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Bruno P. W. Reis
UFMG, Departamento de Ciência Política
Pesquisador do CNPq
O
sistema político que hoje opera no Brasil, nascido da transição
história – o que deveria torná-lo objeto de justas homenagens, por mais que parte desse
sucesso possa ser atribuída também a circunstâncias externas. Porém, quando olhamos
à nossa volta, nas ruas, nos jornais, o que encontramos não é exatamente uma
quanto ao futuro, cinismo generalizado nas ruas quanto aos políticos. Essa situação
inevitáveis oscilações de humor da opinião pública – afinal tão volúvel – parece haver
*Este artigo deve a sua existência à confiança generosa de Antônio Octávio Cintra, que perseverou no
convite mesmo quando eu pareci fraquejar quanto à capacidade de escrevê-lo em tempo hábil. Ele tem sua
origem em um Seminário Nacional sobre Ética nas Eleições Municipais, realizado na Câmara dos
Deputados em maio de 2004, onde tive ocasião de tomar parte em um painel que discutia a reforma
política, juntamente com o deputado Ronaldo Caiado e o senador Jefferson Peres, sob a coordenação do
deputado Chico Alencar. Na última hora, o texto chegou a beneficiar-se também de sugestões tópicas de
Dawisson Belém Lopes, Fábio Wanderley Reis e Mário Brockmann Machado. Quero agradecer a todos, e
muito especialmente a meus alunos das disciplinas “Política IV” e “Política Brasileira II” no Curso de
Graduação em Ciências Sociais da UFMG, que ao longo destes dois anos me auxiliaram pacientemente no
esforço de amadurecer algumas idéias vagas sobre o funcionamento da política no Brasil contemporâneo.
É claro, porém, que todos os erros, lacunas e ingenuidades aqui presentes são de minha exclusiva
responsabilidade.
algo mais a se averiguar nas relações entre a “estrutura” e a “conjuntura” em nosso
caso.
I. A ESTRUTURA
quanto aos méritos e vícios de nosso arranjo institucional. Preliminarmente, creio que
não será de todo injusto dizer que a literatura sobre a operação de nosso sistema
sua relação com o Poder Executivo – terá sido despertada de seu “sono dogmático”
variadas formulações ou ênfases – tinha ampla circulação antes deles: que nossos
Deputados, eles mostraram que o governo brasileiro tem obtido, desde 1988, altíssimo
1 Trata-se de uma série extensa de artigos publicados em co-autoria desde meados dos anos 90, por
variados veículos. Uma amostra importante dos trabalhos mais relevantes encontra-se reunida em
Figueiredo e Limongi (1999). Uma síntese recente do ponto de vista dos autores, que resulta numa
vigorosa manifestação de ceticismo quanto à necessidade ou a conveniência de uma reforma política, pode
ser encontrada em Limongi (2006).
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plenário de maneira disciplinada quanto aos encaminhamentos dos líderes, e
consistente com uma classificação espacial de sua posição ideológica no eixo esquerda-
direita; que o plenário é, portanto, previsível – e que o governo brasileiro tem, tanto
quanto qualquer outro governo, conseguido aprovar aquelas matérias pelas quais
efetivamente se empenha.
Abranches. Pois a principal razão por eles apontada para a estabilidade e o sucesso dos
governos brasileiros em sua relação com o Congresso reside em dispositivos
a experiência democrática brasileira até ali, entrecortada que fosse. Esses novos
dispositivos incluem uma considerável centralização de prerrogativas nas mãos tanto
Colégio de Líderes, bem como de uma série de novas competências dos mesmos
nossos traços institucionais básicos. Mas se esses dispositivos excepcionais são de fato
necessários para a produção de maiorias em nosso sistema, então se pode presumir que
Congresso Nacional, tal como é hoje constituído, de fato se enredaria numa trama
Limongi não se cansam mesmo de lembrar, a propósito, que boa parte da literatura da
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tanto desesperançados sobre as perspectivas do caso brasileiro (Linz 1990, 1991; Sartori
Assim, permanece um problema – ainda que ele talvez soe muito “acadêmico”
com lista aberta), o preço a ser pago é concentrar de maneira dramática o controle da
agenda legislativa nas mãos de uns poucos atores estratégicos (sobretudo nas do
próprio Presidente da República), qual é o propósito de se manter tudo isso? Pra inglês
convincente que nosso sistema funciona – e que portanto é possível que essas coisas
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dispersam os pontos de veto; dispositivos de natureza majoritária os concentram.
