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Como falar de sons e de música?

Esta comunicação percorre o exercício de descrição de um som, a título de


exemplo ilustrativo de alguns problemas colocados aos compositores e
aos ouvintes de música eletroacústica.

A disponibilidade da composição eletroacústica para avaliar o


aproveitamento de qualquer som, e sua inesgotável capacidade de alterá-
lo com processos de transformação em estúdio, são responsáveis pela
explosão da unidade da nota, estendendo-nos o problema da
intradutibilidade e da dificuldade de estabelecer algumas fronteiras
conceituais sólidas. Esta constitui uma das marcas mais interessantes do
repertório eletroacústico.

Os problemas recorrentes durante todo o aprendizado da música


eletroacústica sempre remeterão a esse conflito. A falta de notação e de
unidades mínimas para análise confronta-nos com a necessidade de uma
linguagem para falar destas músicas. O problema até parece dar a volta
em torno de si mesmo, já que a dificuldade de descrição cresce em razão
directa ao grau de interesse pela peça.

Lembrando o compositor Michel Chion ('L'Art des Sons Fixés', Fontaine,


1991): 'Quanto maior a dificuldade de se analisar uma obra
[eletroacústica], melhor ela atinge os objectivos do compositor'. Para a
tarefa de descrição do acontecimento sonoro ou musical, a abundância de
signos e de palavras oferece apenas apoio parcial, o mais das vezes sob a
forma de esquemas aproximados, metáforas e até belos esforços
poéticos.

