era de esperar.

- O aquecimento global, o maldito aquecimento global obrigou o Homem a


alterar muitos costumes e hábitos. Continuou… mas apesar de tudo era bem melhor
do que agora.

Acenei que sim com a cabeça, olhando para o jornal que tinha na mão. As
notícias que se podiam ver na primeira página eram notícias normais, do dia-a-dia,
podia-se ler “artigos de luxo resistem à crise”, “banca privada lucra 40 milhões por
dia”, “ministro da economia apanhado nas malhas da corrupção, demite-se”, enfim
notícias que eu considerava normais. Até aqui nada de extraordinário, mas no canto
superior direito chamou-me a atenção um anúncio, era um anúncio a uma empresa
que oferecia viagens virtuais, dizia o seguinte; “Viaje na nossa companhia. Nós levamo-
lo a outros mundos! Embarque na maior aventura da sua vida!”. O senhor, que estava
a olhar para mim e viu o meu espanto, disse-me;

- Esse foi o último jornal publicado no seu tempo.

- Tempo? - Perguntei. - Mas que tempo?

- Veja de lado. - Disse-me.

Olhei com atenção e lá estava, “quarta-feira, 12 de Março de 2089”.

Não queria acreditar no que estava a ver. Como era possível, 2089?! Eu estava
em 2026 e aquele jornal era de 2089? Como era isso possível?

De imediato ocorreu-me, em que ano estaria? Perguntei então ao senhor;

- Mas afinal em que ano estamos?

Ele sem hesitar respondeu-me de imediato.

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- Há muito tempo que se deixou de contar os anos, ninguém sabe ao certo,
mas… pelas minhas contas penso que estaremos para aí no ano 2170, 2180, mais ano
menos ano.

De imediato perguntei. - O que é que aconteceu?

- Olhe, meu filho, respondeu ele com uma voz afável. - Eu naquele tempo era
muito novo, novo de mais para me lembrar de qualquer coisa que seja, mas o meu pai
mais tarde contou-me algumas coisas e deixou muitos registos da época.

E prosseguiu;

- Naquele tempo o mundo era muito diferente de hoje, havia tecnologia por
todos os lados e tudo estava ligado em rede. As pessoas praticamente transformaram-
se a elas próprias em computadores e quase todos já tinham pelo menos uma peça de
tecnologia nos seus corpos. - Retorquiu, fazendo uma pausa como se estivesse a
ganhar fôlego para o que ainda tinha para contar.

- Quando se nascia era injectado nos nossos corpos um produto que levava
milhares de mini robôs, chamavam-lhe a nanotecnologia. Era uma tecnologia
maravilhosa. Esses robôs eram pré-programados e tinham como função vigiarem os
nossos órgãos e agirem sempre que havia a necessidade de atacar uma doença ou
algum mal que nos afectasse. No início essa tecnologia era muito cara e só estava
disponível para quem tinha muito dinheiro, mas com o tempo foi chegando a um
número maior de pessoas, até que se generalizou e praticamente todas elas a
possuíam. Outros desses robôs tinham como função aumentar as nossas capacidades
intelectuais, havia pessoas com capacidades excepcionais, algo como nunca se tinha
visto antes, eram autênticos deuses, tais eram essa habilidades e poderes, pareciam
seres vindo de filmes de ficção científica. - Concluiu.

- Então e depois? Isso parece tudo maravilhoso. - Comentei com entusiasmo.

- O petróleo acabou, tudo era movido a hidrogénio, os híbricars de antes


tornaram-se em viaturas que andavam na terra, no mar e no ar, levavam as pessoas a
qualquer lugar, não havia limites. Começava a haver à disposição de alguns o
teletransporte, transportava as pessoas de um local para outro em breves segundos,

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era magnífico. - Disse com exaltação. - Era magnífico. As escolas já quase era coisa do
passado, as pessoas adquiriam o conhecimento através de um equipamento especial
que lhes implantava esse conhecimento no cérebro, havia de tudo…, qualquer pessoa
podia falar a língua que quisesse ou saber tudo sobre um determinado assunto, e isto
em apenas uns minutos.

Neste momento estava encantado com tudo aquilo que estava a ouvir, era um
futuro como tanto tinha desejado, era exactamente como gostaria que viesse a ser um
dia. “Que pena não viver nesse tempo”. - Pensei eu. Gostaria tanto de ter vivido nesse
tempo.

- Diga-me mais! Conte-me mais! Pedi, parecendo um miúdo todo empolgado


quando lhe estão a contar uma história de encantar.