faz remontar até o século XIX, pelo menos no que toca a sistemas partidários (Lijphart
1999: 64).
controvérsia em que eles se vêem metidos já há uma década consiste em afirmar que o
nosso governo governa – sugerindo uma polêmica implícita contra uma tese inicial de
fará uso do aparato técnico que ele mobiliza. Apenas entendo que, embora vazada em nível mais baixo de
abstração, a dimensão analítica subjacente aos critérios de classificação de Lijphart é análoga àquela de que
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freqüência disponham de delegações do parlamento para governarem com ampla
facto, não é irrelevante o fato de que seu mandato deve-se exclusivamente à confiança
parcela dos parlamentares que seja suficiente para deslocar a maioria prevalecente no
político.
praticável, pelo menos no curto prazo. Talvez, porém, esse custo ainda seja
relativamente alto, ou – dito de outra forma – talvez haja razões para crer que ele possa
ser significativamente reduzido: pois receio que o preço pago por nossa
agenda pública, mas também a capacidade de fazê-lo sem prejuízo grave para o
exercício do veto por minorias relevantes em pontos cruciais do processo – que force a
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eventual maioria a ouvi-las. Caso contrário, correríamos o risco de endossar um
É difícil alegar que nosso sistema se saia bem nesse escrutínio: o equilíbrio que
logramos alcançar nos joga rumo a extremos. De um lado, como Figueiredo e Limongi
mesmo eleito por voto direto de âmbito nacional em dois turnos. Do outro, dispomos
de turno único, com suplentes anônimos que não chegam a disputar a eleição de
Legislativo”, assim como onerar o acesso a postos ministeriais, talvez pela perda do
mandato parlamentar (Santos 2006: 295). Pessoalmente, como está claro, compartilho
no Brasil.
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parlamentares, de um lado, e regras fortemente concentradoras na regulação da
Bernardo Mueller (2003) já se referiram em linhas análogas àquilo que Lucio Rennó
eleitoral brasileiro, que não obstante gerariam um regime político estável e equilibrado.
Acredito que, até pela percepção externa das justificações normativas do regime,
combinássemos um sistema eleitoral que não se permitisse dispersar tanto o poder com
II. A CONJUNTURA
O sistema político hoje vigente no Brasil porta consigo, assim, uma profunda
ambivalência em sua própria lógica constitutiva: em seus traços mais grossos, visíveis à
engrenagens mais miúdas, discerníveis apenas por um exame mais detido, descobre-se
especialista ou o insider, parecem ter-se constituído até aqui em sua condição mesma de
estabilidade.
operação. Não fosse a possibilidade de vir a converter-se ela mesma num fator de
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corrosão e, no devido tempo, de risco para o sistema cuja operação a princípio
Sem dúvida, convém tomar com alguma cautela o clima que se depreende das
conversas nas ruas, das leituras dos jornais e dos noticiários da tevê – sobretudo num
país tão marcadamente desigual como o Brasil, e que acaba de reeleger seu presidente
com 60% dos votos. De fato, certo desencantamento quanto à política pode mesmo ser
do processo se torna assim mais desconfiada dos políticos, menos maniqueísta em sua
pago após vinte anos tão repletos de escândalos políticos – ainda mais depois que a
safra mais recente de denúncias engolfou aquele que era aos olhos de muitos a última
vestal da cena política, o PT. É possível mesmo alegar que, em certa medida, essa
de controle e de uma propensão crescente à vigilância interna e externa dos atos dos
bastante para dividir a história do debate recente sobre reforma política no Brasil em
dois momentos: antes e depois da crise política de 2005. Até o escândalo, a reforma
política, independentemente do juízo que se faça sobre sua real importância para o
país, era antes de mais nada um esporte cultivado por alguns intelectuais e uns poucos
políticos especialmente insatisfeitos com as regras vigentes. De fato, é justo admitir que
sua importância terá sido ocasionalmente exagerada por espíritos mais inclinados a
aderir com entusiasmo a fórmulas mágicas, verdadeiras panacéias que – por encanto –
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evocavam-se desenhos que, numa penada, reorganizavam o sistema político de alto a
baixo, sem atenção nem ao controle dos efeitos eventualmente contraditórios de tantas
sistema político junto à opinião pública; do outro, uma disseminação crescente, entre
solução de nossos males por uma reforma política. Em favor dos meus colegas, deve-se
admitir que essa reforma é freqüentemente evocada por seus defensores de uma forma,
sim, meio mágica: a política tem problemas; então, reforme-se a política, e as coisas vão
melhorar. Infelizmente, isso nem sempre é verdade: pois, por pior que esteja a situação,
ela sempre pode piorar. A sensibilidade para essa possibilidade é uma das facetas mais
previsíveis de antemão.
