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Anoitecer
Em um dos seus mais belos poemas, “Anoitecer”, Carlos Drummond de Andrade coloca
o problema do medo. Este, aliás, é tema presente em toda a sua obra. As palavras de um
célebre critico literário servem de epígrafe a outro dos seus poemas, cujo titulo é nada
mais nada menos que “O Medo”: “Porque há para todos nós um problema sério. Este
problema é o medo.(Antonio Cândido, em Plataforma de uma geração”) .
Diz o poeta: “Em verdade temos medo. Nascemos escuro.” Insiste: “Fomos educados
para o medo,/ Cheiramos flores de medo,/ De medo, vermelhos rios/ Vadeamos.” Em
outro texto assevera: “O medo, com sua capa,/ Nos dissimula, nos berça.” E acrescenta:
“Fiquei com medo de ti/ Meu companheiro moreno”.
Num mundo vazio de amor e cheio de corrupção, o poeta identifica o medo como
resíduo de todas as coisas cotidianas: “De tudo ficou um pouco./ Do teu medo. Do teu
asco.” Em “ Versos à boca da noite”, confessa seus temores diante da efemeridade da
vida: “ Sinto que tempo sobre mim abate / Sua mão pesada. Rugas, dentes, calva... /
Uma aceitação maior de tudo/ E o medo de novas descobertas”.
O medo surge, ainda uma vez, ligado à imagem da sombra: “De repente, não sei como, /
fiquei triste sem querer, / Uma sombra veio vindo, / Veio vindo, me abraçou”.
Anoitecer
É a hora do descanso,
Mas o descanso vem tarde,
O corpo não pede sono,
Depois de tanto rodar;
Pede paz – morte – mergulho
No poço mais ermo e quedo;
Desta hora tenho medo.
Hora de delicadeza,
Gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos
Bicando em mim, meu passado,
Meu futuro, meu degredo;
Desta hora, sim, tenho medo.
Todo o poema se desenvolve num clima de entre lusco e fusco, no momento indefinido
em que o sol se vai e as sombras envolvem a cidade e seus habitantes. O conjunto,
construído sob intenso rigor de forma, é arquitetônico, prodígio de simetria e
correspondência entre as suas partes componentes.
Composto em quatro estrofes de sete versos cada, os três primeiros blocos são
construídos sobre um mesmo molde e temática, com signos diversos. Ao primeiro verso
(È a hora em que o sino toca), correspondem, com precisão matemática, o segundo ( É a
hora em que o pássaro volta) e o terceiro (È a hora do descanso). Ao sino (que toca),
corresponde o pássaro (que volta) e o descanso (que vem tarde). Se cada primeiro verso
dos blocos tem uma afirmativa (É a hora), cada segundo verso respectivo contém uma
negativa àquela afirmação (Mas aqui não há sinos...Mas de há muito não há
pássaros...Mas o descanso (não vem cedo) vem tarde.”
Todos os segundos versos dos três primeiros blocos mantém o mesmo esquema e fazem
as mesmas negações, usando signos poéticos diversos, embora análogos: sinos,
pássaros, descanso. Após a negação contida nos segundos versos, surge a revelação
dolorosa da realidade: “Há somente buzinas”, “Só multidões compactas” e “ O corpo
que ‘não pede sono”. Essas realidades enumeradas, buzinas, multidões, corpo, são
também conexas: as buzinas são aflitas, as multidões são compactas, e o corpo é tão
cansado que não pede sono, porém paz e morte, vontade de auto-aniquilamento.
Este modelo de reiteração do tema, através das várias estrofes e dos signos análogos tem
a finalidade de fortalecer a idéia da alienação, da exclusão, da rejeição ao individuo, no
interior do poema. A repetição, em Drummond, tem, por si mesma, uma violenta carga
emotiva e prepara o desfecho do poema: o anoitecer, a hora da paz, da ave-maria, do
ângelus, momento de ‘gasalho, sombra e silêncio’, existiria ainda no mundo pós-
moderno de perplexidades e individualismo exacerbado? Não, diz o poeta, não há mais
a hora da paz. O ambiente hostil da Selva de Pedras não permite a existência lírica dos
pássaros. Antes existe a hora dos corvos, das aves de rapina, dos predadores, o Corvo de
Poe a gritar ameaçador ‘never more’, o corvo que se põe a bicar o passado, o futuro, e o
degredo, isto é , o próprio fim do indivíduo. Daí, o desânimo: “Desta hora, sim, tenho
medo”.
Sob o aspecto fônico, o poema saiu vitorioso. Discretamente, o autor lançou mão de
insuspeitados recursos de arte poética, tornou os versos fluentes e de perfeita dicção.
Estes se encaixam em suas flexões ascendentes e descendentes de voz através dos quais
os recursos semânticos viajam sem nenhum abalroamento da sonoridade. As rimas
internas são produzidas por uma arte requintada. Para se ter uma idéia, o poeta explora a
identidade fônica entre a expressão ‘aqui não’ e a palavra ‘buzina’. No interior das
estrofes, ele recorre às assonâncias, aliterações, homoteleutos, toantes, etc. Como se
enganam os autores de prosas rimadas, ao suporem que o verso é livre e não produto de
uma arte submetida a leis rigorosas.
O sarcasmo, marca registrada do nosso poeta, não encontra lugar neste poema.
Drummond que, freqüentemente, ao longo de sua produção poética, cultiva a
irreverência, ironiza o semelhante, guarda distância e se põe numa linha de indiferença,
a contemplar o espetáculo do mundo, neste poema, partilha o sofrimento de todos nós. E
os versos são lançados em tom de lamento, com a nota cortante da melancolia e
comiseração.
Em Drummond, o medo surge no vácuo deixado pela ausência do amor, num universo
em que o homem é uma ilha de solidão num mar de indiferenças, para não dizer de
hostilidades: “Refugiamo-nos no amor,/ Este célebre sentimento/ E o amor faltou:
chovia,/ Ventava, fazia frio...”. O amor não encontra ambiente propício ao seu
desenvolvimento: chove, venta e faz frio. Tais intempéries, a chuva, o vento, o frio,
simbolizam a indiferença mútua entre os indivíduos, a frieza das emoções, a
incapacidade neurótica de oferecer e receber afeto.
Diante de tal quadro, o poeta reafirma o desamparo humano em sua errância diária e, ao
concluir seu discurso, reforça a afirmação inicial, ao se valer do aposto (“sim”), no
interior do derradeiro verso: “desta hora, sim, tenho medo.” Sem nenhuma obscuridade
de expressão, “Anoitecer” congrega em si o drama do homem contemporâneo. Poema
enxuto, de vocábulos concretos como um artefato feito de palavras necessárias, exatas e
imprescindíveis, reflete a desagregação das coisas e dos homens,