You are on page 1of 195

A Estrutura do Conhecimento Tecnológico do

Tipo Cientı́fico

Ricardo H. C. Takahashi

30 de Novembro de 2008
1

Este ensaio apresenta os resultados do projeto


desenvolvido no estágio do autor como Professor
Residente do IEAT-UFMG, durante o perı́odo
de Agosto de 2007 a Julho de 2008.
Notas Introdutórias 4

I Algumas Notas sobre a Filosofia da Ciência 16


1 Entropia, Indeterminação e a Economia do Conhecimento
Cientı́fico 17
1.1 Conhecimento e Ciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17
1.2 O Problema da Verdade na Ciência . . . . . . . . . . . . . . . 19
1.3 Critério Entrópico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

2 Escolha e Constrição em Teorias Cientı́ficas 41


2.1 Escolha em Teorias Cientı́ficas . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
2.2 Tomada de Decisão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
2.2.1 O paradigma como meta-critério . . . . . . . . . . . . . 54
2.3 Meta-critérios constritores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56
2.4 Realismo, Ceticismo e os Meta-Critérios Constritores . . . . . 58

II O Conhecimento Tecnológico do Tipo Cientı́fico 61


3 Ciência e Techné 62
3.1 Sobre a Natureza do Conhecimento Tecnológico . . . . . . . . 66

4 Conhecimento Tecnológico do Tipo Cientı́fico 71


4.1 Antecedentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
4.2 O papel do conceito de conhecimento tecnológico do tipo cien-
tı́fico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76
4.3 O modelo ciência pura / ciência aplicada / tecnologia . . . . 79

2
3

4.3.1 Estudo de Caso: Os discos rı́gidos de computadores . . 81


4.4 Em busca do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico . . . 87

5 Ontologia da Tecnologia e Especificidade da Sı́ntese 95


5.1 Ontologia e o problema da redução . . . . . . . . . . . . . . . 95
5.1.1 Ontologia e redução em tecnologia . . . . . . . . . . . 98
5.2 Sobre a Especificidade da Sı́ntese . . . . . . . . . . . . . . . . 105
5.3 O Problema Puro de Sı́ntese e o Conhecimento Tecnológico do
Tipo Cientı́fico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113

6 A Estrutura das Teorias do Conhecimento Tecnológico do


Tipo Cientı́fico 115
6.1 Entidades do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico . . . 116
6.2 Análise Formal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119

III As Controvérsias Filosóficas e o Nascimento da


Tecnologia 124
7 Irrefutabilidade na Tecnologia 125
7.1 O tema da irrefutabilidade do conhecimento tecnológico . . . 126
7.2 Corroboração e Refutação em Tecnologia: Uma Imagem Al-
ternativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142

8 Eficácia versus Verdade 151


8.1 A questão do interesse pela eficácia . . . . . . . . . . . . . . . 152
8.1.1 Nossa crı́tica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158
8.2 Conhecimento Tecnológico do Tipo Cientı́fico e Verdade . . . . 161

9 Conhecimento Normativo e o Nascimento da Tecnologia 166


9.1 A formulação de Bunge . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168
9.2 Outros autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 173
9.3 Abordagens recentes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 177
9.4 Da norma à realidade objetiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . 180
9.5 Contexto da normatização e contexto da realização . . . . . . 184
Este ensaio trata do tema da filosofia da tecnologia, compreendida de forma
diversa daquela empregada na maioria dos textos que hoje se propõem a
abordar esse assunto. Ao contrário do enfoque sociológico ou histórico ado-
tado por grande parte da literatura, procuramos seguir um paralelo com a
filosofia da ciência em sua vertente de análise epistemológica. Mesmo em
relação à (relativamente escassa) literatura que trata da epistemologia do
conhecimento tecnológico, este ensaio acaba por se singularizar ao chegar à
conclusão de que uma parcela especı́fica do conhecimento tecnológico deve
ser incluı́da naquilo que é considerado o corpus do conhecimento cientı́fico
contemporâneo. Nestas notas introdutórias procuramos apresentar um pano-
rama de conjunto do tema tratado ao longo dos demais capı́tulos, bem como
esclarecer o propósito geral da abordagem aqui proposta.
De inı́cio, cumpre discutir o papel da filosofia da ciência relativamente ao
desenvolvimento da própria ciência e na articulação desta com o restante do
conhecimento humano, a partir do surgimento da própria ciência contempo-
rânea. No final do século XV, começaram a emergir questões como: quão
legı́tima seria a realização de experimentos como forma de se ter acesso à
realidade? Tycho Brahe, Coopérnico, Kepler e Galileu fizeram experimen-
tos, e propuseram enunciados sobre a realidade que buscavam garantir uma
compatibilidade entre um modelo de mundo que gradualmente emergia e os
dados empı́ricos que se tornavam disponı́veis, dizendo respeito a fenômenos
do mundo situados no campo de predições desse modelo. Esse processo, sa-
bemos, carreava consequências para todas as esferas da cultura humana. A
história, conforme narrada hoje em dia, destaca fundas contradições entre
esse conhecimento de um tipo novo que naquele momento se constituı́a, o
conhecimento cientı́fico, e uma tradição religiosa que teria seus enunciados
mı́sticos a respeito da estrutura do mundo contestados pelo novo conheci-
mento. Mas, ao contrário do que poderiam suspeitar interpretações ingênuas

4
NOTAS INTRODUTÓRIAS 5

sobre o fenômeno cientı́fico decorrentes desse relato, a ciência moderna não


constitui o momento inaugural da racionalidade a suceder um passado povo-
ado por crenças de fundo mı́stico, mas trata-se ele próprio de um capı́tulo na
história da racionalidade humana, que em muito lhe antecede.
Na revolução cientı́fica dos séculos XV e XVI, a própria noção de raci-
onalidade, que em princı́pio já constituı́a um dos centros organizadores da
civilização ocidental, passava a se defrontar com questões novas, tais como
a de saber quais seriam os limites da pura especulação intelectual para a
formulação de uma imagem adequada da realidade. É notável, por exemplo,
a controvérsia entre o nascente método experimental e a tradição de pura es-
peculação, que era então hegemônica na cultura. Obras filosóficas como a de
Francis Bacon exerceram o papel de tratar essa controvérsia, estabelecendo
bases para a incorporação da ciência ao edifı́cio intelectual da racionalidade
humana. Dessa forma, em paralelo com o desenvolvimento das ciências, a
filosofia da ciência veio sendo construı́da, cumprindo a função de articular
as metas, a estratégia e o resultado da busca cientı́fica com as dimensões
humanas da significação e da interpretação.
A filosofia da ciência do século XX, por sua vez, foi moldada em um
cenário no qual a ciência começava a gerar resultados que causavam crescente
estranhamento no senso comum. Espaços nos quais as leis fı́sicas não se
comportariam como em nosso mundo, ou incertezas entranhadas na própria
manifestação microscópica dos fenômenos, conduzindo a impreditibilidades
irredutı́veis, e até mesmo à dissolução de conceitos primitivos tais como o
espaço, o tempo e a causalidade –, tudo isso impôs a necessidade de um
movimento de interpretação e de assimilação, em parte traduzido em novas
formulações da filosofia da ciência. Questões tais como: o que é a verdade,
quais são os limites para que o conhecimento humano possa atingı́-la, quais
são as condições para saber que a mesma teria sido atingida, e qual seria o
significado do conhecimento diante de uma circunstância de inacessibilidade
(ao menos parcial) da verdade, assumem uma certa primazia nesse contexto.
O problema filosófico de fundo, como antes, pode ainda ser interpretado
como o de promover a incorporação do novo conhecimento ao projeto de uma
racionalidade abrangente, capaz de organizar o conjunto do entendimento do
homem. Acessoriamente, a filosofia da ciência realimenta a própria ciência,
servindo-lhe de crı́tica metodológica, ou suscitando questões de investigação,
cumprindo portanto um papel também instrumental.
O referente especı́fico deste ensaio é a tecnologia contemporânea, um tipo
de prática que passou a se manifestar com clareza apenas nas primeiras dé-
NOTAS INTRODUTÓRIAS 6

cadas do século XX. Esse objeto, bastante distinto das técnicas desde sempre
empregadas pela humanidade para satisfazer suas necessidades materiais por
meio da aplicação de conhecimento sistematizado, diz respeito a uma moda-
lidade especı́fica de conhecimento sistematizado, que é fundado nas teorias,
na metodologia e na cosmovisão caracterı́sticas da ciência contemporânea.
O perı́odo de cerca de um século desde o surgimento da tecnologia con-
temporânea até hoje representa a esta altura um acúmulo de eventos e de
mudanças que ainda demanda uma assimilação por fazer. A humanidade
foi definitivamente impactada nesse perı́odo, de uma forma que não encon-
tra precedentes. Por um lado, a velocidade na criação de novidades, com
a proliferação de novos objetos anteriormente inexistentes no mundo, pode
suscitar no imaginário uma condição de homem-demiurgo, limitado apenas
pelo alcance da própria vontade. Por outro lado, limites na disponibilidade
de recursos, anteriormente não divisados, têm sido rapidamente atingidos,
sendo hoje vislumbrado o esgotamento do espaço geográfico, dos recursos
minerais, da energia, das águas, da informação e do tempo.
Toda essa escala de efeitos de ordem material e cultural, entretanto, ainda
não teve desvendado seu mecanismo básico de desenvolvimento do conheci-
mento tecnológico. Essencialmente, não sabemos ainda hoje de que forma
as inovações tecnológicas são gestadas. Não compreendemos a dinâmica se-
gundo a qual o conhecimento tecnológico é elaborado e re-elaborado, e não
entendemos de que forma a face visı́vel da tecnologia, que é o artefato tecnoló-
gico, pode emergir a partir desse conhecimento. Nós não sabemos hoje o que
são (ou mesmo se existem) teorias que sintetizem o conhecimento tecnológico,
sendo ao contrário muitı́ssimo presente tanto no imaginário popular quanto
na literatura filosófica a crença de que a tecnologia seria mera decorrência
direta do conhecimento cientı́fico básico disponı́vel, dispensando qualquer es-
forço de análise epistemológica especı́fica. A filosofia da tecnologia, em sua
forma atual, encontra-se mais próxima de sugerir que o conhecimento especi-
ficamente tecnológico seria essencialmente assistemático e não susceptı́vel de
ser formalizado que de propor modelos que tentem explicar a dinâmica desse
conhecimento.
Esse estado pré-filosófico dos estudos sobre a filosofia da tecnologia tem
constituı́do um obstáculo, até este momento, para que se faça qualquer esboço
de formulação sobre temas tais como: Qual seria a estrutura dos experimen-
tos no âmbito de teorias da tecnologia? Em qual medida uma realização
prática de um artefato tecnológico constituiria um experimento para uma
teoria tecnológica? Que tipo de proposições pode conter uma teoria tecnoló-
NOTAS INTRODUTÓRIAS 7

gica? Que tipos de entidades teóricas podem estar presentes em uma teoria
tecnológica, e que caracterı́sticas distinguem essas entidades daquelas previs-
tas em teorias da ciência básica? De que maneiras interagem o conhecimento
sintetizado na forma de teorias tecnológicas e a prática da sı́ntese de produtos
tecnológicos? Em quais sentidos se pode corroborar ou refutar uma teoria
tecnológica?
Este ensaio aborda o tema geral da epistemologia do conhecimento tec-
nológico. De forma mais especı́fica, este ensaio trata da dinâmica da geração
do conhecimento tecnológico, procurando identificar os elementos reguladores
de racionalidade epistemológica constituintes dessa dinâmica. Uma conclusão
central deste trabalho é a identificação de uma nova entidade, o conhecimento
tecnológico do tipo cientı́fico – que deve constituir o núcleo teórico ao redor
do qual o conhecimento tecnológico se organiza. Em linhas gerais, este ensaio
segue o roteiro de: (i) mostrar a necessidade de tal entidade; (ii) identificar
elementos indicadores de sua presença; (iii) caracterizar sua estrutura; e (iv)
descrever seu funcionamento, em um processo de interação dinâmica com a
prática da tecnologia. Toda a discussão é conduzida aqui fazendo o exame,
em paralelo, da controvérsia que se instala entre a proposta aqui apresentada
e as concepções filosóficas hoje existentes.
A parte I, que compreende os capı́tulos 1 e 2, apresenta algum material
que constitui um conjunto de premissas metodológicas ao redor das quais
este ensaio se articula.
O capı́tulo 1 discute o tema da verdade em sua relação com o conheci-
mento cientı́fico. Uma função importante desse capı́tulo no conjunto deste
ensaio é a de estabelecer, de partida, nosso posicionamento em relação à filo-
sofia da ciência contemporânea. Nós situamos nosso ponto de vista no campo
do realismo cientı́fico, e conduzimos uma discussão que visa esclarecer a mo-
dalidade de realismo cientı́fico por nós adotada.
O capı́tulo prossegue apresentando uma proposta nossa para tratar o pro-
blema da indução em ciência, estabelecendo um critério que possibilita rotular
parcelas do conhecimento com o status de consolidado. A idéia contida nesse
critério é a seguinte: Em princı́pio, toda e qualquer parcela do conhecimento
cientı́fico registrado na forma de teorias está sempre sujeita à possibilidade
de revisão futura, dado que sempre será hipoteticamente plausı́vel que novas
observações venham a ser feitas, no futuro, contradizendo a teoria presen-
temente aceita. Essa herança fundamental do refutacionismo de Popper,
entretanto, deve ser modulada pela observação empı́rica de que determina-
dos setores do conhecimento cientı́fico se encontram, num dado momento, em
NOTAS INTRODUTÓRIAS 8

efetivo trabalho de revisão e de constituição teórica, enquanto outros setores


usualmente se encontram em um estado que poderia ser descrito como de
“estagnação”, onde por longos perı́odos não ocorre o surgimento de nenhuma
“novidade empı́rica” capaz de abalar a teoria vigente, e onde os dados dis-
ponı́veis parecem se ajustar adequadamente a essa teoria. O ponto principal
é que experimentos empı́ricos cuja estrutura tenha sido planejada a partir
de teorias nesse estado de consolidação muito raramente terão o propósito
de servir de testes refutativos para essas teorias: mais provavelmente, tais
experimentos terão o propósito de pôr à prova alguma outra teoria de nı́vel
superior, que diga respeito a efeitos em cuja constituição aparecem fenôme-
nos das primeiras teorias. Esse critério será posteriormente empregado, no
capı́tulo 5, para definir uma entidade denominada problema puro de sı́ntese
que, de maneira breve, significa um problema de sı́ntese de um artefato tec-
nológico realizado a partir de conhecimento cientı́fico consolidado. Por sua
vez, esse problema puro de sı́ntese será utilizado, no capı́tulo 6, para definir
o próprio conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico.
O capı́tulo 2 discute a questão dos critérios adotados para a escolha de
uma forma especı́fica para uma teoria cientı́fica, dada uma disponibilidade
presente de dados empı́ricos. São revistos os critérios supostamente aceitos
para essa escolha, sendo discutida a questão da racionalidade nessa escolha,
em situações de insuficiência de dados empı́ricos. Esses critérios de escolha
perpassam toda a discussão nos capı́tulos posteriores, sendo transpostos para
a discussão da estrutura das teorias no campo da tecnologia.
A parte II, constituı́da dos capı́tulos 3 a 6, forma o núcleo temático deste
ensaio. Nesses capı́tulos é gradativamente construı́da a hipótese da existência
de uma nova entidade, aqui denominada conhecimento tecnológico do tipo
cientı́fico, a qual servirá de mecanismo dinâmico explicativo para o processo
de geração de novas tecnologias.
O capı́tulo 3 faz uma discussão dos antecedentes da questão da filosofia
da tecnologia. Nele procura-se mostrar que embora a tecnologia, conforme
a definimos, tenha sua origem datável apenas do inı́cio do século XX, a dis-
cussão em torno dela se faz como continuidade de controvérsias muito mais
antigas. Nesse capı́tulo, tentamos mostrar que oposições herdadas da anti-
guidade como a da techné versus epistême se presentificam, manifestando-se
no processo da diferenciação da ciência a partir da filosofia natural renascen-
tista – e terminando por pautar a discussão sobre a filosofia da tecnologia já
em seu nascedouro. O processo discursivo ambı́guo, que hibridiza o empre-
endimento cientı́fico contemplativo com uma finalidade instrumental para o
NOTAS INTRODUTÓRIAS 9

mesmo, e que produz, em uma sı́ntese contraditória, a justificação da própria


ciência contemporânea, acaba por arrebatar o tema da tecnologia para o pólo
da techné, prematuramente lhe vedando um exame sob o quadro da epistême.
O capı́tulo termina por mostrar que a inadequação dessa fórmula já se faz
perceber na literatura filosófica, embora esta não apresente ainda um quadro
analı́tico alternativo.
O capı́tulo 4 apresenta, de forma especı́fica, a hipótese da existência de
uma estrutura denominada conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico. São
mostrados inicialmente alguns antecedentes que aparecem na literatura fi-
losófica recente e que se aproximam deste conceito, embora sem constituı́-lo
com a forma e a função aqui propostas. A principal hipótese alternativa, hoje
hegemônica na literatura filosófica, é também discutida: o modelo CP/CA/T
(ciência pura / ciência aplicada / tecnologia) – o qual prescreve que a gera-
ção de conhecimento novo deva necessariamente ocorrer no âmbito da ciência
pura, seguida de algum tipo de especificação desse conhecimento no âmbito
da ciência aplicada, sendo o conhecimento assim instanciado finalmente trans-
formado em artefatos tecnológicos no âmbito da tecnologia. As consequências
da adoção de uma ou outra hipótese são discutidas, e é feito o levantamento
de dados sobre alguns casos empı́ricos, com o intuito de se estabelecer uma
comparação do grau de adequação das hipóteses concorrentes. Nessa análise
fenomenológica, a hipótese do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico se
mostra mais plausı́vel.
O capı́tulo 5 faz um estudo de alguns aspectos estruturais do conheci-
mento tecnológico do tipo cientı́fico. Especificamente, são investigados os
aspectos ontológicos das entidades artificiais, ou sintéticas. Essa discussão
diz respeito à questão fundamental, para uma possı́vel filosofia da tecnolo-
gia, de saber se as entidades às quais possı́veis teorias tecnológicas fazem
referência, e que necessariamente incluem objetos artificiais, seriam objetos
legı́timos de investigação. A hipótese contrária diria que tais objetos seriam
simples aglutinações de elementos que obedecem a leis cientı́ficas (provenien-
tes de alguma ciência “básica”) anteriores à sua constituição. Suas proprieda-
des seriam então mera consequência direta de tais leis cientı́ficas, não sendo
portanto relevante o estudo de suas propriedades.
Traçamos aqui o paralelo com uma discussão que é travada no interior
da própria filosofia da ciência, na qual se encontra quem defenda a tese de
que todas as ciências seriam redutı́veis, uma a uma, a ciências mais básicas.
De acordo com seus proponentes, esse programa da “redução” culminaria,
idealmente, na redução de todo o conhecimento humano ao campo estrito da
NOTAS INTRODUTÓRIAS 10

Fı́sica. O campo da Quı́mica encontra-se na mira imediata desse programa,


por ser aquele imediatamente conexo à Fı́sica. Nós examinamos essa con-
trovérsia sobre a redutibilidade da Quı́mica à Fı́sica, tentando evidenciar os
elementos lógicos comuns com a argumentação a respeito da redutibilidade
da tecnologia às ciências “básicas”.
Esse capı́tulo é concluı́do com a definição de uma entidade denominada
problema puro de sı́ntese, que foi construı́da a partir da noção de conheci-
mento cientı́fico consolidado, estabelecida no capı́tulo 1. O problema puro
de sı́ntese é definido como um problema de projeto de artefato em que não
possa haver qualquer interesse cientı́fico no sentido desse experimento poder
constituir um teste refutativo para uma teoria “básica”. Dessa forma, esse
experimento fica blindado contra uma possı́vel absorção no campo das teo-
rias básicas, preservando interesse epistêmico exclusivamente na hipótese de
haver um nı́vel legı́timo de organização do conhecimento correspondente à
tecnologia por trás dessa sı́ntese. Por fim, argumentamos que o problema
puro de sı́ntese é mais que um construto intelectual arbitrário: refere-se, an-
tes, a uma fórmula que descreve a situação mais comum quando se trata da
geração de conhecimento tecnológico, muito mais do que a situação em que
leis fı́sicas são colocadas à prova nos experimentos de construção de artefa-
tos. Os elementos levantados ao longo desse capı́tulo indicam a pertinência
do estudo da tecnologia como campo do conhecimento com dinâmica e objeto
próprios.
O capı́tulo 6 expõe a proposta de uma estrutura formal para as teorias
tecnológicas do tipo cientı́fico. São propostas, de maneira geral, as entidades
que devem constar dessas teorias, e são listados os tipos de enunciados que
normalmente apareceriam nas mesmas.
A parte III é formada pelos capı́tulos 7, 8, 9, que concluem este ensaio. O
fio condutor desta parte é uma complexa rede de controvérsias, constituı́da
de argumentos que ora se apóiam mutuamente, ora se contrapõem, e que
aparecem e reaparecem em formas e combinações diversas, exibindo sempre
porém umas poucas matrizes de pensamento, todas contrárias à possibilidade
de que o conhecimento tecnológico possa vir a ser estudado de uma maneira
sistemática.
No capı́tulo 7, são reunidas as controvérsias ligadas à tese da irrefutabili-
dade do conhecimento tecnológico. Essa tese, de forma geral, estabelece que
o conhecimento tecnológico seria estruturalmente incapaz de dar origem a
experimentos de refutação de proposições. Isso seria decorrência da conjun-
ção de duas supostas circunstâncias: (i) o conhecimento tecnológico somente
NOTAS INTRODUTÓRIAS 11

poderia realizar experimentos de sı́ntese de artefatos; e (ii) experimentos de


sı́ntese de artefatos teriam um caráter “confirmatório”, e não “refutativo”.
Na tradição que deságua nessa tese, identificamos ecos da polêmica entre o
instrumentalismo e o realismo cientı́fico, no âmbito da filosofia da ciência. A
concepção hoje hegemônica a respeito do conhecimento tecnológico, sinteti-
zada no modelo CP/CA/T, herda diretamente essa linha de argumentação
e a extrapola para montar todo um sistema que pretende demonstrar que o
conhecimento tecnológico seria sempre particularizado, e não susceptı́vel de
ser organizado em torno de teorias. Assim, são constituı́das duas hipóteses
contrárias: uma afirmando que o conhecimento tecnológico não poderia ge-
rar experimentos em que teorias pudessem ser colocadas à prova; e a outra,
ligada à nossa fórmula do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico, enun-
ciando que teorias do campo tecnológico poderiam exibir dinâmica de corro-
boração/refutação semelhante à das teorias cientı́ficas. São examinados dois
eventos registrados na literatura, no âmbito da tecnologia, que dão suporte
à nossa hipótese, contrariando a assertiva baseada no modelo CP/CA/T.
O capı́tulo é concluı́do com a proposição de um quadro cognitivamente
mais admissı́vel, construı́do em torno da hipótese da existência do conheci-
mento tecnológico do tipo cientı́fico. Esse quadro, essencialmente, prevê a
existência de dois “setores” no âmbito do conhecimento tecnológico, um li-
gado diretamente ao projeto dos artefatos que são produzidos para propósitos
práticos, e outro ligado à geração do próprio conhecimento tecnológico, ou
seja, ao conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico. Um modelo de interação
entre esses dois setores se mostra capaz de explicar o conjunto dos fenômenos
levantados no âmbito dessa controvérsia.
O capı́tulo 8 agrupa outro campo de objeções à possibilidade de que possa
existir um conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico, agora ligado à tese de
que o conhecimento tecnológico teria um comprometimento exclusivo com
uma eficácia, e nenhum tipo de compromisso com a descoberta de uma ver-
dade. Novamente, uma polêmica herdada da disputa entre instrumentalismo
e realismo cientı́fico se encontra na raiz de linhas de argumentação tanto
distintas quanto contraditórias que terminam por confluir nessa conclusão
a respeito do conhecimento tecnológico. Esse capı́tulo procura mostrar que
tal tese demanda a agregação de postulados ad hoc cuja introdução só se
justifica como forma de demonstrar a própria tese – em uma circularidade
argumentativa. Ao final deste capı́tulo, nosso modelo de interação entre o
campo da aplicação das tecnologias ao mundo prático e o campo do conheci-
mento tecnológico do tipo cientı́fico, apresentado no capı́tulo 7, é retomado
NOTAS INTRODUTÓRIAS 12

de forma a explicitamente lidar com a questão do interesse pela eficácia e da


busca da verdade no âmbito da tecnologia.
Este ensaio se conclui no capı́tulo 9. Nesse capı́tulo, um outro campo
de controvérsias é examinado, agora ligado à tese geral de que o conheci-
mento tecnológico teria um caráter normativo, ou seja, ligado à formulação
de juı́zos e valores e à expressão de desejos, em contraposição ao caráter
do conhecimento cientı́fico, que seria relacionado com leis naturais perenes,
que independeriam de quaisquer juı́zos ou valores humanos. Essa linha de
argumentação mostra-se complexa, constituı́da por instâncias de estratégias
discursivas bastante distintas entre si. O capı́tulo mostra que em um dos ex-
tremos de uma grande variedade de formas sob as quais essa argumentação
se apresenta, encontra-se o argumento da redução ontológica da tecnologia
às ciências básicas, agora reprocessado para afirmar que, em tecnologia: (i)
o conhecimento sistematizável em forma de “leis cientı́ficas” seria todo ele
intrı́nseco às ciências básicas, não pertencendo ao campo da tecnologia; e
(ii) o conhecimento especificamente tecnológico seria apenas do tipo “norma-
tivo”, ou seja, ligado a escolhas, juı́zos e valores. A resposta a essa ordem
de argumentos coincide, portanto, com a resposta à tese da redutibilidade
do conhecimento tecnológico ao conhecimento cientı́fico, já trabalhada no
capı́tulo 5.
No outro extremo, encontra-se uma estratégia de recorte dos fenômenos
que anexa a todo experimento, ou a toda teoria do campo tecnológico, uma
carga de “normatividade” que lhe retira a possibilidade de uma sistematiza-
ção nos moldes do conhecimento cientı́fico. Nesse caso, embora um fenômeno
tecnológico até pudesse ter alguma estrutura racional na forma de leis pró-
prias (a maior parte da literatura ligada a essa corrente de argumentação
se omite quanto a esse ponto), a sistematização completa desse fenômeno
em forma de enunciados teóricos seria em última instância impossı́vel em
virtude da necessária existência, nesse fenômeno, de decisões arbitrárias car-
regadas de valores e juı́zos, ambos necessariamente não susceptı́veis de serem
sistematizados.
A hipótese assumida neste ensaio, de existência de uma entidade deno-
minada conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico nos moldes em que esta
é aqui descrita, pemite estabelecer uma conclusão exatamente oposta a essa.
De acordo com nossa hipótese, esse conhecimento tecnológico do tipo cientı́-
fico diz respeito, precisamente, a entidades cuja forma teria sido previamente
especificada – quando da definição do problema de sı́ntese. Assim, a nor-
matização – que vem a ser uma especificação extensı́vel a classes de objetos
NOTAS INTRODUTÓRIAS 13

tecnológicos – funciona como uma etapa de delimitação dos referentes do


conhecimento tecnológico. Nosso argumento aqui pode ser melhor compre-
endido por meio de um paralelo com o campo da biologia: não há dúvida de
que uma forte dose de acaso tenha concorrido para que o processo de seleção
natural tenha dado origem especificamente ao elenco de seres biológicos que
hoje habita o planeta. Isso não impede que a biologia se proponha a estudar
as propriedades desses seres. Da mesma forma, seja o acaso, sejam escolhas
arbitrárias, sejam juı́zos quaisquer ordens, dão origem à normatização dos
objetos tecnológicos, em última instância definindo-os, – o que também não
impede que o conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico tematize o estudo
de tais objetos.
O capı́tulo 9 apresenta a última hipótese levantada neste ensaio, a qual se
refere à própria gênese da tecnologia contemporânea. A imagem que grande
parte da literatura da filosofia da tecnologia apresenta do fenômeno tecno-
lógico, segundo a qual o desenvolvimento de artefatos tecnológicos deveria
simultaneamente envolver as decisões a respeito de o quê construir, como
construir, e para quê construir, seria talvez adequada para descrever as téc-
nicas de natureza artesanal, pré-tecnológicas. Contrariando essa imagem,
a organização do conhecimento na forma de sistemas hipotético-dedutivos
formais que, de acordo com a linha de pensamento aqui desenvolvida, carac-
teriza a tecnologia, só se tornaria possı́vel no momento em que estivessem
definidos de maneira precisa os objetos tecnológicos, quando passaria a ser
possı́vel estudá-los de maneira sistemática. Denominemos por normatização
o processo de definição (ou especificação) dos objetos tecnológicos, sejam
eles construtı́veis ou não, e denominemos por realização o processo que inclui
desde os estudos sobre as propriedades dos objetos tecnológicos abstratos
(que foram definidos pelo processo de normatização), indo até o seu eventual
projeto final e construção.
Nossa hipótese final, que contraria radicalmente a tese de que a existência
da normatização impeça a estruturação formal do conhecimento tecnológico,
é a de que o nascimento da tecnologia ocorra no preciso momento em que
a criação técnica passa a contar com a separação de dois grupos de ativida-
des: a normatização e a realização – ambas necessárias para a existência do
fenômeno tecnológico, mas apenas a última susceptı́vel de se tornar objeto
temático de sistemas hipotético-dedutivos.
Em articulação com essa hipótese, nós apontamos nesse capı́tulo final que
faz-se necessário, no âmbito da filosofia da tecnologia, o estabelecimento de
uma distinção entre o contexto da normatização e o contexto da realização
NOTAS INTRODUTÓRIAS 14

para que seja possı́vel avançar na investigação da estrutura do conhecimento


tecnológico. Recorremos aqui a outro paralelo para explicar esse ponto. A
influente distinção entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação,
no âmbito da filosofia da ciência, possibilitou que se aglutinassem aspectos
sem dúvida importantes na ciência, porém intrinsicamente subjetivos, tais
como a criatividade, a originalidade, a imaginação, naquilo que foi chamado
de contexto da descoberta. Restaram, no chamado contexto da justificação,
as tarefas sistemáticas de estruturação das teorias, que incluem as decisões
quanto a se uma nova hipótese deva ser incluı́da no conjunto de teorias acei-
tas, à luz das evidências empı́ricas disponı́veis, e que também incluem os
esforços de identificação dos setores onde existam problemas de consistência
teórica, nos quais deva ser investido esforço de formalização. Não é possı́vel
hoje em dia afirmar que a evolução das teorias cientı́ficas, em um sentido his-
tórico, ocorra literalmente segundo uma sucessão de eventos de descoberta
seguidos de esforços de justificação1 . No entanto, fixar o contexto da justifica-
ção das teorias como o referencial de sua racionalidade permanece indispen-
sável quando se trata de formular prescrições metodológicas, ou de descrever
o estado de campos teóricos. Talvez mais importante que isso, a própria no-
ção de racionalidade como âncora que possibilita a formação de consensos em
sociedades de homens livres implica que esse consenso seja forjado no curso
dos processos de justificação: é no (idealizado) contexto da justificação que
a ciência adquire valor como bem de conhecimento, a preencher e delinear a
nossa cosmovisão, para muito além de seu valor instrumental.
No caso da tecnologia, não há dúvida também de que a tarefa de norma-
tização, que compreende as escolhas e decisões subjetivas, referenciadas nas
necessidades e na vontade humanas, concorra de forma decisiva para que o
elenco de objetos tecnológicos existentes no mundo ao nosso redor seja aquele
empiricamente verificável em um dado momento. A análise do conhecimento
tecnológico, entretanto, no que diz respeito à sua dinâmica de progressiva
sistematização teórica, só se torna plausı́vel quando situamos seu locus não
nesse processo de expressão de vontades, mas na tarefa de exame sistemático
das propriedades de entidades previstas em teorias que só se coloca após a
normatização –, pois esta normatização corresponde ao processo de definir
tais entidades, em certo sentido “trazendo-as à existência”. Num contexto
posterior à normatização, em que abstratamente já existam essas entidades,
1
O trabalho de Thomas Kuhn (Kuhn 1962), por exemplo, desempenhou um importante
papel de apresentar evidências em contrário a tal afirmativa.
NOTAS INTRODUTÓRIAS 15

suas propriedades podem ser escrutinadas da mesma forma que as das enti-
dades do mundo natural.
O estudo da estrutura do conhecimento tecnológico, portanto, faz sentido
somente nesse contexto da realização, no qual é possı́vel por exemplo indagar
em que medida o conhecimento tecnológico teria uma dinâmica semelhante
ou distinta da dinâmica da ciência, ou em que medida regras metodológicas
para o exame de teorias cientı́ficas poderiam ser estendidas ao conhecimento
tecnológico. Para além de consequências intra-filosóficas ou metodológico-
prescritivas, o grande valor a ser alcançado talvez seja o de incorporar o
conhecimento tecnológico ao âmbito do que a nossa cosmovisão acredita ser
o campo do real, dotado de leis e regularidades, e acessı́vel à compreensão – de
forma que a tecnologia deixe de ser esse enorme território escuro, enclavado
bem no meio de nossa cultura contemporânea.
16
1.1 Conhecimento e Ciência
Nos primórdios da civilização ocidental, a busca de uma ordem racional no
mundo que pudesse orientar a conduta dos homens constituı́a um problema
de ordem prática, em cuja solução se depositavam as esperanças de se estabe-
lecer a razoabilidade nas relações entre as pessoas, e destas com as instituições
polı́ticas da sociedade em construção. Tal busca, formalizada, veio a cons-
tituir a Filosofia, cujas primeiras tarefas estiveram ligadas aos domı́nios de
um mundo empı́rico à primeira vista susceptı́vel de ser narrado em termos de
eventos envolvendo sujeitos e objetos apreensı́veis pela observação – ou seja,
em termos de fatos.
A entidade lógica primitiva constituinte dos fatos é a proposição – uma
afirmativa a respeito de um evento ou de um estado de coisas singular. Assim,
seriam proposições, por exemplo, afirmativas tais como: “o indivı́duo X possui
cinco moedas no bolso”; ou ainda “Juscelino Kubitschek foi presidente do
Brasil de 1956 a 1961”. Dá-se hoje o nome de lógica aristotélica (ou lógica
proposicional) ao sistema formal desenvolvido por Aristóteles (Aristoteles 323
A.C.) que estabelece regras de raciocı́nio capazes de fundamentar a extração
de conclusões a partir de conjuntos de proposições (Grayling 1996).
No contexto das situações de aplicação prática da lógica proposicional,

17
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 18

logo se apresenta o problema de estabelecer a validade das proposições, ou


seja, sua correspondência com os eventos efetivamente ocorridos no mundo.
A posse, por um indivı́duo, da informação a respeito de uma proposição que
guarde tal correspondência foi chamada de conhecimento. As condições para
a validade desse conhecimento foram tradicionalmente aceitas como sendo a
ocorrência da crença verdadeira justificada desse indivı́duo a respeito da pro-
posição (Moser, Mulder & Trout 1997). Para conhecer um fato, o indivı́duo
precisa acreditar na sua veracidade. O fato também deve ser verdadeiro para
que seja possı́vel o conhecimento a seu respeito. Por fim, o indivı́duo precisa
ter sua crença fundamentada em elementos capazes de assegurar a veracidade
desta, ou seja, a crença deve ser justificada. A problematização do conheci-
mento, que constitui o campo da Epistemologia, é um dos temas inaugurais
da Filosofia (Platao 348 A.C., Aristoteles 323 A.C.), e ainda hoje suscita
questões tanto no que diz respeito à suficiência daquelas condições tradicio-
nalmente adotadas quanto aos critérios para validá-las (Grayling 1996, Moser
et al. 1997).
A idéia da determinação de verdades como elementos orientadores de uma
formação social, no entanto, somente se institui a partir do momento em que
estas passam a expressar regularidades. O conhecimento de fatos singulares,
embora possa até ser aceito consensualmente, não pode gerar prescrições
de condutas futuras, a menos que esses fatos sejam articulados por alguma
regra de ordem mais geral da qual estes sejam derivados. Por exemplo, o
conhecimento de que determinada infusão tenha sido eficiente para curar
determinada doença em determinado indivı́duo só se torna útil a partir do
momento em que este passa a sugerir que futuras infusões feitas com folhas
do mesmo tipo de planta possam servir para curar outros casos da mesma
doença em outros indivı́duos. É o conhecimento do tipo universal, portanto,
que de fato importa no que diz respeito à função de princı́pio regulador de
uma sociedade.
Problemas adicionais se apresentam quando se trata de se estabelecer a
validade de enunciados universais a respeito de mecanismos observados no
mundo empı́rico. Para além do problema de se determinarem as condições
sob as quais possa ser considerado válido o conhecimento a respeito de cada
observação singular de uma cadeia de eventos, coloca-se o chamado problema
da indução (Papineau 1996), que pode ser expresso na questão: quais con-
dições permitem enunciar uma lei geral a partir de um número finito de
observações supostamente originadas de sua manifestação? Por exemplo: a
humanidade vem observando que a cada 28 dias a Lua vem completando um
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 19

ciclo na forma como se apresenta no céu noturno, passando pelos estágios de


nova, crescente, cheia e minguante. A partir de quantas observações pregres-
sas será possı́vel afirmar, com total certeza, que todas as observações futuras
seguirão o mesmo padrão? Deve-se notar que, sob o ponto de vista lógico, o
problema da indução não tem solução, pois um número finito de observações
não é capaz, matematicamente, de conter toda a informação que possa estar
contida em um número infinito de ocorrências de um fenômeno. A ocorrên-
cia de um milhão de observações de um certo fenômeno segundo um certo
padrão não pode impedir, de forma lógica, que em uma próxima ocorrência
tal fenômeno fuja a esse padrão.
Essa dificuldade surge onde quer que se pretenda estabelecer a validade,
ou seja, o estatuto de conhecimento, de uma afirmação de caráter universal.
No dia-a-dia de uma sociedade, é frequente a necessidade de se lidar com
enunciados desse tipo. A própria cosmovisão desse grupo humano é consti-
tuı́da por noções universais, e a esta se acrescentam modelos a respeito de
diversas instâncias do mundo que também possuem a estrutura de sistemas
de enunciados universais. Domı́nios tais como a culinária, o comércio, a cri-
minalı́stica ou a apicultura são estruturados na forma de sistemas de crenças
a respeito de como o mundo é e como se comporta diante de determinadas
circunstâncias.
Um domı́nio da atividade humana possui como matéria especı́fica a busca
de leis universais a respeito dos fenômenos do mundo: a ciência. Sua missão,
ou sua ambição, de encontrar verdades universais, a leva a transitar, todo o
tempo, precisamente nos domı́nios onde estas de alguma forma necessaria-
mente escapam – no problema da indução.