desses anos, sob essa atmosfera cética. O problema é que o predomínio desse
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realisticamente a governabilidade), terminou – ao sabor das polêmicas travadas – por
suas mazelas (que, afinal, certamente também existem).3 Receio, portanto, que aquela
aproximar do extremo de tratar com reservas a própria idéia de reformas políticas – tese
que, tomada a sério, nos condenaria ao clã e ao tacape por toda a eternidade, com a
tanto defensiva (foi possível ouvir colegas de profissão na televisão a alegar que a crise
pautar pela apropriação mais imediatamente jornalística da crise (quem sabia o quê...
quem seria punido ou não... os desdobramentos para 2006...) e não sublinhou com a
Bem entendido, não se trata aqui de mais um esforço voltado para livrar a cara
dos envolvidos no episódio, com a surrada alegação genérica de “crise sistêmica”. Mas,
muito simplesmente, apontar que um aspecto relevante da crise de 2005, raramente
mencionado, diz respeito ao fato de ela ter sido uma crise com importantes
ameaça mais palpável à normalidade institucional. Pois a crise de 1992 dizia respeito
política brasileira de hoje me foi oferecida por Octávio Amorim Neto, em conversa telefônica já há vários
meses. O que não quer dizer, naturalmente, que posições contrárias, ou intermediárias, não existissem.
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desfecho, o sistema político podia gabar-se de haver detectado e neutralizado a atuação
cerne do sistema político – e não poderiam ser sanadas nem mesmo se Lula caísse, ou se
todos os 513 deputados fossem cassados. Pois a crise dizia respeito, afinal, ao
relacionamento entre os poderes Executivo e Legislativo, e − dada a linha de defesa
Dificilmente poderia haver dois temas mais sensíveis para a operação das democracias
com a mera troca dos fulanos encarregados. De fato, muitos de nós embarcamos nesse
ascensão de Lula ao poder. Porém, assim como devemos ter aprendido que o combate
problemas graves em pontos tão sensíveis de nosso mapa institucional clamam por
soluções institucionais – e que, portanto, a crise de 2005 nos defronta com o imperativo
de revermos as regras que emolduram as relações Executivo-Legislativo, assim como o
ocasionalmente pode recorrer a esses mesmos recursos para irrigar sua influência junto
Para ficar com apenas um exemplo bastante familiar de trabalho que busca esse equilíbrio, ver Fábio W.
Reis (2003).
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espúrias provenientes das naturais (e, em nosso caso, profundas) desigualdades
sistema político é vil – e com tanto mais força quanto mais a estabilidade do sistema
vier a depender em alguma medida dessas práticas. Isso, para dizer o mínimo, não
o preço desse empenho for o risco de eventual colapso do sistema como um todo na
próxima esquina.