- Vivia-se uma era maravilhosa… claro que havia alguns problemas, sempre
existiram, não é verdade? Mas havia trabalho e comida para todos, quase todas as
pessoas viviam directa ou indirectamente da tecnologia ou de algo ligado a ela, havia
fábricas e lojas de produtos tecnológicos por todo o lado. Tinha havido um pacto social
e económico entre estados e a maioria dos países eram agora governados por um
único poder, que geria todos os recursos de igual forma, não havia diferença entre
povos, quer fossem americanos ou europeus, asiáticos ou africanos, era tudo igual. Era
tudo perfeito ou quase perfeito… retorquiu, tremendo-lhe a voz nesse momento,
como de algo de muito terrível se tivesse lembrado.

- Sabe, caro senhor, prosseguiu, o terrorismo, o terrorismo deu cabo disso


tudo.

- O terrorismo? - Perguntei. - Não me diga que foram os árabes. - Esses


terroristas malvados, que provocaram o fim de tudo isso?

- Não, não foram esses. Esses também deram grandes dores de cabeça aos
países ocidentais, mas desta vez não foram esses, foram outros bem piores. - Afirmou
com convicção de que sabe muito bem do que está a falar. - Foram os orientais… os
chineses.

- Os chineses? Mas os chineses, esses… - Perguntei admirado.

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- Sim. Esses mesmos, os chineses. Sabe, os chineses sempre estiveram muito à
frente nas tecnologias, eles criavam e fabricavam tudo, inventavam tudo, até que
fizeram algo de terrível, algo que nas mãos erradas provocou tudo isto.

Tudo começou com um grupo de pessoas muito poderosas mas extremamente


conservadores, eles viam o avanço e toda a tecnologia moderna como uma ameaça a
esses princípios. Para eles tinha que haver limites e as pessoas não podiam
transformar-se no que estava a acontecer, argumentavam que estávamos a ir longe de
mais e que o Homem queria transformar-se em deuses. Fizeram vários avisos, vários
atentados a instalações e fábricas por esse mundo fora, provocaram muitos estragos e
prejuízos de milhões, morreram muitas pessoas nesses ataques, mas nada como o que
estava para acontecer.

Neste momento vi que estava um pouco conturbado com o que estava a


relatar, o rosto dele estava triste e via-se no olhar que fazia um esforço para que as
lágrimas não lhe caíssem. Apesar de estar em pulgas para saber mais, achei que
deveria tentar acalmá-lo um pouco e perguntei-lhe:

- Sr. Bernardo seria muito abuso da minha parte pedir-lhe algo para beber? Está
muito calor aqui e estou cheio de sede.

Olhou para mim e disse:

- Claro, claro que sim. Desculpe a falha da minha parte, já lhe devia ter
oferecido alguma coisa para beber. Um copo de água está bem? - Perguntou.

- Sim, está muito bem. Obrigado.

Levantou-se e dirigiu-se à porta, tendo desaparecido de seguida. Sentado no


meu lugar, pus-me a olhar de um lado para o outro, como quisesse encontrar algumas
respostas sem ter que perguntar mais àquele pobre homem que já mostrava algum
cansaço e desgaste com aquela situação de ter que relembrar as coisas horríveis que
tinham acontecido. Pensava como era possível que tudo aquilo tivesse acontecido,
como depois de o Homem ter chegado tão longe se tinha deixado levar àquele ponto.
Como não tinha conseguido arranjar maneira de evitar tal desgraça, com tanto

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conhecimento e tanta evolução e no entanto perdeu-se tudo de um momento para o
outro.

- Aqui tem o seu copo de água. Desculpe não lhe ter oferecido outra coisa, mas
nos tempos em que vivemos é muito difícil arranjar outra bebida que não água. - Disse,
entregando-me o copo na minha mão.

- Muito obrigado, estava mesmo a precisar. - Sem cerimónia bebi o copo de um


trago apenas.

- Estava óptima, muito fresquinha. - Concluí.

- Está preparado para saber o pior? - Perguntou ele.

- Sim. Quer dizer não sei, já ouvi tanto e tão mau, que não sei bem. - Retorqui.

- Pois: sabe, esse grupo com as ligações que tinham conseguiram desenvolver
um vírus muito poderoso, era um vírus que uma vez largado entrava nas pessoas e
alterava a programação dos milhares de robôs que tínhamos nos corpos, os tais mini
robôs. - Afirmou ele e prosseguiu. - Estes em vez de fazerem as tarefas para as quais
estavam programados passavam a controlar as pessoas de uma forma terrível, era
como se apagassem as pessoas, o seu pensamento, as suas vontades, era como se
ficassem sem cérebro, andavam a deambular por aí, sem comer, sem beber, até que
morriam. Morreram muitos milhões por todo o mundo.