1.2 O Problema da Verdade na Ciência


Pelo menos desde o inı́cio do século XX, ficou bem estabelecida a noção de
que o conhecimento cientı́fico intrinsicamente não pode ter acesso direto e
completo à estrutura da realidade, havendo portanto dificuldade para o es-
tabelecimento de um critério de verdade1 . Bachelard (Bachelard 1928), por
exemplo, indica uma diferença que seria fundamental entre as ciências expe-
1
Ao longo deste ensaio, não iremos discutir a questão da de uma realidade
material. Assumiremos aqui que tal realidade exista, e que seja acessı́vel, ainda que parci-
almente, por meio de dados empı́ricos determinados por tal realidade, sendo tais relações
de determinação em parte cognoscı́veis.
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 20

rimentais e as ciências matemáticas. Enquanto estas últimas seriam de fato


acumulativas e susceptı́veis de desenvolvimento infinito, as primeiras requere-
riam maior exame, sendo limitadas em sua possibilidade de desenvolvimento,
podendo quando muito aspirar a descrever verdades aproximadas.
O trabalho de Popper (Popper 1934) postula a condição de provisoriedade
para qualquer teoria cientı́fica: toda teoria, para ser cientı́fica, deve ser falsifi-
cável, ou seja, passı́vel de ser submetida a testes empı́ricos, que possam produ-
zir resultados ou que estejam de acordo com a teoria, assim corroborando-a,
ou que estejam em desacordo com esta, assim falsificando-a. Se uma pre-
tensa teoria possui estrutura lógica tal que seja impossı́vel conceber qualquer
teste empı́rico que possa contradizê-la, ela não se trata de fato de uma teoria
cientı́fica, mas de uma tautologia; ela não poderá nunca produzir alguma
conclusão relevante a respeito da realidade. Como consequência, nenhuma
teoria cientı́fica pode ser comprovada, uma vez que, por mais experimentos
que tenham sido realizados corroborando-a, há sempre a possibilidade lógica
de que algum experimento futuro, uma vez realizado, venha a falsificá-la, con-
tradizendo suas predições. Segundo Popper, esse processo de falsificação de
teorias, com sua consequente substituição por outras capazes de correspon-
der aos dados empı́ricos disponı́veis, faria parte do processo de geração do
conhecimento cientı́fico. Posteriormente foram propostas outras descrições
do processo de evolução do conhecimento cientı́fico, baseadas em sistemas de
pensamento bastante distintos, que também não postulam fórmulas pretensa-
mente capazes de assegurar a “veracidade” de uma teoria – veja por exemplo
os trabalhos (Moles 1956, Kuhn 1962, Bunge 1974, Maturana 1997).
Desde o final do século XIX não têm sido defendidas hipóteses sustentando
que algum conhecimento cientı́fico possa, em dado momento, reivindicar ter
atingido uma correspondência com a realidade material. Na impossibilidade
de certificação de tal correspondência, fica inviabilizada a utilização direta
da noção de verdadeiro como critério para determinação do que vem a ser o
conhecimento cientı́fico: Utilizar tal critério significaria a impossibilidade do
reconhecimento de qualquer conhecimento cientı́fico, dada a impossibilidade
de se estabelecerem garantias definitivas quanto à veracidade de qualquer
teoria.
Seria estéril, por princı́pio, negar a possibilidade do conhecimento cientı́-
fico: a Filosofia da Ciência tem como tarefa tratar dos problemas filosóficos
que surgem no curso da investigação cientı́fica, ou ainda refletir sobre os pro-
blemas, métodos e teorias da ciência. Para que seja possı́vel abordar tais
questões, faz-se necessário relaxar a noção primitiva de conhecimento que vi-
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 21

sava à geração de certezas pela via da justificação de uma crença, que assim
supostamente se ligaria de maneira definiva a uma verdade.
A ciência deve, assim, lidar com crenças em uma modalidade cética –
que lhes atribua uma falibilidade essencial, potencialmente detectável a cada
exame de novos dados. As crenças em ciência devem ser, portanto, provisó-
rias. A justificação, por sua vez, deve perder sua pretensão de mecanismo
certificador, passando a se estruturar como um processo de construção da
aceitabilidade racional de um enunciado. Por fim, como discutido anterior-
mente, também a noção de verdade não se encontra disponı́vel para ser direta-
mente examinada no contexto da Filosofia da Ciência, e é preciso substituı́-la,
na formulação do critério de aceitação de uma teoria, por algum outro crité-
rio que seja verificável e que seja capaz de cumprir a mesma função de impor
ao conhecimento cientı́fico a adesão a uma base relacional fixa, com a qual
seja possı́vel estabelecer um número arbitrário de comparações, atualizando a
qualquer momento e possivelmente contradizendo uma justificação anterior.
É preciso ainda, fundamentalmente, que esse critério possua pelo menos forte
relação com o conceito orientador de verdade2 .
Esta dificuldade não foi examinada, de maneira explı́cita, por Popper
(Popper 1934). Por um lado, ele se concentrou na questão da justificação
de teorias (no sentido relaxado aqui definido). Seu falsificacionismo diz res-
peito à agregação de observações empı́ricas as quais, estando de acordo com
a teoria cientı́fica, produzem sua corroboração – ou sua justificação. Entre-
tanto, esse falsificacionismo ainda diz respeito à agregação sucessiva de novas
observações, que vão se acumulando com o tempo, possivelmente corrobo-
rando, de maneira repetida, a mesma teoria. Trata-se de um processo mais
complexo do que o de uma hipotética justificação da definição convencional
de conhecimento: trata-se de um escrutı́nio retomado diversas vezes, com
bases empı́ricas sempre diferentes. A âncora estável em que se apoiaria o
conhecimento cientı́fico, neste caso, seria tanto a sequência de corroborações
a que a teoria tenha sido efetivamente submetida quanto o fato (idealizado)
de que tal sequência poderia ser potencialmente infinita.
Thomas Kuhn (Kuhn 1962) introduz a noção de paradigma cientı́fico
como estrutura que substitui a noção de verdade na ancoragem do conhe-
2
Note-se que optamos aqui, nos casos das e da , por relaxar a defi-
nição convencional. Já no caso da , mantivemos intacto o significado do termo –
que designa um conceito fundador insubstituı́vel – apontando porém a necessidade de se
definir um outro conceito auxiliar, referenciado na verdade, mas não idêntico a esta, para
fundamentar a construção do conhecimento cientı́fico.
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 22

cimento cientı́fico. O elemento focal de seu trabalho pode ser entendido a


partir da descrição ali apresentada de um processo interpretável como a perda
da justificação de teorias, no momento em que observações em desacordo com
estas começam a emergir do trabalho cotidiano de pesquisadores em laborató-
rios. Tais observações discrepantes são denominadas anomalias. O acúmulo
dessas anomalias torna necessária a estruturação de novas teorias que sejam
capazes de explicar o conjunto dos dados acumulados a respeito do fenômeno
em questão. O processo de reconstrução do conhecimento cientı́fico, nessas
situações, é denominado revolução cientı́fica, sendo concluı́do com a restau-
ração de um consenso (o que corresponde à instalação de um novo paradigma
cientı́fico). A estrutura que serve para ancorar cada nova contribuição pon-
tual ao conhecimento cientı́fico resultante da chamada ciência normal3 é o
próprio paradigma: essa contribuição, apoiada pelos dados experimentais
que diretamente a fundamentaram no momento de sua divulgação, torna-se
acreditada por estar de acordo com o paradigma – num mecanismo que não
prevê a interveniência direta da aderência da crença à realidade.
Há um papel indireto dessa aderência: o mecanismo básico de produção
das revoluções, ou substituições de paradigmas, se coloca em movimento com
o acúmulo das anomalias, ou seja, das discrepâncias de dados empiricamente
observáveis em relação às predições geradas pela teoria, sendo que a não-
aderência torna mais provável (ou possı́vel) o surgimento dessas anomalias.
O próprio Kuhn, entretanto, indica a possibilidade do processo de mudança
de paradigma não conduzir a uma teoria que seja mais capaz de explicar o
conjunto dos dados disponı́veis num dado momento. Assim, esse processo
de ancoragem do conhecimento torna-se problemático, pois implica o esva-
ziamento da noção de verdade no conhecimento cientı́fico, mesmo em um
sentido aproximativo. O mero critério do consenso pode resultar, nesse caso,
na formação de correntes de pensamento sustentando paradigmas diferentes,
por tempo indefinido.
O prosseguimento dos esforços para tratar a questão da verdade pode
ser exemplarizado, segundo um viés realista ortodoxo, no trabalho de Bunge
(1974). Como ponto de partida, ele reconhece as dificuldades com o critério
de verdade (Bunge 1974, p. 130):

“Pois bem, pode-se inventar qualquer número de sistemas com-


3
Na se situa o trabalho cotidiano da ciência, incluindo toda a ativi-
dade de “descoberta” daqueles aspectos pontuais que não produzem questionamento ao
conhecimento estabelecido e que, portanto, não causam revoluções cientı́ficas.
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 23

prováveis para se defrontarem com um certo conjunto de dados


empı́ricos; o problema é acertar no mais verdadeiro – um pro-
blema cientı́fico – e reconhecer os signos da verdade aproximada
– um problema metacientı́fico. Pois, de fato, a verdade é feita e
não encontrada, e diagnosticar a verdade é tão difı́cil como diag-
nosticar a virtude. Temos uma teoria operativa da verdade com-
pleta (não da verdade aproximada) de sentenças que envolvem
apenas predicados observacionais, mas não temos teoria satisfa-
tória da verdade aproximada das teorias. Dizer que uma teoria
fatual é verdadeira se e somente se suas consequências observá-
veis forem verdadeiras todas e nenhuma falsa é inadequado não
só porque a teoria pode conter suposições incomprováveis e no
entanto ser coerente com fatos observáveis, mas também porque
não há meios de comprovar exaustivamente a infinidade de con-
sequências (teoremas) de teorias cientı́ficas quantitativas e porque
nelas está envolvida a noção de verdade aproximada. Além disso,
deverı́amos saber agora que, falando estritamente, todas as teo-
rias fatuais são falsas: que são aproximadamente mais ou menos
verdadeiras. Não dispomos de nenhum processo de decisão para
reconhecer a verdade aproximada de teorias fatuais, mas há sin-
tomas de verdade e o perito emprega estes signos na avaliação de
teorias.”

Tal problema é tratado por Bunge de maneira normativa: ele apresenta vinte
critérios (denominados desideratos da teoria cientı́fica), agrupados em requi-
sitos de ordem sintática, semântica, epistemológica, metodológica e filosófica.
Esse conjunto de requisitos é apresentado como uma expressão de sintomas
de verdade: na ausência de um critério possı́vel para estabeler a simples ver-
dade das teorias cientı́ficas, ele passa a constituir o fundamento para que
se possa enquadrar a ciência como conhecimento. Notamos que esse con-
junto de desideratos constitui, no âmbito da praxis da ciência contemporâ-
nea, uma métrica relativamente satisfatória para comparar diferentes teorias
candidatas a servirem de fundamento para determinado campo da ciência.
No entanto, a formulação de Bunge não chega a estabelecer um fundamento
lógico para a designação do estatuto de verdade a uma teoria. Enquanto
o falsificacionismo de Popper tinha implı́cita uma sucessão de processos de
corroboração conduzindo tendencialmente a uma presumida verdade, a dinâ-
mica das revoluções cientı́ficas de Kuhn, ao instanciar tal sucessão na história
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 24

da ciência, mostrou uma estrutura de eventos que colocava em questão tal


tendencialismo. Bunge, de certa forma, foge da questão ao deixar de apontar
um mecanismo gerador capaz de explicar uma “eclosão” da verdade4 .
Antes de prosseguir, chamamos a atenção para dois dos desideratos de
Bunge: a coerência externa e a compatibilidade de cosmovisão. O primeiro
(mais evidente) diz respeito à compatibilidade da teoria em questão com as
demais teorias cientı́ficas consideradas aceitas, com prioridade para aquelas
teorias fundamentais que estruturam a maior parte do conhecimento cientı́-
fico. O segundo (que suscita questões interessantes a respeito da interação
entre ciência e cultura) diz respeito à compatibilidade da teoria com os prin-
cı́pios subjacentes à cosmovisão pertinente à sociedade que produziu aquela
ciência, indo portanto além dos domı́nios do conhecimento apenas cientı́fico.
Notamos aqui que esses desideratos acrescentam uma dimensão a mais ao
processo da confirmação de trabalhos cientı́ficos no âmbito da ciência nor-
mal, como descrito por Kuhn. Através da explicitação desses desideratos,
chegamos a uma organização dos paradigmas em camadas, que vão desde
um campo especializado e restrito até todo o edifı́cio cientı́fico, e além dele,
na própria cosmovisão da sociedade. A articulação dessas camadas, como
restrição adicional à fórmula dos paradigmas isolados, pode dar sustentação
a um mecanismo gerador mais complexo que o proposto originalmente por
Kuhn, na medida em que estabelece uma dinâmica de checagem que não
permanece auto-contida, podendo recair em uma teia de verificações cruza-
das que envolvem nı́veis ônticos distintos e potencialmente infinitos. Bunge,
cautelosamente, chama a atenção para o duplo efeito desses desideratos: se
por um lado eles dão substância a um processo mais denso de verificação
das teorias, alargando tanto o âmbito quanto a intensidade desse processo de
validação, por outro lado eles indicam que um hipotético processo de grandes
mudanças que deva ocorrer em teorias mais fundamentais ou mais centrais
na ciência, ou mesmo na cosmovisão de uma sociedade, tem de enfrentar
pesados obstáculos.
4
Observando de maneira mais abrangente o pensamento de Bunge, é possı́vel inferir
um macro-mecanismo de aproximação da verdade que ele postula, baseado em uma for-
mulação normativa. De maneira esquemática: (i) o trabalho cientı́fico seria feito à luz
dos “desideratos”; (ii) o exame metodológico e formal seria feito no âmbito
da epistemologia; e (iii) a polı́tica cientı́fica e os mecanismos de fomento e financiamento
iriam julgar os resultados e direcionar novos estudos a partir da avaliação do conjunto do
sistema. Bunge sugere esse mecanismo, mas nem o explicita nem o analisa formalmente
no que diz respeito às consequências epistemológicas para o conhecimento cientı́fico.
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 25

Um outro ponto de vista, capaz de iluminar algumas dessas questões


fundamentais, é apresentado na obra de Habermas (1999)5 . Já na virada para
o século XXI, ele trata a questão da verdade e da justificação6 a partir de um
trajeto que faz a retrospectiva de grande parte dessas problematizações. Ele
introduz a discussão a partir do ponto de vista contextualista, da seguinte
forma (Habermas 1999, p. 45-46):

“A realidade com a qual confrontamos nossas proposições não é


uma realidade nua, mas já, ela própria, impregnada pela lingua-
gem. A experiência pela qual controlamos nossas suposições é lin-
guisticamente estruturada e se encontra engastada nos contextos
de ação. Tão logo refletimos sobre uma perda de nossas certezas
ingênuas, não mais encontramos nenhuma classe de enunciados
de base que se legitimam “por si mesmos”, ou seja, “primórdios”
inequı́vocos para além da linguagem, experiências auto-evidentes
aquém das razões. O conceito semântico-dedutivo de fundamen-
tação tem alcance muito curto; as cadeias de fundamentação re-
fluem para os contextos dos quais elas provêm. A verdade de um
enunciado parece poder ser garantida apenas por sua coerência
com outros enunciados já aceitos.”

Logo adiante, prossegue objetando (Habermas 1999, p. 46):

“Mas um contextualismo estrito não se concilia nem com os pres-


supostos do realismo cognitivo, nem com a força revisionista ine-
rente aos processos de aprendizagem, que modificam a partir de
dentro o contexto que os torna possı́veis, nem com o sentido uni-
versalista das pretensões de verdade que transcendem seu con-
texto.”

Uma tentativa de sı́ntese dessas duas posições poderia conduzir a uma formu-
lação idealizada de verdade do tipo tendencial, conforme aponta Habermas
(1999, p. 46):
5
Esse trabalho foi desenvolvido por Habermas fora do contexto da Filosofia da Ciência.
6
Para transpor a discussão de Habermas para o contexto da Filosofia da Ciência, con-
vém interpretar sua em um sentido relaxado, similar ao da justificação de
teorias cientı́ficas, conforme discutido anteriormente neste capı́tulo. De toda forma, o
texto de Habermas deixa clara a conotação falibilista de sua noção de justificação.
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 26

“Como saı́da para esse dilema se oferece a tentativa de combinar


a compreensão de referência transcendente em relação à lingua-
gem com uma compreensão – imanente à linguagem – de verdade
como assertibilidade ideal. De acordo com isso, um enunciado se-
ria verdadeiro precisamente se e somente se pudesse resistir, sob
os exigentes pressupostos pragmáticos dos discursos racionais, a
todas as tentativas de invalidação, ou seja, se pudesse ser justifi-
cado numa situação epistêmica ideal.”

É importante notar que essa formulação tendencial é introduzida por Ha-


bermas ainda sem conexão com o falibilismo intrı́nseco às teorias. Apenas a
seguir, Habermas introduz a questão da falibilidade, que justamente coincide
com o argumento de partida do falsificacionismo de Popper (Habermas 1999,
p. 47-48):

“Por certo, há para nós, enquanto nos movemos no nı́vel do dis-
curso, uma conexão epistemológica incontornável de verdade e
justificação. Mas [...] não resulta dessa circunstância nenhuma
conexão conceitual entre verdade e assertibilidade racional em
condições ideais. Caso contrário, não poderı́amos compreender a
verdade como uma “propriedade inalienável” de enunciados. Até
mesmo os argumentos que nos convencem aqui e agora da verdade
de podem se revelar falsos em outra situação epistêmica. Ra-
zões pragmaticamente “irresistı́veis” não são razões obrigatórias
no sentido lógico de validade definitiva. O emprego acautelador
do predicado de verdade – por mais que seja bem justificado,
ele pode ainda se revelar falso – pode ser compreendido como a
expressão gramatical de uma falibilidade que experimentamos em
nós mesmos no curso de muitas argumentações e que observamos
nos outros na retrospectiva histórica sobre cursos de argumenta-
ções passadas.”

Habermas, entretanto, exclui a possibilidade da definição tendencial de ver-


dade, conforme havia sido esboçada anteriormente (Habermas 1999, p. 48):

“Ou o conteúdo normativo dos pressupostos pragmáticos de dis-


cursos racionais não é suficiente para excluir a falibilidade de um
consenso discursivamente alcançado em condições aproximativa-
mente ideais; ou as condições ideais de assertibilidade racional,
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 27

que são suficientes para isso, perdem a força que caracteriza uma
idéia reguladora e lhe permite orientar o comportamento, porque
elas não podem ser cumpridas nem mesmo de maneira aproxima-
tiva por sujeitos capazes de falar e agir, tal como os conhecemos.”

Habermas aponta duas formas-limite para o conceito de verdade, que emer-


gem desses impasses (Habermas 1999, p.246):

“[...] a deflacionista, que nega que a “verdade” em geral tenha


uma natureza que possa ser explicitada, como também a epistê-
mica, que inflaciona o conceito da asserção justificada a ponto de
a verdade se tornar o valor limite do processo de justificação. No
entanto, o deflacionismo pode destematizar o conceito de verdade
apenas até o ponto em que ainda consegue sustentar uma intui-
ção realista, enquanto a concepção epistêmica pode idealizar as
condições de justificação apenas até o ponto em que essa elevada
argumentação ainda permaneça ao alcance de ‘nossa’ práxis.”

O programa de Habermas para a“verdade”é então esboçado (Habermas 1999,


p. 48-52):

“Essas objeções me levaram a uma revisão que relaciona o conceito


discursivo mantido de aceitabilidade racional a um conceito de
verdade pragmático, não epistêmico, sem com isso assimilar a
“verdade” à “assertibilidade ideal”.
Mesmo depois de tal revisão, o conceito de discurso racional con-
serva o status de uma forma de comunicação privilegiada, que
exorta os participantes a uma contı́nua descentração de suas pers-
pectivas cognitivas. Os pressupostos de comunicação normativa-
mente exigentes e incontornáveis da práxis argumentativa têm
sempre o sentido de uma obrigação estrutural que nos leva a for-
mar um juı́zo imparcial. Pois a argumentação permanece o único
meio disponı́vel para se certificar da verdade, porque não há outra
maneira de examinar as pretensões de verdade tornadas proble-
máticas. Não existe um acesso direto, não filtrado pelo discurso,
às condições de verdade de convicções empı́ricas. Com efeito, só
se tematiza a verdade de opiniões abaladas – de opiniões desento-
cadas da inquestionabilidade das certezas de ação que funcionam.
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 28

Embora não possamos atravessar a conexão de verdade e justi-


ficação, essa conexão epistemicamente incontornável não pode –
no sentido de um conceito epistêmico de verdade – ser estilizada
como uma conexão conceitualmente indissolúvel.
[...] Esse conceito não-epistêmico de verdade, que se manifesta no
agir apenas operativamente e, portanto, de modo não-temático,
confere às pretensões de verdade discursivamente tematizadas um
ponto de referência que transcende toda justificação.
[...] A meta das justificações é encontrar uma verdade que ultra-
passe todas as justificações. Por certo, essa referência transcen-
dente assegura a diferença entre verdade e aceitabilidade racional,
mas põe os participantes do discurso numa situação paradoxal.
De um lado, sem acesso direto às condições de verdade, eles só
podem resgatar as pretensões de verdade graças à força de con-
vicção das boas razões; de outro, as melhores razões estão sob a
reserva da falibilidade, de modo que, justamente onde a verdade e
a falsidade dos enunciados são tematizados, o abismo entre acei-
tabilidade racional e verdade não pode ser transposto.
Mas então se põe a questão de saber por que um acordo dis-
cursivamente alcançado poderia autorizar os participantes da ar-
gumentação a aceitar a pretensão de verdade convincentemente
justificada para , em vez da verdade para . A resposta pragmá-
tica parte da idéia de que os discursos permanecem engastados
no contexto das práticas do mundo da vida, porque têm a função
de restabelecer um acordo de fundo parcialmente perturbado. Do
ponto de vista de práticas malsucedidas e certezas de ação aba-
ladas, as argumentações têm uma espécie de função reparadora.
[...] Na medida em que o saber se justifica por um processo de
aprendizagem que supera os velhos erros, mas não nos protege
dos novos, cada estado de saber atual permanece relativo à me-
lhor situação epistêmica possı́vel. Mesmo o acordo alcançado por
meio de uma justificação “construtiva” e que provisoriamente con-
clui um discurso de modo convincente resulta num saber do qual
os envolvidos, em seu papel de participantes da argumentação,
podem saber que ele é falı́vel e perfectı́vel. Os atores que che-
gam a um bom termo com o mundo nutrem-se de suas certezas
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 29

de ação, mas, para os sujeitos que, na moldura dos discursos, se


certificam reflexivamente de seu saber, a verdade e a falibilidade
de um enunciado são dois lados da mesma moeda.”
Nós adotaremos, ao longo deste ensaio, o ponto de vista expresso por
Habermas (1999) como referência para modular o princı́pio do “realismo ci-
entı́fico” aqui pressuposto. Nas próximas seções deste capı́tulo, esse ponto de
vista é empregado para formular uma nova abordagem para o problema da
indução em ciência.

1.3 Critério Entrópico


Parece bem estabelecida a existência irredutı́vel de um déficit do que quer
que se defina como conhecimento cientı́fico em relação a uma realidade sub-
jacente. Ao examinar a estrutura desse problema, a filosofia encontra um
limite de seu campo de ação, bem como do da ciência, na impossibilidade
de formular procedimentos ou protocolos que dêm garantidamente um acesso
à verdade. No entanto, não se trata de um déficit completamente imune à
ação humana: o caráter não-contingente de sua existência não impede que o
conhecimento cientı́fico assuma estados de diferentes “valores” desse déficit.
A filosofia da ciência encontra, nesse hiato, a delimitação legada para seu
campo de ação: trata-se de formular estratégias e metodologias para reco-
nhecer direções e tendências, na (incerta) aproximação de uma verdade cujo
desvelamento é inútil postular. E à ciência fica reservada a tarefa do efe-
tivo manuseio dos instrumentos capazes de intervir sobre tal déficit, mesmo
reconhecendo a inevitabilidade de sua existência.
Cabe notar que o problema de quantificação do déficit é de fato o elemento
estruturalmente intratável do problema de eliminação do déficit, uma vez que
não há empecilho de ordem lógica para a possibilidade da correspondência
de uma teoria em relação à realidade. A dificuldade, de fato, é a impossibili-
dade lógica da formulação de critérios que estabeleçam tal correspondência,
tornando-a cognoscı́vel. Essa dificuldade se propaga para a o problema de
estabelecer uma medida da distância de uma teoria em relação à realidade: se
fosse possı́vel tal métrica, o problema da eliminação do déficit seria redutı́vel
a um processo-limite de diminuições sucessivas dessa distância que, uma vez
efetivado, daria acesso à informação completa a respeito da verdade.
Nós sugerimos aqui que seja possı́vel, entretanto, tratar o problema de
detectar a variação nesse déficit. Com o propósito de permitir o desenvol-
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 30

vimento de uma abordagem para este problema, definimos aqui, de maneira


algo restrita7 , o conhecimento cientı́fico relativo a um certo campo de fenô-
menos, ou, abreviadamente, um conhecimento especializado, como a seguinte
estrutura:

1. A formulação da teoria consensual (ou paradigmática);

2. O elenco de verificações experimentais (corroborações) dessa teoria.


Note-se que esse elenco não trata-se apenas de dados diretamente ob-
serváveis, mas inclui também o filtro interpretativo da própria teoria;

3. O elenco de anomalias conhecidas, ou dados disponı́veis aparentemente


discrepantes, que colocam em questão essa teoria (este conjunto pode
ser vazio). Como no caso anterior, esse elenco não trata-se apenas de
dados diretamente observáveis, mas inclui também o filtro interpreta-
tivo da própria teoria;

4. O elenco de teorias já visitadas e rejeitadas, que abordam o mesmo


campo de fenômenos (este conjunto pode ser vazio);

5. O elenco de teorias “competidoras”, já apresentadas, mas (ainda) não


tornadas paradigmáticas (este conjunto também pode ser vazio).

Uma determinada instanciação de todos esses itens é aqui denominada es-


tado. É importante notar que, sendo definido desta forma um conhecimento
especializado, ele passa a corresponder a um modelo de máquina de estados
dotada de algumas propriedades. A primeira seria:

Essa máquina não visita o mesmo estado duas vezes. Isso quer dizer que
se, num dado momento, todos os itens que compõem esta definição do
conhecimento especializado são instanciados de determinada maneira e
num momento seguinte são instanciados de outra maneira, é impossı́vel
haver um retorno posterior ao primeiro conjunto de instanciações.