2005. Pois o rei está nu. Já estava antes, alegar-se-á: “todo mundo” sempre soube que
mundo, e de precário controle entre nós. Mas agora alguém já gritou, pra todo mundo
ouvir, que o rei está nu. Deu no Jornal Nacional durante meses, o próprio Presidente
falou que todo mundo faz, o ex-Presidente falou de joio e trigo (Reis 2005: 13). Ou seja,
agora, além de todo mundo saber que o rei está nu, todo mundo sabe que todo mundo
sabe − e ninguém pode mais, portanto, fingir não ter percebido. Conforme a
circunstância, isso pode fazer toda a diferença.4
teria cumprido melhor seu papel na crise se tivesse tratado de legislar. Outras
4Essa situação em que todos sabem que todos sabem algo − chamada “common knowledge” (“conhecimento
comum”) pela teoria dos jogos − tem efeito crucial nas possibilidades de ação coletiva espontaneamente
coordenada, e distingue-se de maneira sutil, porém importante, da outra, em que todo mundo sabe de
algo, mas não sabe se os outros também sabem. Ver Michael Chwe (2001) para um estudo saboroso que
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instituições da República compartilham com ele a competência de investigar. Mas só o
Congresso Nacional poderia ter legislado na matéria. Apesar de ser justo que se diga
que, toda vez que um político falava em reforma política durante a crise, havia sempre
turbulências nos próximos anos. Se não, alguma conjuntura adversa poderá nos
III. A REFORMA
brandida com mais força, tanto pelos seus defensores de sempre quanto pelo próprio
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formado também pelo Ministério da Coordenação Política e pela Secretaria-Geral da
política no país” (alguém viu?). Do outro lado, alegavam os mais cautelosos que não
seria muito adequado realizar uma reforma política num momento de crise como
dois anos antes funcionara ao longo de 10 meses no lugar devido: a Câmara dos
Deputados. E ainda executara com vagar (26 reuniões, sete audiências públicas) a
mesma tarefa que a comissão do Executivo se propunha fazer às pressas, em 45 dias:
proposta ampla e unificada do tema” (Soares & Rennó 2006: 14). Parece-me inequívoco
que a atmosfera que hoje cerca as discussões sobre o funcionamento do nosso sistema
político. Até por anteceder o plebiscito sobre sistema de governo, o leque das opções
cogitadas era muito mais vasto, e abarcava literalmente qualquer modificação que se
perplexidade na grande maioria. Naquele contexto, terminei por adotar como minha a
posição comparativamente sóbria e prudente então defendida por Jairo Nicolau (1993).
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Sem recusar liminarmente a discussão de mudanças no sistema, Jairo preconizava
cautela: antes de partirmos para uma reorganização drástica que ninguém pode saber
onde vai dar, seria bom nos dedicarmos a melhorias em nossa representação
São dois pontos que violam a própria idéia de proporcionalidade que subjaz ao
sistema. Sua premissa básica (idealizada que seja) é que os partidos representam,
grosso modo, diferentes correntes de opinião existentes dentro da comunidade política.
É por isso que os deputados se elegem dentro de um quociente que porventura tenha
sido alcançado por seu partido (ou coligação). Seria fácil minimizar as pequenas
uma vez eleito, o deputado se torne o dono da cadeira por ele ocupada. Se o deputado
distribuição das cadeiras deixa de guardar relação necessária com o resultado eleitoral
partidárias, não podemos ter dúvidas: ela será negociada. Se, ao contrário, a cadeira
pertence ao partido, imediatamente cristaliza-se no resultado eleitoral uma relação de
relacionado, assim como mitigar eventuais efeitos indesejáveis que toda modificação
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legal traz consigo. Mas atém-se de saída a propor apenas legislação infraconstitucional,
com vantagens do ponto de vista da inteligibilidade eleitoral pela criação da figura das
sobrevivência política de legendas menores). Mas, acima de tudo, pela atribuição dos
fechada nas eleições de deputados e vereadores – esta sim, uma inovação mais
representação política por partidos, e mais comumente adotada mundo afora que a
nossa lista aberta. Esta última medida tenderia, em princípio, a produzir um desejável
prazo, a própria penetração social dos partidos, pelo simples protagonismo que eles
passam a exercer nas campanhas eleitorais. E ainda substitui com vantagens, nesse
vigente (Soares & Rennó 2006: 14-5), não será exagero dizer que o projeto se apóia
fundamentalmente em dois pilares: o primeiro (sua proposta mais ousada) é o
entregar dinheiro público na mão dos políticos para fazerem suas campanhas; a lista
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III.1. A Lista Fechada
alegar que ela fortalece os partidos ao favorecer seu protagonismo na cena eleitoral, já
insistem em que ela é mais democrática, já que atribui ao eleitorado em geral uma
ordenação da lista.