- Mas… mas não morreram todas as pessoas. Como é que algumas se safaram?
- Perguntei algo intrigado.

- Sim, algumas, poucas sobreviveram, aquelas que nunca tinham levado as tais
vacinas ou que, por desleixo ou por vontade não renovavam as doses de cinco em
cinco anos.

- Ah! Estou a ver. Foi o seu caso? - Perguntei.

- Eu sobrevivi porque tinha acabado de nascer e não tinha ainda levado a


vacina. A minha mãe morreu poucos dias depois de eu ter nascido e o meu pai
sobreviveu porque foi sempre contra o que era a implantação de tecnologia nos

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corpos das pessoas e por opção nunca quis levar as vacinas. Ele dizia constantemente:
“Eu sou um ser humano, nunca me vou transformar num robô”. Essa decisão valeu-lhe
muitas críticas e mesmo algumas graçolas por parte de amigos e conhecidos, mas às
quais ele nunca ligou. Como ele estava certo. - Afirmou ele com uma voz de orgulho
naquela decisão que o pai tinha tomado.

- Sobreviveram poucas pessoas ao acontecimento e as que ficaram sofreram


muito. Inicialmente era corpos por todo o lado. Está a ver a situação não está? -
Perguntou.

- Sim, sim, deve ter sido horrível. - Afirmei eu.

- Pois foi, muito horrível. Depois deixou de haver electricidade, a seguir a água
nas torneiras acabou e tudo parou. De um momento para o outro o mundo viu-se
numa catástrofe como nunca tinha havido antes, um caos, um caos. - Afirmou com as
lágrimas a correrem-lhe pela face.

- Sabe, este mundo estava prisioneiro da tecnologia. Tudo funcionava em


função da tecnologia e nunca ninguém se lembrou disso. Foram todos apanhados de
surpresa e então foi o caos total.

- Pouco tempo depois veio uma ordem, não se sabe muito bem de quem, se do
governo, se do tal grupo que se tenha apoderado do poder, mas as ordens eram claras,
concluiu.

Neste momento levantou-se e dirigiu-se a uma secretária que estava ali na sala,
abriu a gaveta e tirou um papel, entregou-mo e disse; leia, leia. - Era um papel muito
velho, as letras quase que já não se notavam, via-se que estava escrito à mão e dizia o
seguinte.

Informação à população

Após o acontecimento ninguém poderá possuir, usar, desenvolver ou elaborar


planos para voltar a usar qualquer tipo de tecnologia. Foi decidido que tudo o que é
tecnológico tem que acabar e é expressamente proibido usar de qualquer forma algum
equipamento destes.

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Esta ordem entra em vigor de imediato e o não cumprimento desta ordem é
passível com pena capital do infractor e dos seus familiares directos.

Terra, ano 1.

Assinado,

Ordem Suprema

Li e voltei a ler. Nada daquilo parecia fazer sentido, aquela situação toda,
aquelas ordens ridículas. Fiquei como que paralisado, só pensava como era possível e
que não queria fazer parte daquilo de forma nenhuma nem viver naquele mundo. Eu
era uma pessoa que dependia da tecnologia, não sabia viver de outra forma e nem
queria viver de outra forma. Abrir mão disso era impensável, impensável mesmo.
Parecia que estava a viver um pesadelo e que cada vez estava pior, quanto mais sabia
e descobria pior ficava. Era um pesadelo, um pesadelo sem fim.

- Não, não, não pode ser verdade!

Doutor Miguel, doutor Miguel, doutor Miguel, ouvi a chamar lá muito longe,
mas cada vez a voz parecia mais perto. Abri os olhos e olhei em meu redor. Por
segundos não sabia onde estava. Fiquei parado. Estava sentado a uma grande mesa
oval e havia várias pessoas que olhavam para mim com uma cara de admiração e
surpresa ao mesmo tempo.

Ouvi a mesma voz dizer;

- Doutor Miguel, é a sua vez de apresentar o projecto. Sente-se bem? Está tudo
bem consigo? - Perguntou.

De repente fez-se luz na minha cabeça. Estava na companhia, na sala de


reuniões administrativas, mas ao mesmo tempo uma dúvida assaltou-me: “o que é que
me tinha acontecido? Teria adormecido por breves instantes e estivera a sonhar?
Tivera uma visão do futuro?” Não sabia ao certo, mas algo tinha-me acontecido.