Essa propriedade implica uma correspondência do processo de aquisição de


conhecimento especializado com um processo de restrição do conjunto de
7
Para não aumentar excessivamente a complexidade de nossa formulação, não introdu-
zimos aqui a questão da compatibilidade da teoria em questão com outras teorias aceitas,
nem da . A estrutura aqui apresentada será, entretanto,
suficiente para dar suporte à nossa linha de argumentação.
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 31

estados possı́veis da máquina de estados. De fato, toda aquisição de conheci-


mento tem esse caráter. Deve-se notar entretanto que nem toda aquisição de
conhecimento corresponde à imagem que terı́amos de um avanço cientı́fico.
A mera adição de informações a catálogos de dados, por exemplo, tem efeito
apenas pontual na eliminação de estados possı́veis. Na prática, em um espaço
com um número “exponencial” de possı́veis estados, a eliminação de possi-
bilidades através deste mecanismo meramente subtrativo deixa o conjunto
de possibilidades “do mesmo tamanho” que anteriormente, não significando
ganho informacional.
A filosofia da ciência tem se esforçado para caracterizar o conhecimento
do tipo cientı́fico. Uma possı́vel formulação para tal caracterização pode ser
obtida a partir de duas propriedades adicionais que podem ser associadas à
maquina de estados do conhecimento especializado em questão:
O espaço dos estados possı́veis dessa máquina pode ser dividido em sub-
conjuntos que compartilham determinadas caracterı́sticas (tais como
uma instanciação fixa para alguns dos itens que compõem o estado).
Na cosmologia haveria, por exemplo, um conjunto de teorias que pos-
tulam a Terra esférica (sob um ponto de vista topológico), e outro
conjunto de teorias que postulam a Terra plana. Parece possı́vel afir-
mar que a máquina, uma vez tendo deixado determinados subconjuntos
(por exemplo, aqueles que postulam um formato plano para a Terra),
não mais visita, posteriormente, nenhum outro estado contido naquele
subconjunto, que se torna resolvido.
O processo de redução do conjunto de estados possı́veis para a máquina,
através de sucessivas resoluções, pode conduzir a conjuntos remanes-
centes muito menores que o espaço original dos possı́veis estados, de-
nominados conjuntos terminais, contendo apenas estados associados a
teorias paradigmáticas ou competidoras relativamente parecidas entre
si8 .
Diferentemente da propriedade anterior, essas duas propriedades não são de
ordem lógica, mas pode-se dizer que derivam da premissa realista anteri-
ormente enunciada: a premissa da acessibilidade parcial a uma realidade
8
Aqui não fazemos menção a uma semelhança no sentido da irrelevância da diferença:
a semelhança aqui diz respeito à compatibilidade de predições, por exemplo no caso da
mecânica de Newton, que pode ser considerada um caso limite da mecânica relativı́stica.
Nesse sentido, a sucessão dessas duas teorias seria caracterı́stico da situação de
do campo da mecânica.
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 32

subjacente, em uma versão próxima do minimalismo9 , que, neste caso, está


sendo assimilada à possibilidade de eliminar de maneira definitiva, a partir
de certo momento, certas classes de predições teóricas, tais como aquelas
derivadas da hipótese de uma “Terra plana”. Tal eliminação diz respeito, es-
sencialmente, ao estabelecimento definitivo de incompatibilidades entre tais
classes de predições e o repertório de dados acumulados.
Essa figura da máquina de estados estabilizada em um conjunto terminal
como acima definido possui uma qualidade inteiramente diferente da máquina
simplesmente proibida de visitar alguns poucos estados. Nessa nova situação,
é possı́vel dizer que ocorreu um ganho de informação, em um sentido que pode
ser precisado pela métrica informacional da redução de entropia10 . A ciência
como um todo, segundo essa ótica, teria a função de mecanismo redutor da
entropia do sistema correspondente à imagem do universo que a humanidade
constrói, e com a qual se orienta11 .
Cabe aqui a discussão de que nem todo conhecimento especializado irá
percorrer o trajeto de sucessivas resoluções até atingir um conjunto terminal.
Não se descarta a hipótese da impossibilidade de acesso aos dados relati-
vos a determinados campos, seja pela excessiva complexidade estrutural dos
fenômenos, seja por dificuldades metodológicas. Nesse caso, é possı́vel que de-
9
Uma versão ainda mais fraca dessa acessibilidade poderia postular a possibilidade de
acesso apenas aos dados conforme já observados, sem nenhum tipo de possibilidade de ge-
neralização. Tal versão parece essencialmente equivalente à não-acessibilidade à realidade,
dada a impossibilidade de se encontrar qualquer regularidade na observação.
10
A pode ser definida como a cardinalidade do conjunto de estados possı́veis de
um sistema, associados a um determinado agregado de caracterı́sticas definidoras da situa-
ção do sistema. Para exemplificar, considere-se um recipiente com dois compartimentos, A
e B, um dos quais contém 100 moléculas de hidrogênio, e o outro contendo 100 moléculas
de oxigênio. Quando se retira a separação dos compartimentos, passam a ser possı́veis
duas situações em que os gases podem ser descritos como “separados”: (1) todas as mo-
léculas de oxigênio estando em A, e todas as de oxigênio em B; e (2) todas as moléculas
de oxigênio estando em B, e todas as de oxigênio em A. São igualmente possı́veis outras
2200 configurações das moléculas, todas elas correspondendo à situação descrita como de
gases “misturados”. A maior entropia no caso dos gases misturados que no caso dos gases
separados pode ser quantificada pela diferença das cardinalidades dos dois conjuntos de
possibilidades.
11
É curiosa a observação de que o modelo aqui proposto de máquina de estados que (i)
promove uma redução de entropia e (ii) executa esse processo de forma irreversı́vel, não se
comporta de acordo com a tı́pica irreversibilidade dos processos de da entropia
que caracteriza diversos sistemas fı́sicos. Isso não deve surpreender o leitor, pois o processo
descrito se passa em um sistema orgânico (a humanidade), no qual há dispêndio de energia
para a execução ativa de uma tarefa.
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 33

terminadas instâncias do conhecimento especializado não atinjam (ou mesmo


não posssam atingir) tal estabilidade de estado. O conhecimento do tipo ci-
entı́fico, entretanto, é caracterizado por um conjunto de metodologias e por
uma dinâmica que procuram precisamente possibilitar tal percurso. Trata-se
então de um objetivo da ciência, e não de uma caracterı́stica intrı́nseca sua,
conduzir os campos do conhecimento especializado a conjuntos terminais.
Lançamos, neste ponto, duas conjecturas que irão cumprir um papel de
apoio no desenvolvimento de nossa argumentação:
A conjectura de que seja possı́vel determinar (possivelmente com grande
atraso) a ocorrência de eventos de resolução;

A conjectura de que tais eventos de resolução estariam ligados, essenci-


almente, a (i) eliminações de contradições lógicas; ou a (ii) eliminações
de disparidades entre classes (conjuntos de cardinalidade possivelmente
infinita) de predições teóricas e um conjunto (necessariamente finito)
dos correspondentes referentes empı́ricos.
A primeira conjectura acima demandaria o estabelecimento de critérios que
lhe dessem suporte. Na falta destes, prosseguimos simplesmente assumindo
sua validade, mediante uma argumentação apoiada na sua razoabilidade. É
compatı́vel com a intuição uma expectativa de que (i) grandes consensos a
respeito de aspectos estruturais do universo sejam passı́veis de serem des-
truı́dos pelo confronto com dados futuros, mas que (ii) grandes consensos,
uma vez destruı́dos pelo exame de dados empı́ricos com eles incompatı́veis
ou pela descoberta de contradições internas neles presentes, não sejam jamais
restituı́dos à condição de imagem aceita. Parece ainda razoável prosseguir,
admitindo que os filósofos da ciência ou os cientistas possam saber que havia
outrora um grande consenso, e que este tenha sido destruı́do12 .
A segunda conjectura não apresenta qualquer dificuldade quando afirma
que contradições lógicas ou disparidades entre predições teóricas e dados em-
pı́ricos poderiam ter como consequência um evento de resolução. O problema
que impede a pronta admissão de sua validade diz respeito à afirmação de que
apenas tais causas conduzem às resoluções. O argumento em prol da razoa-
bilidade dessa conjectura se apóia na imagem, possivelmente idealizada, do
cientista e do filósofo como seres capazes de distinguir os mecanismos segundo
12
Mais delicada, certamente, é a questão da detecção de resoluções referentes à exclusão
de hipóteses que nunca tenham sido examinadas anteriormente, e que portanto nunca
tenham constituı́do um consenso.
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 34

os quais grandes consensos sejam destruı́dos por tais causas, dos mecanismos
que levam ao abandono de paradigmas pela simples emergência de outros (em
um processo semelhante ao “modismo”). Dessa forma, o simples abandono de
um paradigma sem que o mesmo tenha sido fundamentalmente questionado
não constituiria um evento de resolução, e as duas situações de término de
um paradigma seriam distinguı́veis, de acordo com nossa conjectura.
Essas conjecturas, em conjunto, representam um passo adiante na pre-
missa realista aqui adotada: além da possibilidade de se adquirir informa-
ção a respeito de campos de fenômenos naturais, agora se afirma também
a possibilidade de se adquirir informação a respeito da estrutura da própria
informação adquirida. Em nossa opinião, esse passo não representa a ado-
ção de premissas consideravelmente mais “fortes” (ou restritivas) que aquelas
anteriormente admitidas.
Retomando agora o problema do déficit do conhecimento em relação à
realidade, pode-se constatar que a admissão das duas conjecturas acima tem
como consequência que todo evento de resolução deve causar uma redução
do déficit do conhecimento em relação à realidade. O tamanho do conjunto
terminal associado a essas resoluções, conforme já discutido, não pode ser
determinado, sob pena de permitir a quantificação do déficit. Neste ponto,
uma consequência dessa formulação deve ser apontada: a parcela intrı́nseca
da indeterminação do tamanho do conjunto terminal decorre essencialmente
da necessidade lógica de se reservar ao futuro a possibilidade da invenção de
estruturas teóricas completamente novas que venham a abarcar os campos
do conhecimento hoje estruturados de acordo com as teorias atuais. O reco-
nhecimento disso permite estabelecer uma distinção entre diferentes formas
de não se atingir a verdade:
1. É possı́vel não se ter informação alguma sobre determinado campos
de fenômenos. Isso equivaleria a não se possuir sequer uma coletânea
de dados que fossem reconhecidamente pertencentes a um campo de
fenômenos com determinada identidade (se houvesse tal coletânea, isso
já seria alguma informação). Sob o ponto de vista da máquina de
estados, haveria informação zero.
2. É possı́vel, dado que se possua informação empiricamente coletada so-
bre determinado conjunto de fenômenos, que não haja qualquer siste-
matização dessa informação. Tal informação, organizada à semelhança
de um grande catálogo, não seria capaz de produzir generalizações.
Nesse caso, na formulação da máquina de estados, não teriam ainda
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 35

ocorrido resoluções. Haveria entretanto no mı́nimo, necessariamente,


alguma regra generalizável capaz de identificar os fenômenos perten-
centes à classe em questão, o que já produziria algum ganho informa-
cional para além do tamanho da própria massa de dados disponı́vel. A
máquina de estados não teria atingido nenhum conjunto terminal.

3. É possı́vel ainda que haja pelo menos uma teoria capaz de explicar
parte dos dados disponı́veis, havendo discrepância em relação a outra
parcela dos dados (nessa mesma situação, agrupamos a situação em
que existam várias teorias competindo entre si, cada uma explicando
parte dos dados e considerando anômalos outros dados). Neste caso, se
constata um déficit observável do conhecimento em relação à realidade.
É possı́vel que a máquina de estados desse conhecimento especializado
já tenha atingido um conjunto terminal, que demanda ainda ulteriores
reduções.

4. Outra possibilidade é a de que haja duas ou mais teorias, completa-


mente corroboradas por todas as observações disponı́veis, porém pro-
duzindo previsões teóricas que apontariam resultados discrepantes a
respeito de experimentos ainda não realizados (porém possı́veis de se-
rem planejados e realizados nos marcos da tecnologia atual). Neste
caso, há um déficit lógico que aponta também para ulteriores reduções
do conjunto terminal.

5. Outra possibilidade ainda é a de que haja duas ou mais teorias, com-


pletamente corroboradas por todas as observações disponı́veis, porém
produzindo previsões teóricas que apontariam resultados discrepantes
a respeito de experimentos ainda não realizados que seriam impossı́-
veis de serem realizados nos marcos da tecnologia atual. Neste caso, se
constata um déficit lógico que, no estágio atual, indicaria uma irredu-
tibilidade do conjunto terminal.

6. Ainda é possı́vel que haja uma única teoria, completamente corrobo-


rada por todas as observações disponı́veis. Como toda teoria, é impos-
sı́vel testar todas suas instâncias. Sua corroboração completa, até o
dado momento, a tornaria candidata a ser uma teoria correta. A pre-
caução que impossibilita, de forma definitiva, estabelecer tal veredicto,
emana de três possibilidades lógicas: (i) o possı́vel surgimento futuro
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 36

de dados anômalos em algumas instâncias de experimentos; (ii) o pos-


sı́vel surgimento futuro de teorias empiricamente equivalentes sobre a
base de dados disponı́vel naquele momento, mas discrepantes sobre si-
tuações hipotéticas; e (iii) a possı́vel reformulação completa do campo,
à luz de futuras teorias que reorganizem a estrutura do conhecimento
em questão. Nesse caso, não há nenhum déficit constatado, lógico ou
observável, embora permaneça um déficit potencial que é impossı́vel
de eliminar, correspondente à parcela do déficit que é intrinsicamente
associada a todo conhecimento cientı́fico.

Em todos esses casos, o conhecimento especializado jamais atinge o está-


gio último da correspondência com a realidade, ou pelo menos não enquanto
um estágio identificável por meio de algum critério. No entanto, fica clara
a distinção dessas modalidades de déficit possı́veis de se manifestarem no
conhecimento especializado, sendo possı́vel reconhecê-las13 .
É importante notar que esta categorização não terá nenhuma utilidade
para o propósito de fazer escolhas entre teorias competidoras, nem para o
de decidir se uma teoria é satisfatória ou se deve ser modificada. Dado que
estas escolhas sejam feitas no bojo de um processo gerativo que aumente
os pontos de contato do conjunto de teorias cientı́ficas disponı́veis com ins-
tâncias da “realidade”, o conjunto das teorias que constituem os campos do
conhecimento especializado irá sofrer um processo de especiação14 que, no
particular, pode levar determinados campos do conhecimento especializado
a percorrerem o trajeto do estágio 1 ao estágio 6, não necessariamente sem
a ocorrência de regressões de estágios ao longo do trajeto, e também não
necessariamente passando por cada estágio antes de atingir os subsequentes.
No geral, o conjunto do conhecimento cientı́fico irá necessariamente apresen-
tar setores em diferentes estágios, sem que haja a perspectiva “evolutiva” de
qualquer convergência final para o estágio 6, o que não lhe retira, entretanto,
a caracterı́stica de um ganho informacional contı́nuo e irreversı́vel.
13
São possı́veis ainda algumas situações intermediárias ou de transição: um exemplo
seria a teoria que é modificada de maneira para acomodar dados discrepantes à
medida em que estes surgem, como indicado por Popper (1934). À medida em que esse
processo evolui, a situação informacional vai gradualmente passando da categoria 3 para
a categoria 2, uma vez que a teoria perde sua forma estrutural, e passa a se assimilar a
um catálogo, incapaz de gerar predições robustas para além dos dados sobre os quais foi
construı́da.
14
Um argumento semelhante foi utilizado por Kuhn em sua obra a partir dos anos 1970
(Kuhn 2000).
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 37

Assumindo que ocorra tal processo, passamos ao problema do estabele-


cimento de critérios para examinar a aderência de proposições à realidade.
Esse problema é particularmente importante, pois se relaciona precisamente
com a função que teria um hipotético critério de verdade. No interstı́cio entre
a ingenuidade de uma formulação realista fundamentalista e o vazio das alter-
nativas convencionalistas, esboçamos aqui uma fórmula gerativa, organizada
em termos de critérios aninhados:

1. O primeiro nı́vel diz respeito a um critério de referendo, que diz respeito


à utilização do conhecimento cientı́fico “trivial” (ou “consolidado”) para
tratar questões (não necessariamente triviais) do dia-a-dia da existên-
cia humana. Uma proposição será referendada por um conhecimento
especializado se for possı́vel verificar sua preditibilidade a partir deste.
Notamos aqui que o referendo não se trata de um critério historica-
mente construı́do, no sentido em que muitas vezes tal terminologia é
empregada como sinônima de arbitrariamente construı́do. O referendo
de uma proposição carrega nesta o acúmulo dos dados empı́ricos já le-
vantados no passado, e o acúmulo do exame de diferentes alternativas
de construção teórica, assim transmitindo para essa proposição parti-
cular uma cadeia de pontos de contato com a “realidade sensı́vel”, assim
como uma herança de esforços de auto-consistência lógica e de compa-
tibilização com outros domı́nios. Nesse nı́vel se formam as “certezas
cientı́ficas” que ficam socialmente disponı́veis, devidamente moduladas
pelo déficit potencial em relação à realidade, que é inseparável de todo
conhecimento cientı́fico.

2. O segundo nı́vel diz respeito a um critério de confirmação, que trata das


“lacunas triviais” do conhecimento, ou seja, de questões para as quais
não se saiba de antemão a resposta (ou, mais precisamente, proposi-
ções cuja verdade ou falsidade não se conheça), mas para as quais esta
seja relativamente previsı́vel, e possa ser obtida pelos métodos usuais
do conhecimento especializado. Uma proposição será confirmada por
um conhecimento especializado se for possı́vel verificar sua compatibi-
lidade com o conjunto do conhecimento cientı́fico15 , e se for possı́vel
corroborá-la com dados experimentais novos. Nesse domı́nio, se encon-
traria a frente de trabalho da ciência normal, conforme definida por
15
Observe-se que o procedimento de tal verificação é finito, dada a finitude do conheci-
mento cientı́fico estabelecido em cada momento.
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 38

Kuhn (Kuhn 1962).

3. O terceiro nı́vel diz respeito a um critério de elaboração, que aborda a


tentativa sistemática de “destruição” de paradigmas estabelecidos pela
busca de dados que exponham suas fragilidades, ao lado da tentativa
de construção de novas teorias, a partir de dados que pareceriam incon-
sistentes à luz das teorias abaladas, e cuja ordem se busca. Nesse nı́vel,
são procurados precisamente os dados empı́ricos capazes de colocar em
questão o paradigma, e são examinadas as premissas deste, em busca
de contradições. Questões novas, não abrangidas pelo domı́nio a que se
restringe a teoria paradigmática, são particularmente valiosas neste nı́-
vel. Proposições são examinadas, neste nı́vel, em busca de explicações
alternativas capazes de abalar a credibilidade do paradigma anterior,
seja por incrementos de precisão, seja de coerência, seja de abrangên-
cia, ou outros. Este é o domı́nio em que se organizam novas teorias,
substitutas potenciais para a teoria paradigmática, que podem poten-
cialmente adquirir poder explanatório suficiente para se consolidarem,
aumentando a aderência à realidade de todo o repertório de proposi-
ções pertencentes a seu domı́nio, em comparação com o repertório das
proposições pertencentes ao domı́nio da teoria anterior.

O mecanismo proposto se coloca em movimento de acordo com um es-


quema gerativo a partir da constatação de que cada nı́vel, ao entrar em
funcionamento, logo começa a remeter matérias para o item seguinte, e do
último volta-se para o primeiro, numa estrutura circular. O primeiro nı́vel,
operando junto às questões da sociedade viva, gera demandas e necessidades,
que acabam por solicitar a interveniência do segundo nı́vel. Este, ao executar
a tarefa rotineira de preencher lacunas, acaba por se deparar com as anoma-
lias, que vão sendo então acumuladas. Estas constituem os elementos de
dissonância capazes de disparar o terceiro nı́vel, que opera como mecanismo
regulador que reorganiza a estrutura refutada, substituindo-a por outra que
(possivelmente de maneira gradual) se torna capaz de produzir um encaixe
com os dados empı́ricos disponı́veis e com o arcabouço das teorias de campos
conexos. Por fim, tal reorganização, quando ocorre, pode produzir impacto
no primeiro nı́vel, nas consequências cotidianas do conhecimento cientı́fico.
A certeza do tipo negativo, herdada do falsificacionismo de Popper, é
recolocada agora em outra perspectiva. Como complemento dialético à ins-
tabilidade epistemológica falsificacionista, que inscreve em cada instância de
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 39

teoria cientı́fica o atributo de provisoriedade, emerge um setor da imagem


cientı́fica do mundo que adquire gradativamente uma crescente estabilidade.
Essa conclusão decorre da formulação do conhecimento especializado como
máquina de estados na qual a crescente restrição de sua visitação a deter-
minadas regiões do espaço (por meio do mecanismo de resoluções) implica
o crescente compartilhamento, pelas possı́veis teorias pertencentes ao con-
junto terminal da máquina, ao menos das respostas geradas para as questões
frequentemente colocadas. No mecanismo de máquina de estados, é precisa-
mente a falsificação que funciona como motor dos eventos de resoluções que
conduzem a máquina ao seu conjunto terminal. Assim se consegue separar
a constatada instabilidade da instância teórica corrente de uma hipotética
instabilidade das conclusões obtidas com sua aplicação, que a primeira pa-
receria sugerir, mas que não ocorre. Em lugar disso, constata-se a expansão
do domı́nio das proposições referendáveis, de elevada estabilidade16 , pareada
com a expansão do domı́nio das proposições confirmáveis, candidatas a se
estabilizarem, sendo que nenhum desses processos implica no decréscimo do
domı́nio da elaboração.
Por essa via, retomamos a questão da verdade. Considerado os processos
de referendo, confirmação e elaboração, aos quais é possı́vel submeter proposi-
ções, observa-se que a única instância capaz de operar, de forma significativa,
como substituta da noção pura de verdade é a de referendo. As outras duas
instâncias envolvem julgamentos demasiado instáveis para cumprirem uma
função básica da noção de verdade, que seria a de ancorar de forma incon-
testável e definitiva as proposições aderentes à realidade, separando estas
das não-aderentes, em situações de escolhas, de disputas e de formação de
juı́zos no âmbito da existência humana. A fórmula do referendo possui a
estabilidade que é necessária para, de maneira razoável, emular a verdade.
O mecanismo gerativo proposto não coloca a instância do referendo em risco
quando admite sua interação com as outras duas instâncias: é exatamente
essa interação que permite a ocorrência de um processo evolutivo no qual
progressivamente se desenvolve uma blindagem do mecanismo de referendo
pelos mecanismos de confirmação e de elaboração.
Fazendo referência à formulação de Habermas (Habermas 1999), no nı́-
vel do referendo, as avaliações de proposições são feitas no âmbito do “agir
16
Como critério que pode estabelecer uma segurança adicional, mas que não é de todo
necessário para delimitar um setor estável do conhecimento especializado, pode-se procurar
detectar o cessar da variação do déficit nesse domı́nio.
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 40

operativo”. Nesse âmbito, a verdade do conhecimento cientı́fico de fundo não


chegaria a ser “tematizada”, de forma que tal conhecimento poderia servir
de referencial transcendente em relação à justificação. Por outro lado, no
nı́vel da elaboração, “justamente onde a verdade e a falsidade dos enunciados
são tematizados, o abismo entre aceitabilidade racional e verdade não pode
ser transposto”. Nesse nı́vel, “do ponto de vista de práticas malsucedidas
e certezas de ação abaladas, as argumentações17 têm uma espécie de fun-
ção reparadora”. Fazendo a fronteira entre o uso cotidiano da ciência como
referencial da existência em sociedade e aquelas situações em que crenças
cientı́ficas duradouras ficam abaladas e sucumbem, a linha de frente da ati-
vidade cientı́fica (objetivamente mantida pela sociedade, em universidades
e institutos de pesquisa) agrega “os sujeitos que, na moldura dos discursos,
se certificam reflexivamente de seu saber”, para os quais “a verdade e a fali-
bilidade de um enunciado são os dois lados da mesma moeda”, no delicado
equilı́brio caracterı́stico do nı́vel confirmatório.
Para além de Habermas, chegamos aqui a uma formulação orgânica que,
incluindo toda a falibilidade de qualquer conhecimento, de alguma forma
estabelece uma estrutura para tal falibilidade. O mecanismo reparador da
falha constatada, embora genérico, tem sua atuação concentrada em setores
de atividade de elaboração do organismo gerador do conhecimento, à mesma
medida em que outros setores de estabilidade (ou referendo) se diferenciam
– sem nunca deixarem ambos de interagir. Essa formulação gerativa, em
nossa opinião, restaura a possibilidade de constituição de um conceito de
caráter epistêmico funcionalmente equivalente à verdade. Dessa forma, a ine-
xequibilidade da noção de verdade enquanto conceito objetivável não impede
que emerja um conceito substituto capaz de servir como referencial para a
construção social da racionalidade. Mesmo inexequı́vel, a noção de verdade
objetivamente exerceu um papel de princı́pio orientador na construção do
mecanismo gerativo acima descrito.

17
Ou, no âmbito da ciência, a atividade de formulação de novas teorias.
2.1 Escolha em Teorias Cientı́ficas
No capı́tulo intitulado Racionalidade e Escolha de Teorias de seu último
livro, O Caminho Desde a Estrutura, Thomas Kuhn problematiza a questão
da racionalidade no processo de evolução temporal da ciência (Kuhn 2000,
p. 256):

“Em que circunstâncias alguém pode afirmar, com propriedade,


que certos critérios que se verificam usados pelos cientistas na
avaliação de teorias são, de fato, também bases racionais para
suas avaliações?”

A atividade de pesquisa cientı́fica, conforme esta é retratada em grande


parte da literatura da Filosofia da Ciência, evolui segundo uma sequência de
eventos de formulação teórica (de uma forma ou de outra inspirados tanto na
tradição teórica do campo do conhecimento quanto no acúmulo de dados da
realidade) seguidos de eventos de checagem da formulação (que inclui, além
da realização de experimentos para a verificação de predições, também instân-
cias de verificação intra-teórica, inter-teórica e extra-teórica). Ajustando-se
aos dados passados, a teoria é comparada com novos dados, além de ser
analisada em sua estrutura lógica, em sua compatibilidade com o conheci-
mento estabelecido em outros domı́nios da ciência, e em suas implicações de
cosmovisão.

41
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 42

Os processos de formulação inicial de teorias cientı́ficas não são usual-


mente tratados nos domı́nios tradicionais da Filosofia da Ciência1 . As teorias,
uma vez formuladas, passam a ser escrutinadas e possivelmente reformuladas,
em uma perspectiva de que venham a configurar uma descrição que tenha
correspondência com um campo da realidade, até os limites das possibilidades
existentes. A possibilidade lógica, hoje reconhecida como intransponı́vel, de
ocorrência de desajustes da teoria em relação à realidade supostamente refe-
rente, e a não-finitude de quaisquer processos hipotéticos de combate a esses
desajustes, através de mecanismos tais como a corroboração e falsificação, fa-
zem emergir um aspecto de arbitrariedade nessas teorias. Na medida em que
é possı́vel tanto a situação em que a teoria corresponda à realidade quanto
aquela em que haja alguma não-correspondência, e na medida em que não
é possı́vel o controle completo quanto à exata situação em cada caso, neces-
sariamente há alguma escolha2 associada ao processo de formulação teórica,
considerando as formulações possı́veis.
Um determinado campo do conhecimento no qual existam dados em-
pı́ricos acumulados pode potencialmente receber diversas (ou até infinitas)
formulações teóricas distintas igualmente aderentes a essa massa de dados.
Na ciência que se pratica, entretanto, não é usual, por questão de economia,
um cientista se dedicar a procurar formulações alternativas para teorias que
se ajustam bem aos dados disponı́veis. Essa tarefa se coloca nos momentos
em que se constatam discrepâncias significativas das predições teóricas em
relação aos dados. Abstratamente, no entanto, há um conjunto de todas as
alternativas teóricas possı́veis, incluindo aquelas ainda não disponı́veis para
os cientistas num dado momento. Uma possı́vel “melhor alternativa” deve
existir nesse conjunto, se se assume a hipótese realista. No entanto, essa
1
Uma idéia central na Filosofia da Ciência clássica é a chamada
. De acordo com essa idéia, essencialmente
não importa o processo segundo o qual uma teoria tenha sido formulada: uma vez que ela
esteja desenhada, inicia-se a tarefa da Filosofia da Ciência, com a aplicação de regras me-
todológicas para sua aceitação ou rejeição, guiando a atividade do projeto de experimentos
destinados a colocar a teoria à prova, bem como a de interpretação dos resultados desses
experimentos. Deve-se mencionar que Thomas Kuhn colocou em questão essa noção, a
partir de seu trabalho (Kuhn 1962), o que veio a ter desdobramentos importantes.
2
Neste texto, a terminologia é reservada para o processo de decisão em situações
em que não é inequı́voca a existência de uma “melhor alternativa”. De outra forma, sempre
que houver evidências inequı́vocas de que uma alternativa, dentre aquelas disponı́veis, é
melhor que todas as demais, será assumido que não existe escolha, o que corresponde a
dizer que a adoção da melhor alternativa é compulsória.
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 43

“melhor alternativa” não necessariamente é única, uma vez que podem exis-
tir teorias empiricamente equivalentes que partam de hipóteses metafı́sicas
distintas. Além disso, mesmo que tal“melhor alternativa”tenha sido adotada,
não será possı́vel reconhecer de maneira inequı́voca esse fato3 . A escolha de
uma forma teórica, que necessariamente se coloca como questão, é feita sobre
o subconjunto que contém as alternativas conhecidas pelos cientistas naquele
momento de tomada de decisão, mas possivelmente não contém uma “melhor
alternativa” dentre elas. É possı́vel que a escolha deva ser feita sobre um sub-
subconjunto de opções que, quando confrontadas duas a duas, apresentem
sempre uma caracterı́stica em que uma seja melhor, e uma caracterı́stica em
que a outra seja melhor. Fazendo uso da terminologia introduzida no capı́tulo
anterior, o conjunto das escolhas efetivamente existentes, num sentido global,
de formulações teóricas para um determinado campo de conhecimento deve
estar incluı́do em um conjunto terminal desse campo. Em cada momento,
mesmo que não se tenha ainda atingido esse conjunto terminal, é possı́vel
que se apresentem escolhas, considerando apenas as alternativas disponı́veis.
Apontamos aqui que não se colocam de fato escolhas quando:
Duas formas teóricas se ajustam igualmente aos dados disponı́veis, e
uma delas apresenta vantagens sobre a outra, tais como a “profundi-
dade”, ou a “compatibilidade com teorias conexas”, enquanto a outra
não evidencia nenhuma vantagem dessa ordem4 ;
Uma forma teórica se adequa a apenas um subconjunto dos dados que
são ajustados por outra forma, estando em desconformidade com os
demais dados, sendo que a primeira também não possui vantagens de
outra ordem, tais como a “profundidade”, ou a “compatibilidade com
teorias conexas”;
Uma forma teórica, se comparada com outra, explica melhor todos os
dados disponı́veis, e também apresenta outras vantagens tais como a
“profundidade”, ou a “compatibilidade com teorias conexas”, não apre-
sentando desvantagem teórica.
Nesses casos, é compulsória a indicação de uma forma em detrimento da
outra, pois tal opção é vantajosa sob pelo menos um critério, não sendo
3
Ver discussão a esse respeito no capı́tulo anterior.
4
O leitor deve ficar atento para o fato de que seria possı́vel uma primeira teoria possuir
algumas vantagens sobre a segunda ao mesmo tempo em que esta tivesse outras vantagens
sobre a primeira. Essa situação será analisada mais à frente.
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 44

desvantajosa de acordo com nenhum outro critério. No primeiro caso, uma


generalização da antiga diretriz metodológica da Navalha de Ockham5 obriga
a escolha da primeira alternativa. Este caso inclui a situação mencionada por
Popper (Popper 1934) em que uma teoria que inicialmente seria falsificada
por observações posteriormente recebe modificações ad hoc especificamente
para se adequar àquelas observações. No momento em que surgisse uma
teoria nova estruturalmente capaz de explicar as mesmas observações, esta
deveria ser escolhida. Já o segundo caso constitui a situação-modelo em
que o princı́pio da falsificação de Popper (Popper 1934) seria aplicável de
forma imediata, determinando a escolha da segunda alternativa. O terceiro
caso engloba, numa visão a posteriori, várias revoluções cientı́ficas modelares.
Essas três situações, embora exemplares, não constituem uma estrutura de
decisão interessante para estudo, pela sua própria nitidez. Em (Kuhn 2000,
p. 91), Kuhn apresenta uma observação semelhante a esta. Ele faz menção
à seguinte passagem em um artigo de Hempel (Hempel 1983):

“A ciência é geralmente vista como procurando formular uma vi-


são explicativa e preditiva de um mundo cada vez mais compreen-
siva e sistematicamente organizada. Parece-me que os desideratos
[que determinam quão boa é uma teoria] podem ser mais bem vis-
tos como tentativas de articular essa concepção de maneira um
pouco mais completa e explı́cita. E se os objetivos da pesquisa ci-
entı́fica pura são indicados pelos desideratos, então é obviamente
racional, ao escolher entre duas teorias concorrentes, optar por
aquela que melhor satisfaz os desideratos. ... [Essas considera-
ções] poderiam ser vistas como justificando de modo quase trivial
a escolha de teorias de acordo com quaisquer parâmetros impostos
pelos desideratos.”

Kuhn (2000, p. 258) prossegue comentando essa passagem:


5
O princı́pio da , atribuı́do a Guilherme de Ockham, pode ser enun-
ciado como , ou, numa tradução livre,
. Falamos aqui em “genera-
lização” desse princı́pio para designar a idéia de que, dadas teorias que sejam equivalentes
para explicar os dados disponı́veis até certo instante (essa é a situação-modelo de apli-
cação do princı́pio), deve ser escolhida aquela mais “verossı́mil”, sendo a verossimilhança
aı́ entendida, , como uma “parcimônia global”, que produz a máxima economia
(mı́nimo dispêndio e máximo ganho) no momento em que a nova formulação teórica é
inserida na estrutura global do conhecimento.
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 45

“Ele [Hempel] se refere a ela [essa abordagem do problema da


racionalidade da escolha de teorias] como “quase trivial” aparen-
temente porque se baseia em algo muito semelhante a uma tauto-
logia, e acha que ela, por isso mesmo, carece do impacto filosófico
que se espera de uma justificação satisfatória das normas para a
escolha racional de teorias.”

Kuhn exemplifica uma situação que corresponderia ao nosso segundo caso


acima (Kuhn 2000, p. 256):

“É óbvio que um cientista [...] estaria se comportando irracional-


mente se dissesse, com sinceridade, Substituir a teoria tradicio-
nal X por uma nova teoria Y reduz a exatidão das soluções de
quebra-cabeças, mas não tem nenhum efeito com respeito aos ou-
tros critérios pelos quais avalio teorias; não obstante, selecionarei
a teoria Y, pondo X de lado. ”

A questão da escolha na formulação de teorias emerge em situações mais


limı́trofes, nas quais a adesão a uma alternativa envolve ganhos e perdas.
Nesses casos surgem escolhas, em situações categorizáveis da seguinte forma:

Escolhas entre formas teóricas que se ajustem a subconjuntos distintos


de dados (ambas apresentando desajuste em parte do subconjunto em
que a outra se ajusta);6

Escolhas entre uma forma teórica que se ajuste melhor aos dados até
certo momento disponı́veis e outra forma teórica que seja dotada de
outros atributos desejáveis (por exemplo, maior “nı́vel de parcimônia”,
ou maior “compatibilidade com outras teorias conexas”);7

Escolhas entre formas teóricas tais que uma seja dotada de alguns atri-
butos desejáveis (por exemplo, maior “nı́vel de parcimônia”), e a outra
seja dotada de outros atributos também desejáveis (por exemplo, “maior
“compatibilidade com outras teorias conexas”);
6
A capacidade preditiva da mecânica quântica para as pequenas escalas versus a capa-
cidade da mecânica relativı́stica para as grandes escalas exemplifica essa situação.
7
Como exemplo dessa situação pode ser mencionada a transição da astronomia de
Ptolomeu (inicialmente, e por muito tempo, mais precisa) para o sistema de Coopérnico.
A escolha da segunda alternativa possivelmente ocorreu em um contexto em que ficava
aparente a maior fertilidade desta (Kuhn 1962).
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 46

Escolhas entre formas teóricas que sejam equivalentes sobre os dados


existentes, mas que possam gerar predições distintas sob condições ex-
perimentais ainda não testadas;8

Escolhas entre formas teóricas que sejam empiricamente equivalentes,


gerando predições completamente equivalentes, embora partam de pre-
missas metafı́sicas distintas.9

Essas categorias, pode-se constatar, não são todas mutuamente excludentes.


Além disso, essas escolhas se apresentam não apenas na situação em que
duas formulações teóricas prontas e rivais se colocam diante do cientista
para que ele faça a opção. Ao contrário, de maneira às vezes incremental
e às vezes envolvendo cortes de maior extensão, tais escolhas se aplicam ao
processo segundo o qual uma teoria vai sendo coletivamente constituı́da por
uma comunidade cientı́fica.
O tratamento da escolha racional de teorias requer a explicitação de cri-
térios segundo os quais estas devam ser julgadas. O trabalho de Bunge
(Bunge 1974) apresenta de forma sistemática um conjunto de tais critérios.
Seus desideratos para as teorias cientı́ficas, quando transpostos para a situ-
ação da escolha, acabam por enunciar o que pode ser entendido como uma
lista de critérios de verossimilhança10 , cuja avaliação pode fundamentar a
escolha. A lista11 de tais desideratos é (Bunge 1974, p. 131-144):

1. Correção sintática. Diz respeito à boa formação e coerência das pro-


posições da teoria.

2. Sistematicidade ou unidade conceitual. A teoria deve ser um sistema


conceitual unificado, para que o teste de qualquer de suas partes seja
relevante para o resto da teoria.

3. Exatidão linguı́stica. A ambiguidade, imprecisão e obscuridade dos ter-


mos especı́ficos têm de ser mı́nimas, para assegurar a interpretabilidade
empı́rica e a aplicabilidade da teoria.
8
Nesta situação se encontram hoje modelos da Fı́sica de Partı́culas, cujas predições
só poderiam ser discriminadas em experimentos com choques de partı́culas envolvendo
energias maiores que as atualmente praticáveis.
9
A esse respeito, ver por exemplo a discussão sobre a “seta do tempo” (Uzan 2007).
10
Nas palavras de Bunge: .
11
Apresentamos aqui a lista em formato condensado; a lista apresentada em (Bunge
1974) inclui uma discussão mais extensa a respeito de cada item.
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 47

4. Interpretabilidade empı́rica. Deve ser possı́vel derivar das assunções


da teoria, em conjunção com informações especı́ficas, proposições que
poderiam ser comparadas às proposições observacionais.

5. Representatividade. É desejável que a teoria represente, ou melhor,


reconstrua eventos reais e processos e não os descreva simplesmente e
preveja seus efeitos macroscópicos observáveis.

6. Simplicidade semântica. É desejável, até certo ponto, economizar pres-


suposições. (Esta exigência é imposta de maneira moderada em bases
antes pragmáticas que teóricas).

7. Coerência externa. A teoria deve ser coerente com a massa de conhe-


cimento aceito.

8. Poder explanatório. A teoria deve resolver os problemas propostos pela


explicação dos fatos e pelas generalizações empı́ricas, se existirem, de
um dado domı́nio e precisa fazê-lo da maneira mais exata possı́vel.

9. Poder de previsão. A teoria deve, no mı́nimo, prever aqueles fatos que


ela pode explicar após o evento. Mas, se possı́vel, a teoria deveria
também prever fatos e relações novos e insuspeitos: de outro modo,
será ancorada apenas no passado.