É inútil tentar dirimir a disputa nesses termos, já que ambos os lados estão
do poder e produção de poder. Pois queremos conter o exercício do poder para que ele
não seja arbitrariamente tirânico; mas ao mesmo tempo queremos que ele seja
efetivamente exercido, para permitir à comunidade política que persiga com eficácia
(Reis 1984: 11-5). De fato, não é outro o dilema subjacente aos critérios empregados por
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país, desconectando em larga medida a representação legislativa de sua origem
em nossas eleições parlamentares que tivesse resultados mais autoritários que o nosso
coesão organizacional, a identidade eleitoral e a força política dos partidos, que serão
É comum a alegação de que o brasileiro vota nas pessoas, e não nos partidos. E
que seria necessário dispor de partidos mais fortes para podermos passar a listas
fechadas. A questão, porém, é: como fortalecer os partidos com a atual competição com
listas abertas? Não está escrito no DNA dos brasileiros que eles têm que votar nas
pessoas. É a regra eleitoral que lhes diz isso. Talvez se possa alegar justamente o
contrário: dado o alto protagonismo reservado aos partidos nas campanhas com listas
partidos muito mais fortes para podermos nos dar ao luxo de recorrermos a listas
algo (e o sistema proporcional presume), por que não determinar que cada partido deve
fixar e oferecer sua chapa, apresentar-se como organização política, e não como coleção
médio prazo, mesmo com todas as dores do parto que fatalmente suscitará.
fato vai pela cabeça de muita gente quando se fala em listas fechadas. Embora se
dissesse favorável à idéia, o senador não deixou de sublinhar sua reserva: “É mais fácil
Com todo o devido respeito ao senador Peres, tenho sérias dúvidas quanto a
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atingir milhares (ou milhões) de pessoas, o dinheiro disponível se torna uma variável
dinheiro amealhado por cada um. Eleições hoje, e cada vez mais, decidem-se pelo
tornam o dinheiro tanto mais decisivo quanto mais aumenta o tamanho do eleitorado
chamado a decidir.
E é preciso também não perder de vista que uma convenção partidária pelo
menos é uma instância intermediária em que uma decisão política é tomada por
pessoas que vão ter de se responsabilizar publicamente por ela. Ou seja, representa um
foco de responsabilização, com possíveis sanções imediatas a serem produzidas já na
Como lembrou recentemente Jairo Nicolau (2006a: 135), se as convenções hoje são de
não diminuída. Para alcançar todo o eleitorado é preciso muito dinheiro. Sem ele, não
há mágica que se possa fazer. Daí a sensação de que o processo eleitoral é cada vez
menos idéia e cada vez mais propaganda – objeto de tantas queixas hoje em dia. Em
parte isso é mesmo inevitável, já que o universo que uma campanha eleitoral busca
alcançar pode chegar a dezenas de milhões de pessoas, e quando se opera nessa escala
mnemônicos, compra de segundos na televisão etc. Mas é preciso reconhecer ainda que
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ser muito eficaz no marketing para vender o seu sabonete, com tanto sabonete parecido
na praça. O jogo torna-se, em larga medida, uma disputa privativa entre celebridades
diversas (que conseguem ser “top of mind” no meio daquela multidão de candidatos
candidatos).
seus efeitos subseqüentes, deve-se notar a sua causa comum, que é o fato de que a
campanha com lista fechada é dramaticamente distinta de uma campanha com lista
aberta. Trata-se de uma competição entre partidos, protagonizada pelo primeiro nome
disputas internas de cada partido podem até se exprimir com força nas convenções,
que podem ser bastante turbulentas (o que não seria mau). Mas, depois de montada a
lista, nada mais resta ao candidato senão fazer campanha pelo seu partido, em nome
do partido, em favor da plataforma parlamentar do partido – mesmo a contragosto. Em
chefes partidários, e que transfere toda disputa interna para o “cada um por si” das
se apresentar como um quadro do partido, que vai fazer o que a liderança determinar
em Brasília. E, no entanto, mostra a literatura, é exatamente isso que ele vai fazer.
