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SOBRE A FISIONOMIA INTELECTUAL DO PARTIDO COMUNISTA’ (1945-1964) Gildo Margal Brandéo O Partido Comunista é 0 agrupamento politico brasileiro que mais se aproxima —'pelo menos no periodo da Reptiblica Liberal e em que pese a sua semilegalidade politica — da definigao de Cerroni: partido moderno é articula- ¢40 de maquina e programa. Nascido em 1922 naesteira da Revolugao de Outu- bro, autonomeado “destacamento de exército internacional”, a partir da jungao de reduzido grupo de intelectuais e sindicalistas sem prévia experiéncia parla- mentar e partidaria, fora do Estado, ¢ leitor de Lénin e Stalin de preferéncia a Marx - 0 PC € um dos raros partidos nacionais, especificamente urbano num pais de predomindncia agrdria, 0 tinico que sobreviveu tanto tempo minima- mente organizado, agéncia que conseguiu dar alguma fundamentagio teérica ao vasto movimento nacionalista e democratico que toma corpo a partir dos anos 50. Niicleo mais estavel deste conglomerado de tendéncias e correntes de opinido que € a esquerda brasileira, a andlise de sua trajetoria pode esclarecer aspectos substantivos, especialmente dificuldades da construgdo da identidade politica da classe operdria, a qual pretendeu com maior ou menor éxito representar. Gildo Margal Brandao jornalista, prof. do departamento de Politica da PUC-SP Com variagées, 0 artigo é parte do projeto de pesquisa para tese de doutoramento que desenvolvo no Departamento de Politica da USP, sob orientacao do Prof. Dr. Francisco Wetfort. REY. LUA NOVA | SAO PAULO | VOL.4 -N*3 | JULHO/SETEMBRO | N°15 134 LUA NOVA E apenas a partir de 1945 que o PC pesa na vida politica, é entdo que ele comegaa existir como partido politico. H4 ensaios gerais, como o de 1928, com 0 Bloco Operdrio e Camponés, e 0 de 1935, com a Alianga Nacional Liberta- dora, primeiras experiéncias de politicas de aliangas, A criagdo de uma classe operdria para o Estado no pés-30 pressupde as derrotas do BOC e, princi- palmente, da ANL, privando aquela de raros elementos dotados de algum equipamento intelectual e contatos politicos adequados para entender, con- trapor ou utilizar as transformagées morfoldgicas e politicas que esto ocor- rendo, O tema submerge na subestimagdo geral que cerca a década de. 20, excetuada a literatura, na historiografia. O destino da ANL é semelhante: tanto na luta politica como na reconstru¢ao historiogréfica, o movimento frontpopu- laire acaba desqualificado diante de seu desenlace putchista. Tais movimentos tém sido tratados como puramente institucionais e partiddrios pertinentes a “hist6ria politica”, sem ligac¢ao com fendmenos socioldgicos e politicos que est4o ocorrendo na formag4o econdmico-social, como a constituigao de mer- cado nacional de forga-de-trabalho, processos de concentragdo e crescimento industrial, rearticulagao das formas de produzir consenso e coercao € reelabo- ta¢do das formas de consciéncia de classe - tanto mais que a sua composi¢ado social era predominantemente pequeno-burguesa. Mesmo assim, até 1945 a esquerda conta pouco; e falar em partido € claramente um abuso de linguagem. Entre 1945 e 1947, é mais um movimento do que um partido; a ele adere quase toda a intelectualidade mudancista e disputa, com a Unido Democratica Nacional, as liderangas das entidades que areorganizacdo institucional da precaria sociedade civil da época havia gerado. Mais do que mero resultante de um projeto “leninista”, 0 PC do periodo dé forma, canaliza ou enquadra vasto movimento das camadas subalternas urba- Nas, que ent4o emergem na cena politica ' e retomam a tentativa, derrotada nas * Atensao entre "leninismo” e mobilizagéo societaria cedo se faz sentir. A adesdo formal a0 PCB divide e destréiaexperiéncia dos Comités Democraticos e Populares, organizacdes frentistas de base que se haviam disseminado no pais. A cisdo entre democracia e antitascismo em torno da atitude a tomar diante de Vargas, bloqueia a formacéo de uma tradigdo antifascista no pals e contribui para reduzir 0 alcance da débil experiéncia democratica entao iniciada. As grandes figuras mobilizadoras das energias espirituais de toda a geracdo sao, sem divida, Stalin e Luiz Carlos Prestes.O PC vem paraalegalidade consumando a ruptura com a geragao dos pioneiras (Astrojido, Brandao, Cordeiro, Ferreira Lima, Basbaum, etc., expulsos ou relegados a postos subalternos), que chegou a constituir sua primeira equipe dirigente, fruto de experiéncias e debates comuns ao longo dos anos 20, ¢ havia sido excluida pela intervencao da Internacional contra a politica “direitista" do BOC; marginalizando Fernando Lacerda, 0 Unico cuja formacao intelectual e experiéncia politica, inclusive internacional, poderia fazer sombra a Prestes; expulsando Silo Meirelles, Cristiano Cordeiro e outros, discordantes do golpe de 1935: e cobrindo de adjetivos afinados com o tempo a minoria trotskysta. Autores como Leandro Konder e Luiz Sérgio N. Henriques tém tratado o curto periodo da legalidade como uma espécie de “idade de ouro", quando se teria praticado uma politica cultural democratica e antecipado tragos de um'partido de massas laico, nacional e moderno. Sobre a fisionomia intelectual do partido comunista_135 precedentes ocasides, de se autoconstruir como classe. Lembrando a obser- va¢4o de Gramsci sobre 0 carter descontinuo da histéria das classes subalter- nas, deve-se dizer que se trata de um outro partido ou, pelo menos, de uma refundagao do partido de 22. A questo é saber se a classe pode ser encontrada nos partidos e na politica institucionalmente considerada ou apenas nos sindicatos e na politica que se faz nos e pelos sindicatos. Nesse caso, a cassagao do registro eleitoral do PC € uma varidvel forte e nao fraca, na explicagdo da detectada subalter- nidade politica da classe operaria. A presenca legal de um grande partido societério, de base operdria, independente do Estado e dotado de forte lideranga popular, introduz um elemento complicador e potencialmente explosivo tanto em relag4o ao sistema partidério como & estrutura sindical corporativa subordinada ao Estado. O deslocamento dos votos potencialmente comunistas para o Partido Trabalhista Brasileiro, fendmeno que estaria na base