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Olhei para o monitor que estava à minha frente, tinha a apresentação
preparada para iniciar às minhas ordens. Tudo o que se tinha passado no meu sonho,
ou na minha visão, tinha que ter algum sentido, vinha-me tudo em catadupa, sentia-
me confuso, levantei-me e dirigi-me à janela, olhei para baixo e a rua parecia muito
pequenina, afinal de contas estava no 24º andar da companhia. Lá em baixo se via
viaturas de todo o género de um lado para o outro, as pessoas pareciam formigas
apressadas, num dos prédios em frente havia um holograma gigante que fazia
publicidade a um show que dava na televisão. Olhei para o céu e consegui deslumbrar
algumas aeronaves pessoais. Aquele era o meu mundo, o mundo em que vivia e queria
viver para sempre. Naquele momento apenas tinha essa certeza.

Pensei: “então, e se tudo aquilo que vi acontecesse mesmo? Poderia vir a


acontecer mesmo? O que seria daquele mundo e das pessoas?” Afinal toda a
tecnologia existia devido às pessoas e para as pessoas.

Aquele mundo que via da janela era maravilhoso. O homem tinha chegado tão
longe, criado tanta coisa maravilhosa, mas com a ganância de querer sempre mais e
mais poderia um dia vir a destruir tudo? A evolução era uma coisa maravilhosa, muito
boa, mas será que não tinha que ter peso, conta e medida? Não se podia correr na
busca de sempre mais, mais e mais sem medir as consequências? Tinha-se
definitivamente que se medir as consequências e avançar com cuidado.

Neste momento de pensamento ouvi a voz que vinha da direcção da mesa de


reuniões, reconheci a voz, era do administrador chefe, disse;

- Doutor Miguel, estamos todos à sua espera. Quer fazer o favor de apresentar
o seu projecto?

Lembrei-me então da apresentação que tinha para fazer. Era sobre um plano
para desenvolver uma tecnologia na qual trabalhava afincadamente há meses e que
iria revolucionar como os robôs iriam interagir com as pessoas. Era um projecto que
poderia levar esta tecnologia mil vezes mais longe, um passo gigantesco na robótica e
a ir para a frente o mundo nunca mais iria ser o mesmo. Já existiam robôs para
desenvolverem muitas funções que antes era o Homem a fazer, mas este projecto iria

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desenvolver a inteligência artificial e levar os robôs a efectuarem tarefas antes
impossíveis. Uma ideia que antes achava espantosa e maravilhosa ao mesmo tempo,
abria a porta a milhares de possibilidades, mas que naquele momento me deixou
algumas dúvidas. Mas seria certo ir por aí? Seria mesmo aquilo que a Humanidade
precisava? Era aquele o futuro ideal, tinha-se medido as consequências? Não, claro
que não! Todas estas dúvidas percorriam o meu cérebro ao mesmo tempo. Seria que
estávamos a seguir o caminho mais correcto? Não estaríamos realmente a ir longe de
mais? O que é que poderia fazer para evitar ou pelo menos não contribuir para aquilo
que tinha vivido momentos antes?

- Doutor Miguel, tenha paciência, mas não podemos esperar mais! Se não
começar a fazer a sua apresentação imediatamente, passaremos ao ponto seguinte e o
seu projecto fica por aqui, sem efeito! - Exclamou o administrador num tom de voz
rude e algo impaciente.

Neste momento dirigi-me ao meu lugar, peguei no meu dossier, inclinei-me


sobre a mesa e dei a ordem ao monitor que estava ali na minha frente. - Desliga! De
imediato o monitor apagou-se, dirigi-me à porta da sala, que abriu à minha presença, e
saí. Entrei no elevador mais próximo e desci até ao r/c, não demorou mais de um
minuto até lá. Saí do prédio e vi-me na rua. Era maravilhoso todo aquele movimento
que ali havia à minha frente, era daquilo que gostava, aquele mundo que tinha
demorado tanto e tanto tempo a construir. Eu não iria contribuir com mais projectos
ou ideias que pudessem colocar em perigo tudo aquilo. Não queria abrir mão de tudo
aquilo que tinha mas a ideia de querer ir cada vez mais longe não me podia cegar ao
ponto de não medir as consequências.

Aquele dia que passei, sem tecnologia nenhuma tinha mudado o meu
pensamento em relação ao futuro. Aquele dia tinha chegado para mim, mas ao mesmo
tempo uma lição de vida. Tinha visto e vivido um mundo horrível, pior do que alguma
vez pudesse imaginar. Era um mundo como que vazio onde tudo tinha parado, nada
funcionava, até as próprias pessoas pareciam que viviam vazias de vontade e encanto
pela vida, pareciam perdidas sem motivos e motivação para viverem. Era um mundo
muito triste, muito triste mesmo, aquilo não poderia acontecer.

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