10. Profundidade. É desejável, mas de modo algum necessário, que as te-


orias expliquem coisas essenciais e cheguem ao fundo na estrutura de
nı́vel da realidade. [...] Enquanto algumas teorias explicam apenas as
aparências, outras introduzem entidades diafenomenais (mas escrutá-
veis) e propriedades pelas quais elas explicam o observável em termos
do não-observável.

11. Extensibilidade. Possibilidade de expansão para abranger novos domı́-


nios.

12. Fertilidade. A teoria deve ter poder explanatório: deve estar habili-
tada para guiar nova pesquisa e sugerir novas idéias, experimentos e
problemas no mesmo campo ou em campos aliados.

13. Originalidade. É desejável que a teoria seja nova em relação a sistemas


rivais.
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 48

14. Escrutabilidade. Não só os predicados que aparecem na teoria devem


ser abertos à investigação empı́rica pelo público e ao método autocor-
retivo da ciência, mas é preciso também que os pressupostos metodo-
lógicos da teoria sejam controláveis.

15. Refutabilidade. Deve ser possı́vel imaginar casos ou circunstâncias que


pudessem refutar a teoria.

16. Confirmabilidade. A teoria deve ter consequências particulares que


podem concordar com a observação (dentro de limites tecnicamente
razoáveis). E, por certo, a confirmação efetiva numa ampla extensão
deverá ser exigida para aceitação de toda teoria.

17. Simplicidade metodológica. É preciso que seja tecnicamente possı́vel


submeter a teoria a provas empı́ricas.

18. Nı́vel de parcimônia. A teoria tem de ser parcimoniosa em suas refe-


rências a outros setores da realidade, afora os diretamente envolvidos.

19. Justeza metacientı́fica. A teoria tem de ser compatı́vel com férteis


princı́pios metacientı́ficos, tais como os postulados da legalidade e ra-
cionalidade e as afirmações metanomológicas relevantes (tal como a
covariância geral).

20. Compatibilidade de cosmovisão. É desejável que a teoria seja coerente


com o núcleo comum das Weltanschauungen predominantes nos cı́rculos
cientı́ficos – cosmovisões que, de qualquer modo, moldam a própria
construção e acolhida das teorias cientı́ficas.

O próprio Bunge deixa claro que não há uma ordenação total entre esses desi-
deratos. Alguns são requisitos dificilmente dispensáveis em qualquer teoria,
tais como aqueles que lhes asseguram um conteúdo empı́rico: a interpre-
tabilidade empı́rica, a escrutabilidade, a refutabilidade, a confirmabilidade.
Outros desideratos podem ter maior ou menor importância no julgamento
de teorias, dependendo do contexto em que isso ocorre. Por exemplo, a cor-
reção sintática é desejável, mas sua exigência pode ser relaxada no caso de
novas teorias, que frequentemente apresentam inconsistências que devem ser
corrigidas através de algum trabalho teórico, sem serem por isso rejeitadas
de antemão. Outro exemplo, que revela uma possı́vel ambivalência desses
desideratos: a compatibilidade de cosmovisão, se por um lado normalmente
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 49

restringe as oportunidades para o aparecimento de teorias “malucas”, por


outro lado pode representar um obstáculo a eventuais mudanças que forem
necessárias na própria cosmovisão. Todos esses desideratos devem ser enten-
didos como atributos dotados de gradação, ou seja, uma formulação teórica
normalmente teria qualquer deles em maior ou menor grau12 .
Deve-se notar ainda que não é necessário determinar de forma objetiva
esses graus associados aos desideratos – basta a determinação do resultado
da comparação de graus (qual é maior e qual é menor) entre formulações
teóricas diferentes. Essa tarefa, embora muitas vezes factı́vel, não é comple-
tamente isenta de subjetividade. A situação em que se coloca a escolha numa
comparação entre duas formulações teóricas alternativas pode ser definida de
forma agora mais precisa, embora sujeita a essa subjetividade:

Uma alternativa é dominada pela outra quando, em todos os desidera-


tos, seu grau é menor ou igual que o da outra, sendo também estrita-
mente menor em pelo menos um desiderato;

Uma alternativa é não-dominada pela outra quando:

– Possui pelo menos um desiderato no qual seu grau é maior que


o da outra (nesse caso, pode ter ou não grau menor em outro
desiderato), ou
– Possui grau igual ao da outra em todos os desideratos.

A situação de escolha aparece quando há um grupo de possibilidades de for-


mulação teórica em que nenhuma das alternativas é dominada pela outra.
Essa situação acarreta dificuldades, pela ausência de um determinismo ló-
gico (ou tautológico) que possa guiar uma decisão que necessariamente será
tomada. Kuhn fornece indicações quanto à natureza apenas parcialmente
tautológica da racionalidade envolvida nessa decisão (Kuhn 2000, p. 263):

“Um requisito para qualquer um deles [racionalidade, justificação,


e outros] é a conformidade às restrições da lógica, e tenho feito
uso disso para mostrar que as normas usuais para a escolha de
teorias estão justificadas. Um outro requisito é a conformidade
às restrições da experiência, na ausência de boas razões em con-
trário. Ambos exibem parte do que é ser racional. Não se sabe o
12
Na comparação entre duas teorias, por exemplo, uma poderia ser mais refutável ou
mais fértil que a outra.
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 50

que quer dizer uma pessoa que negue a racionalidade da apren-


dizagem fundamentada na experiência (ou que negue que as con-
clusões nela baseadas estejam justificadas). Mas tudo isso fornece
apenas um pano de fundo para o problema da indução, o qual,
visto da perspectiva aqui desenvolvida, leva ao reconhecimento
de que não temos nenhuma alternativa racional à aprendizagem
fundamentada na experiência, e enseja a pergunta de por que esse
deveria ser o caso. [...] Não tento dar nenhuma resposta a essa
questão, mas gostaria de ter uma. Juntamente com a maioria
de vocês, compartilho do anseio de Hume. Preparar este artigo
fez-me compreender que tal anseio talvez seja intrı́nseco ao jogo,
mas não estou pronto para essa conclusão.”

Kuhn sugere, neste trecho, que a porção tautológica do critério de decisão


(que promove a exclusão das alternativas “dominadas”, de acordo com a ter-
minologia acima definida) seja considerada uma constrição, e que a escolha
dentre as alternativas restantes tenha como fundamento efetivo a “experiên-
cia” (aqui livremente entendida como o “paradigma”). A implicação disso,
tomada de maneira ingênua, pareceria ser: só ocorreriam mudanças de formu-
lações teóricas quando uma nova formulação “dominasse” a anterior – o que
entraria em contradição com a essência do trabalho do próprio Kuhn. O tra-
tamento dessa dificuldade poderia ser feito considerando a diversidade – ou
até a singularidade – das experiências de diferentes sub-grupos ou indivı́duos
nas comunidades cientı́ficas. Essa manobra, entretanto, teria como efeito a
restrição do domı́nio da racionalidade global do processo de decisão em ciên-
cia: esse domı́nio ficaria confinado ao âmbito da eficácia de um mecanismo
“evolutivo” similar à “seleção natural” Darwiniana. Dessa forma, experiências
diversificadas ensejariam desenvolvimentos teóricos em direções distintas no
âmbito do mesmo campo cientı́fico, que prosseguiriam até que uma das rotas
lograsse “dominar” as demais. O processo prosseguiria, à medida em que
ocorressem novas diversificações.
Desenvolvemos aqui a conjectura de que o domı́nio da racionalidade no
problema da tomada de decisão em ciências seja um pouco mais amplo que
aquele sugerido por Kuhn. O restante do presente capı́tulo deste ensaio pro-
põe um exame sistemático da porção não-tautológica da tomada de decisão
nas teorias cientı́ficas. Primeiramente é formalizado, de maneira mais precisa,
o estatuto lógico da sua componente de “fundamento na experiência” (ligada
à dinâmica dos “paradigmas”), na qualidade de um metacritério, dentre al-
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 51

guns metacritérios possı́veis. Apresentamos, por fim, alguns indı́cios de que


cada campo teórico admita determinados metacritérios de decisão e não ou-
tros, dependendo de sua condição informacional, e de que tal determinação
imponha consequências à própria estrutura das teorias.

2.2 Tomada de Decisão


Designaremos por decisão a definição de quais formulações teóricas serão
adotadas por prazo indefinido (até que nova situação de escolha se apresente),
e quais serão descartadas. Abstratamente, são possı́veis as seguintes rotas
para a tomada de decisão, em uma situação de escolha:

Um meta-critério adicional aos desideratos é acrescentado, sendo uti-


lizado para decidir entre as alternativas não-dominadas de formulação
teórica;

Um meta-critério expresso em termos de uma ordem de prioridades


entre os desideratos é utilizado para estabelecer uma decisão;

Pode-se ainda decidir por manter mais de uma formulação em uso13 , até
que novas evidências estejam disponı́veis para subsidiar uma decisão.

A respeito da terceira rota: poderia parecer racional manter em uso,


indefinidamente, toda formulação teórica enquanto não houvesse elementos
inequı́vocos para descartá-la. No entanto, a racionalidade, de cunho essen-
cialmente econômico14 , de eventualmente descartar uma formulação teórica
nessas condições encontra suporte na descrição do papel dos paradigmas ci-
entı́ficos feita por Thomas Kuhn (Kuhn 1962)15 . Essa questão se levanta com
13
“Manter em uso” aqui faz referência a um uso como modelo referencial para a descrição
da realidade. Assim, por exemplo, a mecânica newtoniana não é mais “mantida em uso”
após a mecânica relativı́stica, embora seja empregada de forma instrumental em diversos
campos da ciência e da tecnologia, e até mesmo seja utilizada como referência para o ensino
introdutório de Fı́sica.
14
A designação de “econômico” tem aqui a conotação de “referente à utilização racional
de recursos limitados”.
15
Nesta seção, a formulação de Kuhn será destituı́da de seu formato histórico-descritivo,
isto é, não pretenderemos aqui preservar a sua força na descrição de acontecimentos rela-
cionados com a história da ciência. Em contrapartida, temos a intenção de nela identificar
uma estrutura de racionalidade abstrata, na construção de uma teoria, que adicione ele-
mentos àqueles apontados por Bunge.
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 52

o reconhecimento da limitação dos recursos humanos e materiais que podem


ser atribuı́dos à atividade de pesquisa (Kuhn 1962, p. 45-46):

“[...] começo com a coleta de fatos, isto é, com as experiências e


observações descritas nas revistas técnicas, através das quais os
cientistas informam seus colegas dos resultados de suas pesquisas
em curso. De que aspectos da natureza tratam geralmente esses
relatórios? O que determina suas escolhas? E, dado que a maioria
das observações cientı́ficas consomem muito tempo, equipamento
e dinheiro, o que motiva o cientista a perseguir essa escolha até
uma conclusão?”

A própria natureza do trabalho cientı́fico, conforme descrita por Kuhn, apre-


senta uma estrutura que sugere a adoção de uma única alternativa de for-
mulação teórica, como forma de se aumentar a eficiência do trabalho de
investigação (Kuhn 1962):

“Quando os cientistas não estão de acordo sobre a existência ou


não de soluções para os problemas fundamentais de sua área de
estudos, então a busca de regras adquire uma função que não
possui normalmente. Contudo, enquanto os paradigmas parecem
seguros, eles podem funcionar sem que haja necessidade de um
acordo sobre as razões de seu emprego ou mesmo sem qualquer
tentativa de racionalização.” (p. 73-74)
“[...] a comunidade cientı́fica, uma vez liberada da necessidade de
reexaminar constantemente seus fundamentos em vista da acei-
tação de um paradigma comum, permite a seus membros concen-
trarem-se exclusivamente nos fenômenos mais esotéricos e sutis
que lhes interessam. Inevitavelmente, isso aumenta tanto a com-
petência como a eficácia com as quais o grupo como um todo
resolve novos problemas.” (p. 206)

Parte considerável da “economia” da ciência, na qual se investe considerá-


vel parcela do esforço, do tempo e dos recursos materiais disponı́veis para
a comunidade cientı́fica, é a atividade de treinamento das novas gerações
para o trabalho cientı́fico. Assim, a capacidade da ciência para o tratamento
dos problemas cientı́ficos está ligada ao investimento na formação das pes-
soas, e há uma relação de compromisso na escolha do tipo de aptidão a ser
constituı́do (Kuhn 1962):
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 53

“Os cientistas trabalham a partir de modelos adquiridos através


da educação ou da literatura a que são expostos posteriormente,
muitas vezes sem conhecer ou precisar conhecer quais as caracte-
rı́sticas que proporcionaram o status de paradigma comunitário
a esses modelos. Por atuarem assim, os cientistas não necessitam
de um conjunto completo de regras.” (p. 70-71)
“Dada a confiança em seus paradigmas, que torna essa técnica
educacional possı́vel, poucos cientistas gostariam de modificá-la.
Por que deveria o estudante de Fı́sica ler, por exemplo, as obras
de Newton, Faraday, Einstein ou Schrödinger, se tudo que ele
necessita saber acerca desses trabalhos está recapitulado de uma
forma mais breve, mais precisa e mais sistemática em diversos
manuais atualizados? Sem querer defender os excessos a que levou
esse tipo de educação em determinadas ocasiões, não se pode
deixar de reconhecer que, em geral, ele foi imensamente eficaz.”
(p. 207-208)
A predisposição por manter uma única alternativa de formulação teórica em
uso ocorre mesmo na ausência de elementos definitivos, de ordem lógica,
capazes de caracterizar inequivocamente a superioridade de uma formulação
em relação à outra (Kuhn 1962, p. 144):
“[...] visto que nenhum paradigma consegue resolver todos os
problemas que define e posto que não existem dois paradigmas que
deixem sem solução exatamente os mesmos problemas, os debates
entre paradigmas sempre envolvem a seguinte questão: quais são
os problemas que é mais significativo ter resolvido? Tal como
a questão dos padrões em competição, essa questão de valores
somente pode ser respondida em termos de critérios totalmente
exteriores à ciência e é esse recurso a critérios externos que – mais
obviamente que qualquer outra coisa – torna revolucionários os
debates entre paradigmas.”
Assim, as outras duas rotas de tomada de decisão (a adoção de uma
ordem de prioridades entre os desideratos; ou a adoção de um meta-critério
adicional que funcione como critério de decisão) terminam por constituirem
as possibilidades efetivamente disponı́veis. A formação dos paradigmas, ou
consensos, é descrita dessa forma como um processo de tomada de decisão,
em situações nas quais cabem escolhas (Kuhn 1962, p. 128):
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 54

“Para descobrir como as revoluções cientı́ficas são produzidas, te-


remos, portanto, que examinar não apenas o impacto da natureza
e da Lógica, mas igualmente as técnicas de argumentação persu-
asiva que são eficazes no interior dos grupos muito especiais que
constituem a comunidade dos cientistas.”

2.2.1 O paradigma como meta-critério


A adoção do paradigma como critério para julgar a si próprio conduziria a
uma circularidade epistemológica. Por esta razão, é impossı́vel incluir cri-
térios dessa ordem em uma lista como a de desideratos de Bunge (que se
pretende que expressem “sintomas de verdade”), listada na seção 2.1. No
entanto, há uma racionalidade na adoção do paradigma como um critério
de prioridade. Kuhn apresenta razões pelas quais um paradigma, por si,
constitui um valor (Kuhn 1962, p. 35):

“Na ausência de um paradigma ou de algum candidato a para-


digma, todos os fatos que possivelmente são pertinentes ao de-
senvolvimento de determinada ciência têm a probabilidade de
parecerem igualmente relevantes. Como consequência disso, as
primeiras coletas de fatos se aproximam muito mais de uma ati-
vidade ao acaso do que daquelas que o desenvolvimento subse-
quente da ciência torna familiar. Além disso, na ausência de uma
razão para procurar alguma forma de informação mais recôndita,
a coleta inicial de fatos é usualmente restrita à riqueza de dados
que estão prontamente à nossa disposição.”

Assim, no âmbito de um paradigma, fica clara a razoabilidade de se proteger


sua estrutura (Kuhn 1962):

“... uma teoria cientı́fica, após ter atingido o status de paradigma,


somente é considerada inválida quando existe uma alternativa
disponı́vel para substituı́-la. [...] o juı́zo que leva os cientistas
a rejeitarem uma teoria previamente aceita, baseia-se sempre em
algo mais do que essa comparação da teoria com o mundo. Decidir
rejeitar um paradigma é sempre decidir simultaneamente aceitar
outro e o juı́zo que conduz a essa decisão envolve a comparação de
ambos os paradigmas com a natureza, bem como sua comparação
mútua.”
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 55

Estando formado um paradigma, o processo de aquisição de novos conhe-


cimentos estruturalmente incompatı́veis com este necessariamente envolve,
então, a decisão a respeito de duas formulações: a formulação paradigmática
e uma outra formulação alternativa. O valor do paradigma de certa forma
justifica, nas rotas para tomada de decisão, a elevada prioridade dos desi-
deratos de compatibilidade externa e de compatibilidade de cosmovisão em
relação aos demais, além de acrescentar, no mesmo bojo, um meta-critério
extra:

Compatibilidade com o paradigma atual. Dadas duas formu-


lações teóricas alternativas, propostas em um campo cientı́fico no qual
haja um paradigma cientı́fico vigente, um critério que favorece a escolha
de uma em relação à outra é uma eventual maior compatibilidade dela
com esse paradigma.

Na verdade, este meta-critério trata-se também de uma regra de economia


(Kuhn 1962, p. 92):

“Ao assegurar que o paradigma não será facilmente abandonado,


a resistência garante que os cientistas não serão perturbados sem
razão.”

Para exemplificar esse ponto, o seguinte evento pode ser evocado (Kuhn 1962,
p. 112):

“Por exemplo, já indicamos que durante os sessenta anos que se


seguiram aos cálculos de Newton, o movimento predito para o
perigeu da Lua permaneceu equivalente à metade do movimento
observado. Enquanto os melhores fı́sicos matemáticos da Europa
continuavam a lutar sem êxito com essa conhecida discrepân-
cia, apareceram propostas ocasionais visando à modificação da lei
newtoniana relativa ao inverso do quadrado das distâncias. Mas
ninguém levou tais propostas muito a sério e na prática essa paci-
ência com uma importante anomalia demonstrou ser justificada.
Em 1750, Clairaut conseguiu mostrar que somente a Matemática
utilizada na aplicação estava errada e que a teoria newtoniana
poderia ser mantida inalterada.”

À revelia do pensamento de Thomas Kuhn, fizemos aqui uma interpre-


tação de caráter normativo do papel dos paradigmas cientı́ficos, descolando
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 56

essa interpretação de seu conteúdo histórico-descritivo. Dessa forma, iden-


tificamos a compatibilidade com o paradigma atual como um meta-critério
que adquire um caráter epistêmico (dotado de racionalidade intrı́nseca) me-
diante o requisito de que sua aplicação ocorra numa situação de escolha.
Embora a história da ciência certamente mostre um quadro distinto dessa
situação-modelo, tanto no nı́vel das tomadas de decisão individuais dos cien-
tistas quanto no nı́vel da evolução coletiva dos referenciais paradigmáticos, é
possı́vel conjecturar a existência de uma “pressão evolutiva” que aproxime o
desenrolar da história empiricamente verificada das ciências de um processo
dotado de alguma racionalidade global.

2.3 Meta-critérios constritores


Na seção 2.2, foi mostrado que a existência de um grau de arbitrariedade na
tomada de decisão a respeito de alternativas de formulações teóricas nas ciên-
cias implica a necessidade da adoção de meta-critérios, para além de critérios
puramente lógicos, como forma de orientar tal decisão. A ocorrência dessas
situações de escolha, conforme foi visto, também é inevitável em qualquer
campo cientı́fico.
No entanto, há campos do conhecimento nos quais essas situações, num
exame superficial, pareceriam constituir exceções. Um grupo de ciências é
capaz de descrever fenômenos de relativamente baixa dimensão, a partir de
dados geráveis sob condições controladas e em condições de reprodutibili-
dade. A Fı́sica exerce o papel de instância exemplar desse grupo de ciências.
A sobre-determinação advinda da abundância de informação disponı́vel é tra-
duzida na corroboração repetida das predições teóricas. A entropia verificada
em um estágio terminal de qualquer ciência desse grupo é consequentemente
baixa16 . No trecho a seguir, Habermas faz menção ao papel da própria con-
trução das teorias a partir de critérios tais como o da refutabilidade e o
da confirmabilidade, para o estabelecimento de tais condições informacionais
(Habermas 1968, p. 137):
“Nas ciências empı́rico-analı́ticas, o sistema de referência, que pré-
avalia o sentido de possı́veis proposições cientı́fico-experimentais,
16
Pela própria comodidade do tratamento das questões cientı́ficas no âmbito desse grupo
de ciências, tornou-se frequente, em certas correntes de pensamento e em certo perı́odo, a
de considerar tal grupo de ciências como , no sentido de ,
no conjunto das ciências.
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 57

estabelece regras não só para a construção de teorias, mas tam-


bém para a sua comprovação crı́tica. As teorias constam de cone-
xões hipotético-dedutivas de proposições, que permitem a deriva-
ção de hipóteses com conteúdo empı́rico. Tais hipóteses deixam-se
interpretar como enunciados sobre a covariância de grandezas ob-
serváveis; sob condições iniciais dadas permitem prognósticos. O
saber empı́rico-analı́tico é, por conseguinte, um saber prognóstico
possı́vel. Sem dúvida, o sentido de tais prognósticos, a saber, sua
viabilidade técnica, deriva exclusivamente de regras segundo as
quais aplicamos as teorias à realidade.”

Nessas ciências, o processo de decisão necessário para a fixação de for-


mulações teóricas pode ser razoavelmente bem descrito pelo mecanismo dos
paradigmas de Kuhn (Kuhn 1962) que se resolve com a adoção do próprio
paradigma como meta-critério de decisão, conforme discutido na seção 2.2.
A circunstância particular que permite isso, entretanto, é a abundância de
dados experimentais em relação às entidades constituintes da teoria, a que
denominaremos aqui constrição por saturação empı́rica. Diremos aqui que
em um campo do conhecimento ocorre a constrição por saturação empı́rica
se uma parte substancial das predições de “novos efeitos” deriváveis da teoria
pode ser submetida a testes empı́ricos (havendo a percepção, por parte dos
cientistas, de que a execução do teste é questão de tempo e esforço para “a
maioria” das predições de “novos efeitos” não prontamente testáveis). Quando
isso ocorre, os dados experimentais restringem fortemente os tipos de teorias
admissı́veis, o que permite a gênese de um contexto cognitivo em que se pres-
supõe a crença na existência das entidades previstas em teoria e na descrição
fornecida pela teoria para o comportamento destas, ainda que essa crença
venha balizada pelo princı́pio de provisoriedade do conhecimento cientı́fico.
Nas palavras de Habermas (Habermas 1968, p. 138):

“Tomando conjuntamente os dois momentos, a construção lógica


dos sistemas de enunciados admissı́veis e o tipo das condições
de comprovação sugerem a interpretação de que as teorias das
ciências experimentais desvendam a realidade sob a direção do
interesse pela possı́vel segurança informativa e pela ampliação da
ação de êxito controlado. Tal é o interesse cognitivo que incide
na disposição técnica sobre os processos objetivados.”

Em contraste, há aquelas situações em que não ocorre a constrição por


CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 58

saturação empı́rica. Por circunstâncias da natureza de cada campo do co-


nhecimento, há em cada caso particular uma estrutura para o problema da
aquisição de dados empı́ricos, que nem sempre conduz àquela situação cogni-
tivamente favorável. Podem ser mencionados exemplos de campos do conhe-
cimento situados em áreas distintas, nos quais ocorre estruturalmente uma
limitação da informação empı́rica disponı́vel: Cosmologia, Paleontologia, An-
tropologia, Arqueologia, História, e outros. Nestes campos, as lacunas estru-
turalmente presentes na informação empı́rica disponı́vel dão origem a uma
proliferação de mundos possı́veis compatı́veis com os dados. Torna-se cog-
nitivamente inaceitável a adesão a uma crença em um modelo particular de
mundo que especifique de forma completa a trajetória das entidades previstas
na teoria.

2.4 Realismo, Ceticismo e os Meta-Critérios


Constritores
Cabe, antes de encerrar este capı́tulo, uma discussão a respeito do impacto
que o reconhecimento da necessidade de meta-critérios para a escolha de
teorias cientı́ficas pode causar – alimentando um certo ceticismo quanto à
possibilidade do homem conhecer ou representar o mundo. Em nossa opi-
nião, esse processo possui precedentes na Filosofia da Ciência. O reconhe-
cimento da falibilidade intrı́nseca ao conhecimento cientı́fico, no inı́cio do
século XX, instaurou de maneira definitiva a incerteza como elemento inse-
parável do conhecimento possı́vel. Assim se tornaram obsoletas as crenças
realistas ingênuas que pressupunham a existência de algum mecanismo capaz
de assegurar, de forma definitiva, a validade de inferências indutivas sobre a
natureza. A posição realista na filosofia da ciência no entanto se reconstituiu
pelo mecanismo das conjecturas e refutações, que mediariam o contato do
sistema cientı́fico com a realidade do mundo. Assim, uma limitação da aces-
sibilidade à realidade não se tornava sinônima nem da impossibilidade desse
acesso, nem muito menos da ausência de conteúdo nos sistemas teóricos com
os quais os cientistas registram e articulam os esforços para conhecer essa
realidade.
A presença de meta-critérios constritores repercutindo sobre a estrutura
de teorias cientı́ficas que se desejariam ao menos aproximativamente (ou ten-
dencialmente) correspondentes a uma realidade possui efeito similar à falibi-
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 59

lidade, no que diz respeito ao abalo de crenças primitivas a respeito do poder


da ciência para criar representações inequı́vocas da realidade. O fato de
as teorias serem em parte determinadas por tais meta-critérios constitui um
novo elemento de dúvida quanto à capacidade destas, em sua forma presente,
para expressarem esta realidade – dada a arbitrariedade que necessariamente
acrescenta à forma que o conhecimento assume num dado instante.
Pode parecer incômoda a possibilidade de que determinados domı́nios da
realidade não sejam, em um instante presente, prontamente susceptı́veis de
serem representados de maneira inequı́voca por um sistema teórico único.
Pior ainda é a possibilidade de que outros domı́nios talvez jamais venham a
ter sua descrição incorporada ao conhecimento humano, ou pelo menos não
no grau de detalhe que seria desejável, como decorrência da impossibilidade
do acúmulo de informação em quantidade suficiente a seu respeito. No en-
tanto, a hipótese contrária, arbitrária e de cunho idealista, de que todos os
campos de fenômenos do mundo devam possuir a cada instante uma única
teoria epistemicamente determinada, independente da massa de informação
até então acumulada, possui estrutura lógica idêntica às antigas tentativas
de se resolver o problema da indução pela via do postulado. Por esse motivo,
tal hipótese não parece compatı́vel com a Filosofia da Ciência a partir de
Popper.
A hipótese realista levada às suas últimas consequências metafı́sicas e apli-
cada tomando o próprio processo de construção do conhecimento cientı́fico
como objeto de estudo requer que seja permitida a ocorrência de estágios
intermediários na construção desse conhecimento, nos quais haja significa-
tiva imprecisão de modelos teóricos e severas lacunas nos dados disponı́veis.
Nessa situação, os meta-critérios constritores, antes de representarem uma
concessão a teses relativistas, expressam a possibilidade de manifestação de
uma racionalidade mesmo diante de tais limitações informacionais. E, con-
forme descritos neste capı́tulo, pretendem fornecer um suporte racional que
seja aplicável à tomada de decisão na formatação de teorias mesmo na si-
tuação de provisoriedade caracterı́stica de ciências incipientes ou de campos
cientı́ficos em que seja inevitável a rarefação de dados.
Devemos apontar que emerge, como consequência do sistema de meta-
critérios constritores, um critério capaz de sinalizar um estágio de consoli-
dação de determinado domı́nio teórico (ou seja, um “estado terminal”): a
ausência de escolhas. Se o conjunto disponı́vel de desideratos de natureza
epistêmica aponta, de maneira unı́voca, para uma determinada formatação
teórica, pode-se considerar esse fato um indı́cio de que o campo do conhe-
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 60

cimento tenha atingido uma estabilidade que o situa pelo menos no nı́vel
da “confirmação”, conforme terminologia introduzida no Capı́tulo 1. Além
disso, essa indicação unı́voca trata-se de um requisito indispensável para um
campo do conhecimento se situar no nı́vel do “referendo”. Complementar-
mente, a presença de escolhas na formulação teórica padrão de um campo
do conhecimento indica que se este não se encontrar no nı́vel da elaboração,
deve se encontrar no máximo no nı́vel da confirmação. O uso social do conhe-
cimento cientı́fico frequentemente pressupõe a consolidação da base teórica
empregada, de tal modo a referendar as conclusões especı́ficas em questão.
A presença de escolhas na base teórica, nesse caso, serve de um indicador da
necessidade de maior cautela na aceitação de quaisquer conclusões advindas
dessa base.
Tanto no interior da ciência quanto na interface desta com a sociedade, é
realista admitir que a presença de incerteza não necessariamente tenha como
consequência a impossibilidade de formulação de juı́zos ou condutas racio-
nais. Reconhecer a eventual necessidade de fazer escolhas é uma ponte mais
segura, no trajeto para um possı́vel futuro estado de maior disponibilidade
de informação no qual a arbitrariedade das escolhas seja dispensável, do que
a crença numa imagem idealizada da ciência que afirmasse que estas jamais
seriam feitas17 ou jamais deveriam ser feitas18 .

17
Essa crença corresponde ao postulado de que sempre que houver uma disputa entre dois
sistemas teóricos distintos, necessariamente estará disponı́vel uma justificativa epistêmica
para descartar um dos dois.
18
Essa crença equivale a uma prescrição para rejeitar todas as possibilidades de sistemas
teóricos disponı́veis quando não houver justificativas epistêmicas para considerar um deles
mais adequado que os demais.
61
O lugar da técnica no quadro do conhecimento tido como “filosoficamente
relevante” é um tema que parece se originar (pelo menos dentro da tradição
ocidental) na própria constituição do “mundo grego”, ligado à própria questão
que a construção desse mundo procurava responder. Além de sua origem
semântica, é possı́vel identificar um ponto focal de toda a carga simbólica
que referencia a atitude do homem contemporâneo em relação à técnica no
conceito grego de techné.
De maneira central no programa grego, ultrapassando as racionalidades
instrumentais presentes em todas as sociedades de antes e de depois, buscava-
se o fio de uma universalidade capaz de inaugurar um projeto antropocêntrico
de civilização que desse suporte à noção da alteridade como requisito funda-
cional de tal projeto. Assim, o mundo grego, para além de instituir leis para
reger sua sociedade, procurou as leis imanentes à natureza e ao espı́rito, a
verdade acima do sujeito, para a partir destas reger sua própria sociedade.
Aglomerados humanos progressivamente maiores poderiam se formar, com
fundamento no acesso de cada indivı́duo, por meio da racionalidade, à pres-
crição da própria conduta, e aos espaços de mediação de interesses. Tal
projeto civilizatório era um construto que fundamentava-se, acima de tudo,
na criação, pelo homem, de um homem até então inexistente, não encontrá-
vel em estado natural, e também não genericamente associado às formas de
agregado humano que precederam a civilização grega.
No mundo em que se ergueu o projeto da civilização grega, a noção de
techné designava a ordem dos conhecimentos de cunho prático, que eram
caracterı́sticos de cada povo, em sua singularidade, mas comuns a todos os
povos, na medida em que representavam requisitos para a viabilidade de sua

62
CAPÍTULO 3: CIÊNCIA E TECHNÉ 63

existência (Jaeger 1935, p. 23):

“O conteúdo [da educação], aproximadamente o mesmo em to-


dos os povos, é ao mesmo tempo moral e prático. (...) uma
série de preceitos sobre a moralidade externa e em regras de pru-
dência para a vida, transmitidas oralmente pelos séculos afora; e
apresenta-se ainda como comunicação de conhecimentos e apti-
dões profissionais a cujo conjunto, na medida em que é transmis-
sı́vel, os gregos deram o nome de techné.”

O programa grego, por contraste, pressupunha a criação de outra ordem


de conhecimentos, até então não disponı́vel, cujo elemento distintivo era a
sua meta de universalidade apoiada no princı́pio da intersubjetividade. A
constituição dessa outra ordem de conhecimentos, inseparável da formação
das pessoas capazes de detê-los, por sua vez, requeria um afastamento de
tudo aquilo que fosse da ordem do dia-a-dia, do imediato, do pragmático.
Segundo Jaeger (1935, p. 24,13-14):

“Da educação, nesse sentido, distingue-se a formação do Homem


por meio da criação de um tipo ideal intimamente coerente e cla-
ramente definido. Esta formação não é possı́vel sem se fornecer
ao espı́rito uma imagem do Homem tal como ele deve ser. (...)
Só a este tipo de educação se pode aplicar com propriedade a
palavra formação, tal como a usou Platão pela primeira vez em
sentido metafórico, aplicando-a à ação educadora.(...) Em todo
lugar onde esta idéia reaparece mais tarde na História, ela é uma
herança dos gregos, e aparece sempre que o espı́rito humano aban-
dona a idéia de um adestramento em função de fins exteriores e
reflete na essência própria da educação.”