do notavel crescimento deste, conforme hipdtese trabalhada por Gléucio Ary Dillon Soares, no compensou substantivamente os efeitos ¢ implicagdes de cassaga0 do registro eleitoral do PC. Osistema politico nao se viu confrontado durante tempo suficiente pelo desafio que teria representado um partido oper4rio, dotado de visdo-de-mundo alternativa, legal e eleitoralmente competitivo. Como afirma Francisco Wef- fort, “Os 9% da votag4o nacional obtida pelos comunistas em 1946 eram, de fato, muito pouco diante da maioria absoluta obtida por Dutra, apoiadoem todo 0 pafs pela maquina do Partido Social Democratico e, sobretudo nos grandes centros, pelo fascinio popular de Getilio. Talvez seja certo também, que 0 prestigio eleitoral de Geniilio fosse dominante mesmo nos meios do operariado industrial. Contudo, nao ha dividas, a partir das pesquisas de Azis Sim4o sobre “O voto operario em Sao Paulo’, de que os comunistas representavam-se ai como uma segunda forga, capaz, sendo de vencer, pelo menos de manter a competi¢ao. Nesse sentido, era um partido politico que, qualquer que fosse a sua propria orientacdo ea sua estrutura interna, tenderia, por forca das regras imperiosas da competi¢do eleitoral, a colocar em discussao as orientagdes do populismo plebiscitario emergente. Nao por acaso, nas primeiras eleicdes municipais do perfodo democratico, oscomunistas conseguem elegeramaioria dos vereadores em algumas cidades, comoo antigo Distrito Federal, So Paulo, Recife, Santos, etc. A auséncia do PC na disputa deixard, dai em diante, o espaco livre aos populistas. O exemplo mais dbvio é 0 de Janio Quadros, entdo um obscuro suplente de Vereador que s6 consegue chegar 4 Camara Municipal de Sao Paulo, dando inicio & sua carreira, depois que a cassa¢ao dos represen- tantes comunistas abriu numero suficiente de vagas” (grifos no original)*. 2 Cf, “Uma convivéncia possivel?", In O PCB encara a democracia, Suplemento Especial do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 29/07/79, pag. 7 136 LUA NOVA A subseqiiente floracdo operdria do PC se dé em 1953 e em Sao Paulo, sendo que este é um momento particularmente marcado pelo desencontro entre 0 operdrio e q institucional, o sindical e 0 politico. Nao que esse partido deixe de obter em seguida a adesao da vanguarda operdria — € 0 contrdrio que ocorre. Mas 1953 € 0 tiltimo momento em que esta adesdo é massiva e em bloco, fruto de movimento espontaneo da classe, e de liderangas fabris e nao meramente. sindicais. O contrato é flagrante com dez anos depois, com um movimento numericamente de maiores proporgdes ¢ formalmente mais politizado, mas que &tirado de cima para baixo, se dd basicamente em empresas estatais, contacom 0 beneplacito do governo ¢ se beneficia do clima de efervescéncia e auséncia de repressdo da época, Fendmenos sociais novos, como a urbanizagao induzida pela industrializagdo, forcejam por expresso politica, coincidem com a crise do modelo de industrializacdo pesada posta em pratica pelo governo Getilio. A intelectualidade esta fora, desconfiada com a adogdo de politicas maxima- listas e imprensada pelo clima de “guerra fria”. De baixo se espraia vigoroso movimento de massa urbana, que encontra no PC, retemperado pela Resolugao Sindical de 1952, uma forga preparada para cavalgé-la e dirigi-la que ndo se traduz em termos politico-eleitorais: esse partido colhe magros resultados nas eleigdes de que participa, a principal das quais para a Prefeitura de Sao Paulo; a classe operdria derruba ministro, mas nao tem lideranga nem visdo capaz de converter seu recém-descoberto poder de fogo em iniciativa politica. Sob miltiplos aspectos, Sao Paulo esta distante do poder central. Experiénciacapaz de permitir a elaboragdo de visdo politica voltada para a participagao ou conquista do poder do Estado terd que esperar 0 processo aberto em 1958, Em 1953, entretanto, o que acontece num plano aparentemente nada tem a ver com. © outro. Ou melhor, tem - é nesse processo que se constituem movimentos sociais modernos, como o das associagdes de bairros, e liderangas politicas de novo tipo, como a de Janio Quadros. Em raros locais, como em Santos, ser operario é ser sindicalista e comunista; resulta nao apenas de uma op¢ao ideoldgica ou politica, mas configura um ethos cultural, em way of life. Com excegao de Recife e Rio de Janeiro, cidades que conhecem a presenga de movimentos de esquerda desde os anos 20, onde persiste heranga jacobina numa pequena-burguesia irredenta e sobrevivem elementos de politicas de aliangas, o PC sé volta a ter incidéncia politico-eleitoral a partir do governo Juscelino, Lenta e instavelmente con- segue montar esquemas estaduais. Na clandestinidade ou semilegalidade todo seu aparato organizativo e rede de influéncia, ainda quando se constituem em eficientes instrumentos de apoio a forgas de personalidades politicas diversi- ficadas, serao incapazes de amealhar votos para eleger mais de dois ou trés deputados federais. A repressdo terd cumprido, também af, o seu papel, vetando a diplomagao de eleitos ou obrigando o partido a procurar candidatos vidveis em militantes menos conhecidos da Justiga Eleitoral, mas é significativo que Sobre a fisionomia intelectual do partido comunista_137 aadocao de uma politica de frente ampla e a ascengdo a legalidade de fato, na segunda metade dos anos 50, ndo tenham modificado substantivamente o panorama. Persistem inclusive fendmenos de absteismo eleitoral ¢ de apoli cismo, visiveis nas vezes em que esse partido manda votar nulo ou na arraigada concepg4o que considera mais importante participar de eleigdo sindical qualquer que da disputa por vereanca ou prefeitura. Em certos momentos, encontrar-se- Anaincémoda posig4o de ver adversdrios ou aliados pagando para que nao tome posi¢ao. Em contrapartida, o peso politico que esse partido exerceu no pais, sem correspondéncia com sua expresso organica ¢ cleitoral, é por si s6 indicativo da debilidade de nosso capitalismo e da precariedade da hegemonia de suas classes dirigentes. Um estudo sobre a fisionomia intelectual da esquerda brasileira e do PCB é, na verdade, um estudo sobre uma intelectualidade fascinada pelo modelo de constitui¢ao de uma intelligentsia, e 0 seu declinio coincide