desesperado em busca de um slogan feliz o bastante para, com sorte, permitir-lhe ser
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lembrado por alguns eleitores a mais no meio daquele oceano. É impossível falar a
policial, fiéis votam em pastores etc. Todos prometendo engajamento em causas que
depois não poderão perseguir – já que depois será fatalmente necessário concentrar
prerrogativas nas mãos dos líderes e do governo para poder dar um jeito de o plenário
porém mantendo-se a lista aberta. Mas hoje me parece que para partidarizar as
qualquer, e atribuir essa vaga ao partido. Com a lista fechada, se propõe – mal ou bem
– uma bancada a ser eleita. Assim o candidato comparece perante o eleitor, e assim o
imaginar a produção de um plenário menos disperso do que com a regra atual. E não
Cabe também, sem dúvida, cogitar mais seriamente do meio-termo que consiste
na idéia de uma lista flexível: o partido elabora na convenção uma lista previamente
sua própria ordenação. Não é necessariamente má idéia. Permanece assim nas mãos do
do resultado de uma convenção que tenha sido mal recebido pelos simpatizantes de
determinado partido. Mas deve ser dito de antemão que, nos países que adotam
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alguma forma de lista flexível (Áustria, Holanda, Bélgica, Suécia, Dinamarca e
da vigência da lista aberta, pois aumentam os incentivos para que os candidatos peçam
votos para si mesmos, e não para a sua lista. O que seria em princípio indesejável, se se
listas fechadas é a alteração mais visível, e portanto a que mais nitidamente modificaria
a paisagem dos processos eleitorais no Brasil. Porém, pelo que se pode depreender da
presentes em cada lista aberta à idéia de umas poucas chapas concorrentes a serem
De fato, é difícil imaginar tema mais relevante, mais árido, menos estudado e
Para além das nossas próprias desventuras nessa área, escândalos com “caixa dois” de
envolvendo um volume de recursos ilegais muito inferior àquele que veio à tona nas
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modestamente tratar pelo menos de mobilizar alguns aspectos normativos implicados
separá-los na medida em que afirma serem todos iguais perante a lei, e ao mesmo
desafio que disso resulta, portanto, consiste em impedir que as assimetrias de recursos
acesso ao poder político – caso em que toda promessa de igualdade perante a lei
redundaria numa grande fraude. A ambição da separação total entre as fontes de poder
democracia moderna.
Deve ser dito com clareza que o cumprimento desse ideal é uma tremenda
exigência posta sobre a máquina do estado. Pois exige que se evite qualquer tipo de
capacidade de impor aos mais ricos o consentimento a decisões favorecidas por uma
eventual maioria pobre. Em seus traços mais simples, a solução institucional formal
nem as decisões deles decorrentes. Para o preenchimento dos cargos, fazem-se eleições;
fazendo caso omisso da possibilidade de compra das decisões por simples atos de
resultados eleitorais – mesmo quando tudo corre bem, quando eleições são feitas e seus
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resultados são acatados –, o problema fundamental que perdura é: como evitar que as
político em favor das pessoas mais ricas? Como evitar abuso de poder econômico nas
de haver atingido essa meta. Acho que podemos, sem problemas, considerá-la de
antemão inalcançável. O poder econômico e o poder político são como sistemas de
plano mais operacional, que diz respeito – entre outras coisas – justamente ao
suspeição intuitiva que paira sobre o sistema eleitoral em toda parte faz com que a
tese, o maior ou menor sucesso nessa tarefa dependerá de uma combinação mais ou
suas conexões com o desenho do sistema eleitoral, segue como uma das agendas mais
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trabalhos de David Samuels, voltada principalmente para o caso brasileiro),5 um
campo conceitual que relacione possíveis efeitos recíprocos entre sistemas eleitorais e
2.679/2003. Até porque pouco se sabe sobre a matéria, em termos comparativos. Como
O Brasil, juntamente com os Estados Unidos, é um dos poucos países que permitem
princípio, atraente. De fato, uma solução quase impositiva ante o propósito de se isolar
atenderem aos interesses dos eleitores mais ricos – a começar pelas grandes empresas.