Essa herança fundacional, transformada e ressignificada ao longo dos milê-


nios, continua determinando diversas instâncias das tensões que ressurgem de
maneira recorrente entre as dimensões pragmáticas da existência, de tendên-
cia particularista, e o afastamento reflexivo, potencialmente capaz de aspirar
à universalidade. Assim, a “filosofia natural”, categoria herdada da Grécia,
chega ao mundo renascentista como fio condutor daquilo que o mundo con-
temporâneo veio a chamar de “ciência”. Como parte daquela herança, ela se
referia a uma empreitada de caráter especificamente contemplativo, apartada
de qualquer vı́nculo com o conhecimento de cunho prático. A filosofia natural
CAPÍTULO 3: CIÊNCIA E TECHNÉ 64

que chega ao século XVII se definia ligada exclusivamente à compreensão do


mundo natural – projeto de cunho essencialmente especulativo.
Ao par da inovação na prática da ciência ao longo da Revolução Cientı́-
fica dos séculos XVI-XVII, filósofos como Francis Bacon têm de lidar com o
problema de reestruturar o pensamento filosófico sobre o qual aquela prática
construı́a seu significado. O papel central do experimento na ciência tem de
ser reconhecido, trazendo como sub-produto a noção de que o funcionamento
de artefatos pudesse ser um elemento importante para a própria justificação
do conhecimento embutido na filosofia natural. Bacon utiliza uma estratégia
interessante para lidar com o relacionamento da filosofia natural com o tema
da “utilidade” (Bacon 1605):
“[...] seria bom dividir a filosofia natural entre a mina e a forna-
lha, e fazer duas as profissões ou ocupações dos filósofos naturais
– alguns para serem pioneiros e outros ferreiros; alguns para es-
cavar, e alguns para refinar e forjar. E eu certamente admito
uma divisão deste tipo, embora em termos mais familiares e esco-
lásticos, quais sejam, que estas sejam as duas partes da filosofia
natural – a inquisição das causas, e a produção dos efeitos; espe-
culativa e operativa; ciência natural e prudência natural. Assim
como em questões civis existe uma sabedoria do discurso, e uma
sabedoria da direção, da mesma forma ocorre nas naturais. [...]
Agora embora seja verdade, bem o sei, que exista um intercurso
entre causas e efeitos, de forma que esses dois conhecimentos, es-
peculativo e operativo, tenham uma forte conexão entre si; ainda
porque toda filosofia natural verdadeira e frutı́fera tivera uma du-
pla escala ou escada, ascendente e descendente, ascendendo dos
experimentos para a invenção das causas, e descendendo das cau-
sas para a invenção de novos experimentos; portanto eu considero
altamente essencial que essas duas partes sejam severamente con-
sideradas e trabalhadas.”
A filosofia de Bacon tratava apenas da questão da investigação de relações de
causa e efeito, não tendo tratado da questão da aplicação do conhecimento
da natureza para a obtenção de efeitos práticos. Mesmo assim, Bacon teve
de lidar com a controvérsia em relação à tradição aristotélica, o que ele faz
procurando colocar em perspectiva sua divergência (Bacon 1605):
“E de tal maneira, acredito que vá facilmente assim parecer para
homens razoáveis, que neste e em outros particulares, onde quer
CAPÍTULO 3: CIÊNCIA E TECHNÉ 65

que a minha concepção e noção possam diferir das antigas, eu


ainda sou diligente para manter os termos antigos. Esperando
me resguardar de equı́vocos, pelo ordenamento e pela clareza de
expressão daquilo que eu proponho, eu sou além disso zelozo e
disposto a me afastar tão pouco da antiguidade, seja em termos
ou opiniões, quanto possa permanecer com a verdade e a profici-
ência do conhecimento. E nisto eu não posso me surpreender nem
um pouco com o filósofo Aristóteles, que procedeu em tal espı́rito
de diferença e contradição face a toda a antiguidade; assumindo
com vigor a tarefa não apenas de formular novos discursos de ci-
ência, mas de vencer e colocar um fim a toda a sabedoria anterior;
em tal extensão que ele nunca nomeou ou mencionou um autor
ou opinião antigos, exceto para refutar e criticar; no que para a
glória, e para delinear seguidores e disciplinas, ele tomou o curso
correto.”

Como Bacon já divisava, a reflexão sobre o mundo não podia prescindir
do contato com esse mundo. Tal contato, por seu turno, devolvia ao mundo
o resultado do escrutı́nio intelectual a respeito da sua estrutura perene. Essa
tarefa da busca desinteressada do universal por um lado imaginadamente
se autonomizou, procurando se apartar das contingências da ordem do ime-
diato, como requisito indispensável para sua consecução. Por outro lado,
denotando a eficácia do próprio programa de construção de uma civilização
antropocêntrica que a postulou, o conhecimento resultante dessa busca re-
sultou em profundos impactos sobre o mundo, tanto no que diz respeito à
cosmovisão quanto naquilo que pode ser considerado aspiração humana ra-
cional, ou ainda nas disponibilidades materiais que contornam o homem. A
partir do Renascimento, ficava claro que já não se tratava do mesmo homem
da antiguidade, agora dotado de “sabedoria”, mas de um homem-efeito, a
demonstrar a validade daquele postulado primitivo da eficácia da busca do
universal. O mundo agora possuı́a mais classes de objetos, mais entidades,
incluindo um outro homem, e o escopo da busca da “verdade” cada vez menos
teria a possibilidade de permanecer consensual.
A contradição intrı́nseca ao programa grego que postulava uma atitude
desinteressada, da busca pela busca, dentro do âmbito de um programa de
transformação de uma civilização, proseguiu ecoando. As conseqüências da
mudança de perspectiva da ciência tiveram um impacto que seria insuspeito
no século XVI, mas que se tornou inevitável já no século XVIII (Dear 2005):
CAPÍTULO 3: CIÊNCIA E TECHNÉ 66

“As ciências européias da natureza nos séculos dezessete e dezoito


experimentaram o desenvolvimento de dois mutuamente apoia-
dos, porém analiticamente distintos, empreendimentos, ou “dis-
cursos”. Um deles era “filosófico natural”, no sentido de ser con-
templativo e de almejar a compreensão do mundo natural; o ou-
tro era instrumental e era engendrado para a produção de efeitos
práticos, fossem eles relacionados com movimentar pesos ou com
melhorar a agricultura. Com efeito, esse perı́odo assistiu o esta-
belecimento de um novo empreendimento, que absorveu a velha
“filosofia natural” e a rearticulou nos novos termos da instrumen-
talidade: o engajamento com o mundo que, no século dezenove,
produziu a ciência moderna nasceu portanto de um hı́brido dis-
cursivo desses esforços analiticamente não relacionados.”

Assim, o empreendimento cientı́fico, que marca fundamentalmente a cul-


tura contemporânea, tanto com seu impacto na base material da sociedade
quanto com o seu aparato de constituição da cosmovisão, chega até nós nar-
radamente e imaginadamente cindido. Ao preservar intocada a tradição do
apartamento da techné do domı́nio do conhecimento tido como epistemologi-
camente relevante, tal cisão produz ecos duradouros na própria compreensão
da estrutura da ciência, na sua demarcação e na formulação de prescrições
metodológicas.

3.1 Sobre a Natureza do Conhecimento Tec-


nológico
Uma corrente de interpretação do conhecimento tecnológico – que transpõe
diretamente o preceito grego de valoração das techné – tende a considerar tal
conhecimento como decorrência imediata do conhecimento cientı́fico “puro”,
desprovida portanto de um interesse epistemológico especı́fico. Esse ponto
de vista é expresso de maneira inequı́voca pelo biólogo Thomas Huxley, em
1880 (Dear 2005):

“Eu desejaria que esta frase, ‘ciência aplicada’, jamais tivesse sido
inventada. Pois ela sugere que existe um tipo de conhecimento
cientı́fico de uso prático direto, que pode ser estudado separada-
mente de outro tipo de conhecimento cientı́fico, que não possui
CAPÍTULO 3: CIÊNCIA E TECHNÉ 67

utilidade prática, e que é denominado ‘ciência pura’. Mas não há


uma falácia mais completa do que esta. O que as pessoas chamam
de ciência aplicada não é mais que a aplicação da ciência pura a
classes particulares de problemas. Ela consiste de deduções fei-
tas a partir daqueles princı́pios gerais, estabelecidos por meio de
raciocı́nio e observação, que constituem a ciência pura. Ninguém
pode fazer essas deduções de forma segura antes de ter uma firme
compreensão dos princı́pios; e só se pode obter tal compreensão a
partir de uma experiência pessoal com as operações de observação
e de busca das razões sobre as quais estas se fundamentam.”
A influência dessa concepção atravessa a própria filosofia da ciência da
primeira metade do século XX. Karl Popper1 , por exemplo, adota essen-
cialmente esse ponto de vista quando distingue as “ciências aplicadas” das
“ciências teóricas” pela suposta caracterı́stica das primeiras de não possuı́-
rem corpo teórico próprio, e de utilizarem apenas leis universais oriundas
das segundas, para a produção de “efeitos especı́ficos”. Sob o ponto de vista
epistemológico, esses “efeitos especı́ficos” teriam um significado confirmatório
para as “ciências teóricas” de onde a lei universal seria proveniente, mas não
para as próprias “ciências aplicadas” (Popper 1966, p. 220):
“[...] o emprego de uma teoria com o propósito de predizer al-
gum evento especı́fico é apenas outro aspecto de seu uso com a
finalidade de explicar esse evento. E uma vez que testamos uma
teoria comparando os eventos previstos com os observados na prá-
tica, nossa análise também demonstra como as teorias podem ser
testadas. Se a teoria será usada para fins de explicação, ou de
previsão, ou ainda de teste, depende de nosso interesse e de quais
proposições admitimos como dadas.
Assim, no caso das chamadas ciências teóricas ou generalizantes
(como a fı́sica, a biologia, a sociologia, etc.), nosso interesse pre-
dominante está voltado para leis ou hipóteses universais. Que-
remos saber se são verdadeiras, e uma vez que nunca podemos
nos assegurar diretamente de que o são, adotamos o método de
eliminação das leis e hipóteses falsas. Nosso interesse pelos even-
tos especı́ficos, por exemplo, por experimentos que são descritos
1
Para tratar essa citação com justeza, é preciso mencionar que no texto em questão
Popper não tratava especificamente da questão da tecnologia (até onde sabemos, ele não
abordou esse assunto em sua obra).
CAPÍTULO 3: CIÊNCIA E TECHNÉ 68

pelas condições iniciais e prognoses, é algo limitado; estamos in-


teressados neles especialmente enquanto meios para certos fins,
meios pelos quais podemos testar as leis universais, que depois
serão consideradas interessantes por si mesmas e unificadoras de
nosso conhecimento.
No caso das ciências aplicadas, nosso interesse é diferente. O
engenheiro que usa a fı́sica para construir uma ponte está preci-
puamente interessado numa prognose: se uma ponte de um certo
tipo descrito (pelas condições iniciais) irá ou não suportar uma
certa carga. Para ele, as leis universais são meios para um fim e
admitidas como dadas.”
Cabe aqui conjecturar que, em meados do século XX, os aparatos tecnoló-
gicos que povoavam o mundo àquela altura não deixassem transparecer a
emergência de um novo nı́vel ôntico de especificidade tecnológica. De fato,
mesmo o mais assombroso exemplo de artefato tecnológico surgido naquele
perı́odo – a bomba atômica – teve um processo de construção que pode ser
adequadamente descrito como uma conjugação sem precedente de esforços
para demonstrar a ocorrência de um “novo efeito”, decorrente da equação
2
relativı́stica = e da interação de nêutrons com núcleos atômicos. O
processo de construção da bomba pode, a rigor, ser enquadrado no modelo
de um empreendimento de teste experimental de uma teoria exceto – cruci-
almente – pela motivação finalı́stica do efeito em si (Baird 1999):
“J. Robert Oppenheimer descreveu a razão pela qual ele e outros
investiram no desenvolvimento da bomba atômica da seguinte
forma: Mas quando você vai ao ponto, a razão porque nós fizemos
este trabalho é que ele era uma necessidade orgânica. Se você é
um cientista você não pode parar uma coisa dessas. Se você é
um cientista você acredita que é uma coisa boa descobrir como o
mundo funciona; que é bom descobrir o que as realidades são; que
é bom devolver à humanidade em geral o maior poderio possı́vel
para controlar o mundo e para lidar com ele de acordo com suas
luzes e seus valores.”
Uma imagem talvez plausı́vel para a tecnologia daquele momento seria
a de uma atividade artesanal (dotada de saber artesanal) que incorporasse,
episodicamente, algum “efeito” oriundo do saber cientı́fico. Essa imagem é
compatı́vel com o fato de que, até as primeiras décadas do século XX, as
CAPÍTULO 3: CIÊNCIA E TECHNÉ 69

Engenharias mantinham poucos pontos de contato com as ciências e com as


metodologias cientı́ficas (Walker 1968).
A partir do final do século XX, a concepção da tecnologia como mera
decorrência das ciências veio perdendo gradativamente sua força, não sendo
hoje comum sua manifestação no âmbito da filosofia da ciência. Mitcham
(1994) apresenta um histórico detalhado da sucessão de concepções filosóficas
a respeito do conhecimento tecnológico. O reconhecimento da autonomia das
tecnologias como campos do conhecimento dotados de dinâmica própria vem
ocorrendo com fundamento, por exemplo, na necessidade da existência desses
campos como requisito para o “aparecimento” de seus resultados (Dear 2005):
“Uma das implicações de se atribuir efetividade instrumental ao
conteúdo filosófico natural da ciência, da maneira exemplificada
por Huxley, é que isso claramente promove um grave desserviço
ao trabalho e ao conteúdo intelectual de todos os tipos de en-
genharia – seja mecânica, genética, computacional, ou qualquer
outro tipo de intervenção prática no mundo. Tais realizações são
de fato os resultados de complexos esforços que envolvem um
enorme arranjo de técnicas teóricas e empı́ricas e habilidades, to-
das mutuamente dependentes. Há apenas um tênue e altamente
mediado caminho de retorno para qualquer componente filosofia
natural envolvido em tal composição. Quando instâncias espe-
cı́ficas da aparentemente direta ‘aplicação’ da ‘pesquisa básica’
ou da ‘ciência pura’ são examinadas de perto, os resultados ten-
dem a mostrar que não apenas o trabalho prático, mas também o
teórico, necessários para se conseguir que coisas complicadas fun-
cionem adequadamente, é de uma ordem muito mais elevada do
que a relação ‘ciência pura’/’ciência aplicada’ poderia implicar.”
A precisa natureza do conhecimento tecnológico, no que diz respeito à sua
relação com o conhecimento cientı́fico, ainda é um tema em aberto (de Vries
2003):
“Parece que não foi publicado muito a esse respeito até agora.
Vários filósofos escreveram sobre o fato de que a tecnologia não
pode ser descrita adequadamente como ‘ciência aplicada’. Hoje
em dia, a maioria dos filósofos da tecnologia aceitam a idéia de
que o conhecimento tecnológico seja diferente do conhecimento
cientı́fico. Mas como ele difere do conhecimento cientı́fico ainda
não foi descrito em muito detalhe.”
CAPÍTULO 3: CIÊNCIA E TECHNÉ 70

A discussão a respeito dessa natureza constitui o tema do próximo capı́-


tulo.
Em anos recentes, tem havido um crescente interesse no estudo filosófico do
conhecimento tecnológico. Obras recentes como (Mitcham 1994, Scharff &
Dusek 2003, Durbin 2006), dedicadas ao estudo do tema, apresentam re-
trospectivas de abordagens diversas que vieram sendo empregadas, desde a
antiguidade, para tratar o assunto. Uma abordagem relativamente recente
do problema, construı́da em conexão com a tradição da Filosofia da Ciência,
aparece na obra de Bunge (Bunge 1967, Bunge 1980b, Bunge 1980a).
Vem sendo frequentemente discutida, nas duas últimas décadas, a tese
de que o conhecimento utilizado pelo engenheiro em sua atividade de projeto
e construção dos artefatos tecnológicos seria diferente do conhecimento ci-
entı́fico. Os trabalhos de Mitcham (1994), Ropohl (1997), de Vries (2003),
Ankiewicz, de Swardt & de Vries (2006) são exemplos de textos que se situam
no âmbito de tal debate.
No entanto, a maioria desses trabalhos pregressos aborda uma questão de
ordem muito diferente daquela que é o tema do presente ensaio. No contexto
aqui delimitado, faz-se importante nem tanto atingir uma descrição deta-
lhada da natureza do conhecimento tecnológico mas, antes, saber reconhecer
eventuais domı́nios desse conhecimento que guardem um tipo especı́fico de
similaridade com o conhecimento do tipo cientı́fico. Como ponto de par-
tida, cabe observar a seguinte definição de tecnologia, enunciada por Bunge
(1980b):

Definição (Bunge 1980b, pag. 186): “Um corpo de conheci-

71
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 72

mentos é uma tecnologia se e somente se:


É compatı́vel com a ciência contemporânea e controlável pelo
método cientı́fico; e
É empregado para controlar, transformar ou criar coisas ou
processos, naturais ou sociais.”
Neste ensaio temos interesse em examinar um subconjunto dos corpos de
conhecimento assim definidos como tecnologias. Especificamente, temos in-
teresse em corpos que iremos designar por conhecimento tecnológico do tipo
cientı́fico:
Definição: Um corpo de conhecimentos é um conhecimento tec-
nológico do tipo cientı́fico se e somente se:
É uma tecnologia, conforme a definição de Bunge; e
Possui uma estrutura cujo núcleo é constituı́do de formula-
ções teóricas próprias; e
Apresenta uma dinâmica que se manifesta na forma de su-
cessivas reconstruções de tal núcleo, motivadas pela consta-
tação de inadequações entre predições teóricas e observações
empı́ricas.
Neste ensaio, portanto, o conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico é de-
finido de forma a abranger ramos do conhecimento que devem apresentar
caracterı́sticas tais que:
Comunidades cientı́ficas que se debruçam sobre teorias sejam congrega-
das em um esforço cujo sentido principal é o de aperfeiçoar tais teorias
de acordo com critérios semelhantes aos “desideratos” de Bunge1 , des-
critos no capı́tulo 22 .
1
Exemplos desses desideratos seriam: conexão com outras teorias, correção sintática,
precisão, poder explanatório, etc.
2
Fazemos notar, a esse respeito, que muito tem sido escrito a respeito de o conhecimento
tecnológico se caracterizar por um elemento de essencialmente orientada para
a solução de problemas práticos, dos membros da comunidade tecnológica. Em contraste,
o conhecimento cientı́fico seria caracterizado pela dos cientistas orientada para
fins semelhantes à “busca da verdade”. A formulação aqui apresentada, em contraste com
tal pensamento corrente, não se fundamenta em inferências a respeito da subjetividade dos
membros de cada comunidade, e se baseia no exame do conteúdo dos trabalhos publicados
na literatura de cada área, sendo de certa forma independente do imaginário dos indivı́duos.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 73

De tempos em tempos, essas teorias sofram abalos, resultantes de algum


tipo de inadequação verificado. Nesses momentos, as respectivas comu-
nidades cientı́ficas se deparam com a tarefa de reorganizar os campos do
conhecimento, reestruturando e, possivelmente, substituindo as teorias
vigentes. As considerações de racionalidade epistemológica envolvidas
nessas reestruturações possuem estrutura essencialmente semelhante às
adotadas para guiar a reestruturação das teorias no âmbito das ciências
naturais, conforme o modelo de decisão discutido no capı́tulo 2.

A especificidade desses campos do conhecimento os unifica em um


grupo e os separa dos demais campos da ciência. Ela está ligada à
caracterı́stica comum de seus objetos de estudo serem primariamente
os “objetos tecnológicos” – artefatos ou sistemas artificiais –, o que
conduz a uma situação informacional distinta daquela de saturação
empı́rica que, conforme discutido no capı́tulo anterior, se verifica para
as “ciências modelares”3 . O processo de decisão4 que conduz à instân-
cia especı́fica de estrutura teórica a ser formada possui peculiaridades
distintas daquelas encontradas nessas “ciências modelares”.

Deve-se observar que esses requisitos adicionais, que introduzimos para


definir tal modalidade de conhecimento, excluem grande parte do objeto
tematizado nas referências recentes anteriormente citadas. Grosso modo,
nosso critério faz a distinção entre o conhecimento como ferramenta para
mediar a interação com a realidade e o conhecimento como modo de busca
sistemática da estrutura da realidade5 . Em nossa opinião, a ausência dessa
distinção vem constituindo um importante obstáculo para que as teorias de
tipo cientı́fico no âmbito do conhecimento tecnológico possam ser examinadas
à luz de uma abordagem epistemológica sistemática.

4.1 Antecedentes
É importante mencionar que a necessidade da adoção de uma distinção seme-
lhante àquela aqui proposta possui alguns antecedentes recentes. Entretanto,
3
Fı́sica, Quı́mica e alguns ramos da Biologia.
4
Conforme discutido no capı́tulo 2.
5
Ainda que, em última instância, tal conhecimento gerado venha a ser utilizado para
interagir com a realidade.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 74

não parece ter havido ainda nem um estudo sistemático do tema nem a in-
dicação precisa de uma distinção tal como aquela proposta neste ensaio – o
atual estado do debate no âmbito da Filosofia da Ciência / da Tecnologia
parece se encontrar, antes, no estágio inicial da tomada de consciência do
problema.
Vincenti (2001), por exemplo, propõe uma descrição do campo da tecno-
logia que apresenta similaridades com nossa proposta. Em seu trabalho, o
autor parte da observação de sua própria experiência de pesquisa como enge-
nheiro, ocorrida junto a um grupo que atuava na “ponta” do conhecimento,
desenvolvendo a tecnologia que veio a permitir a construção dos primeiros
aviões supersônicos. Ele vislumbra o reconhecimento, naquele contexto, de
duas novas entidades, o “engenheiro de pesquisa” e a “ciência da engenharia”
(Vincenti 2001):

“Minha fala de hoje se divide em duas partes. A primeira mostra


um pouco de como engenheiros fazem uso sinergı́stico de experi-
mento e teoria para desenvolver o conhecimento de engenharia,
em particular, para estimar o quão bem uma teoria irá funcionar
como ferramenta para uso em projeto. A segunda parte trata do
conceito de ciência da engenharia, um tipo de atividade e conhe-
cimento do qual a primeira parte constitui exemplo.”

De acordo com Vincenti (2001), essas entidades se situam em um campo


pouco observado nos estudos sobre a tecnologia: a pesquisa em engenharia.
Vincenti ressalta a diferença fundamental entre a atividade de projeto e a de
pesquisa (Vincenti 2001):

“O professor Bucciarelli iniciou nossa sessão examinando aquilo


que os engenheiros fazem no projeto; eu irei examinar o que eles
fazem na pesquisa. Os indivı́duos pertencentes a um subcon-
junto dos engenheiros, a quem podemos chamar engenheiros de
pesquisa, fazem coisas bastante diferentes do que fazem os en-
genheiros de projeto, mas ainda não receberam atenção do meio
acadêmico.”

Vincenti ainda indica um aspecto de semelhança da dinâmica da pesquisa


em engenharia em relação à dinâmica da pesquisa no âmbito das ciências
naturais, que seria o seu distanciamento da aplicação final. Isso ocorreria em
um sentido de que as pesquisas em geral são encadeadas, e o resultado de
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 75

cada pesquisa em particular é apenas um ponto de partida para pesquisas


ulteriores (Vincenti 2001):

“Como seria de se esperar de um estudo inicial, esses resultados


foram úteis principalmente para definir áreas nas quais pesquisas
ulteriores seriam necessárias para que a teoria se tornasse uma
ferramenta de projeto útil.”

Por fim, Vincenti aponta um aspecto segundo o qual a pesquisa em tecnologia


aparentemente difere da pesquisa em ciências naturais, no que diz respeito
ao seu condicionamento a uma finalidade prática (Vincenti 2001):

“No todo, o conhecimento que nós obtivemos como engenheiros


de pesquisa foi bastante condicionado pelo que os engenheiros de
projeto iriam necessitar para sua prática.”

As ciências da engenharia, conforme delineadas por Vincenti (2001), com-


partilham de boa parte das caracterı́sticas que seriam os elementos distintivos
de nossa definição de conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico em relação
à definição de tecnologia. No entanto, essa última observação de Vincenti6
sugere que haja uma importante diferença entre o conceito por ele proposto
e aquele aqui definido: parece que ele vincula a atividade no âmbito da sua
ciência da engenharia diretamente à atividade do projeto de artefatos tec-
nológicos. Dessa forma, a ciência da engenharia seria uma componente do
sistema tecnologia, diferindo da atividade de projeto em si de forma similar
à diferença entre etapas de um processo no qual ocorresse uma “divisão do
trabalho”, em uma manufatura: toda a sua dinâmica seria explicada, em
última instância, pelo produto tecnológico que emergisse no final da cadeia.
O modelo de Vincenti, portanto, parece capaz de explicar longas cadeias
de articulação entre atividades de pesquisa tecnológica e a atividade final de
projeto. Não parece, no entanto, capaz de permitir o exame do conhecimento
tecnológico do tipo cientı́fico como um sistema de conhecimento dotado de
dinâmica própria.
Uma tentativa semelhante de diferenciar o conhecimento tecnológico da
atividade de projeto de artefatos também é esboçada na referência (Gorokhov
1998):
6
É importante mencionar que tal observação não recebeu, no trabalho citado, nenhuma
elaboração ulterior. É difı́cil, portanto, avaliar de maneira precisa seu real papel.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 76

“Para definir o objeto de estudo da filosofia da tecnologia apropri-


adamente, é necessário distinguir o conhecimento tecnológico da
atividade tecnológica e, além disso, reconhecer uma ‘consciência
tecnológica’. O produto da atividade tecnológica são os artefatos
– tanto os equipamentos técnicos quanto as técnicas em si.
O produto do conhecimento tecnológico é a atividade tecnológica.
Isso quer dizer que o conhecimento tecnológico é uma prescrição
para a atividade tecnológica – e desta forma, em última instância,
para os artefatos tecnológicos.”

Nesse texto, o conceito de “conhecimento tecnológico” parece exercer função


semelhante ao de ciências da engenharia de Vincenti7 . Da mesma forma,
parece estar implı́cito um fluxo contı́nuo entre o conhecimento tecnológico e
a atividade tecnológica (equivalente à de “projeto de artefatos”), resultando
numa determinação mútua que restringe cada um a operar apenas em linha
de série com o outro.
Neste capı́tulo, examinaremos a hipótese alternativa, aqui proposta, da
existência de um sistema de conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico. O
elemento crucial que distingue esse tipo de conhecimento daquele cuja defi-
nição foi esboçada por Vincenti (2001) e Gorokhov (1998) é a sua autonomi-
zação, à semelhança do conhecimento cientı́fico como é encontrado nas áreas
convencionalmente reconhecidas como ciências. Tal caracterı́stica é que de
fato define um estatuto epistemológico que lhe permite funcionar de acordo
com uma dinâmica de “pesquisa”. Faremos, neste ensaio, a tentativa de pre-
cisar a natureza desse tipo de conhecimento em termos de sua racionalidade
epistemológica, em um esforço para encontrar uma comensurabilidade desse
modo de conhecimento cientı́fico com o restante da cidade da ciência.

4.2 O papel do conceito de

Um exemplo das dificuldades geradas no âmbito da abordagem usual, que


delimita como seu objeto de estudo a “tecnologia” em um sentido que normal-
mente não se afasta muito daquele delimitado na definição de Bunge, pode
7
Deve-se observar que Gorokhov também usa o termo “ciência da engenharia”, ver
(Gorokhov 1998), mas em um sentido distinto do de Vincenti.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 77

ser observado8 no seguinte trecho de Durbin (2006, p. 142):

“Usando exemplo após exemplo de como tomadores de decisão


em engenharia quase nunca perseguem o ‘tecnicamente melhor’,
concedendo ao invés disso para decisões gerenciais sobre o quê
perseguir e em qual extensão, Goldman conclui: A engenharia
portanto coloca um novo conjunto de problemas epistemológicos
derivados de uma racionalidade que é diferente daquela da ciên-
cia. A racionalidade da engenharia envolve vontade, é necessari-
amente incerta, transiente e não-única, e é explicitamente valora-
tiva e arbitrária. A engenharia também coloca um conjunto dis-
tinto de problemas metafı́sicos. O julgamento de que as soluções
de engenharia ‘funcionam’ é um julgamento social, de forma que
fatores sociológicos devem ser trazidos diretamente para dentro
da epistemologia e da ontologia da engenharia (Goldman 1991,
p. 140).”

Essa ordem de observações, certamente motivadas pela antiga polêmica


quanto a ser a tecnologia redutı́vel à “ciência aplicada”, não permite construir
uma análise que vá além da constatação fenomenológica das diferenças entre
ambas. Essa constatação, por sua vez, pode servir de justificativa para a aná-
lise do campo da tecnologia como um ente diferenciado do campo da ciência,
mas não tende a ser útil para a construção de um sistema ordenador comum,
capaz de situar os campos do conhecimento tecnológico de tipo cientı́fico em
relação aos diversos campos da ciência. A formulação expressa nesse trecho
chega até mesmo a dificultar a identificação de tal conhecimento tecnológico
de tipo cientı́fico, na medida em que por um lado o aparta do campo cientı́fico
ao postular a existência de diferenças que ele efetivamente não tem em rela-
ção àquele, e por outro lhe atribui caracterı́sticas que são tı́picas de outras
parcelas do conhecimento tecnológico, das quais não compartilha.
Não se trata aqui de contestar a possibilidade ou a adequação de se proce-
der à análise da “tecnologia”, vista como o conhecimento de caráter imediata-
mente aplicável à geração dos artefatos ou entidades tecnológicos, ou mesmo
do processo de aquisição ou formulação desse conhecimento. O problema que
8
É necessário mencionar que Goldman tem um ponto de vista muito diferente do de
Bunge, mantendo uma polêmica explı́cita com este (Durbin 2006, pp. 141-142). No trecho
a seguir, apesar disso, o entendimento do escopo da “tecnologia” é similar – o que motiva
nossa observação.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 78

nós apontamos aqui é a equiparação temática desse tipo de conhecimento


com o conhecimento cientı́fico caracterı́stico das ciências naturais – o que, a
nosso ver, torna-se estéril devido à sua própria ambição de analisar com um
ferramental comum objetos heterogêneos, sem que haja uma justificativa de
ordem racional para agrupar tais entidades de naturezas distintas9 .
Para clarificar a natureza de nossa objeção, recorremos à comparação com
casos-modelo extremos evocados de outros contextos:

Não se define como fazendo parte do corpo de conhecimentos incluı́dos


na Biologia Evolutiva, nem muito menos se confunde com ela, o “conhe-
cimento” eventualmente utilizado pelos seres vivos para subsistirem e
serem bem sucedidos diante da “seleção natural”. Tal conhecimento, ao
contrário, é um objeto de estudo legı́timo na Biologia Evolutiva. Isso
se mantém mesmo quando tal conhecimento para fins de sobrevivência
eventualmente passa a incluir “conhecimento cientı́fico” – o que ocorre
quando se considera a espécie humana no ecossistema.

O conhecimento que fundamenta o comportamento de “consumidores


racionais” não se confunde com a Microeconomia, embora possa ser em
parte extraı́do desta. A análise da Microconomia como campo da ciên-
cia é distinta da análise do conhecimento empiricamente utilizado pelos
consumidores para tomar suas decisões; tal conhecimento se aproxima
mais de um objeto que pode constituir parte do elenco de entidades
estudadas no campo cientı́fico da Microeconomia.

Assim, pode até mesmo ser útil, como metáfora, comparar o “conhecimento”
disponı́vel para uso por seres biológicos ou por consumidores com o conhe-
cimento cientı́fico, e é possı́vel que alguns insights interessantes possam ser
sugeridos por tal analogia. Parece entretanto tautologicamente destituı́do
de sentido um questionamento quanto a serem tais tipos de conhecimento
idênticos ao conhecimento cientı́fico, sob o ponto de vista de sua estrutura
epistemológica.
O ponto principal aqui levantado é: pareceria metodologicamente incor-
reto propor como delimitação de áreas do conhecimento itens como: (i) a
Biologia Evolutiva mais o conhecimento evolutivamente útil para os seres
9
Conjecturamos que a motivação para a existência de um esforço continuado investido
em estudos com tal recorte tenha raı́zes na histórica tensão entre “filosofia natural” e
“techné”, conforme foi narrado de maneira sucinta no capı́tulo anterior.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 79

vivos; ou (ii) a Microeconomia mais o conhecimento empiricamente empre-


gado por consumidores racionais em suas decisões de compras. A pergunta
sobre se cada uma dessas hipotéticas “áreas” seria ou não uma ciência seria
automaticamente (e trivialmente) respondida de forma negativa pelo exame
da segunda parte de cada um desses agrupamentos. E o pior: o estudo da
estrutura epistemológica da primeira componente de cada um desses agru-
pamentos ficaria impossibilitado enquanto a delimitação do tema de estudos
englobasse as duas partes de cada agrupamento, sem permitir a distinção
entre elas.
A quase totalidade dos estudos recentemente realizados a respeito da Fi-
losofia da Tecnologia enfoca a atividade de projeto dos aparatos e sistemas
tecnológicos. Em nossa opinião, o efeito disso é um apagamento da existência
de um núcleo (constituı́do de pessoas, laboratórios, veı́culos de publicações,
teorias, repertórios de problemas, etc) cuja atividade seria a pesquisa no âm-
bito do que designamos aqui conhecimento tecnológico de tipo cientı́fico. A
tendência metodológica desses estudos é a de considerar (quase) toda a cadeia
de atividades que de alguma forma resulta em artefatos tecnológicos como
uma única entidade homogênea, reservando entretanto uma diferenciação
para a parcela dessas atividades convencionalmente designada por ciências
naturais. Para tal parcela, se atribui o estatuto de “sistema à parte”, que
interage, mas não se identifica, com o sistema do conhecimento tecnológico.
A função do conceito de conhecimento tecnológico de tipo cientı́fico, por-
tanto, é a de servir como instrumento para o exame de uma parcela do
conhecimento que hoje é agregado sob o rótulo de tecnologia – cuja estrutura
é virtualmente inapreensı́vel sem o uso de semelhante conceito.

4.3 O modelo ciência pura / ciência aplicada


/ tecnologia
Nós definimos, há pouco neste capı́tulo, uma modalidade especı́fica de conhe-
cimento a que denominamos conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico. Faz-
se pertinente, neste ponto, examinar a questão de como reconhecer tal tipo
de conhecimento, na eventualidade de sua existência10 . Preliminarmente, é
10
Deve-se notar que tal hipótese deverá ser examinada neste ensaio, não apenas no
que diz respeito à “existência” de tal entidade, mas principalmente quanto ao seu poder
explanatório quando aplicada a casos concretos.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 80

necessário tratar a questão da identificação do próprio conhecimento tecno-


lógico, em contraste com o conhecimento cientı́fico, conforme a questão é
tradicionalmente abordada. Bunge (1980a, p. 26-27) expõe um modelo para
essa demarcação, nos seguintes termos:
“O problema da diferenciação entre ciência e técnica aparece toda
vez que se discutem polı́ticas de desenvolvimento cientı́fico e téc-
nico [...] Chegou o momento de mencionarmos as diferenças que
geralmente permanecem ocultas. Comecemos por um exemplo:
um fı́sico que estuda as interações entre a luz e os elétrons, es-
pecialmente o efeito fotoelétrico, princı́pio da célula fotoelétrica.
Esta pessoa faz ciência básica, seja teórica ou experimental, por-
que se propõe unicamente a enriquecer o conhecimento humano
sobre as interações entre a luz e a matéria. Em um laborató-
rio contı́guo outro fı́sico estuda a atividade fotoelétrica de certas
substâncias particularmente sensı́veis, com a finalidade de com-
preender melhor como funcionam as células fotoelétricas, o que,
por sua vez, poderá servir para a fabricação de dispositivos fo-
toelétricos mais eficientes. Este pesquisador faz ciência aplicada
(teórica ou experimental) porque aplica conhecimentos obtidos
em pesquisas básicas. É claro que ele não se limita só a aplicar
conhecimentos já existentes: longe disso, busca novos conheci-
mentos, porém mais especı́ficos, já que não se referem à interação
e à matéria em geral, e sim, entre a luz de certas cores e a matéria
de determinados tipos.
Passemos agora dos laboratórios cientı́ficos para os industriais.
Como bem disse Jorge Sábato (1979), se os visitarmos como tu-
ristas despreocupados não notaremos grande diferença: em ambos
veremos pessoas protegidas por aventais brancos movimentando-
se em torno de aparelhos controlados por instrumentos, ou dis-
cutindo entre si diante de quadros cheios de fórmulas ou diagra-
mas, ou estudando artigos recentemente publicados. Contudo, a
diferença é fundamental: o laboratório industrial não produz co-
nhecimento, e sim técnica. [...] Esta pessoa não é um cientista
e sim um engenheiro e, como tal, sua visão está voltada para os
artefatos úteis. Para ele a ciência não é um fim e sim um meio.”
Chamaremos esta concepção de modelo ciência pura / ciência aplicada /
tecnologia ou, abreviadamente, modelo CP/CA/T. Sobressaem, neste modelo,
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 81

dois critérios que se interligam para demarcar as fronteiras entre ciência e


tecnologia:

A delimitação convencional do campo do conhecimento em que se re-


aliza o trabalho de investigação definiria essencialmente a fronteira.
Assim, nas áreas “puras”, tais como a Fı́sica, Quı́mica ou Biologia,
ocorreria o trabalho no âmbito da ciência – ainda que este, em certas
circunstâncias, devesse ser descrito como ciência aplicada. Nas áreas
tecnológicas, com destaque para as Engenharias, ocorreria o trabalho
ligado à tecnologia.