com intensa transformagao nas condi¢des de existéncia desta, com a criagdo de importante industria cultural, intervengdo em larga escala do Estado na 4rea da cultura € assalariamento massivo dos intelectuais e profissionais liberais*, A formagdo de uma intelligentsia pressupde, como se sabe, a exis- téncia de massa de intelectuais marginalizada do mundo da produgdo e ine- xisténcia de institucionalidade democratico-burguesa plenamente constituida, situagdo sé possivel em grande escala em pafses cujas burguesias foram inca- pazes, se atrasaram ou resolveram, em sentido reaciondrio, as “tarefas” da revo- lugdo nacional e democratica. A debilidade do liberalismo é que abre espago para a a¢do “vanguardista” do PC em relagdo ao desenvolvimento capitalista, o declinio daquele coincidindo com o encorporamento desta. Tanto a derrota daqucle projeto jacobino como a prdpria institucionalizagao do PC como agén- cia formadora de quadros para 0 conjunto da sociedade brasileira, que em cena medida ocorreu, podem ser vistos como momentos de transformismo pelo qual as clases dominantes tradicionalmente decapitaram e parcialmente absorveram liderangas e representantes intelectuais e politicos das classes subalternas. Tudo isso coincide com processos macro-histéricos da definitiva im- plantagdo do capitalismo “verdadeiro” no pais, da gestacdo de intelectualidade técnica apta a gerir 0 novo Estado e a nova economia, e da ascensao da burgue- sia industrial 4 condigao de classe dirigente ¢ ndo apenas dominante na forma- ¢40 social. Por isso mesmo, 0 estudo do PC e da esquerda pode ser via de acesso interessante para a elucidagdo de aspectos politicos e¢ culturais do processo de industrializagdo ¢ do caminho que o pais percorreu até o capitalismo. Uma das primeiras dificuldades para quem quer tragar o perfil e a evolucio intelectual da esquerda brasileira e do PC hum dado periodo hist6rico ? Cf. Vianna, Luiz Werneck, *Problemas de politica e organizago de intelectuais*, In Presenga, 2,'Ed. Caetés, Sao Paulo, 1984 138 LUA NOVA estd na visfvel desproporcionalidade existente entre a forte presenga politicae ideoldgica dessa corrente ¢ a reduzida e pobre produgdo teérica de sua intelectualidade. Acresce 0 paradoxo o fato de que, tradicionalmente, a intelectualidade é um setor social bem representado nas 4reas dirigentes do PCB como no restante da esquerda*, “Os comunistas desempenharam um papel capital na vida politica latino-americana das Ultimas décadas - afirma Darcy Ribeiro, num texto onde faz juizo globalmente negativo da aco dessa corrente -, exercendo uma influéncia ideolégica notoriamente maior do que a correspondente a sua forga politica e sindical”.> Quais as raizes dessa defasagem? Pelo menos trés ordens de razdes podem ser aduzidas, concernentes 4 composigdo social do comunismo brasi- leiro, sua expresso enquanto movimento politico e sua performance como movimento de idéias. Do ponto de vista da origem ¢ composi¢ao social de seus quadros, especialmente os dirigentes, € consensual entre os analistas a percep¢do de que a extrag4o pequeno-burguesa da maioria daqueles é responsdvel pela peculiar debilidade da esquerda marxista brasileira. Ao lado do viés militarista e da tradicional estratégia frentista, seria ela, inclusive, uma das trés grandes caracteristicas “nacionais”, diferenciadoras docomunismo brasileiro enquanto movimento politico. Darcy Ribeiro, por exemplo, afirma que a maioria dos quadros dirigen- tes dos partidos comunistas latino-americanos provém da classe média intelec- tualizada, enquanto seus militantes de base, dos setores assalariados mais favorecidos, e especialmente os vinculados a empresas estatais, Os préprios comunistas freqiientemente formulam auto-apreciagdes semelhantes, com 0 apelo a“‘origem pequeno-burguesa” funcionando como um passe partout, fator explicativo geral ¢ recorrente de seus fracassos, erros e mudangas de linha politica, Ede Léoncio Martins Rodrigues a tentativa mais séria e consistente de dar base empirica a tese segundo a qual a composi¢ao predominantemente nao- operdria e policlassista do PCB responde por sua precaria inser¢4o e marca sua visdio politica com uma tGnica mais nacionalista do que marxista®. Segundo Martins Rodrigues, o PCB, partido eminentemente urbano, recrutou a maior parte de seus dirigentes entre a intelectualidade (professores universitarios, 4 Idem, ibidem. 5 Ribeiro, Darcy, O dilema da América Latina, Vozes, Petrépolis, 1970, 2° ed., pag. 201. ®Rodrigues, Leéncio Martins, ‘O PCB: os dirigentes @ a organizacdo”, in O Brasil Republica, vol, Ill da Histéria Geral da Civilizagao Brasileira, coordenada por Boris Fausto, Difel, SAo Paulo, 1981. que se segue reproduz, quase jpsis litteris, conclusdes desse estudo, Sobre a fisionomia intelectual do partido comunista_139 jornalistas, estudantes), as Forgas Armadas (Exército, média oficialidade) eo proletariado. Obteve proporcialmente maior éxito entre os estratos qualifica- dos dos tsabalhadores fabris e de servigos, como transporte e docas; encontrou mais dificuldades entre o campesinato e o proletariado agricola, operdrios e trabalhadores manuais de baixa qualificag4o, pequenos proprietarios urbanos e grandes proprietdrios rurais, industriais e banqueiros, Do ponto de vista étnico, os principais dirigentes do PCB s4o, majoritariamente, homens, bran- cos, brasileiros de familias h4 muito radicadas no pais (em varios casos, originarios de velhos troncos olig4rquicos nordestinos decadentes) e, secun- dariamente, judeus e italianos, mulatos e mestigos. Densidade empirica estabelecida, o problema € saber da capacidade explicativa da proposi¢do. O fato é que todos os movimentos sociais e partidos politicos brasileiros, tanto os ligados as classes dominantes como As subalter- nas, tém ido buscar os seus quadros dirigentes nas chamadas camada§ médias, sendo este o problema real. A menos que se aceite como dado a alegag4o dos comunistas de que o seu partido é, por definig&o, diferente dos demais - até para infirmé-la na medida em que a realidade nao corresponde ao modelo - nado ha porque procurar para 0 caso uma explicag4o especifica. No mais das vezes, a equagao “extracdo pequeno-burguesa = partido débil ou inauténtico” peca por “sociolo- gismo”, pois deduz a politica diretamente de um dado “estrutural” e trabalha implicitamente com uma correlagdo linear classe-partido-Estado. Esta tem mais a ver com um modelo abstrato de capitalismo concorrencial ou com a expectativa generalizada de que a industrializacdo e o desenvolvimento do capitalismo reproduziria no pais uma estrutura de classes similar & européia. Finalmente, a equagAo seria cega A questo da hegemonia’, Enquanto movimento politico, se é verdade que essa corrente representa uma influéncia considerdvel na formag&o social brasileira, sua principal expresso histérica, 0 “prestismo”, foi, entretanto, um movimento de massas em torno de uma lideranga carismatica e caudilhesca, acoplados a um partido semimilitarizado, mas ndo uma doutrina (de ago) politica. “O prestismo, de fato, foi apenas a variante vermelha do tenentismo; uma face apenas de um movimento muito amplo, que envolveu a nag4o inteira e que exprimiu (militar- mente) as aspiragOes revoluciondrias e romAnticas de duas ou trés geragdes de brasileiros”®, O desencanto com a Revolugao de 30 leva Luis Carlos Prestes e a faccdo tenentista radical a romper com sua base social e com 0 idedrio liberal, aderindo a esquerda num movimento que finaliza 0 processo de polarizag4o e 7 Werneck Vianna 6 um dos raros autores a argumentar contra a tese @ a ver, no polictassismo, n&o um indicador de fraqueza, mas de forga. Pedreira, Fernando, "A nossa esquerda, militarista e pequeno-burguesa’, in Impavido Colosso, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1982, p. 112. 140 LUA NOVA destruigao do tenentismo. Esta jungdo retira do gueto sindical um pequeno partido maximalista de reduzida dimens4o politica e o inscreve duradoura- mente no centro da vida politica nacional. Do ponto de vista estritamente tedrico, entretanto, o “prestismo” ndo ganha existéncia, ndo constitui um corpo de idéias e propostas auténomo e independente das vicissitudes e variagdes tdticas do partido ao qual ligou sua trajetéria e destino. Até agora nao existe, que eu saiba, uma avaliacao conclusiva do signifi- cado e incidéncia do prestismo no Brasil. Apesar de sua “fidelidade & burocra- cia soviética”, Prestes terd sido responsdvel pela “nacionalizag4o” da esquer- da, sua incontestével lideranga terd feito ““o comunismo no Brasil nao sé maior, como mais ‘brasileiro’, menos europeu”®, Sua adesdo ao PCB deu a este uma audiéncia que, de outra forma, nao obteria, e implicou num estreitamento e redugdo de seu préprio carisma, bem como do contetido libertario e popular de sua lideranga. Por outro lado, o PCB ter propiciado ao caudilho uma “estrutura hierarquizada 4 maneira militar (...) que aderia objetivamente as caracteristicas da formacao ideal do Cavaleiro da Esperanca””°, e que seguramente est4 na raiz da bem sucedida rotinizacao do carisma e, portanto, da longevidade de sua influéncia. Fatores de ordem propriamente politica, como a estratégica op¢ao pela alianca com Vargas em 1945 ¢ o surpreendente realinhamento que opera em 1958, aderindo aos “‘civilistas” ¢ criticos do “sistema de culto a personali- dade”, terio sobredeterminado aquela ligagao, conferindo-Ihe sobrevida. A partir daf, entretanto, seu mito perde a intocabilidade, abrindo a possibilidade de uma reavaliagao positiva da Revolucdo de 1930 (e da figura de Vargas), causa e conseqiiéncia da revalorizag4o da quest4o democraticae, sobretudo, do reconhecimento — pela primeira vez na histéria do PC - de que ha um desenvolvimento capitalista no pais, que este constitui o elemento progressista por exceléncia da economia brasileira e que, com ele, se afirma de maneira permanente uma tendéncia 4 democratizacao da vida nacional"’. Enquanto movimento de idéias, o legado tedrico dos comunistas brasi- leiros é relativamente pobre, trazendo a lembranga a acusacao de Gramsci aos pioneiros do socialismo italiano, que nao teriam deixado as novas geragdes que 8 Idem, ibidem, p. 120. 10 Patti, Mario, “O partido que Prestes quer e o nosso", In Voz da Unidade, 26, edig&o de 26/09/80 ‘a 02/10/80, p. 6. “até entéo pesava sobre a esquerda o interdito de Prestes - cuja palavra, é bom lembrar, era lei - e da geragao vinda do tenentismo, segundo a qual 30 no passou de mera troca de imperialismos e burguesias no poder. A reavaliagao da figura de Vargas, aliado no primeiro tempo, inimigo e concorrente na década seguinte, havide sido pragmaticamente iniciada com o giro de 180° que o PC opera no dia seguinte ao suicidio e com 0 uso intensivo da “carta testamento", mas da frutos pés-58, com a busca sistematica de alianga com o PTB. Aquele reconhecimento é feito na Declaracdo de Margo de 1958, documento que marca a virada na linha politica do PCB. Cf. vinte anos de politica ( 1958-1979), Ciéncias Humanas, S4o Paulo, 1980. Sobre a fisionomia intelectual do partido comunista_141 aderiam 4 luta politica nada mais que artiguetes de jornais e livros esparsos. Como diz Ribeiro de Lire, “excetuado.o sr. Caio Prado Jr., nao ha no Brasil nenhum comunista — particularmente nenhum dirigente do PC - que tenha publicado qualquer obra realmente valiosa sobre qualquer aspecto te6rico ou pratico da politica ou da ideologia do partido, pois na verdade nao podem ser considerados tais aqueles informes e outros documentos do PCB, cada um dos quais refuta o anterior, e s4o, de per si, nulos por si mesmos, dada a pobreza de seu contetido, para nao falar da monotonia sem fim de sua forma, servilmente imitada dos relat6rios soviéticos”"?. Varios de seus dirigentes, como Jacob Gorender, Heitor Ferreira Lima ¢ Leéncio Basbaum, publicaram obras relevantes quando sairam do partido e j4 maduros; outros, pensadores.inovadores, como. Arménio Guedes e Marco Antonio Coelho, nada publicaram sistematicamente '*. A listagem dos colabo- radores e membros do Conselho Editorial de Econémica Brasileira, revista trimestral que reunia a geracdo de economistas de esquerda disseminada “em instituigdes ligadas ao Governo Federal, como o BNDE, a SUMOC, 0 Banco do Brasil, o DASP, o IBGE, 0 Ministério da Fazenda” '*, revela que a maioria deles era ou tinha sido militante ou simpatizante do PC, 0 que é indicativo da presenga de uma intelectualidade técnica e nao apenas literéria ou humanista