E não só estes, mas simplesmente quaisquer candidatos que forem, eles mesmos, mais
ricos que os demais. Embora nos habituemos a tratar com naturalidade o fato de que
um bilionário tem maiores chances de se eleger que um bóia-fria, é preciso lembrar que
não há qualquer justificativa, em princípio, para que isto seja assim. Dadas as
5 Uma sinopse recente de seus resultados e pontos de vista pode ser encontrada em Samuels (2006).
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candidatos, mas mesmo à proibição da utilização de recursos próprios em campanhas –
ter em conta que a proibição, por si só, não extinguirá o recurso a fontes privadas. Se
Minimizar, portanto, o chamado “caixa dois”. E ninguém pode se iludir com a crença
caixa dois. Até porque o caixa dois eleitoral é proveniente do caixa dois de empresas –
e existirá forçosamente enquanto este existir. É preocupante, sob esse aspecto, o fato de
mercado negro poderoso: assim, a Lei Seca alavancou o poder da Máfia nos Estados
Unidos, e a criminalização do consumo de drogas criou a indústria do narcotráfico. Por
outro lado, a mera alusão ao narcotráfico nesse contexto nos deve sensibilizar ainda
sistema político: trata-se, afinal, de coibir influências espúrias não apenas de grandes
empresas – mas do próprio crime organizado. Idealmente, portanto, o financiamento
como a instituição das listas fechadas (bem mais controláveis pelos tribunais eleitorais),
integral da lista), até a aprovação de uma reforma bancária e tributária que induza
garroteamento que viesse a desmoralizar a lei. Os sete reais por eleitor preconizados
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Quase um bilhão, mas ainda assim apenas cerca de 20% daquilo que se gasta hoje em
Isso é um mérito, mas também um ônus. O risco que se corre é aumentar o incentivo ao
caixa dois pelo fato de se introduzir um garrote importante sobre o orçamento das
exclusivamente público.
máximo de contribuições permitidas (em moldes análogos aos sugeridos por Samuels
2006: 151-2) e produza um processo que talvez possa ter como horizonte o
Acredito não termos resposta precisa, ainda, quanto à melhor maneira de se fazer isso
no Brasil.
Como se faltassem ralos por onde escoar o dinheiro público a partir das relações de
dependência que o sistema atual estabelece entre políticos eleitos e seus principais
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argumento mais “freirinha” que se ouviu ali aquela noite. Se agentes privados se
dispõem a irrigar os bolsos de ocupantes de cargos públicos com recursos que serão
num eventual financiamento público, certamente é porque esses agentes esperam obter
levantam o dinheiro privado de que precisam para ganhar seus votos; e os agentes
privados ganham dinheiro público (maior que o investido, é claro) com as decisões
desses políticos.
de alcance local (“pork barrel”) e os votos por ele obtidos numa tentativa de reeleição.
Segundo os resultados de Samuels, a votação dos deputados guarda relação apenas
indireta com as obras que ele porventura consegue canalizar para suas bases. A
atuação parlamentar no Brasil decorreria não de uma relação de troca entre deputados
e seus eleitores, mas antes de uma relação de troca entre deputados e os financiadores
de suas campanhas (Samuels 2002: 861).
IV. PERSPECTIVAS
memória do eleitor quanto ao voto dado apenas um de seus sintomas. Suas causas
sistema eleitoral despolitizador que dissolve a disputa num cipoal de nomes do qual
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ninguém pode se aproximar de maneira razoavelmente informada – a não ser por
criando um vácuo político que – menos mal... – tem sido preenchido pelo
minoria terá de enfrentar uma negociação mais dura com o Congresso se quiser
governar com maioria. Talvez, porém, uma vez consumada, ela se mostre uma
menos turbulentas. Como vimos, as mazelas de nosso regime têm sua razão de ser, nos
Agora, a exposição dos seus vícios ao escrutínio público, em plena luz do dia, à vista
considere que os malfeitos estão sendo mais prontamente expostos e coibidos do que
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era nosso costume, existe a possibilidade de que essa exposição desmoralize o regime,
instituições.
excepcionais que o Executivo brasileiro acumula. Mas, para que isso não seja feito ao
preço de uma paralisia geral do sistema, será prudente minimizar a dispersão de poder
altos.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
32
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