Outro aspecto central nessa delimitação seria a intenção do indivı́duo


que conduz a pesquisa: o cientista teria como intenção a descoberta de
regularidades na natureza (ainda que a descoberta destas pudesse ter
a finalidade de servir de subsı́dio para a ulterior construção de arte-
fatos, no caso da ciência aplicada), enquanto o engenheiro teria como
finalidade exclusiva a construção de artefatos ou sistemas. Para além
do lado subjetivo dessa intenção, haveria um aspecto objetivável li-
gado à mesma: o resultado da atividade de investigação, que seria ou
conhecimento, de um lado, ou artefato/sistema do outro lado.

Para levantar questões relacionadas com a validade empı́rica desse modelo


de demarcação, apresentamos agora um estudo de caso.

4.3.1 Estudo de Caso: Os discos rı́gidos de computa-


dores
Quando os primeiros “computadores pessoais” foram lançados, em meados da
década dos 1980, estes utilizavam discos magnéticos flexı́veis como memória
de massa11 , o que limitava o armazenamento de dados a algo da ordem de
100 kilobytes. Poucos anos depois, difundiu-se o armazenamento em discos
rı́gidos magnéticos (que já eram empregados há mais tempo em computado-
res de grande porte), o que elevou a capacidade de armazenamento a algumas
dezenas de megabytes por unidade de disco. No inı́cio da década dos 1990,
a tecnologia empregada na construção dessas unidades de disco estava atin-
gindo seus limites: parecia difı́cil aumentar a densidade de armazenamento de
11
Não nos deteremos aqui na breve passagem pelo armazenamento em fita magnética.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 82

dados pelo mero acréscimo de inovações incrementais. Isso, na prática, signi-


ficava que uma unidade de disco de tamanho compatı́vel com um computador
pessoal dificilmente ultrapassaria a capacidade de armazenar 50 megabytes
de dados.
Duas descobertas foram importantes para viabilizar a superação daquele
limite tecnológico, permitindo que a capacidade de armazenamento dos dis-
cos mais comuns hoje disponı́veis no mercado fosse da ordem de centenas
de gigabytes (aproximadamente 10.000 vezes maior): a magneto-resistência
gigante e o controle robusto não-linear.
A magneto-resistência gigante permitiu o desenvolvimento das cabeças de
leitura capazes de detectar o campo magnético armazenado em uma região
de área muito pequena (muito menor que o limite prático anteriormente
estabelecido para uma região que pudesse ser individualmente identificada e
distinguida de regiões vizinhas). Com essa descoberta, seria possı́vel adensar
o armazenamento de dados, com o registro de uma quantidade muito maior
de bits por unidade de área.
Tal descoberta seria inútil, entretanto, se não houvesse a possibilidade de
posicionar a cabeça de leitura especificamente sobre cada ponto cuja leitura
fosse requerida, com a restrição adicional de que essa operação fosse feita em
tempo muito curto. A restrição de tempo está relacionada com a velocidade
de leitura: seria pouco prático armazenar uma grande quantidade de dados
em um disco se as operações de leitura e escrita fossem muito demoradas.
A tecnologia do controle robusto não-linear, ao substituir as técnicas de
“controle clássico” anteriormente empregadas, permitiu o posicionamento das
cabeças de leitura com a precisão necessária, em um tempo admissı́vel.

A magneto-resistência gigante
A descoberta da magneto-resistência gigante (GMR) e seu uso para o
desenvolvimento de uma tecnologia de leitura de discos rı́gidos estão ligados
ao nome do fı́sico alemão Peter Grünberg. Ele ganhou, em 2007, o Prêmio
Nobel de Fı́sica pela descoberta desse efeito, juntamente com o fı́sico francês
Albert Fert. Na palestra proferida por ocasião do recebimento do prêmio12 ,
Grünberg relata sua trajetória: ele obteve o doutorado em Fı́sica em 1969,
fazendo a seguir um estágio de pós-doutorado entre 1969 e 1972. A partir
de 1972, se integrou ao Instituto de Magnetismo do Centro de Pesquisas
12
Os slides da palestra e um vı́deo de sua apresentação estão disponı́veis no sı́tio do
Prêmio Nobel na internet (Grunberg 2007).
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 83

Jülich, onde desenvolveu toda a pesquisa relacionada com sua descoberta.


Seu tema de pesquisa, ao ingressar nesse instituto, foi: Fabrication, magnetic
and transport properties of layered magnetic structures13 .
Algo de estranho sobressai desses dados, quando analisados de acordo com
o modelo CP/CA/T. O tı́tulo da pesquisa de Grünberg parece não deixar dú-
vidas quanto à sua classificação, de acordo com tal modelo, na categoria de
“ciência aplicada”. Entretanto, pesquisa “aplicada” deveria seguir o roteiro
de se apropriar de resultados oriundos da “ciência pura”, para sobre eles em-
preender estudos com vistas a detalhá-los, orientando os resultados dessa
investigação para uma possı́vel utilização por outrem, no campo da “tecnolo-
gia”. O primeiro estranhamento surge quando se verifica que Grünberg teve
participação destacada na descoberta de um “novo efeito”, desconhecido até
então – o que, pela representação esquemática, deveria ocorrer apenas no
âmbito da “ciência pura”.
O elemento que mais fortemente entra em conflito com o modelo CP/CA/T,
no entanto, aparece ilustrado no trecho abaixo (Grunberg 1990):

“Minha presente invenção está relacionada com um sensor de cam-


po magnético com camadas ferromagnéticas finas e, mais particu-
larmente, com um sensor possuindo uma pluralidade de camadas
ferromagnéticas finas e os seus contatos de corrente e de tensão
associados, respectivamente, com a passagem de uma corrente elé-
trica através das camadas e com a leitura de uma queda de tensão
das ditas camadas representando um campo magnético externo
na região do sensor. O sensor tem o propósito, acima de tudo,
de ler dados magneticamente armazenados, embora ele possa ser
usado para qualquer aplicação em que campos magnéticos devam
ser medidos com grande precisão espacial.”

Este trecho constitui o resumo do registro da patente do dispositivo sensor


de campo magnético cujo funcionamento se baseia no efeito GMR. O ele-
mento dissonante é o fato de que o “inventor”, que detém a patente, é o
próprio Grünberg. Neste caso, um “cientista” teria aparentemente desviado
tempo de sua atividade de pesquisa básica, que constituiria seu real inte-
resse, para a geração de conhecimento tecnológico – até a construção efetiva
de um aparato tecnológico. Alternativamente, seria possı́vel a interpretação
13
Propriedades de fabricação, magnéticas e de transporte de estruturas magnéticas em
camadas.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 84

de que Grünberg na verdade fosse todo o tempo um “engenheiro” que teria


precedido a tarefa que lhe interessava, de projeto do aparato tecnológico, por
algum desenvolvimento cientı́fico básico que eventualmente se tenha feito ne-
cessário. Ambas as interpretações, além de serem inverossı́meis, também não
são capazes de permitir o ajuste desse caso particular ao modelo CP/CA/T.

O controle robusto não-linear


O trabalho recente de Venkataramanan, Peng, Chen & Lee (2003) cons-
titui um exemplo de relato de investigação cujo tema é o controle de discos
rı́gidos. Esse trabalho, sem dúvida, enquadra-se no conceito de tecnologia,
na medida em que descreve procedimentos que conduzem ao efetivo projeto
de um artefato tecnológico (o controlador para o posicionador da cabeça de
leitura de um disco rı́gido), incluindo a descrição dos resultados experimen-
talmente verificados sobre um protótipo que foi construı́do. Cabe examinar,
neste trabalho, a adequação do modelo CP/CA/T. A hipótese básica assu-
mida por esse modelo pode ser expressa da seguinte forma:
O trabalho (Venkataramanan et al. 2003) deveria se apoiar princi-
palmente em conhecimentos desenvolvidos no âmbito da “ciência
pura” ou da “ciência aplicada”, que seriam diretamente utilizados
para a construção do artefato ali relatada.
Para fazer esse exame, “traduzimos” o conteúdo dessa afirmativa em ter-
mos de algumas hipóteses susceptı́veis de serem examinadas:
Hipótese 1: Parte substancial das referências bibliográficas citadas no
trabalho deveria pertencer a campos da ciência pura ou da ciência apli-
cada. Isso não ocorre. Examinando a lista de referências do trabalho,
não se encontra nenhuma referência de uma área básica tal como a Fı́-
sica ou a Quı́mica. Ao contrário, todas as referências se enquadram no
próprio campo da Engenharia.

Hipótese 2: As referências desse trabalho que ocorressem no âmbito da


própria tecnologia deveriam ser elas próprias orientadas para aplica-
ções práticas. Para a maior parte das 32 referências do trabalho, isso
é verdade: a maior parte delas refere-se a pesquisas especificamente
relacionadas com o controle de discos rı́gidos. Há, entretanto, algumas
exceções: um livro se refere à teoria do controle robusto ∞ , um outro
se refere à teoria da identificação de sistemas, e dois artigos teóricos
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 85

se referem a técnicas de controle robusto não especificamente contex-


tualizadas em nenhum problema de ordem prática (isto é, sem fazer
referência a nenhum tipo especı́fico de aparato tecnológico).

Hipótese 3: Se se tomar um caminho na teia de citações (isto é, as


referências das referências, e assim por diante), deve-se encontrar em
poucos passos a menção a trabalhos de alguma área das “ciências”. Isso
não parece ocorrer. Embora não tenhamos feito uma busca exaustiva
(a dificuldade para a realização da mesma é o rápido crescimento do
número de referências quando se percorre a teia), um grande número
de tentativas de percorrer a teia de citações não saiu rapidamente do
âmbito dos periódicos da própria área de Engenharia. Quando ocor-
ria a saı́da da área da Engenharia, esta sempre derivava para a área
da Matemática, o que é compatı́vel com o que ocorre, por exemplo,
quando se percorre a teia de citações em campos da própria Fı́sica. Em
nossas tentativas14 , não foi registrada nenhuma ocorrência de percurso
atingindo uma ciência natural básica como a Fı́sica ou a Quı́mica.

Nenhuma dessas possı́veis linhas de corroboração do modelo CP/CA/T foi


confirmada, tendo surgido mesmo evidências em sentido contrário.

Conclusão do estudo de caso


O estudo de caso apresentado parece refutar a validade do modelo de
demarcação CP/CA/T. Especificamente, surgiram evidências de que:

Áreas convencionalmente definidas como pertencentes aos domı́nios das


“ciências” também desenvolvem “tecnologias”, no sentido de que elas po-
dem apresentar artefatos tecnológicos como produtos diretos de traba-
lhos de investigação. Mesmo a fronteira entre “ciência básica” e “ciência
aplicada” pode perder a sua nitidez, uma vez que um sujeito desenvol-
vendo trabalho de pesquisa básica não necessariamente deve entregar
seus resultados para outro sujeito desenvolvendo pesquisa aplicada para
somente então haver o tratamento de problemas relacionados com a tec-
nologia.

Áreas convencionalmente delimitadas como “tecnológicas” parecem exi-


bir uma substancial parcela de sua atividade em situação de afasta-
14
Essas tentativas envolveram percursos de até cinco passos.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 86

mento em relação à atividade de projeto e produção de artefatos tec-


nológicos.

Na verdade, são abundantes os exemplos disponı́veis de “artefatos tecnoló-


gicos” desenvolvidos no âmbito de campos do conhecimento tradicionalmente
rotulados como cientı́ficos. Além de outros exemplos no âmbito da própria
Fı́sica, não é difı́cil encontrar casos na Quı́mica (Barron 2008), na Biologia
Molecular (Steward, Fernandez-Salas, Francis, Li, Gilmore & Aoki 2008), na
Imunologia (Xu 2008), na Parasitologia (Teixeira, Teixeira & Neuhauss 2007),
etc. A primeira conclusão acima, portanto, pode ser considerada estabele-
cida.
A segunda conclusão suscita uma análise em maior profundidade, visto
que o modelo CP/CA/T não especifica nenhum tipo de estrutura para aque-
las parcelas do conhecimento aparentemente pertencentes ao domı́nio da tec-
nologia porém não enquadráveis na prescrição de um vı́nculo imediato com
o projeto de artefatos tecnológicos. Há indı́cios de que uma parcela da ati-
vidade de investigação nesses campos não esteja diretamente investida em
problemas de projeto de artefatos, mas antes na geração de conhecimento
que precede tais problemas. Cabe talvez questionar o que significa tal prece-
dência, considerando as hipóteses de que:

Ela signifique uma mera apresentação de resultados parciais nos tra-


balhos iniciais, que se articulem em cadeia até chegar ao projeto do
artefato em si, sendo todas as etapas efetivamente pertencentes a um
bloco único de conhecimento orientado para o projeto do artefato; ou

Ela esteja relacionada com a existência de domı́nios dentro do campo


convencionalmente conhecido como “tecnologia” cuja estrutura não seja
a de se mobilizar para a realização da atividade de projeto, mas sim a de
se ocupar da investigação das propriedades de entidades intermediárias,
pertencentes a um universo de entidades articulado segundo uma teoria.
Nesse caso, haveria um empreendimento à parte daquele de projeto
do artefato, que se ocuparia primariamente do aperfeiçoamento desse
campo teórico.

A nossa definição dos campos do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico


coincide com a entidade prevista por essa segunda alternativa. A seguir,
examinaremos tal hipótese, em busca de indı́cios que a corroborem ou a
refutem.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 87

4.4 Em busca do conhecimento tecnológico


do tipo cientı́fico
Na seção 4.3 foi apresentado um estudo de caso em que se extraiu um exem-
plo do campo do Controle Automático que se mostrou problemático para o
modelo CP/CA/T. Retornamos agora a esse campo do conhecimento, em
busca de uma caracterização mais detalhada do tipo de conhecimento que
causou a dificuldade. Teremos nossa proposta de conceito de conhecimento
tecnológico do tipo cientı́fico como referência para uma análise em moldes
alternativos.
Para conduzir uma análise fenomenológica da questão, estudaremos o caso
do trabalho de Stephen Boyd e Craig Barrat com base em extratos de seu
livro (Boyd & Barratt 1991). Esse livro trata-se de uma versão extensa de
resultados de pesquisa publicados pelos mesmos autores e colegas nos artigos
(Boyd, Balakrishnan, Barratt, Khraishi, Li, Meyer & Norman 1988) e (Boyd,
Baratt & Norman 1990). Ele foi escolhido para ser estudado aqui devido aos
seguintes fatores:

Trata-se de descrição de resultados de pesquisa feita pelos próprios au-


tores da pesquisa original apenas três anos após a publicação desta, e
não de um pós-processamento de tais resultados realizado por outras
pessoas muito tempo depois, com um objetivo de apresentação didática
do tema. Assim, não se perdem os elementos contextuais do conheci-
mento cientı́fico de tipo tecnológico conforme ele de fato se apresenta;

Sendo um livro, há um material de discussão mais detalhado que aquele


que seria encontrado nos artigos originais dos autores, o que possibi-
lita a maior clareza quanto ao ponto de vista deles, tornando auto-
explicativos muitos dos extratos de texto.

No capı́tulo introdutório, os autores procuram situar o significado de seu


trabalho. Uma breve descrição do campo do controle automático aparece
logo no princı́pio (Boyd & Barratt 1991, p. 1):

“A meta da engenharia de controle é melhorar, ou em outros ca-


sos permitir, o funcionamento de um sistema por meio da adição
de sensores, processadores de controle e atuadores. Os sensores
medem ou monitoram vários sinais do sistema e os comandos do
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 88

operador, os processadores de controle processam os sinais medi-


dos e comandam os atuadores, os quais afetam o comportamento
do sistema. [...] Esse diagrama geral pode representar uma ampla
variedade de sistemas de controle. O sistema a ser controlado po-
deria ser um avião, um grande sistema de geração e distribuição
de energia elétrica, um processo industrial, um posicionador da
cabeça de leitura de um disco rı́gido de computador, uma rede de
dados, ou um sistema econômico. Os sinais poderiam ser trans-
mitidos por meio de sinais elétricos analógicos ou por sinais elé-
tricos codificados digitalmente, por conexões mecânicas, ou por
linhas hidráulicas ou pneumáticas. Similarmente o processador
ou processadores de controle poderiam ser mecânicos, pneumáti-
cos, hidráulicos, elétricos analógicos, ou ainda computadores de
propósito geral ou computadores especificamente projetados para
essa tarefa.”

Já se notam aı́ algumas caracterı́sticas que, de fato, são compartilhadas por
muito do que seria o trabalho no âmbito da tecnologia:

É feita a referência explı́cita a possı́veis sistemas tecnológicos, perten-


centes a contextos diversos, que poderiam incorporar os artefatos que
poderiam ser resultantes do conhecimento ali desenvolvido (note-se que
a lista coincidentemente inclui os discos rı́gidos de computadores).

É feita a menção a várias possı́veis formas de realização dos artefatos


a cujo projeto o trabalho fará referência.

Essas colocações situam o âmbito do trabalho descrito tanto fora de um


contexto especı́fico quanto independente de uma forma especı́fica de tornar
material o dispositivo em si. O trabalho, portanto, faz referência a uma classe
de dispositivos, e estuda propriedades genéricas dos elementos dessa classe.
Uma delimitação mais precisa do tema é apresentada a seguir (Boyd &
Barratt 1991, pp. 2-3):

“Neste livro nós consideramos sistemas de controle nos quais os


sinais do sensor, atuador e processador assumem valores reais, ou
pelo menos representações digitais de valores reais. Muitos siste-
mas de controle incluem ambos os tipos de sinais, os sinais com
valores reais que nós iremos considerar, e sinais booleanos, tais
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 89

como alarmes de falhas ou de limites e chaves manuais de priori-


dade superior, os quais nós não consideraremos. [...] Em sistemas
de controle que usam computadores digitais como processadores
de controle, os sinais são amostrados a intervalos regulares, que
podem diferir para diferentes sinais. Em alguns casos esses inter-
valos são curtos o suficiente para que os sinais amostrados sejam
boas aproximações dos sinais contı́nuos, mas em muitos casos
os efeitos dessa amostragem devem ser considerados no projeto
do sistema de controle. Neste livro, nós consideramos sistemas
de controle nos quais todos os sinais são funções contı́nuas do
tempo.”
Neste trecho, os autores explicitam uma série de simplificações em relação a
contextos mais “realı́sticos”. Isso significa que os resultados por eles desenvol-
vidos dificilmente poderiam ser diretamente utilizados para o projeto de um
artefato tecnológico real, que tivesse o propósito de ser utilizado na prática.
Isso indica que o referente desse trabalho não poderia ser interpretado como
um aparato ou artefato.
Uma afirmativa curiosa aparece mais adiante, quando os autores começam
a explicar o propósito especı́fico do trabalho apresentado no livro (Boyd &
Barratt 1991, p. 5):
“No mesmo perı́odo, pesquisadores e engenheiros de controle de-
senvolveram métodos de projeto de controladores que são basea-
dos em computação intensiva, por exemplo otimização numérica.
Este livro trata de um desses métodos.”
Mantendo-se fiéis a um imaginário que permeia as áreas ditas “tecnológicas”,
os autores afirmam que seu trabalho diz respeito a uma metodologia de pro-
jeto de um tipo especı́fico de aparato tecnológico (os “controladores”), mesmo
entrando em contradição com os indı́cios acima extraı́dos de seu texto. Não
iremos aqui extrair trechos do livro para desvendar diretamente a natureza
do objeto estudado pelos autores, uma vez que trata-se de um assunto extre-
mamente técnico. No entanto, um leitor versado no assunto poderá observar,
examinando o livro, que as entidades potencialmente resultantes da “técnica
de projeto” apresentada no livro são bastante peculiares: tratam-se de obje-
tos abstratos cuja estrutura ideal se baseia em modelos dinâmicos de ordem
infinita – não realizáveis portanto no mundo real15 . Esses objetos, para se
15
Deve-se observar que essa impossibilidade não está ligada à questão de existirem sis-
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 90

tornarem “computáveis” (ou seja, susceptı́veis de serem simulados ou im-


plementados numericamente) são aproximados em uma “base de Ritz” (que
constitui uma base para espaços de funcionais de dimensão infinita), sendo
projetados em um subespaço cuja dimensão é finita, mas que permanece
necessariamente elevada.
Após essa aproximação, seria até concebı́vel tentar a passagem desses ob-
jetos abstratos diretamente para o projeto de seus referentes tecnológicos –
os dispositivos controladores. No entanto, neste ponto intervêm dois outros
obstáculos. O primeiro, de ordem prática: há hoje uma preferência para a
realização de dispositivos controladores de ordem baixa, por razões de com-
patibilidade com tecnologias anteriores, custo, facilidade de fabricação, etc.
O segundo é de ordem teórica: não existe uma formulação hoje desenvolvida
para tratar de questões que emergem à medida em que se aumenta a ordem
dos controladores, tais como a sua sensibilidade a variações paramétricas ou
a problemas advindos da precisão finita dos processadores digitais.
Pode-se adicionar um terceiro obstáculo, de ordem lógica, que natural-
mente emerge como questão: qual seria a razão para se implementarem os
controladores conforme propostos pelos autores? Mesmo supondo elimina-
dos os obstáculos anteriores, só seria razoável partir desses objetos conceituais
para uma realização prática dos mesmos caso houvesse a previsão teórica de
que tais objetos atingiriam nı́veis de desempenho não igualáveis por outras
técnicas disponı́veis. No entanto, como veremos a seguir, nem mesmo tal
promessa é feita, no âmbito do trabalho sob exame.
O verdadeiro tema do livro começa a aparecer quando os autores expõem
o problema existente no âmbito da teoria de controle que os motiva a desen-
volver seu trabalho (Boyd & Barratt 1991, p. 8):

“Na prática, os métodos existentes de projeto de controladores são


frequentemente bem sucedidos em encontrar um controlador ade-
quado, quando este existe. Esses métodos dependem do talento,
da experiência, e de um pouco de sorte da parte do engenheiro
de controle. Se o engenheiro de controle tiver sucesso e encontrar
um controlador adequado, então evidentemente o problema de
projeto do controlador terá sido resolvido. No entanto, se o enge-
nheiro de controle falhar no projeto de tal controlador, então ele
ou ela não poderá estar certo de que não exista nenhum contro-
temas com dinâmica de ordem infinita, mas à de se realizar tal dinâmica de acordo com
uma especificação.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 91

lador adequado, embora o engenheiro de controle possa suspeitar


disso. Algum outro método ou abordagem de projeto (ou, de
fato, algum outro engenheiro de controle) poderia encontrar um
controlador adequado.”
A respeito deste trecho, é importante observar:
Um modo de manifestação do conhecimento tecnológico, mencionado
por quase todos os trabalhos que recentemente vêm sendo publicados
no âmbito da Filosofia da Tecnologia com o objetivo de tentar esta-
belecer a diferença entre tecnologia e ciência, é o do conhecimento de
natureza não-sistemática, fundamentado na experiência do projetista,
na sua intuição, etc. Esse trecho fala da existência de tal modalidade
de conhecimento, que se faz necessário na efetiva atividade de projeto
que deverá dar origem ao dispositivo tecnológico em si.
No entanto, um aspecto que usualmente não é reconhecido nesses tex-
tos é a ambição, existente no domı́nio do conhecimento tecnológico, de
exatamente tornar sistemáticas parcelas cada vez maiores de tal conhe-
cimento assistemático, com o objetivo, em última instância, de permitir
projetos mais eficazes. Isso se faz por meio do desenvolvimento de teo-
rias que desvendem a estrutura dos objetos tecnológicos e dos processos
utilizados para seu projeto. Por tal ambição, justifica-se a individua-
ção de áreas de conhecimento relacionadas com tais teorias – assim
tornando possı́vel o tratamento de forma eficiente dos problemas que
surgem nesse empreendimento de construção teórica.
O livro em questão recorre a tal discussão precisamente para justificar
o trabalho de investigação nele relatado – isso será visto logo a seguir.
Como nota adicional, antes de prosseguir, cabe apontar que os autores es-
tão indicando um aspecto que parece intrı́nseco à parcela do conhecimento
tecnológico diretamente comprometida com a tarefa da sı́ntese de artefatos:
o caráter singular do conhecimento especificamente “de projeto” permanece
irredutı́vel e não-extensı́vel, enquanto não for situado como uma instância de
um nı́vel teórico capaz de organizar os fenômenos presentes nesse projeto, e
capaz de fornecer as afirmativas de caráter universal, com as suas respectivas
“hipóteses derivadas”, susceptı́veis de serem colocadas à prova.
Finalmente os autores revelam o conteúdo de seu trabalho no seguinte
trecho (Boyd & Barratt 1991, p. 11):
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 92

“Dado um sistema que seja LIT, e um conjunto de especificações


convexas da malha fechada, o problema de projeto do controla-
dor pode ser posto como um problema de otimização convexa e,
consequentemente, pode ser efetivamente resolvido. Isto significa
que se as especificações forem alcançáveis, nós iremos encontrar
um controlador que as satisfaçam; se as especificações não forem
alcançáveis, este fato poderá ser determinado, isto é, nós sabere-
mos que as especificações não podem ser atingidas. Em contraste,
o projetista usando um esquema clássico de projeto de contro-
ladores tem apenas boas chances de encontrar um controlador
que satisfaça um conjunto de especificações que seja alcançável,
e, evidentemente, nenhuma chance de encontrar um controlador
que atinja um conjunto de especificações que não seja alcançável.
Muitas técnicas de projeto de controladores não possuem qual-
quer mecanismo para determinar de maneira não-ambı́gua que
um conjunto de especificações seria não alcançável.”

Em sı́ntese, eles desenvolvem uma teoria capaz de indicar quais são os limites
de desempenho que qualquer controlador pode atingir, dadas as suas especi-
ficações de projeto. Assim, eles revelam algo que pode ser interpretado como
leis naturais, que devem ser obedecidas por todos os possı́veis controladores.
A importância disso é discutida no trecho (Boyd & Barratt 1991, p. 12):

“Não importa qual método de projeto de controladores seja uti-


lizado pelo engenheiro, o conhecimento do desempenho possı́vel
de ser atingido é uma informação prática extremamente valiosa,
uma vez que ele estabelece um marco absoluto contra o qual qual-
quer controlador projetado pode ser comparado. Saber que um
certo candidato a controlador, que pode ser facilmente implemen-
tado, ou que possui alguma outra vantagem, atinge uma regulação
apenas 10% pior que a melhor regulação atingı́vel por qualquer
controlador LIT, é um forte ponto em favor desse projeto. Neste
sentido, este livro não é sobre um método particular de projeto
de controladores ou um procedimento particular de sı́ntese. Ao
invés disso ele trata de um método de determinação de quais es-
pecificações (de uma classe numerosa, porém restrita) podem ser
atingidas por qualquer método de projeto de controladores, para
um dado sistema e uma dada configuração de controle.”
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 93

Como se vê, os controladores “idealizados” previstos pela teoria desenvolvida


pelos autores não têm, e não pretendem ter, nenhuma função como altena-
tivas de projeto que pudessem ser racionalmente escolhidas para dar origem
a dispositivos tecnológicos a serem construı́dos. Além das objeções anteri-
ormente apontadas de ordem prática e de ordem do estado da teoria, que
impedem que se considere sua transformação em algum dispositivo tecnoló-
gico efetivamente construı́do, nem mesmo a reivindicação de que tais contro-
ladores teriam desempenho intrinsicamente melhor que aqueles projetados
segundo outras metodologias se sustentaria.
A verdadeira função dessas estranhas entidades propostas (os controlado-
res de ordem infinita) é a de servir de veı́culo para a determinação de limites
de desempenho, aplicáveis a todos os possı́veis controladores que possam ser
projetados de acordo com quaisquer metodologias. Tais limites, por sua vez,
tendo uma estrutura matemática de “necessidade e suficiência”, impõem que:

Não existe nenhum controlador com desempenho além de tal limite; e

Existem pelo menos um, e possivelmente vários, controladores com


desempenho situado em qualquer ponto abaixo daquele limite.

Esses enunciados têm o estatuto de leis universais, e podem ser úteis tanto
para permitir desenvolvimentos teóricos ulteriores (por exemplo relacionados
com a estrutura dos controladores cuja existência a lei permite, relacionando
essa estrutura com o seu “grau de desempenho”) quanto em situações práticas
de projeto, para responder a questões da ordem de se o projeto especificado
é factı́vel, ou o quão “bom” é um controlador resultante de um procedimento
de projeto.
Por fim, examinemos como esse trabalho se situa na “rede de citações”.
Para esse exame, empregaremos as referências de e para o artigo (Boyd
et al. 1988), no qual os resultados aqui discutidos foram primeiramente apre-
sentados. Utilizando a base bibliográfica do ISI16 , verifica-se que ele foi citado
por 81 outros artigos também no âmbito do ISI. Desses, apenas 10 diziam
de alguma maneira respeito a alguma aplicação especı́fica. Os demais diziam
também respeito a trabalhos teóricos, no âmbito da Teoria de Controle Au-
tomático. Por outro lado, das 39 citações feitas pelo artigo, cinco se referem
a textos do campo da Ciência da Computação, uma é um texto da Teoria da
Otimização, e todas as demais se originam do campo da Teoria de Controle
16
O acesso a essa base foi feito no dia 03/07/2008.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 94

Automático, sendo que nenhuma diz respeito a alguma aplicação ou projeto


de artefato especificamente.
Os elementos obtidos a partir da análise deste caso parecem indicar a re-
jeição da hipótese de que, no âmbito da tecnologia, toda a atividade estivesse
articulada por problemas práticos de projeto. Ao contrário, parece que há
suporte para a hipótese da existência de domı́nios, no âmbito da tecnologia,
cuja atividade seja articulada por empreendimentos de formulação de teorias
– os domı́nios do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico.
No capı́tulo anterior levantamos vários indı́cios, a partir de estudos de casos,
que dão suporte à hipótese de que uma categoria especı́fica de conhecimento
cientı́fico, o conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico possa ser definida
como objeto relevante para análise pela Filosofia da Ciência. Este capı́tulo
prossegue no exame de aspectos relacionados com a adequação de se estabe-
lecer tal entidade, sendo agora investigada a natureza dos objetos que seriam
os referentes de tal tipo de conhecimento. As perguntas a serem respon-
didas são: Existem mesmo tais objetos tecnológicos, como entidades que
possuem uma natureza própria capaz de constituir tema de estudo legı́timo?
Ou esses objetos seriam mais adequadamente estudados como agregados de
propriedades mais fundamentais, derivadas das ciências básicas, não sendo
justificável uma atividade de teorização especı́fica a respeito dos mesmos (ou
ainda, sendo completamente suficiente essa descrição dos mesmos já fornecida
pelas teorias das ciências básicas)? Essas questões dizem respeito à ontologia
dos objetos tecnológicos, ou seja, à investigação de uma possı́vel “natureza
essencial” desses objetos.

5.1 Ontologia e o problema da redução


O tema da ontologia não recebeu grande destaque dentro da tradição realista
da Filosofia da Ciência, uma vez que a própria filiação a tal tradição reduz a
margem para que se coloque em questão a materialidade dos referentes das

95
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 96

teorias cientı́ficas “modelares”. Assim, não se coloca a discussão sobre se de


fato existem entidades passı́veis de serem previstas por tais teorias. Algu-
mas situações limı́trofes, no entanto, tornam esse debate inevitável; veja-se
por exemplo o caso das dificuldades com a interpretação da fı́sica quântica
(Chibeni 1997). No caso do campo do conhecimento tecnológico de tipo ci-
entı́fico, proposto neste ensaio, faz-se necessário abordar o tema.
Conforme estabelecemos no primeiro capı́tulo deste ensaio, circunscreve-
mos toda a nossa discussão ao campo do pensamento que assume a premissa
do realismo cientı́fico. No caso do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico,
deve-se acrescentar a essa hipótese metafı́sica uma meta-hipótese adicional,
como premissa implı́cita: a existência de nı́veis ônticos artificiais, peculiares
àquele domı́nio do conhecimento tecnológico. Isso significa que devem existir
certas entidades, ou construtos tecnológicos, que seriam inexistentes na na-
tureza, e que constituiriam objetos com leis de funcionamento próprias que
sejam suficientemente interessantes para serem tematizadas em uma teoria.
Esses objetos e suas leis, portanto, não devem poder ser trivialmente reduzi-
dos ao nı́vel ôntico anterior, no qual são definidos os elementos a partir dos
quais foram construı́dos.
É preciso examinar, inicialmente, se faz sentido delimitar esses corpos
do conhecimento como temas de estudo. Uma primeira objeção diz respeito
precisamente à meta-hipótese da existência de novos nı́veis ônticos, especı́ficos
para serem tratados por novas teorias.
Um fundamento da antiga concepção de que a tecnologia não passasse
de uma mera aplicação da ciência, conforme expressa por exemplo no trecho
da referência (Popper 1966) citado no capı́tulo anterior, é a tese da redução
ontológica, ou simplesmente redução. Tal tese postula que todos os objetos
tecnológicos seriam redutı́veis aos elementos do meio natural com que foram
construı́dos, podendo ser descritos adequadamente pela descrição da ação de
leis naturais (pertencentes ao domı́nio da ciência) sobre esses elementos. Essa
tese, entretanto, não se aplicaria apenas ao conhecimento tecnológico: no li-
mite, todos os campos cientı́ficos exceto um estariam em princı́pio sujeitos a
ela. Assim, por exemplo, a Sociologia seria potencialmente redutı́vel à Psi-
cologia, que por sua vez seria redutı́vel à Neurociência, e esta à Bioquı́mica,
seguida da Quı́mica, chegando-se por fim à Fı́sica.
Uma afirmação dessa tese é apresentada1 por Paul Dirac (1929, p. 714):
“As leis subjacentes necessárias para a teoria matemática de uma
1
Conforme citada na referência (Brakel 1997).
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 97

grande parte da fı́sica e de toda a quı́mica são dessa forma com-


pletamente conhecidas, e a dificuldade é apenas que aplicações
exatas dessas leis levam a equações que são excessivamente com-
plicadas para serem resolvidas.”
No presente momento, uma discussão ativa no âmbito da Filosofia da
Ciência diz respeito precisamente à redutibilidade da Quı́mica à Fı́sica. O
problema é apresentado dessa forma por McIntyre (2007):
“De fato, dada a crença disseminada de que a relação entre a fı́sica
e a quı́mica seja um caso paradigmático para a redução, talvez nós
possamos ver aqui mais claramente as dificuldades que são criadas
quando nós nos descuidamos de desembaraçar as implicações on-
tológicas que jazem por detrás de nossas posições explanatórias.
Se for assim, talvez mais luz possa ser lançada sobre os conceitos
de redução e emergência da forma como eles são usados em toda
a filosofia da ciência.”
Scerri & McIntyre (1997) apontam a consequência epistemológica dessa re-
dução:
“Isto é, assim como acredita-se amplamente que a quı́mica possa
ser perfeitamente reduzida à fı́sica, talvez também se acredite que
a filosofia da quı́mica possa ser perfeitamente reduzida à filosofia
da fı́sica.”
Estes autores procuram refutar a possibilidade da redução utilizando argu-
mentos diversos: (i) a impossibilidade prática (ligada ao atual estágio do po-
derio computacional disponı́vel) de se fazer qualquer cálculo relevante para
o domı́nio da quı́mica a partir das equações da mecânica quântica; (ii) a im-
possibilidade (ligada ao atual estágio do conhecimento matemático) de se ob-
terem soluções analı́ticas para as equações de Schroedinger em qualquer caso
relevante; e (iii) a incomensurabilidade (semântica) de conceitos tais como
o de ligação quı́mica e de estrutura molecular em relação à mecânica quân-
tica. As duas primeiras razões apresentadas são de ordem prática, ligadas ao
atual estado da ciência. É possı́vel conjecturar que em algum momento es-
ses obstáculos venham a ser completamente removidos, como decorrência de
futuros avanços do conhecimento. Não se pode ainda descartar, no entanto,
a outra possibilidade lógica, de que tais obstáculos sejam de fato intrans-
ponı́veis – hipótese que seria bastante plausı́vel de vir a se confirmar como
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 98

decorrência da possı́vel descoberta de limites fundamentais relacionados com


a complexidade computacional da operação de redução.
A terceira razão aponta um aspecto epistemológico que não pode ser igno-
rado. Aproximamos esse argumento por uma explanação da seguinte ordem2 :
ao se descartarem as entidades que ocorrem no nı́vel ôntico da Quı́mica, as
quais têm o papel, na atual organização do conhecimento, de “aglutinar” os
efeitos do nı́vel ôntico anterior dando-lhes coesão e ligando-os ao estudo dos
efeitos tidos como relevantes, colocam-se em seu lugar entidades cuja relação
com tais efeitos é distante, a eles se ligando por meio de cadeias de causa-
efeito tão longas, intrincadas e complexas que a própria materialidade da
explanação dos efeitos se dissolve. No lugar de uma Quı́mica constituı́da
de regularidades, se encontraria um mar de fenômenos fracamente ligados,
com baixa probabilidade de conexão dois a dois, a explanar fenômenos que
passariam a ser inapreensı́veis para a mente humana.
Um argumento similar a este terceiro é desenvolvido em maior detalhe na
referência (McIntyre 2007). A referência (Brakel 1997) apresenta argumentos
semelhantes aos dois primeiros, acrescentando ainda questões relacionadas à
atual incompletude da mecânica quântica. Uma revisão a respeito do tema da
redução da Quı́mica à Fı́sica é apresentada na referência (Schummer 2003).