nas fileiras deste, bem como da influéncia difusa mas relativamente articulada desse conjunto nas andlises empiricas e formulaces tedricas entdo elaboradas, Muito da investigacao mais original e consistente dos préprios intelectuais marxistas de matriz comunista serd feita em precdria convivéncia com a visio oficial ou majoritaria. Apesar disto, esta ter4 sido capaz de suscitar importante elaborag4o, onde o imputado viés apologético convive com o enfrentamento sistematico das grandes questes postas ao pais. “O principal artifice dessa interpretagdo” - a teoria da revolugdo nacional e democratica -, “com muitos adeptos no seio da esquerda brasileira no periodo populista, foi Nelson Werneck Sodré, que deu consisténcia teérica 12 Em *Trés etapas do comunismo brasileiro’, artigo no assinado em Cadernos de Nosso tempo, 2, Rio de Janeiro, janeiro-junho de 1954, pp. 123 a 128, agora publicado em O pensamento nacionalista @ os Cadernos de Nosso Tempo, coletanea arganizada Ror Schwartzman, Simon, para a Editora da UnB, Brasilia, 1970, p. 18. 3 Ver anota 173, p. 434 de Martins Rodrigues, op. cit. Aimportancia intelectual de Armé- nio Guedes é ressaltada por Konder, Leandro, In A democracia e os comunistas no Brasil, Graal, Rio de Janeiro, 1980, pp. 100.a 102. Marco Ant6nio Tavares Coelho Assis Tavares 6 autor de *Causas da derrocada do 1° de abril de 1964", In Revista Civilizagao Brasileira, n®8, Rio de Janeiro, junho de 1966. Junto com Prestes, Arménio, G. Luis Araujo e Renato Guimardies seré um dos principais redatores da Resolugo Politica do VI Congreso. Em contrapartida, a teoria econémica que preside sua polémica com Paul Singer “Crise de conjuntura e crise de estrutura’ @ Caio Prado Jr. (“Caio Prado e a Teoria da Revolugéo Brasileira’) nos numeros 4, 11 @ 12 da mesma revista, cai no padr&o que trato adiante. “Ct, Celso Furtado, A Fantasia Organizada, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1985, p: 173. 142 LUA NOVA as teses € proposigées formuladas pelo PCB ao longo de seus primeiros congressos, e forneceu importantes subsidios para a elaboragao das teses do V e VI Congressos desse partido,”"> E na primeira metade da década de 50 que aquele partido comega a sistematizar algum conhecimento, cujo resultado imediato € a Resolugdo Politica do IV Congresso, de 1954, primeiro programa efetivo de que dispés. O enorme e quase sempre estéril esforgo pedagdgico entdo realizado através das escolas de quadros, marcado pelo dogmatismo stalinista e pelo sectarismo do Manifesto de Agosto, teré deixado um magro resultado positivo: reunindo pessoas da mais variada extragdo geogrdfica e social, com formagao profis- sional e experiéncia politica as mais diversas, terd propiciado a dirigentes € intelectuais do partido uma primeira “olhada em profundidade” para os cafundés do pais. “Até entéo predominava um enorme desconhecimento, até mesmo ignorAncia, da realidade, como fica patente nos péssimos discursos de Prestes em 45”, diz Marco Antonio Coelho '®. A desintegracdo organica e intelectual que se segue ao ano de 1956 terd revelado a inanidade desse esforco. As iniciativas mais sérias no sentido de dotar essa corrente de pensa- mento da capacidade de pesquisa e elaborag4o teérica auténoma, sé se. corporificam apés a ruptura e o sopro renovador representado pelo XX Congresso do PCUS. Comorelata Leandro Konder, “Em 1958, sobo patrocinio do PCB, tinha sido langada a revista Estudos Sociais, dirigida por Astrojildo Pereira e secretariada por Arménio Guedes; uma publicagdo que se autodefinia como ‘de tendéncia marxista’, animada pelo propésito de estimular a polémica entre os marxistas como dos marxistas com representantes de outras correntes de pensamento. O editorial do primeiro nimero constatava: ‘o marxismo entre nés foi algoem si mesmo fechadoe dogmatico, endo chegoua ser, ou foi apenas em minima propor¢do, um instrumento de investigagado’. A publicagao pre- tendia contribuir para corrigir essa deficiéncia e pretendia ‘intervir’ de- mocraticamente, ao lado de outras correntes de pensamento, no debate das questdes relacionadas com a nossa realidade econdmica, social e politica”."” Outra publicagdo, esta com maior incidénciana vida intelectual, posto que mais aberta e frentista, sem compromissos organicos com o PCB, foi a Revista *§ Mantega, Guido, A Economia Polltica Brasileira, Polts/Vozes, So Paulo/Petrépolis, 1984, pags. 158-159. Uma outra excegéo, sempre citada, 60 economista Alberto Passos Guimaraes, pionairo em astudos sobre a questo agraria e inflagao e monopélio. no Brasil, Guimaraes desempenharé um papel estratégico na elaborac&o da Declaraco de Margo de 1958 e da Resolucao Politica do V Congresso, de 1960. Outro intelectual, cuja obra foi cedo truncada pela morte, é Rui Facé, autor de Cangaceiros @ Fandticos e Brasil Século XX, publicados em 1960.e 1962 pela Civilizagao Brasileira e pela Editorial Vitéria, respectivamente. '® Entrevista ao autor, mimeo. "7 Op. Cit, pp. 110-111. Sobre a fisionomia intelectual do partido comunista_143 Brasiliense, de Caio Prado Jr. e Elias Chaves Neto. Naturalmente, a influéncia predominante é a do semandrio Novos Rumos. Em contrapartida, outras correntes e forcas politicas de esquerda, como os trotskystas, luxemburguistas, socialistas, “Esquerda Democratica”, etc., se abrigaram intelectuais do porte de Mario Pedrosa, Livio Xavier, Aristides Lobo, Joao Mangabeira, Hermes Lima, Domingos Velasco, Paulo Emilio Salles Gomes, Anténio Candido, Herminio Sacheua, Fulvio Abramo, Oli- veiros S. Ferreira e outros, nao conseguiram dar vida a nenhum movimento ou partido politico de vulto, estabelecendo precdrias ligagées com a classe operdria. O-que unifica todas essas correntes, além de sua comum oposig4o ao PC, é a percepgao do carter tendencial ou dominantemente capitalista da formago social brasileira. Esta vem com freqiiéncia acoplada a uma teoria geral que resume 0 conflito social na oposig4o entre capital e trabalho e espera aqui a reproducdo de estrutura de classes e formas de consciéncia social similares as européias. Provavelmente, a recusa de politicas de aliangas e o sistematico antivarguismo ter4 atrasado a eventual constitui¢do dessa corrente como competitiva, ¢ serd preciso