Em nosso percurso tentaremos agora, com o auxílio de vários recursos


que a língua falada e escrita oferecem, descrever um som - ou melhor
dizendo, criar a representação mental de um 'evento'. Prefiro 'evento',
aqui, por sua imparcialidade qualificativa - ou valorativa - diante da dupla
'som' e 'música'. Evento tanto pode remeter ao sonoro quanto ao musical.
Se bem que estejamos dispostos a reconher possibilidades de distinção
entre o que é 'sonoro' e o que é 'musical', nossas pesquisas neste capítulo
revelarão que a pergunta do título (Como falar de sons e de música?)
encerra outra: onde estaria o limite entre os dois termos?
Suponhamos que o evento X tenha acontecido em nossa percepção e que
queiramos comunicar nossa experiência a alguém que não tenha ouvido X.
Começando pelos valores quantificáveis, diremos que este som tem uma
duração de um segundo e meio e que seu parcial fundamental é
inicialmente um lá1 (220 Hz para perfeccionistas), glissando
descendentemente pouco mais de um semitom. Daqui em diante tudo se
complicará, pois se quisermos falar do timbre, ou empregaremos
redundâncias ('...dizer que o timbre da flauta é aflautado?' pergunta
Schaeffer no 'Solfège de l'Objet Sonore', éd. du Seuil, 1967), ou
inventaremos metáforas ('parece a gravação de um pássaro, reproduzida
em rotação mais lenta', diríamos em nosso senso comum).
Entretanto, com o auxílio de redundâncias, metáforas e expressões
schaefferianas, conseguiremos mergulhar no interior do evento e falar de
seu ataque súbito 'como uma martelada', e de sua extinção quase lenta
em um diminuendo linear. O corpo de X é ligeiramente ondulado,
lembrando um trémulo, ou um vibrato, só que a ondulação não é tanto de
volume ou de altura, mas de massa. È como se a massa espectral (todo o
conteúdo do som) estivesse sendo filtrada numa mecânica ondulatória
recortando uma franja regular na região mais aguda. A massa em si não é
tónica, isto é, não propicia a percepção de X como tendo altura
determinada. Embora se perceba distintamente uma fundamental, os
parciais de X não se distribuem harmonicamente, isto é, não mantêm
entre si os intervalos encontrados na série harmónica que garantem a
consistência da fundamental. Portanto, este é um som de massa complexa
'como a de um som de sino' (para usar outra metáfora), e cujo calibre
largo ocupa boa parte da tessitura, acumulando mais densidade na região
médio-aguda. Porém a massa não chega a ser lisa, como por exemplo a de
um som de sino: uma pequena granulosidade dá ao evento sua textura
rica, quase táctil, talvez irregularmente distribuída (por ser aperiódica)
entre o fim do ataque e o início da extinção. Apesar de ser um som
iniciado por ataque percussivo, o corpo granuloso de X mostra sinais de
tratamento por atrito. A irregularidade dos grãos é comparável àquela
provocada pela fricção de um arco, porém muito mais larga do que a dos
grãos dos arcos que conhecemos. Sugere uma causalidade compósita de
percussão com fricção por um arco bem maior do que os normais.
Até aqui esteve bastante correcto empregarmos critérios schaefferianos
adicionados a algumas metáforas. Estivemos apenas falando da
apreciação de um evento isolado de um contexto musical. No entanto,
mesmo isolado nosso evento tem ainda outras características a descrever
que pedem outras abordagens. Existe um dinamismo - uma história
energética - que precisará ser explicada em uma dimensão mais ampla
que talvez já resvale no âmbito musical. Reconhecemos que a maioria dos
eventos nos falam para além de critérios plástico-táteis referentes a suas
manifestações anatómicas. Precisamos agora estudar suas fisiologias.
Junto com a energia da ondulação em nosso evento, percebemos também
uma dinâmica espacial - indissolúvelmente ligada à percepção da filtragem
e do glissando - que o faz remeter à percepção de fontes sonoras
deslocando-se no espaço. (O efeito Doppler, causado pela matemática
entre a velocidade do som, a das frequências deste e a distância entre
fonte e observador, é aquele efeito glissante que ouvimos na passagem de
um carro, por exemplo). O dinamismo de certos sons é propiciado por
nossa interpretação de seu comportamento - de sua lógica - como diz
François Bayle associando-se à teoria/poética pictórica de Paul Klee.
Surgem assim as classes dos eventos que têm um lógica líquida (como os
sons de água...), contrapostos às dos de lógica sólida (como os sons de
percussão com ressonância). Haverão sons com lógica interna auto-
acumulante e outros que se dispersam, sons de intensificação energética e
sons de rarefacção e desintegração.
Observado deste modo, nosso evento X apresenta uma energia
dissolvente, isto é, o máximo dela estava no seu instante inicial. Sua lógica
não é exactamente líquida nem portanto sólida: há algo de 'aéreo' em sua
expressão, alguma coisa intimamente ligada à sua aventura de sujeito de
uma trajectória. Neste ponto - ao enunciarmos a introdução de uma
história energética - vemos chegar a hora de pensarmos no problema
fundamental. Ao falarmos de 'energia', de 'lógica', de 'trajectória', de
'tensão', não estaríamos passando de um contexto morfológico sonoro
para um outro, menos localizado e menos limitado? Não pertenceriam
essas descritivas de expressões a um contexto de eventos mais
propriamente classificáveis como musicais? Allegro con fuoco é expressão
que não precisa ficar limitada a denominar andamentos de trechos
inteiros, pois pode também falar do modo de expressão de um evento. Em
outras palavras: a interpretação do 'sonoro' pode implicar na utilização de
conceitos que talvez estejam na base da experiência 'musical'. Foi por esta
razão que preferimos a palavra 'evento' ao começarmos.
Tantas perguntas permaneceram abertas desde o lançamento do 'Traité
des Objets Musicaux', de Pierre Schaeffer (éd. du Seuil, 1966) e de seu
'Solfège...', onde o autor estrategicamente evitou desafiá-las de frente,
apesar de estabelecer critérios e tabelas de apreciação onde o sonoro e o
musical estão separados. Para Schaeffer, um som entra em contexto
musical assim que é colocado com outros em uma rede, de onde
extraímos relações de permanência e transformação. Os sons nesta rede
se relacionam com os outros pelo que têm de semelhante e de diferente.
Nossa estratégia não será tentar isolar o sonoro e o musical em esferas
separadas. Concluiremos que ou bem não há esfera alguma a separar, ou
bem há tantas intermediárias que não convém acreditar na possibilidade
de contabilizá-las. O melhor que temos a fazer é lermos as palavras sonoro
e musical como se estivessem entre aspas, como se fossem vectores em
sua precariedade e transitoriedade.
Mas voltemos ao evento X, que, além de todas aquelas peculiaridades já
descritas, também se desloca no sentido panorâmico, de um lado para o
outro, da direita para a esquerda bem na nossa frente. A experiência
espacial felizmente não se limita a esta dimensão. Outra dimensão da
experiência espacial é lembrada pelo compositor Denis Smalley ao
requisitar noções da 'Poética do Espaço' de Bachelard ('Composer
Intention and Listener Reception: Can They Be Reconciled?', palestra no
Nordic Computer Music Days, Stockholm, 1991), para o âmbito musical.
Assim ele menciona a existência de eventos em seu movimento entre
'intimidade' e 'distância', quase sempre associados ao espaço acústico
real. Sem dúvida, sons reverberados não produzem a mesma sensação de
intimidade que os sons gravados perto do microfone, sem reverberação
alguma.
Nosso infatigável evento X também fala de distância, mas ele não se
manifesta somente longe de nós. Há um momento onde conquista um
grau maior de proximidade, sem no entanto penetrar no espaço que
demarcaria o começo de nossa intimidade. Estas palavras lembram que, já
em pleno domínio da expressão, território da 'música', diremos que X
chega perto de nós, mas que para ser 'intimo' precisaria de ter menos
intensidade, ser menos eloquente, mais discreto e persuasivo.
Gostaria de concluir reafirmando a necessidade de empregar todos e
quaisquer recursos para a análise e a apreciação de peças eletroacústicas,
por mais absurdos que sejam os resultados. È um exercício necessário
para a discussão e a aprendizagem desta música. Quanto mais o
praticarmos, mais perceberemos a transitoriedade das nossas traduções
para o verbal. Deste modo estaremos desenvolvendo uma sensibilidade
específica, e compreendendo que enquanto mudarem as palavras, a
música permanecerá. Se este encontro prescinde de dispositivo de
reprodução e amplificação eletroacústica, isto se deve ao fato de que era
minha intenção que um som soasse somente na imaginação. Se
tivéssemos a possibilidade de comparar os produtos de nossas
imaginações, comprovaríamos a individualidade de cada um deles.

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