5.1.1 Ontologia e redução em tecnologia


No domı́nio do conhecimento tecnológico, poderia parecer a princı́pio bas-
tante plausı́vel a possibilidade de sucessivas reduções ontológicas até que to-
das as entidades descritas pelo conhecimento pertencessem ao domı́nio das
ciências naturais. O próprio processo intrinsicamente construtivo da gênese
dos artefatos tecnológicos, necessariamente partindo de recursos pertencentes
ao meio natural, pareceria sugerir tal possibilidade. No entanto, a existência
de entidades especificamente tecnológicas, dotadas de uma ontologia sufici-
entemente “interessante” para justificar o estudo filosófico do conhecimento
2
Fazemos isso à revelia dos autores, que possivelmente não concordariam com nossa
versão do argumento, na medida em que essa versão se conecta com a tese da
. Tal tese essencialmente postula que, em princı́pio, todo processo que ocorre em
nı́veis ônticos superiores deve ser de fato construı́do a partir de fenômenos situados em
nı́veis ônticos anteriores. Essa tese não exclui uma eventual impossibilidade de se efetivar
a redução ôntica , embora permaneça explicitamente compatı́vel com a hipó-
tese “materialista” sobre a natureza. Uma discussão sobre o tema pode ser encontrada nas
referências (Scerri & McIntyre 1997, Schummer 2003).
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 99

tecnológico, tem sido apresentada como conjectura, ou mesmo afirmada, por


vários autores nas últimas décadas. Bunge (1980b, p. 195), por exemplo,
afirma: “A tecnologia herdou a ontologia da ciência e produziu por sua vez
sua própria ontologia”. Nessa mesma referência, ele apresenta a seguinte lista
de problemas ontológicos ligados à tecnologia (Bunge 1980b, p. 197):

Possuem os artefatos caracterı́sticas diferentes dos objetos naturais,


além de terem sido projetados e produzidos por seres humanos ou por
outros artefatos controlados em última instância por aqueles seres?

Possuem os artefatos e os compostos homem-máquina leis próprias,


diferentes daquelas estudadas pela ciência básica?

Os compostos homem-máquina pertencem a um nı́vel ôntico diverso


dos demais?

Pode-se dizer que os artefatos são materializações ou corporizações de


idéias?

Quais são as caracterı́sticas dos sistemas autocontrolados artificiais com


relação aos naturais?

Conforme discutido anteriormente nesta seção, Bunge (1980b) apresenta uma


definição de tecnologia que abrange um domı́nio maior que o do campo que
aqui definimos como conhecimento tecnológico de tipo cientı́fico. Entretanto,
as ontologias desses dois campos devem necessariamente coincidir: este úl-
timo campo deve ter como referentes os mesmos objetos presentes no pri-
meiro.
Uma eventual resposta positiva à questão da existência de uma ontologia
significativa para os objetos especificamente tecnológicos depende, claro, de
uma refutação à possibilidade de uma redução trivial desses objetos a um
nı́vel ôntico anterior. Isso seria fundamental para possibilitar a eventual
delimitação de campos do conhecimento com a estrutura de conhecimento
tecnológico de tipo cientı́fico. Do contrário, se afirmaria a fórmula de que
esses campos seriam passı́veis de serem descritos na forma de uma aplicação
sistemática de campos das ciências naturais – o que se assemelha, embora
não equivalha, à tese de que a tecnologia fosse ciência aplicada3 .
3
A equivalência ocorreria, mais precisamente, com a tese de que a tecnologia
ciência aplicada, caso a redução teórica fosse efetivamente aplicada.
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 100

Um tipo de argumento que tenta refutar a redutibilidade da tecnologia é


apresentado, por exemplo, por Vincenti (1990). Nesse trabalho, o exame de
situações de projeto aeronáutico conduz à conclusão de que o projeto tecno-
lógico requer o uso de conhecimento a respeito de domı́nios (ainda) ignora-
dos pelas ciências naturais. Essa “lacuna” no estado atual do conhecimento
cientı́fico, de forma lógica, resultaria na impossibilidade de redução do co-
nhecimento tecnológico ao conhecimento cientı́fico. De acordo com Mitcham
(1994, pp. 200-201), Vincenti teria mostrado que

“[...] um problema tecnológico pode iluminar uma área de ig-


norância que a ciência considere desimportante e [...] resolver
problemas de engenharia frequentemente requer o uso de menos
do que informação cientificamente aceitável. (Vincenti e outros
engenheiros chegam a argumentar que raramente uma tecnologia
é completamente compreendida em um sentido cientı́fico, mesmo
após ela ter se tornado parte de uma prática normal.)”

Esse argumento, bastante ligado a uma visão “praticista” da tecnologia, acaba


por defender a não-absorção desse campo na órbita da ciência usando uma
razão de ordem “prática”. Ele também implicaria um caráter contingente
para essa separação, a qual perduraria “até que” a ciência básica dominasse
todas as tais lacunas. Outro exemplo desse mesmo ponto de vista aparece
em (Ropohl 1997):

“Frequentemente, a lei tecnológica não é sequer derivada de uma


teoria cientı́fica, mas se revela ser não mais que uma generalização
empı́rica. Por exemplo, as leis do corte de metais na engenharia
de manufatura foram obtidas a partir de um leque de experimen-
tos, e não existe uma teoria coerente para explicá-las em termos
de leis naturais. [...] Regras estruturais são indispensáveis no de-
senvolvimento e projeto em engenharia. Algumas delas possuem
uma base cientı́fica segura; por exemplo, as regras para conectar
componentes elétricos derivam da lei de Ohm, das leis da ramifica-
ção de Kirchhoff, e outras. Muitas regras de projeto, entretanto,
se originam da experiência tradicional ou presente apenas, tais
como as regras para se reforçar a estrutura de construções, as
regras para se dimensionar a tolerância de um mancal esférico,
e mesmo as regras para se determinar a localização de seções de
chaveamento em um chip microeletrônico.”
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 101

Outra linha de argumentação existente, que possui alguma interseção


com essa anterior, acrescenta uma diferença semântica, dado que as “leis”
e os “fenômenos”, na tecnologia, são delimitados também em conexão com os
propósitos práticos da teoria em questão. Um exemplo dessa abordagem é
mencionado por Durbin (2006, p. 149):
“Desde o começo, as ciências da ‘engenharia’ (muito antes da
engenharia ser reconhecida como um empreendimento cognitivo
separado) – para os propósitos de projetar fortificações, pontes, e
estruturas similares – tiveram de adaptar as leis da mecânica para
satisfazer propósitos práticos: ‘Às ciências da engenharia [aqui,
resistência dos materiais] são permitidas certas simplificações e
abstrações que, do ponto de vista das ciências naturais [aqui, as
leis da mecânica], seriam inaceitáveis.’ Cuevas delineia as seguin-
tes conclusões sobre o caráter epistemológico de tais ciências da
engenharia, como as fórmulas da resistência dos materiais: elas
são simultaneamente práticas – elas são relacionadas a objetivos
especı́ficos de engenharia – e descritivas: as equações da resis-
tência dos materiais compartilham com as leis da mecânica (das
quais elas não podem ser derivadas por nenhum processo de apli-
cação) o caráter de serem leis da natureza ou descrições do mundo
(aqui o mundo prático) como ele é.”
Desenvolvendo um argumento desse tipo, Kroes (2001) aponta que a essência
do objeto tecnológico, que o constitui como entidade pertencente ao universo
de um campo do conhecimento tecnológico, necessariamente deve incluir uma
dimensão relacionada com a função desse objeto:
“Em outro lugar nós argumentamos pela natureza ontológica dual
dos artefatos técnicos (Kroes 1998). Por um lado, eles são objetos
fı́sicos ou processos, com uma estrutura especı́fica (conjunto de
propriedades), cujo comportamento é governado pelas leis (cau-
sais) da fı́sica. Por outro lado, um aspecto essencial de qualquer
objeto técnico é sua função; imagine-se um objeto técnico desti-
tuı́do de sua função e o que resta é apenas algum tipo de objeto
fı́sico. É em virtude de sua função prática que um objeto é um
objeto técnico. A função dos objetos técnicos, entretanto, não
pode ser isolada do contexto da ação intencional (uso). A função
de um objeto, no sentido de ser um meio para um fim, é alicer-
çada no interior daquele contexto. Quando nós associamos ação
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 102

intencional com o mundo social (em oposição à ação causal com


o mundo fı́sico), podemos dizer que a função seja uma construção
social. Então, um artefato tecnológico é ao mesmo tempo uma
construção fı́sica e uma construção social: ele possui uma natu-
reza ontológica dual. [...] O conhecimento tecnológico, podemos
concluir, não consiste apenas de afirmativas a respeito da estru-
tura fı́sica de artefatos tecnológicos, mas também de afirmativas
sobre suas funções.”

Kroes (2001) argumenta que a irredutibilidade da tecnologia às ciências na-


turais seria uma decorrência disso:

“Uma premissa fundamental subjacente ao ponto acima é a de que


as descrições funcional e estrutural sejam independentes uma da
outra no seguinte sentido lógico: não é possı́vel deduzir a função
de um objeto a partir da descrição fı́sica (completa) daquele ob-
jeto, nem vice-versa. Em outras palavras, a descrição fı́sica não
contém (implicitamente) a descrição funcional, nem vice-versa.
Esta é uma premissa um tanto óbvia dado o fato de que em geral
uma certa função possa ser realizada fisicamente por diferentes
vias e o fato de que o mesmo objeto fı́sico possa executar dife-
rentes funções (o que é conhecido como a múltipla realizabilidade
de funções e como a multi-funcionalidade de objetos). Essa in-
dependência lógica levanta a questão de como os engenheiros na
prática do projeto são capazes de transpor a lacuna entre uma
descrição funcional de um objeto (a entrada de um processo de
projeto) e uma descrição estrutural conforme fornecida por um
projeto (a saı́da do processo de projeto).”

Para examinar essa ordem de argumentos, parece-nos necessário em pri-


meiro lugar evitar atribuir uma excessiva peculiaridade aos artefatos tecno-
lógicos: estes não são, com certeza, os únicos objetos do mundo material
cuja inserção em um sistema de outros objetos seria dotada de uma raciona-
lidade estruturada a partir de “funções”. Na Biologia, por exemplo, podem
ser mencionados os “órgãos” dos seres vivos como objetos cuja relação com
outros objetos é essencialmente regida por determinações e dependências fun-
cionais. Assim, sem dúvida os artefatos tecnológicos carregam a informação
a respeito de suas funções ao serem referidos por teorias no âmbito do conhe-
cimento tecnológico. Isso, no entanto, não os torna singulares dentre todos os
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 103

demais referentes de teorias cientı́ficas: além da Biologia, é possı́vel mencio-


nar por exemplo a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia, como exemplos
de ciências cujos referentes potencialmente carregam funcionalidades.
Posto isso, avaliamos que a incorporação da “função” como uma propri-
edade constituinte das entidades teóricas no campo da tecnologia acaba de
fato definindo tais entidades como semanticamente irredutı́veis às entidades
pertencentes à ciência natural subjacente (por exemplo a Fı́sica). Tal ir-
redutibilidade, deve ficar claro, nada tem a ver com uma “impossibilidade
de explanação”: pelo contrário, o funcionamento dos artefatos tecnológicos
pode na maioria das vezes ser explicado de maneira até simples, em termos
de princı́pios naturais anteriores pertencentes a algum campo da ciência. Tal
irredutibilidade diz respeito, antes, à inexistência de categorias nesses “cam-
pos anteriores” que contenham os elementos regulatórios da racionalidade
epistemológica ligada à concepção e análise de tais artefatos.
Clarificando esse ponto, tome-se como exemplo o campo do conhecimento
tecnológico cujo tema é a “Inteligência Computacional”. Esse campo diz res-
peito à tentativa de sintetizar, em computadores, capacidades usualmente
atribuı́veis a seres “inteligentes”, tais como a de reconhecer padrões, respon-
der a novas perguntas com base no conhecimento de respostas a perguntas
anteriores, classificar objetos, lidar com informações aproximadas, etc. Todo
o trabalho nesse campo se materializa em termos de programas executados
em computadores. Tais programas são construı́dos a partir de objetos per-
tencentes a um nı́vel que fica abaixo das entidades “inteligentes” que eles
materializam: os objetos nesse nı́vel são matrizes e vetores, e estes são inter-
relacionados por meio de operações tais como: decomposições em valores
singulares, fatorações, inversões, etc. Abaixo do nı́vel desses objetos e ope-
radores, há objetos e operadores mais elementares: estruturas de dados sim-
ples indexadas por apontadores, e os quatro operadores aritméticos simples,
acrescidos de operadores lógicos e de controle de fluxo de execução. Ainda
abaixo, há o código especificamente referenciado à arquitetura particular do
processador sobre o qual este será executado, fazendo menção explı́cita a en-
tidades tais como os registradores, as unidades aritméticas e as posições de
memória do computador. Prosseguindo, mais abaixo vem o código em sua
forma binária, a qual será efetivamente carregada no processador. Indo além,
pode-se descrever o processador e o restante do computador como um cir-
cuito eletrônico, e o código a ser executado como uma sequência de valores de
tensão, cada um dos quais se aproxima de um dentre dois possı́veis limiares
(interpretados como “0” ou “1”). Todo o processamento computacional da-
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 104

quelas entidades da “Inteligência Computacional”, por fim, pode ser reduzida


a uma seqüência de transições de correntes e tensões no circuito eletrônico
que constitui o computador.
Listamos acima uma seqüência de nı́veis segundo os quais um campo da
Computação se organiza, até atingir a primeira interseção com uma ciência
básica (a Fı́sica), que ocorreria precisamente nos circuitos elétricos constituin-
tes do computador. Nossa intenção aqui é a de tornar patente a esterilidade
de qualquer tentativa de construir esse campo da Inteligência Computacional
diretamente a partir dos conceitos primitivos de “tensão” e “corrente” identi-
ficáveis naquela ciência básica subjacente, mesmo admitindo a possibilidade
de explicar a conexão de cada nı́vel com o nı́vel inferior, sem que haja o
rompimento de nenhum elo na cadeia explanatória.
Emerge assim um argumento relacionado com a complexidade dos ob-
jetos, que torna-se crescente quando se sobe dos nı́veis inferiores para os
superiores. Essa complexidade exige o estabelecimento de nı́veis de entida-
des que a “aglutinem”, de forma a permitir a apreensão racional da estrutura
do sistema em cada nı́vel. Isso faz-se importante não apenas para a atividade
“tecnológica” de geração dos artefatos em cada nı́vel, mas também para uma
atividade cognitiva de apreensão da estrutura de funcionamento desse nı́vel –
ligada ao conhecimento tecnológico de tipo cientı́fico que possa se desenvolver
tematizando os objetos e entidades pertencentes a esse nı́vel. Simetricamente,
emerge também um argumento de indeterminação de cada nı́vel pelos nı́veis
que lhe são inferiores – o que suscita a pergunta a respeito dos determinan-
tes racionais existentes no processo de fixação dos objetos construı́dos nı́vel
após nı́vel. A questão da “função” se liga a tal determinação. Um tema inte-
ressante de estudo é o da estrutura dessa determinação, na medida em que
ela tanto exiba uma racionalidade em sua construção quanto propicie uma
racionalidade ao processo de sua própria descrição teórica.
Antes de concluir esta seção, apresentamos um curioso trecho extraı́do do
trabalho de Kornwachs (1998):

“Uma segunda consequência é ontológica. Vamos sumarizar pri-


meiro alguns pressupostos: (1) Tecnologia é a possibilidade de
processos que são realizáveis em um mundo natural sob o regime
dos propósitos, objetivos e metas. (2) Nós só somos capazes de
controlar o nosso mundo pela prevenção e negação, e não colo-
cando estados desejados diretamente em prática. Se essas pres-
suposições forem válidas, um estado real (fatos) no mundo que
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 105

nós podemos observar possui um outro status ontológico, o de um


estado impedido. Artefatos então são máquinas, cujas formas mó-
veis não são dependentes de sua forma geométrica (Kant, 1785);
entretanto, a forma geométrica (como um fato em um mundo real
com artefatos existentes) nos ajuda a impedir movimentos inde-
sejados. Assim uma máquina (ou qualquer objeto à mão como
um artefato, ou antes como um objet trouvé) pode ser considerado
como um filtro ou seletor de processos naturais e não como um
gerador de processos artificiais. Portanto, tecnologia não é uma
extensão mas uma limitação da natureza.”
Pertence à tradição da Filosofia da Ciência a interpretação de que cada nı́vel
da ciência possua leis naturais cuja estrutura essencialmente proı́ba a ocor-
rência de determinados estados na natureza. O trecho acima sugere uma
interpretação dos nı́veis ônticos pertencentes às várias ciências como “proibi-
ções ulteriores”. O domı́nio da tecnologia, nesse caso, prosseguiria tal cadeia,
criando nı́veis adicionais de proibições artificiais. Tal esquema permitiria a
separação do problema do estudo da tecnologia em dois subproblemas: (i) a
racionalidade e a liberdade de escolha na definição dos aspectos normativos
(que irão constituir parte das proibições ulteriores); e (ii) a estrutura dos sis-
temas resultantes, incluindo as proibições derivadas daquelas normativas. O
tema do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico iria, nesse caso, abranger
as teorias que explanassem a parte (ii), e procuraria acessar pelo menos a
parte da racionalidade inclusa na parte (i), assim delimitando o domı́nio da
arbitrariedade nesta contida.

5.2 Sobre a Especificidade da Sı́ntese


O conhecimento tecnológico carrega, como especificidade que o individualiza,
sua referência a objetos sintéticos. O processo de sı́ntese, por sua vez, em
oposição ao mecanismo analı́tico arquetı́pico das ciências, suscita considera-
ções a respeito da epistemologia do conhecimento que lhe dá suporte. Nesta
seção, são examinadas algumas das questões que emergem nesse contexto, na
busca de conseqüências sobre a epistemologia do conhecimento tecnológico
do tipo cientı́fico.
A análise é aqui conduzida tendo como foco um caso, extraı́do do domı́nio
da Quı́mica, tendo como centro uma publicação ocorrida na revista Science
(Komatsu, Murata & Murata 2005), analisada por Hoffmann (2007). Vindo
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 106

de um ramo tradicionalmente reconhecido como “puro” das ciências, este


caso permite examinar o que é caracterı́stico dos problemas de “sı́ntese”,
sem a contaminação por considerações a respeito do que seria a dimensão
“tecnológica” do problema.
A descrição do problema tratado no artigo de Komatsu et al. (2005), bem
como do significado dos resultados ali apresentados, é feita desta forma por
Hoffmann (2007):
“O artigo é de um grupo da Universidade de Kyoto, formado por
Komatsu, Murata e Murata, e liderado por Komatsu (2005). Ele
pertence ao campo da quı́mica do buckminsterfulereno, aquele
belo, metaestável, alótropo 60 do carbono que está conosco há
apenas 20 anos. 60 é feito por métodos de ‘roubo no jogo’ (i.e.,
não por uma construção metódica a partir de peças menores), pela
ignição de um arco de carbono em uma exata pressão de hélio.
Existe um pequeno espaço, não muito, dentro da bola de largura
nanométrica do buckminsterfulereno. Por métodos igualmente
pouco esportivos (ainda que reprodutı́veis), pela força bruta de
uma descarga e covaporização a alta temperatura, pessoas inse-
riram átomos dentro do 60 – He, Sc, N. Nada maior, nenhuma
molécula.
Enquanto isso, surgiu uma vasta e engenhosa quı́mica ao redor
do 60 . Experimentadores de manipulação adicionaram grupos
de átomos – poucos, muitos, mudando de uma forma ou de outra
a bola de Buck. Dois anos atrás, o grupo de Komatsu esculpiu um
orifı́cio em anel de 13 membros entrando no 60 . Logo em seguida,
eles mostraram que o 2 entrava naquele buraco. Agora, nesse
artigo, eles fizeram algo muito mais interessante, e importante, e
surpreendente – sim, tudo isso, que é novamente fechar o buraco
por uma sequência de reações quı́micas. Todo o tempo o 2
permanece dentro. Ao final dessa ‘cirurgia molecular’ [...], eles
obtiveram 2 preso no fulereno, 2 @ 6 0. O sı́mbolo @ aqui
denota uma localização fortemente fixada, um encapsulamento.”
Hoffmann (2007) confronta esse caso narrado com a imagem tradicional
do que seriam os processos de pesquisa nos campos da ciência, e aponta
elementos que se encontram em desacordo com tal imagem:
“Este artigo se parece com o que um filósofo da ciência esperaria
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 107

de um artigo tı́pico? [...] Em minha opinião, o artigo de Ko-


matsu et al. não guarda semelhança com um processo hipotético-
dedutivo paradigmático, ou um processo dedutivo-nomológico de
Carnap, ou indutivo, ou ainda Poperiano de conjectura/refutação.
Existem observações no artigo 2 @ 60 , claro. Mas elas não são
passivas, com os experimentadores perplexos com o que a natu-
reza lhes revela. As medições são feitas de forma deliberada, para
atingir uma transformação. Não há hipóteses alternativas, ape-
nas uma narrativa em desenvolvimento. Existem experimentos
adicionais, de fato (o n.m.r. e o espectro de massa), mas eles
são executados mais em um contexto de se construir uma história
coerente que de se gerar falsificação. [...]
Quais teorias estariam sendo testadas neste belo artigo? Ne-
nhuma, na realidade, exceto a de que esta molécula pudesse ser
construı́da. [...]”

O desacordo detectado é então atribuı́do ao tipo de investigação exposto por


Komatsu et al. (2005), que se refere ao estudo de um processo de sı́ntese.
Hoffmann (2007) prossegue analisando esse ponto:

“Jerome A. Berson levanta em essência o mesmo ponto (Berson,


2003): ‘Parece claro que muito da atividade de sı́ntese pareça cair
fora da doutrina de conjecturas e refutações. Aquele conjunto
de diretrizes não prevê nenhum papel importante para o aspecto
em grande medida confirmativo de uma atividade que se mostrou
central nas preocupações dos quı́micos. Se alguém deseja fazer
um certo composto para confirmar sua estrutura, ou para obter
uma molécula significativa para a medicina, ou para testar uma
questão teórica de existência, ou apenas porque ‘ele está lá’, o
ponto permanece sendo que a sı́ntese por si frequentemente possui
um propósito inescapavelmente confirmativo, e não refutativo.
Ao tentar adaptar a doutrina falsificacionista para o campo da
quı́mica, nós aparentemente descobrimos algo notavelmente cu-
rioso. Se, como Popper afirma, confirmações contam apenas se
elas possuem o propósito de testar uma teoria, e se, de novo como
ele diz, um teste válido de teoria deve ser refutativo, nós somos
levados a um dilema: se uma sı́ntese confirmativa ocorre, ela não
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 108

conta, mas como qualquer quı́mico sabe, se ela [RH: a sı́ntese]


falha, ela também não refuta.’”
Neste ponto, chamamos a atenção para os seguintes aspectos dessa argumen-
tação:
Ao contrário da quase totalidade da literatura relacionada com a Filoso-
fia da Tecnologia, Hoffmann (através de uma citação a Berson) assume
a independência entre os propósitos que levaram o experimentador a re-
alizar o experimento de sı́ntese e as conseqüências epistemológicas dos
resultados desse experimento. Isso lhe permite, à semelhança da dis-
tinção entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação, que
exerceu papel fundacional para a Filosofia da Ciência, isolar os aspectos
epistemológicos contidos no conhecimento oriundo do experimento4 .
Uma curiosa concepção a respeito de processos de sı́ntese é enunciada:
segundo ela, a sı́ntese – ao contrário de outros tipos de experimento –
não teria validade como instrumento para tentar a refutação de teorias.
Seu único papel seria o de confirmar afirmações singulares a respeito
daquele evento de sı́ntese particular. Esse tipo de experimento não
teria, portanto, qualquer relação com a dinâmica das teorias cientı́ficas.
Esse último ponto merece ser examinado em algum detalhe. À primeira
vista, tal colocação pareceria destituı́da de sentido, uma vez que um expe-
rimento de sı́ntese tem de ser ligado a teorias cientı́ficas, ligando-se a tais
teorias por meio de cadeias causais: o sucesso dos experimentos deveria por-
tanto ter um efeito de corroboração sobre essas teorias, e o insucesso deveria
ter um efeito de colocar em questão algum elemento da cadeia de causas,
levantando dúvidas inclusive sobre as teorias das quais estas partem.
Há, entretanto, aspectos de potencial fertilidade na colocação de Hoff-
mann5 . Possı́veis fundamentos para a concepção expressa por Hoffmann pa-
4
Como exemplo que ilustra a crença na dependência entre o propósito do trabalho de
investigação e o sentido epistemológico do mesmo pode-se apontar o seguinte trecho de
Bunge (1980b, p. 191):

5
Devemos notar que Hoffmann possivelmente não concordaria com essa nossa interpre-
tação.
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 109

recem ser de duas ordens.


Em primeiro lugar, é possı́vel que as teorias que se encontrem na raiz das
cadeias causais que definem um certo processo de sı́ntese já se encontrem
na situação de estabilidade caracterı́stica de um estado terminal, conforme
a terminologia introduzida no Capı́tulo 1 deste ensaio. Essas teorias já não
seriam consideradas objetos legı́timos de teste, uma vez que teriam assu-
mido um caráter de quase-verdade estabelecida, tendo o papel apenas de
fazer o referendo de afirmativas (singulares ou gerais) que podem ser usadas
por construções teóricas ulteriores. Nesses casos, se a pesquisa sobre a ca-
deia de sı́ntese ainda se trata de um empreendimento de legı́tima busca do
conhecimento, o ponto de partida dessa cadeia deixa de sê-lo.
Isso revela um aspecto interessante que é pouco evidenciado normalmente:
esforços sérios de questionamento sobre teorias já consolidadas, sobre as quais
um extensivo trabalho de construção já tenha sido bem sucedido, e em cujos
domı́nios não haja evidências de problemas (ou “anomalias”) não ocorrem por
uma mera motivação de manter acesa a possibilidade da ocorrência de eventos
de refutação. Tais teorias, na prática, deixam de ser objeto de pesquisa
ativa, e passam a ter um estatuto de herança cientı́fica, cuja utilidade é a de
produzir referendos a respeito de enunciados sobre a realidade. Uma eventual
retomada dos esforços de refutação é sempre mantida como possibilidade, por
princı́pio epistemológico, mas só se coloca efetivamente em funcionamento na
presença de boas razões, tais como: (i) uma nova teoria teria surgido, gerando
predições diferentes da antiga teoria; ou (ii) anomalias teriam surgido, em
decorrência de experimentos cujas motivações eram diversas, colocando em
dúvida a teoria. A não ser em tais condições, simplesmente testar uma teoria
já amplamente aceita não seria uma atividade admitida como “cientı́fica”;
quando muito, seria uma atividade “didática”.
Admitindo tais nuances, faz sentido a afirmativa de que experimentos de
sı́ntese assentados em fenômenos pertencentes a tais teorias em estado ter-
minal não poderiam ter papel nem de corroboração nem de refutação dessas
teorias. O ponto interessante, no que diz respeito às situações de sı́ntese, é
que mesmo não tendo estas nenhum interesse no que diz respeito a testar
as teorias de fundo que sustentam tal sı́ntese, elas ainda podem constituir
situações de legı́tima busca por um conhecimento sistemático. Deixamos por
alguns momentos em suspenso a análise a respeito de qual seria a natureza
dessa busca por conhecimento.
Retomando, antes, a análise da colocação de Hoffmann, esta poderia, em
segundo lugar, fazer referência à possibilidade de que a cadeia de intervenções
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 110

que constitua a sı́ntese em questão seja tão longa e complexa, contando com
número tão grande de determinações, que surja uma dificuldade de ordem
prática para atribuir eventuais falhas do processo de sı́ntese aos primeiros
elos da cadeia, situados nas “teorias básicas” que dão sustentação ao pro-
cesso. Equivalentemente, poderia ocorrer que alguns elos da cadeia fossem
pouco compreendidos teoricamente, envolvendo o uso de conhecimento a res-
peito de operações cuja eficácia fosse constatada empiricamente, mas para as
quais não houvesse uma formalização teórica disponı́vel capaz de descrever
os mecanismos envolvidos6 Em ambos os casos, instala-se a impossibilidade
de percorrer a cadeia causal em sentido inverso, conectando um eventual in-
sucesso de um processo de sı́ntese à falsificação de uma premissa situada no
inı́cio da cadeia.
Esse argumento se conecta à questão dos “nı́veis ônticos”, que foi abor-
dada na seção anterior. Retomando aquele exemplo da Inteligência Compu-
tacional: caso um programa que devesse fazer a classificação de objetos, por
exemplo, venha a falhar, a causa dessa falha será procurada nas entidades
previstas pela própria Inteligência Computacional, ou no máximo no nı́vel an-
terior, onde se situam métodos numéricos de natureza genérica. Certamente
não ocorrerá uma busca de causas profundas da falha que venha a conside-
rar a possibilidade de problemas na teoria eletromagnética que estivessem na
raiz de comportamentos anômalos em correntes e tensões no processador do
computador, que pudessem causar o mal funcionamento do programa.
Observe-se que este argumento, ligado à complexidade da cadeia de deter-
minações envolvida na sı́ntese, pode ser tornado independente do anterior, re-
lacionado à estabilidade das teorias “básicas” subjacentes, da seguinte forma:
No caso dos computadores atuais, cujo funcionamento interno se baseia na
teoria eletromagnética clássica e em interações relativamente bem conhecidas
dos campos eletromagnéticos com materiais semicondutores, se acoplaria a
este argumento aquele anterior, segundo o qual essencialmente não haveria
racionalidade em se colocar em questão a teoria cientı́fica “de base”. Ima-
ginando um cenário distinto, em que os mesmos programas fossem testados
em um “computador quântico” experimental, cujo comportamento também
fosse relativamente desconhecido, o argumento ainda se manteria de pé: seria
irracional examinar uma cadeia de determinações que se estendesse do fun-
cionamento de cada dispositivo até chegar ao comportamento de programas
6
No caso especı́fico do artigo (Komatsu et al. 2005), conforme narrado por Hoffmann
(2007), tal situação se verifica no que se refere aos procedimentos de sı́ntese.
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 111

do nı́vel daqueles empregados na Inteligência Computacional. Dificuldades


detectadas nessa situação teriam necessariamente de considerar “nı́veis” de
organização do artefato tecnológico. Nessas circunstâncias, um insucesso em
uma tentativa de sı́ntese deixa blindada a teoria cientı́fica que se encontra
em sua raiz.
Deve ser entretanto indicado que a tese da irrelevância dos experimentos
de sı́ntese para a avaliação de teorias, que Hoffmann indica prevalecer nos
dois sentidos (tanto no que diz respeito à refutação quanto no que diz respeito
à corroboração) não parece fazer sentido: um eventual sucesso de funciona-
mento daquele hipotético “computador quântico” para executar programas
de Inteligência Computacional certamente serviria como evidência em favor
das teorias do emaranhamento de estados quânticos que se encontrariam sub-
jacentes à construção de tal computador, e que hoje constituem um campo
de pesquisas ativo.
Para mencionar um exemplo extraı́do de um caso real: a possibilidade da
construção dos LASERs, assim como seus predecessores, os MASERs, é uma
conseqüência teórica de um trabalho de Einstein, de 1917, sobre a radiação
quântica. O efeito de emissão estimulada de ondas eletromagnéticas amplifi-
cadas foi especificamente previsto por Valentin A. Fabrikant, em 1939. Uma
polêmica se estabeleceu, envolvendo nomes tais como Niels Bohr, John von
Neumann, Isidor Rabi, Polykarp Kusch, and Llewellyn H. Thomas, os quais
sustentavam que seria teoricamente impossı́vel tal efeito. A polêmica foi efe-
tivamente resolvida com a construção dos dispositivos MASERs, feito que
rendeu o Prêmio Nobel de Fı́sica a Townes, Basov, e Prokhorov, em 1964.
Pode-se conjecturar que um eventual insucesso nos experimentos de constru-
ção desse dispositivo não pudesse realmente refutar a teoria em questão. Essa
impossibilidade, caso o insucesso na sı́ntese do dispositivo de fato ocorresse,
estaria ligada à complexidade da cadeia de determinações no processo de sı́n-
tese. Seria difı́cil imputar à teoria a responsabilidade pelo insucesso, dada a
variedade de outras possı́veis causas. Uma vez tendo ocorrido o sucesso, no
entanto, parece incontestável o papel desse experimento de sı́ntese como ele-
mento de corroboração dessa teoria. Aquele efeito de “blindagem”, portanto,
pareceria se restringir à dificuldade de uso do resultado do experimento para
fins de refutação, mas não para fins de corroboração7 .
7
Mesmo tal afirmativa deveria ser apresentada com moderação: um eventual acúmulo
de insucessos em repetidas tentativas de sı́ntese estruturadas a partir de uma teoria pro-
vavelmente exerceria algum papel de “refutação” sobre esta, pelo menos naquele sentido
da emergência de “anomalias”.
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 112

Assim, as duas possibilidades de interpretação da formulação de Hoffmann


na verdade convergem para uma única situação-problema em que a mesma
pode fazer sentido: (i) Necessariamente, teria de haver uma cadeia complexa
de determinações envolvida no processo de sı́ntese, do contrário a sı́ntese
não seria nem sequer tematizada8 . (ii) Necessariamente, as “teorias de base”
envolvidas no processo de sı́ntese teriam de estar em um estado terminal; do
contrário, não faria sentido a observação sobre a irrelevância do experimento
de sı́ntese para a avaliação dessas teorias.
Faz-se interessante examinar essa situação-limite, pois ela consegue isolar
o que pode restar de interesse investigativo sobre problemas de sı́ntese no
momento em que se elimina toda a possibilidade de que o interesse sobre tais
problemas fosse originado de seu valor para a avaliação de teorias cientı́ficas
“básicas”. Denominaremos tal situação-limite de problema puro de sı́ntese.
Antes disso, convém mostrar a opinião do próprio Hoffmann (2007):
“Na quı́mica existe o consenso de que fazer novas moléculas é
um empreendimento muito, muito diferente de se analisar o que
existe na natureza. E de que a sı́ntese cria em seus praticantes
diferentes maneiras de olhar para o mundo, nas quais a construção
de teorias não é central. Fazer coisas é.”
Hoffmann parece identificar uma diferença similar àquela que vem sendo re-
correntemente apontada nos textos da área da Filosofia da Tecnologia, entre a
atividade cientı́fica e a atividade de projeto de artefatos tecnológicos. Talvez
por tal diferença não ter sido detectada em um campo tipicamente consi-
derado “tecnológico”, mas sim em um campo tradicionalmente considerado
“cientı́fico”, a pergunta que Hoffmann se coloca não diz respeito a em quê tal
área diferiria da ciência?, mas sim a quais caracterı́sticas da ciência não fo-
ram anteriormente observadas pelos filósofos da ciência?. Esse é, em última
instância, o tema do artigo de Hoffmann.
No entanto, fica inescapável a observação de semelhanças da atividade de
sı́ntese em relação à atividade tecnológica, às quais Hoffmann ainda acres-
centa semelhanças em relação à atividade artı́stica:
8
Com isso, queremos dizer que experimentos que envolvessem uma cadeia de deter-
minações de poucos passos não seriam reconhecidos como de “sı́ntese”, mesmo que seu
eventual sucesso implicasse a obtenção de um artefato sintético. Por exemplo, os estudos
de Torricelli a um tempo resultaram na construção do barômetro de coluna de mercúrio e
na proposição de uma teoria sobre a pressão atmosférica. A construção do barômetro não
foi, portanto, percebida como um “experimento de sı́ntese”, mas como um experimento
ligado à própria demonstração de um efeito para a construção de uma teoria.
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 113

“Então o que poderia ter sido diferente? Quı́micos fazem compos-


tos / moléculas, os objetos de sua própria contemplação. Isso os
coloca próximos da arte e dos artistas. A menos que nos tornemos
excessivamente românticos quanto a isso (apenas alguém que não
tenha tentado subsistir como artista o faria), a centralidade da
criação também nos coloca próximos dos engenheiros. A molé-
cula é fabricada, e frequentemente é fabricada para um propósito
– uma propriedade fı́sica ou biológica desejada. A conexão desta
ciência com a arte – alta e baixa – poderia ter levado filósofos a
aplicar teorias estéticas à ciência. Isto teria certamente ajudado
pessoas a estar mais em paz com a influência óbvia (nem sempre
para o bem, diga-se) de fatores estéticos – simetria, ordem, contar
uma boa estória – na aceitação de teorias. Não apenas predição.
A conexão com a engenharia faz da utilidade um importante cri-
tério para a quı́mica. O ácido sulfúrico, número um da ‘parada de
sucessos’ da quı́mica por 75 anos, é belo porque todos os seus 100
bilhões de libras fabricados nos Estados Unidos no último ano são
usados. E a utilidade imediatamente cria um problema para a mi-
nha hipotética nova filosofia da ciência que incorpora a estética.
A contemplação desinteressada foi uma caracterı́stica central das
teorias estéticas – vide a Zweckmässigkeit ohne Zweck de Kant.
Eu pessoalmente penso (Hoffmann, 1990) que isso indica uma fa-
lha da estética clássica, em não permitir que a utilidade seja um
determinante válido na definição do que constitua arte e beleza.”
Hoffmann parece apontar uma conclusão que se assemelha à também recor-
rente observação de que, no contexto da tecnologia, a escolha dos artefatos
a serem efetivamente construı́dos demanda determinações externas. Os pro-
blemas de sı́ntese, na Quı́mica, também teriam tal caracterı́stica.