esperar até o final dos anos 60 para que sua influéncia direta ou subterranea se revele decisiva para a constitui¢ao do “pensamento radical de classe média”, que predominar4 nas ciéncias sociais brasileiras; coincidindo com a perda de capacidade da esquerda marxista tradicional de lidar com fenémenos culturais. Aocontrério da corrente socialista radical, a orientacao politica de Caio Prado Jr. é uma radicalizagdo interna ao campo do PC a partir de uma leitura centrada na questdo nacional e no aspecto econ6émico-social da democracia, manifesta na oposi¢ao frontal a alianca com o democratismo desenvolvimen- tista de Juscelino. Esta, provavelmente, est4 na raiz de seu isolamento teérico € politico num momento em que, ainda que precariamente, reflexdes sobre a quest4o da democracia politica comegam a emergir. A tese da inexisténcia do feudalismo permitiré a atualizacdo de seu pensamento no pés-64, mas como passagem para orientagdes estranhas a sua visio do Brasil como um pais ainda essencialmente colonial e de circunstancial e inorganico desenvolvimento capitalista recente. A corrente nacionalista, que se estrutura no pais a partir da campanha pelo monopélio do petréleo, chega a ter uma expressdo tedrica de peso através do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Suas posi¢des, quase um estado de espirito, permeavam todas as demais correntes, mas dela, hoje, s6 restam destro¢os. Aparentemente, o grupo dirigente dos comunistas brasileiros formou- se pelo am4lgama das trés geracdes: a que se iniciou em politica na virada dos anos 30 e cuja experiéncia originaria foi a da Insurrei¢do de 35; a que se iniciou em politica na metade da década de 40, emergindo com o fim do Estado Novo € a recém-conquistada legalidade; ¢ a que assumiu fungdes diretivas na 144 LUANOVA seqiiéncia do XX Congresso, da Revolugao Cubana e do ascenso democratico pés-juscelinista. Na realidade, a descontinuidade é mais profunda, tendo cada geraco que aprender por conta propria, refazer 0 mesmo percurso, indo da “esquerda” & “direita”, do radicalismo com que adere ao PC ao realismo com queacaba se conduzindo, para finalmente abandonar o partido apés alguns anos de intensa militancia. A presenga permanente e quase inamovivel de alguns Ppoucos nomes ndo é suficiente para esconder a rotatividade que se verifica nao apenas no Comité Central mas principalmente na Comissdo Executiva, dado. significativo numa institui¢4o onde o poder real tende a coincidir com o poder formal, Por outro lado, a auséncia de uma “hist6ria oficial” escritaouencomen- dada pela dire¢do partidaria — apesar de varias tentativas —, antes de ser sinal de renovagao e abertura de espirito, pode indicar impossibilidade ou incapacidade de construir solidamente uma memoria histérica. A partir dos anos 50, o apelo & “origem anarquista” para. explicar especificidades e debilidades de seu modo de sere de fazer politica é recorrente mas j4 nao é mais crivel, assim como o siléncio sobre a componente “mili- tarista” que pesa em sua formagao e acao. Michel Zaidan aponta a comum extra¢do republicana, jacobina e positivista da maioria dessas liderangas; “E que 0 positivismo foi, no inicio da Republica, a expresso politico-ideolégica do ‘jacobinismo’ brasileiro, tendo se tornado, assim, na proto-ideologia de dois grandes movimentos sociais: o Trabalhismoe o Comunismo. Seré, alids, gragas ao positivismo que se viabilizar4, na sociedade brasileira, a possibilidade de um partido (comunista) operério”’®, Mas ter tido o positivismo tal influéncia no Brasil? O que quer que se diga dele, supostamente adequado ao pragmatismo. do cardter nacional brasileiro e difuso entre liberais, esquerdistas e militares, o fato 6 que, como filosofia polftica e técnica de agao, ele foi ultrapassado pelo marxismo a partir da década de 50. A influéncia do “marxismo soviético” suplanta qualquer outra no horizonte intelectual das geragdes dirigentes comunistas, Suas categorias mentais; seu marxismo € russo, subsidiariamente francés, embora a influéncia italiana, desde 1945, possa ser detectada em momentos descontinuos. Sua educag4o se da sob o influxo do Kominform e dentro dos padrées da III Internacional. No que tém de mais caracteristico, sdo filhas do Relatério Dimitrov ao VII Congresso da Internacional, que define uma linha frentista de combate ao fascismo. Basicamente ativistas, aptendem a fazer politica pela ‘experiéncia pratica, inclusive militar, e nas escolas de quadros de Moscou. Sua “teoria”, quando deixa de ser mera cépia dogmitica das injungées e variagdes da politica externa soviética, estabiliza-se como um esforgo para organizar ¢ sistematizar um conjunto de intuigdes tdticas, guiadas por forte senso da 18 Cf. Na Busca das origens de um marxismo nacional - (PCB: 1922-1929), Global Editora, S40 Paulo, 1985, p. 20. Sobre a fisionomia intelectual do partido comunista_145 realidade e instinto de sobrevivéncia. Ponto de inflex4o decisivo foi o XX Congresso do PCUS e a dentincia do “culto a personalidade”, que estd na raiz das primeiras vitérias dos “civilistas” '°. A consciéncia hist6rica da profundi- dade dessa ruptura, no entanto, 6 episodicamente tém caminhado para integral explicitagao. Intelectualmente, a prolongada ilegalidade do Partido Comunista fa- vorecerd a crescente subordinagdo deste aos ditames e ziguezagues da politica soviéticae, sobretudo, quanto ao aspecto que aqui nos interessa, aomodo de ser, concepgdes e modo de fazer politica do marxismo de matriz soviética. Favore- cer4 a adogaio de uma visdo de mundo concentraciondria, insurrecional, uma cultura de gueto, uma auto-imagem de “contra-sociedade”, que acompanharé 0 partido nas varias fases de sua existéncia, permeando sua agao inclusive em momentos de maior influéncia liberalizante. O fenémeno nao é, evidente- mente, exclusivamente nacional. “Uma avaliag4o adequada do perfodo, en- tretanto, nao deve reduzir o fendmeno ideoldgico a uma mera imposig’o arbitraria de ‘cima para baixo’. Na verdade, 0 alinhamento automatico em politica, o monolitismo em teoria, a centralizagao global ea disciplina militari- zada no ‘partido unico’ do proletariado compdem o ‘espirito da época’. Em sua formagao, ajuda substancial provém das ‘condi¢Ges nacionais’: a tradigao caudilhesca, a politica como negécio privado das elites, 0 golpismo como método dé resolugao dos problemas politicos permeiam e afetam o PCB, casando-se & perfei¢ao como o sistema do ‘culto 4 personalidade’ e o dogma- tismo em teoria. Por outro lado, quem est4 de posse da ‘teoria marxista- leninista’ da revolugdo nao precisa investigar concretamente a realidade especifica de seu pais — basta ‘aplicd-la criadoramente’ a realidade nacional””°, Apesar desse contexto, as razdes da defasagem entre influéncia ide- oldgica e forga politica e sindical devem ser procuradas sobretudo no fato dé “contarem os partidos comunistas com uma teoria explicativa muito superior a das doutrinas politicas vigentes”. “Mesmo utilizada de forma inepta-argumenta Darcy Ribeiro-, ateoria marxista revelou uma capacidade de diagnéstico dos problemas do subdesen- volvimento e de formulacao de solugdes que superou e desmiascarou as elaboragdes conservadoras e também as novas doutrinas justificatérias do status quo de inspiragao ‘positivista’ ou ‘sociolégica’”?", Num texto escrito em 1964, outro analista, Fernando Pedreira, chega basicamente 4 mesma conclusdo: “O pais - diz ele -, culturalmente desprepa- 19 A contradico entre “civilistas” @ “militaristas” permeia toda a historia da esquerda brasileira e do PCB; e nao se reduz origem militar ou civil de seus dirigentes. Tem a Yer, ao contrario, com a concepgso de fazer politica: politicista ou insurrecional. 2) Vinhas, Moisés, O Partido - a luta por um partido de massas, Hucitec, Sao Paulo, 1982, pp. 128-129. 2'Ribeiro, Darcy, op. cit, p. 201. 146 LUA NOVA rado para enfrentar os problemas da sociedade moderna, nao encontrouem sua elite nenhum setor dotado de uma visdo mais ampla e profunda de suas necessidades mais urgentes. A duras penas se obteve algum progresso no campo do ensino técnico e cientifico, destinado 4 preparacdo de operdrios e quadros para a producao de riquezas materiais. Mas deve-se reconhecer, sem medode incorrer em exageros, que a tinica grande escola de ciéncias sociaisque o pais dispés nas tiltimas décadas foi o préprio Partido Comunista. Ensinando, difundindo e divulgando o seu marxismo, aureolado pelo romantismo da ago revoluciondria e rigidamente enquadrado nas contrafagdes do leninismo- stalinismo, o PC encontrou no Brasil, como obstéculo a sua obra doutrinadora, ou a simples repressdo policial que Ihe aumentava os encantos de ‘verdade’ proibida, ou os velhos e ultrapassados ensinamentos do velho saber juridico, base da formacao das antigas elites dirigentes.”®* Nessas condigdes e tomando corpo primeiro através do prestismo e, em seguida, independentemente dele, o marxismo de matriz comunista foi capaz de formular uma visdo abrangente e complexiva do processo econémico e politico brasileiro. “Com base na vertente leninista do marxismo e nas teses da II Internacional para os paises coloniais e atrasados — sintetiza Guido Mantega -, toma corpo, ao longo dos anos 50, uma interpretacdo da dinamica social brasileira elaborada pelos teéricos do PCB (na época, Partido Comunista do Brasil), disputando a preferéncia dos setores progressistas do. pais com o Modelo de Substituigao de Importages. Trata-se do Modelo Democratico- Burgués, que buscava inspiracao nos textos cléssicos do marxismo e nos exemplos histéricos dos pajses socialistas para produzir a teoria marxista da Revolugdo Brasileira.”*? Nesse sentido, tendo gerado raros grandes intelectuais, sua agdo cultural no se restringiu a “difundir criticamente verdades j4 descobertas, ‘socializa- las’, por assim dizer; tranformé-las, portanto, em base de acées vitais, em elementos de coordenagao e de ordem intelectual e moral” * - 0 que por si sé ja seria um “fato filos6fico”, segundo a tese gramsciana, mas implicou em algumas “‘descobertas ‘originais’ ”, numa certa inova¢do cujo carter e limites se trata precisamente de determinar. Durante a Republica Liberal, os comunistas passam de uma interpre- taco quase acritica do capitalismo no momento em que emergem. para a legalidade - quando parecem confiar basicamente no desenvolvimento deste 22 Pedreira , Fernando, Margo 31 — civis e militares no processo da crise brasileira, José Alvaro Editor, Rio de Janeiro, 1964, pp. 176-177. 23Mantega, Guido, op. cit, pp. 158-159. Gramsci, Anténio, Concepedo Dialética da Histéria, Civilizagao Brasileira, Rio de Janeiro, 1978, 3 ed., nota IV do capitulo “Introdugéo ao Estudo da Filosofia e do Materialismo Histérico”, p. 13. Sobre a fisionomia intelectual do partido comunista_147 para resolver os problemas do pais, que sofreria entéo mais da auséncia de capitalismo do que de seu plenodesenvolvimento— para uma visdo apocaliptica € catastrofista, de 1948 a 1955, quando consideram o pafs em vias de se tomar uma mera colénia dos EUA ¢ s6 entendem factivel 0 desenvolvimento capitalista nacional sob hegemonia operdria. Nesses termos, o apelo formal & alianca com a “burguesia nacional”, se atende as injungdes da etapa de- mocratico-popular da teoria da revolu¢do ent4o em voga internacionalmente, contradiz o restante da formulagdo. A necessidade daquela é afirmada doutri- nariamente para ser negada tanto pela andlise que supostamente a fundamenta, como pela politica que deveria viabiliz4-la, Somente em 1958 € que reco- nhecem formalmente que o capitalismo brasileiro de fato se desenvolve, que 0 faz por trilhas nao previstas, e que, com ele, se afirma tendéncia democratizante do regime politico. Conectada com a variagao de juizos sobre as possibilidades internas do desenvolvimento capitalista, muda os juizos de valor sobre o liberalismo e a heranga liberal no Brasil. Essa mudanga, entretanto, ndo chega a fundar uma teoria correspondente, capaz de reavaliar a generalizada visio niilista do papel do liberalismo, que marca a historiografia. Sobretudo a visio de fundo do processo econémico — a teoria geral que organiza a percepgao.do pafs - permanece tendencialmente estagnacionista, tribut4ria do modelo de pais colonial e atrasado, o capitalismo sendo visto como obstaculizado por entraves estruturais, a revolugo sendo pensada sub specie de “libertagdo nacional”. Como indica Ignacio Rangel em nota autobiogréfica, “Aotempoem que foi escrita a Dualidade (refere-se ao livro Dualidade Bdsica da Economia Brasileira, editado em 1956 pelo ISEB), isto €, 1953, haviamos chegado, ao que ‘toca ao emprego das categorias do materialismo histérico, a um beco sem safda. Noutros termos, generalizava-se a consciéncia de que a histdria do Brasil desenvolvia-se por trilhas que nao eram, absolutamente, as admitidas pelo marxismo brasileiro — ainda ndo pulverizado nos numerosos marxismos que depois surgiriam - cristalizado no que, irénica ou carinhosamente, chamé- vamos ento de ‘linha justa’. Noutros termos, contrariamente ao que se pretendia, embora de crise em crise, isto é, ciclicamente, o pais se industriali- zavae se desenvolvia, e 0 fazia por caminhos nao mapeados ainda”. Acrescenta Rangel: “Em primeiro lugar, furtei-me a tentagdo de negar esse desenvolvi- mento — tendéncia, alids, patrocinada, em escala mundial, pelo préprio Stalin, em seu tiltimo livro, no qual se negava que 0 capitalismo, que, precisamente, entrava a crescer, ao vento da que hoje chamamos de ‘Revolucdo Técnico- Cientifica’ - fosse capaz de um verdadeiro desenvolvimento a ritmos absolutamente sem precedentes. Eu via que o Brasil se industrializava e, o que € mais, que o fazia sem passar pelas forgas caudianas da ‘Revolugao Agraria’ - capitulo considerado incontorndvel, da revolugao democratico-burguesa, 148, LUA NOVA preparatéria do caminho para o surgimento de um verdadeiro capitalismo industrial nacional.”** E evidente que o problema ndo se circunscreve ao PC. Sofisticagao e limites da andlise fazem parte de movimento mais geral - 0 da tomada de consciéncia das possibilidades do pafs - corporificado também em outras instiig6des complementares e opostas, como a Assessoria Econémica da Presidéncia da Republica, criada por Vargas, a Cepal, o ISEB, a revista Econémica Brasileira, o BNDE, etc. Enfrentando as questdes da hist6ria social e politica da classe opergria brasileira, a maioria dos investigadores preferiu pesquisar as déterminagdes socioldgicas, consideradas “estruturais”, de seu comportamento politico; ou entdo, noutra vertente, privilegiar as razdes de ordem politico-ideolégicas e “conjunturais” que marcaram aquele comportamento, a a¢do dos sujeitos politicos que pretendem representar a classe. Mais recentemente, tem-se optado por examinar a inscri¢do dos atores referenciada ao tipo de caminho que 0 capitalismo no Brasil percorreu para se implantar definitivamente na for- maco econdmico-social”*, Um estudo que pretende examinar os diferentes elementos que carac- terizam aquele marxismo e, por essa via, compor um retrato intelectual de elite politica vinculada a classe operdria, parte desse patamar e privilegiard o modo pelo qual esta reage, interpreta ¢ interfere no desenvolvimento capitalista. Na espécie, trata-se de avaliar o PC naoem funcao de um dever ser, da “revolugao” que ele nao quis ou ndo pode fazer, mas de examinar o papel que - com maior ou menor consciéncia — desempenhou no processo real, isto €, 0 do desen- volvimento capitalista no Brasil. Trata-se de pesquisar a a¢do reciproca entre odesenvolvimento econdmico-social ea concep¢4o de mundoea forma teérica que dele deriva, reconduzindo aquele marxismo e aquela formagao sécio- politica 4 sua “‘problematica historicidade”’’. O caminho, entretanto, é de natureza especificamente tedrica. O que se tem em vista nao é um desen- volvimento histérico no sentido estrito do termo, mas t4o-somente as suas linhas principais. “Trata-se de examinar apenas as tendéncias tipicas e os 25 CI, ‘Dualidades @ ‘Escravismo Colonial’ *, In revista Encontros com a Civilizagao Brasileira, 3, Civilizacao Brasileira, Rio de Janeiro, setembro de 1978, p. 89. Também Trotsky, uma influéncia decisiva na tormacao intelectual das correntes marxistas alterna- tivas ao PC, nega a possibilidade de desenvolvimento do capitalismo. Cr. capitulo 3, de Economia Politica Brasileira, de Guido Mantega, jd citada, Para uma avaliacao da bibliografia sobre o movimento operario e sindical, Vianna, Luiz Werneck, ‘Estudos sobre sindicalismo e movimento operdrio: resenha de algumas tendéncias*, In Cerqueira, Eli Diniz et all, O que se deve ler em ciéncias sociais no Brasil, 1 Cortez Editora/Anpocs, Sao Paulo, 1986. A expressao 6 de Ragionieri, Emesto, In ll Marxismo e L internazionale, Riuniti, Roma, 1972, p.6. Sobre a fisionomia intelectual do partido comunista_149 pontos nodais desse desenvolvimento histérico - aqueles que, do pontode vista da teoria, so caracteristicos e indispensdveis.”*° Quando Cruz Costa escreveu a sua Contribuicdo a Histéria das Idéias no Brasil julgava que “A Revolug4o politico-militar de outubro de 1930, a revolug4o constitucionalista de S40 Paulo, a eclosao do movimento integra- lista, a transformag4o deste movimento em fascismo nacional, em virtude de cirscunstAncias da politica internacional; o desenvolvimento do comunismo, 0 advento do Estado Novo, a guerra, o getulismo, a redemocratizacao de 1945 e © estado atual, de profunda crise, a que chegamos, s4o acontecimentos complexos demais para poderem ser agora examinados sem paix4o, pois neles earespeito deles sereflete a confusdo e a inquietagao que caracteriza o perfodo que se seguiu a primeira guerra mundial e que, talvez, se acentuou ainda mais apés 0 término do tiltimo conflito em que se empenharam os povos civili- zados.”2 Pelo menos no tocante ao objeto, sob varios aspectos, as paixdes politicas esto esmaecidas. A experiéncia recente da transi¢4o do autoritarismo a democracia fornece um ponto de comparac4o em relagdo a 1945, inexistente quando os primeiros estudos, os mais polémicos sobre 0 PC, vieram a luz, matizandoos jufzos de valor; ea distancia favorecida pelo esgotamento dociclo histérico e dos efeitos mundiais inovadores da Revolucao de 1917 € dos partidos da III Internacional, abrem a possibilidade de alcancar aquela perspec- tiva que Cruz Costa afirmava ainda ndo existir. Afinal, a coruja de Minerva s6 alga v6o ao cair da noite, 8 Ct. Lukdes, Georg, Pretacio, 4 Le Roman Historique, Petite Bibliotheque Payot, Paris, 1965, p. 12. Cruz Costa, Contribuigdo a Historia das ldéias no Brasil, Civilizagao Brasileira, Rio de Janeiro, 1967, pp. 411-412.

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