5.3 O Problema Puro de Sı́ntese e o Conhe-


cimento Tecnológico do Tipo Cientı́fico
Conforme vimos, um problema de sı́ntese pode ter caracterı́sticas que lhe
atribuam interesse epistemológico em sua relação com teorias cientı́ficas “bá-
sicas” com as quais possua conexão. É possı́vel que a sı́ntese envolva a de-
monstração da ocorrência de um “novo efeito” previsto pela teoria; ou ainda
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 114

que sirva para levantar objeção (em certo sentido, “refutação”) a alguma hi-
pótese teórica que preveja a impossibilidade dessa sı́ntese. Em menor escala
de importância epistemológica, ela ainda pode servir como uma confirmação
adicional (corroboração) para uma teoria que ainda não esteja firmemente
aceita. A análise do problema puro de sı́ntese, cuja definição foi aqui pro-
posta a partir de uma releitura de (Hoffmann 2007), permite concentrar o
foco na estrutura epistemológica do problema quando nenhum desses inte-
resses epistemológicos derivados das ciências básicas conexas pode existir.
Os “problemas de sı́ntese” essencialmente coincidem com os “problemas
de projeto de artefatos”, na medida em que o resultado de ambos é um roteiro
para a obtenção do objeto artificial. Dessa forma, os “problemas puros de
sı́ntese” constituem um subconjunto da classe dos problemas de projeto de
artefatos. Possivelmente, dentro do domı́nio do conhecimento tecnológico
atual, devem existir muito mais problemas puros de sı́ntese do que problemas
com conseqüências epistemológicas derivadas para as ciências básicas.
Colocam-se as perguntas:

Pode haver conhecimento além do conhecimento cientı́fico básico, en-


volvido na solução de problemas puros de sı́ntese?

Em caso afirmativo, tal conhecimento pode expressar regularidades, em


forma de teorias, que se apliquem a classes de problemas de sı́ntese?

Os indı́cios já levantados anteriormente parecem indicar respostas positivas


para ambas as questões. A primeira está relacionada com a distinção entre
o conhecimento tecnológico e a aplicação das ciências básicas, que foi discu-
tida em inúmeras referências recentes no campo da Filosofia da Tecnologia,
conforme foi visto no capı́tulo anterior. A segunda encontra-se relacionada à
entidade conhecimento tecnológico de tipo cientı́fico, também definida no ca-
pı́tulo anterior. A articulação desse tipo de conhecimento com os problemas
de sı́ntese é feita a partir da observação de que estes constituem entidades
pertencentes às teorias dos campos do conhecimento tecnológico do tipo ci-
entı́fico.
No capı́tulo 5 foi desenvolvido o conceito de problema puro de sı́ntese que,
grosso modo, traduz a noção de que quando um campo da ciência básica
atinge seus limites de descrição da realidade, hipoteticamente podendo atin-
gir uma descrição correta dessa realidade1 , experimentos ulteriores realizados
sobre os elementos dessa realidade descrita pela teoria supostamente correta
perderão sua força enquanto atividade cientı́fica, na medida em que passarão
a constituir mera corroboração repetida de proposições já consolidadas. No
entanto, experimentos de construção de artefatos utilizando tal teoria básica
consolidada continuarão a possuir interesse epistêmico, na medida em que
se refiram a novas entidades – os artefatos – dotados de novas propriedades,
ainda desconhecidas (e não trivialmente deriváveis das propriedades descri-
tas pelas teorias básicas), que cabe desvendar. Sobre essa situação-modelo,
é possı́vel estabelecer uma natureza especı́fica para o objeto tecnológico logi-
camente separável da natureza do objeto natural que é o referente da teoria
da ciência básica.
Com esse conceito de problema puro de sı́ntese, estamos em condições
agora de propor uma estrutura para as teorias dos campos do conhecimento
tecnológico do tipo cientı́fico. Em princı́pio, essas teorias lidam com pro-
1
Fazemos menção aqui à discussão desenvolvida no capı́tulo 1, que situa os condicio-
nantes lógicos dessa “correção teórica”: estes seriam correspondentes à caracterização do
nı́vel do “referendo de proposições”, conforme a formulação lá desenvolvida.

115
CAPÍTULO 6: ESTRUTURA DAS TEORIAS 116

blemas de sı́ntese não necessariamente puros. No entanto, a especificidade


dessas teorias diz respeito à estrutura constatável nos problemas puros. Toda
a análise neste capı́tulo irá então supor esse contexto, deixando de lado even-
tuais questões que possam surgir nos casos em que houver interesse episte-
mológico envolvendo também conhecimento das áreas “básicas” da ciência.

6.1 Entidades do conhecimento tecnológico do


tipo cientı́fico
A lista de entidades presentes nos campos do conhecimento tecnológico do
tipo cientı́fico deve necessariamente incluir:
Problemas de sı́ntese. Esses problemas definem as especificações dos
artefatos que devem ser construı́dos, além de outras restrições ao pro-
cesso de construção.
Roteiros de sı́ntese. Esses roteiros seriam as soluções para os problemas
de sı́ntese e são constituı́dos por sequências de instruções que, uma
vez seguidas, levam à construção do artefato final, atendendo tanto às
especificações deste quanto às restrições inicialmente impostas.
Artefatos. Esses objetos seriam o resultado da sı́ntese.
Para exemplificar essas entidades, tomemos o campo do conhecimento
tecnológico que se ocupa da sı́ntese de antenas. Um possı́vel contexto a par-
tir do qual poderia surgir a motivação para um problema de sı́ntese seria,
por exemplo, o do projeto de antenas para torres de transmissão utilizadas
em telefonia móvel. Nesse contexto, o problema de sı́ntese2 seria definido for-
malmente como um conjunto de requisitos de projeto, que poderiam incluir,
dentre outros:
A antena deveria obedecer a uma determinada estrutura geométrica
(ser, por exemplo, uma antena filamentar, com determinado número
elementos);
2
Deve-se notar que esse se enquadra na definição de
, dado que a teoria cientı́fica básica com a qual se conecta é a teoria
eletromagnética clássica – que se encontra suficientemente isolada, enquanto alternativa
teórica no seu campo de fenômenos, e suficientemente articulada em sua constituição
formal, para não admitir a esta altura tentativas de refutação/corroboração do tipo que
seria proporcionado pelo experimento de construção dessas antenas.
CAPÍTULO 6: ESTRUTURA DAS TEORIAS 117

O “ganho” mı́nimo admissı́vel ao longo de uma faixa de passagem na


qual a antena deveria funcionar (essa especificação diz respeito à relação
entre a potência do sinal que incide na antena e a potência que esta
consegue efetivamente captar);

A “diretividade” requerida da antena (essa especificação representa,


aproximadamente, uma especificação do “cone” em que deve se con-
centrar a capacidade de transmissão e recepção da antena);

Uma faixa de “impedância de entrada” admissı́vel (essa especificação


está relacionada com a capacidade da antena de se conectar aos equi-
pamentos eletrônicos de recepção/transmissão de sinais);

A “tolerância de fabricação” (o processo de fabricação da antena irá


introduzir pequenas diferenças entre a antena efetivamente fabricada e
aquela antena “idealizada” no projeto; essas pequenas diferenças, desde
que estejam dentro de uma faixa chamada de “tolerância” não devem
causar a perda de qualquer dos requisitos de projeto).

Uma lista muito mais extensa de requisitos de projeto deve ser acres-
centada, até que tenham sido definidos todos os parâmetros necessários
para possibilitar a efetiva construção da antena para aquela aplicação
especı́fica. Essa lista deve incluir aspectos como: comprimento e lar-
gura máximos admissı́veis, requisitos de resistência mecânica, etc.

Além disso, a especificação formal do problema de sı́ntese deve incluir uma


definição a respeito de quais seriam os critérios de mérito que poderiam ser
utilizados para comparar os resultados de diferentes roteiros de sı́ntese. No
caso do projeto de antenas, alguns critérios poderiam ser:

Maior “ganho médio” ao longo da “faixa de passagem” (deve-se notar


que esse critério é diferente do “mı́nimo ganho admissı́vel” pois o atendi-
mento deste último significa que a antena atinge padrões mı́nimos para
poder ser colocada em funcionamento, enquanto que o maior “ganho
médio” significa que o dispositivo apresentará desempenho “melhor”);

Menor variação do “ganho” da antena ao longo de sua “faixa de pas-


sagem” (este critério também está ligado ao melhor desempenho do
dispositivo);
CAPÍTULO 6: ESTRUTURA DAS TEORIAS 118

Menor custo de fabricação (esse critério seria uma função dos materiais
utilizados e dos processos de fabricação especificados).
Um roteiro de sı́ntese contém a especificação de uma seqüência de passos
de cálculo que conduz ao detalhamento de um artefato que satisfaz ao pro-
blema de sı́ntese. Usualmente, podem existir diferentes roteiros de sı́ntese
conduzindo a diferentes artefatos, todos eles satisfazendo às especificações
contidas no problema de sı́ntese.
Várias instâncias de problemas de sı́ntese parecidos entre si são usual-
mente possı́veis. No caso do projeto de antenas, seria possı́vel haver con-
juntos de especificações diferentes (definindo, portanto, problemas de sı́ntese
diferentes) para antenas cuja função fosse essencialmente a mesma. No caso
mencionado das antenas para telefonia celular, por exemplo, seria possı́vel
que sistemas diferentes fossem concebidos, nos quais tanto as antenas tives-
sem requisitos de funcionamento diferentes quanto por exemplo os equipa-
mentos eletrônicos de recepção/transmissão também fossem diferentes, assim
compensando mutuamente as diferenças, de tal forma que o sistema como
um todo tivesse comportamento similar no que diz respeito ao atendimento
dos requisitos de funcionamento do conjunto. Além disso, dispositivos cujas
funções fossem diferentes poderiam ter similaridade tal entre si que o conhe-
cimento empregado para sistematizar o projeto de um pudesse ser em grande
parte aproveitado para o projeto do outro – levando a uma maior generalidade
desse conhecimento. Assim, as antenas para telefonia celular constituem ca-
sos particulares de um conjunto maior de antenas de comunicação das quais
se requer uma banda de funcionamento “larga” e a possibilidade de se con-
trolar a sua área de cobertura. O exame da prática tecnológica, conforme
essa ocorreu, revela que foi primeiro desenvolvido um conhecimento geral a
respeito do projeto de antenas com tais caracterı́sticas, sendo esse conheci-
mento então instanciado para se tornar particularmente aplicável ao projeto
de antenas para telefonia celular (essa aplicação, na verdade, é relativamente
recente).
Assim, às classes de entidades anteriormente mencionadas, presentes nos
campos do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico, deve-se acrescentar
mais uma:
As famı́lias de problemas de sı́ntese. Estas entidades aglomeram pro-
blemas que são inter-relacionados.
Tais entidades, ao escaparem da particularidade de cada caso de projeto,
definindo temas gerais a serem tomados como foco de “atividade tecnoló-
CAPÍTULO 6: ESTRUTURA DAS TEORIAS 119

gica”, auxiliam no desenvolvimento das teorias no âmbito do conhecimento


tecnológico do tipo cientı́fico. No caso do exemplo de problema de sı́ntese de
antenas aqui mencionado, a definição de uma famı́lia de problemas poderia
ser feita na forma de um conjunto de especificações muito mais “relaxado”
que no problema de sı́ntese. Por exemplo, poderia ser definido que seriam es-
tudadas antenas filamentares com geometria de um tipo especı́fico3 , e outras
restrições adicionais relativamente “folgadas”4 . Sobre o conjunto de antenas
definido dessa forma, seria estudada por exemplo a “diretividade” ou o “ga-
nho” de cada instância, ou a relação entre essas duas figuras de mérito. No
estudo realizado sobre tal famı́lia de problemas, não se obteria o detalha-
mento do projeto de nenhuma antena em particular, que servisse para uma
aplicação. Seriam no entanto estudadas “leis gerais”, cujo domı́nio de vali-
dade seria todo o conjunto de antenas que satisfazem à regra de formação
da famı́lia. No momento de se realizar um projeto em particular, tal co-
nhecimento poderia ser aproveitado, sendo devidamente instanciado para a
situação particular em questão.
Um repertório de famı́lias de problemas basicamente delimita o âmbito
de um campo do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico. Esse é o escopo
ao qual se referem as teorias desse campo.

6.2 Análise Formal


Defina-se a seguinte notação para as entidades a que se referem as teorias do
conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico:

i j: o artefato i pertence ao conjunto de artefatos j;

( i ): conjunção de proposições, tendo como referente o artefato i ,


cujo valor “verdade” ocorre quando o artefato i atende a todos os requi-
3
Por exemplo, a geometria “Yagi-Uda”, que estabelece que os filamentos devem ser
dispostos paralelos uns aos outros, todos em um único plano, sendo seus pontos médios
dispostos sobre um segmento de reta.
4
Deve-se entender como restrições que possam ser satisfeitas por um
grande número de objetos diferentes. Um exemplo desse tipo de restrição poderia ser:
o centro da faixa de freqüências de operação da antena poderia se situar desde o limite
inferior das frequências das rádios FM até o limite superior das frequências utilizadas para
telefonia móvel. Um grande número de possı́veis antenas, atendendo a aplicações bastante
diversificadas, estaria incluı́do nessa especificação.
CAPÍTULO 6: ESTRUTURA DAS TEORIAS 120

sitos em ou, equivalentemente, possui as propriedades especificadas


em ;

k : roteiro de sı́ntese, ou seqüência de passos para a obtenção do pro-


jeto de um artefato, a partir dos requisitos especificados em , tal que
i k ( ).

Nessa lista de notações, as entidades artefato e roteiro de sı́ntese aparecem


explicitamente referenciadas. A entidade famı́lia de problemas tem a mesma
estrutura lógica que o problema de sı́ntese, sendo apenas contextualmente
diferente no que diz respeito ao seu significado: enquanto um problema de
sı́ntese diz respeito aos requisitos para que um determinado artefato satisfaça
a uma demanda prática especı́fica (resultando em um artefato que possa ser
construı́do e colocado em operação com sucesso em um determinado contexto
de aplicação), uma famı́lia de problemas está associada a um número menor
de restrições do que o que seria necessário para garantir que todo artefato que
as satisfaça tenha valor prático. Assim, não será aqui definida uma notação
especı́fica para representar cada uma, sendo ambas as entidades representadas
pelos conjuntos de requisitos, ou propriedades, .
Para ilustrar esse ponto da equivalência estrutural entre os problemas
de sı́ntese e as famı́lias de problemas, utilizamos o caso das antenas. Uma
famı́lia de problemas poderia incluir, por exemplo, todas as antenas cuja
especificação de “diretividade” atendesse a certos requisitos. Esse conjunto de
antenas iria incluir algumas que seriam úteis para certas aplicações, algumas
outras úteis para outras aplicações, e ainda várias outras que possivelmente
não teriam utilidade alguma. Já um problema de sı́ntese só deve incluir
em seu conjunto-solução aquelas antenas que seriam capazes de ter sucesso
em uma situação especı́fica de aplicação, por exemplo para a finalidade de
servir para a transmissão/recepção dos sinais em um determinado sistema de
telefonia móvel.
Deve-se notar que o estudo de problemas de sı́ntese usualmente responde
a necessidades imediatas de se construı́rem artefatos para uma certa apli-
cação, tendo pouca possibilidade de servir como fundamento para o estudo
de propriedades gerais de classes de artefatos, dada a quantidade e a hete-
rogeneidade dos requisitos usualmente envolvidos. A construção das teorias
nos campos do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico, portanto, deve ser
fundamentalmente baseada no estudo de famı́lias de problemas, através dos
quais torna-se possı́vel estudar a estrutura subjacente a cada tipo de requisito
analisado isoladamente, ou com pouca interferência de outros requisitos.
CAPÍTULO 6: ESTRUTURA DAS TEORIAS 121

A seguir, cabe perguntar: qual seria a estrutura do sistema de enuncia-


dos pertencentes a tais teorias? Não pretendendo dar uma resposta exaustiva
para essa questão, em uma rápida inspeção na literatura de teorias perten-
centes a campos do conhecimento tecnológico de tipo cientı́fico, encontramos
enunciados dos seguintes tipos:

Tipo 1 Enunciados definindo limitações. Artefatos pertencentes a certas


classes não podem ter certas propriedades: i j ( i );

Tipo 2 Enunciados definindo possibilidades. Existem artefatos pertencentes


a certas classes que têm determinadas propriedades: i j ( i );

Tipo 3 Enunciados associando classes de artefatos a propriedades:


( i) i j;

Tipo 4 Enunciados associando propriedades entre si. Artefatos com deter-


minada propriedade 1 também devem possuir outra propriedade 2 :
1( i) 2 ( i ), ou artefatos com determinada propriedade 1 não
podem possuir outra propriedade 2 : 1 ( i ) 2 ( i );

Tipo 5 Enunciados associando roteiros de sı́ntese a classes de artefatos re-


sultantes: k ( ) j.

Passemos a ilustrar esses tipos de enunciados. Os do Tipo 1 e do Tipo 2


constituem, por exemplo, a essência do conteúdo de (Boyd et al. 1988, Boyd
et al. 1990, Boyd & Barratt 1991), que foi discutido no capı́tulo anterior. Ba-
sicamente, os resultados desses trabalhos dizem respeito à conclusão de que
não podem existir “controladores” com determinadas caracterı́sticas e que
necessariamente existem “controladores” com determinadas outras caracte-
rı́sticas.
No mesmo contexto da Teoria de Controle Automático, pode ser mencio-
nado o tema da “análise da estabilidade”. Pesquisas nesse tema geralmente
produzem enunciados do Tipo 3, que dizem que determinados conjuntos de
“controladores”, definidos por determinadas regras de cálculo, somente in-
cluem controladores que resultam na estabilidade do sistema em malha fe-
chada. Um dos resultados mais importantes já desenvolvidos no assunto é
devido a Nyquist (1932). A respeito do significado desse resultado, Astrom
(2005) descreve a situação anterior à sua publicação:
CAPÍTULO 6: ESTRUTURA DAS TEORIAS 122

“Projeto por tentativa e erro, com o cálculo manual das raı́zes


das equações caracterı́sticas. Nenhuma idéia a respeito de como
modificar um sistema para torná-lo estável.”
Segundo Astrom (2005), o resultado de Nyquist permitiu os seguintes avan-
ços:
“Pela primeira vez nós pudemos determinar como modificar o
controlador para estabilizar um sistema. O conhecimento sobre o
artigo de Nyquist modificou o campo do controle da tentativa e
erro para o projeto sistemático.”
Um resultado que se enquadra no Tipo 4 é apresentado em (Bode 1945).
Esta também é uma referência clássica, na Teoria de Controle Automático,
que estuda relações de compromisso no que diz respeito a aspectos como
velocidade de resposta e capacidade de rejeição de distúrbios. Assim, contro-
ladores que permitissem determinada velocidade de resposta seriam incapazes
de obter determinada rejeição de distúrbios, e vice-versa5 .
Uma grande parcela da literatura nas áreas do conhecimento tecnológico
do tipo cientı́fico se enquadra no Tipo 5. Esta categoria pode ser subdividida
em dois casos distintos: quando se refere a uma famı́lia de problemas e
quando diz respeito a um problema de sı́ntese. No primeiro caso, o roteiro
de sı́ntese é um algoritmo geral, que conduz a artefatos com determinadas
propriedades gerais que ainda não se encontram instanciadas para atender a
nenhuma situação prática especı́fica. Como exemplos dessa situação podem
ser citados os trabalhos de Doyle, Glover, Khargonekar & Francis (1989),
ou de Geromel, Peres & Bernussou (1991). Ambos descrevem algoritmos de
projeto que resultarão em controladores que satisfazem certa propriedade (a
propriedade de “robustez”, em ambos os casos). A especificação de requisitos
de projeto, entretanto, não vai além desse requisito geral. Não são especifica-
dos detalhes que seriam essenciais para permitir um projeto “real”, tais como
a natureza do processo a ser controlado, os tipos dos atuadores e sensores
utilizados, etc.
No segundo caso, o roteiro de sı́ntese se desenvolve sobre o problema de
sı́ntese especı́fico, considerando todo o contexto daquele problema em parti-
cular, resultando em um artefato singular, instanciado para as condições defi-
nidas naquele problema. Um exemplo dessa situação pode ser encontrado no
5
Uma reinterpretação “contemporânea” desses resultados pode ser encontrada, por
exemplo, em (Chen 1995).
CAPÍTULO 6: ESTRUTURA DAS TEORIAS 123

trabalho de Vukosavic, Jones, Levi & Varga (2005), onde é estudado o pro-
jeto de um controlador feito especificamente para controlar um determinado
motor elétrico. É preciso ainda notar que há situações intermediárias, como
pode ser ilustrado pelo trabalho de Venkataramanan et al. (2003) já discutido
no capı́tulo anterior. Esse artigo descreve uma metodologia que é especı́fica
para o projeto de controladores para discos rı́gidos de computador mas, em-
bora haja tal especificidade, ainda se mantém uma certa generalidade, uma
vez que o referente não é um tipo especı́fico de disco rı́gido de computador,
sedo possı́vel a aplicação da metodologia a discos rı́gidos de tipos diferentes.
124
A formulação, proposta neste ensaio, de que o conhecimento tecnológico te-
nha como núcleo estruturante uma entidade que denominamos conhecimento
tecnológico do tipo cientı́fico já surge envolta, de antemão, em intensa con-
trovérsia. Isso decorre de uma já estabelecida tradição analı́tica que veio
elaborando, por mais de meio século, uma concepção segundo a qual o co-
nhecimento tecnológico não poderia ter algumas das propriedades que aqui
atribuı́mos a essa entidade proposta. Para aquela tradição, por exemplo, o
conhecimento tecnológico não poderia possuir um mecanismo regulador se-
melhante ao da ciência, segundo o qual uma teoria fosse sendo aperfeiçoada
com base em experimentos, utilizando a informação proveniente de eventuais
desajustes observados entre os dados experimentais e a predição teórica como
indicador da necessidade de reformulação da teoria, com sua substituição por
outra teoria mais acurada. Esse mecanismo de deteção de desvios entre teo-
ria e dados empı́ricos é denominado de refutação da teoria – e constitui um
dos principais mecanismos lógicos associados ao aperfeiçoamento das teorias
cientı́ficas. De acordo com as correntes de pensamento abrigadas sob tal tra-
dição, por diversos motivos o conhecimento tecnológico não seria susceptı́vel
de sofrer refutação, não podendo portanto exibir esse mecanismo regulador
caracterı́stico das ciências.
Este capı́tulo se dedica ao exame dessa questão da pretensa irrefutabi-
lidade do conhecimento tecnológico. Após a apresentação geral das idéias
envolvidas na controvérsia, são apresentados estudos de caso que visam mos-
trar que: (i) o mecanismo de corroboração / refutação cumpre, nas teorias
tecnológicas, um papel similar àquele desempenhado nas teorias cientı́ficas; e
(ii) a dinâmica do acúmulo de observações de desajustes teóricos observados

125
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 126

em situações de aplicação da tecnologia no mundo prático, repercutindo so-


bre as teorias tecnológicas do tipo cientı́fico, é similar ao processo de acúmulo
de anomalias em teorias cientı́ficas 1 .
Ao final deste capı́tulo, é proposto um modelo segundo o qual o conheci-
mento empregado na prática da tecnologia (o “campo prático”) interage com
o conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico. Segundo nosso modelo, esse
setor do conhecimento processa eventuais questões originárias da prática, e
retorna ao campo prático o conhecimento elaborado. Ao largo desse processo
de longo prazo, de interação entre os dois campos, cada campo mantém sua
dinâmica própria de curto prazo, ligada à racionalidade de seu próprio funci-
onamento. No caso do campo do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico,
sua dinâmica segue essencialmente a lógica dos campos da ciência de se ori-
entar para a aquisição de conhecimento, enquanto o campo prático se orienta
para a eficácia na satisfação de necessidades humanas. Não obstante essas
diferenças, um campo se define em relação ao outro, e só o conjunto deles é
capaz de explicar a natureza do desenvolvimento tecnológico.
O modelo proposto é capaz de explicar, de maneira satisfatória, as ob-
servações empı́ricas do funcionamento do conhecimento tecnológico, tanto no
que se refere à elaboração de suas teorias quanto no que concerne à cons-
trução final dos artefatos. Além disso, ele ainda lança luz sobre a natureza
da dificuldade que a literatura filosófica vem encontrando para explicar tal
conhecimento: esta parece se originar da ausência, até este momento, de
uma distinção entre o campo prático do conhecimento tecnológico e o co-
nhecimento tecnológico do tipo cientı́fico – o que tem levado os autores a
aglomerar essas entidades com dinâmicas bastante diferentes sob a rubrica
única de “conhecimento tecnológico”.

7.1 O tema da irrefutabilidade do conheci-


mento tecnológico
Um argumento usado para contrapor a possibilidade de que o conhecimento
tecnológico tenha semelhança, em termos de estrutura epistemológica, com
o conhecimento cientı́fico, diz respeito a uma suposta impossibilidade de que
1
A própria noção de “anomalia”, conforme proposta por Kuhn (1962), exclui, tanto no
caso da tecnologia quanto no da ciência, a aplicação “literal” do princı́pio da corroboração
/ refutação.
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 127

enunciados pertencentes ao conhecimento tecnológico sejam susceptı́veis de


serem refutados. Esse curioso tema (mencionado no capı́tulo 5) aparece já
em Popper (1972, pp. 138-139), não no contexto de uma discussão a respeito
do conhecimento tecnológico, mas a respeito da concepção instrumentalista
na ciência, em cujo âmbito Popper situa todo o conhecimento tecnológico.
No seguinte trecho, Popper enuncia sua fórmula, descrevendo a situação no
âmbito da ciência:

“O instrumentalismo pode ser enunciado como a tese de que as


teorias cientı́ficas – as teorias das chamadas ‘ciências puras’ –
não passam de regras de computação (ou de inferência), que têm
fundamentalmente o mesmo caráter das regras de computação
das chamadas ‘ciências aplicadas’. Poder-se-ia mesmo formulá-la
como a tese de que a ‘ciência pura’ é uma denominação equivo-
cada, pois toda ciência é ‘aplicada’.
Minha resposta aos instrumentalistas consiste em demonstrar que
há diferenças profundas entre as teorias ‘puras’ e as regras apli-
cáveis à computação tecnológica; que o instrumentalismo pode
propiciar uma descrição perfeita dessas regras, mas não é capaz
de explicar a diferença existente entre elas e as teorias. Desta
forma, o instrumentalismo perde sua sustentação.
A análise das muitas diferenças funcionais que há entre as regras
de computação (relacionadas a uma navegação, por exemplo) e
as teorias cientı́ficas (como a de Newton) é um tema interessante.
As relações lógicas que podem existir entre as teorias e as regras
de computação não são simétricas e diferem das que se aplicam
a várias teorias, bem como das que se referem a várias regras de
computação. O modo como as regras de computação são experi-
mentadas é diferente da maneira como as teorias são testadas. A
habilidade exigida para a aplicação das regras de computação é
bem diferente da que é necessária para sua discussão (teórica) e
para a determinação (teórica) dos limites da sua aplicabilidade.
Estas são apenas algumas indicações, mas que podem ser sufici-
entes para mostrar a direção e a força do argumento.
Vou explicar agora um desses pontos com um grau maior de de-
talhe, porque ele pode dar origem a um argumento semelhante
ao que empreguei contra o essencialismo: trata-se do fato de que
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 128

as teorias são testadas por meio de tentativas de refutação (que


nos ensinam muito); mas não há nada que corresponda a essas
tentativas, no caso das regras tecnológicas de computação.
Não é simplesmente pela sua aplicação, ou experimentação, que
se testa uma teoria, mas aplicando-a a casos muito especiais –
casos em que ela deve produzir resultados diferentes daqueles que
esperarı́amos sem a teoria em questão, ou à luz de outras teorias.
Em outras palavras, procuramos escolher para nossos testes os
casos cruciais, em que esperarı́amos a teoria falhar se não fosse
verdadeira.”

Em contraposição, a situação no âmbito do instrumentalismo (e, por conse-


guinte, da tecnologia) é apresentada assim (Popper 1972, p. 140):

“No que diz respeito aos instrumentos e regras de computação


não encontraremos nada que seja suficientemente semelhante. É
bem verdade que um instrumento pode apresentar um defeito,
ou tornar-se obsoleto; mas não faz sentido dizer que submetemos
um instrumento aos testes mais rigorosos que podemos conceber,
para rejeitá-lo caso não passe nesses testes; uma aeronave, por
exemplo, pode ser ‘testada até a destruição’; mas esse teste rigo-
roso não tem por objetivo rejeitar todas as aeronaves a que for
submetido, pela sua destruição, mas sim obter informações (isto é,
testar uma teoria), de modo a utilizá-la dentro dos limites de sua
aplicabilidade (ou seja, dentro de uma margem de segurança).”

Parece central, no que diz respeito a essa pretensa impossibilidade de se pro-


duzirem refutações no âmbito do conhecimento tecnológico, o caráter imagi-
nadamente singular dos objetos pertencentes ao âmbito desse conhecimento
– Popper faz menção ao teste de uma “aeronave”, mas não ao teste de classes
de turbinas ou de asas.
É curioso notar que Popper parece conceder a possibilidade da existência
de uma teoria por detrás da construção de um aparato tecnológico, embora
pareça negar a possibilidade de que alguém possa estudar tal teoria segundo
uma abordagem cientı́fica (Popper 1972, p. 140):

“Podemos às vezes ficar desapontados ao verificar que a gama de


aplicabilidade de um instrumento é menor do que esperávamos;
isso porém não nos leva a rejeitar aquele instrumento – trata-se
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 129

de uma teoria ou de um aparelho. Por outro lado, esse desaponta-


mento significa que conseguimos nova informação pela refutação
da teoria segundo a qual aquele instrumento podia ser aplicado a
uma gama mais ampla.
Conforme vimos, mesmo as teorias – na medida em que são ins-
trumentos – não podem ser refutadas. A interpretação instru-
mentalista não poderá portanto explicar os testes reais, que são
tentativas de refutação, e não irá além da assertiva de que dife-
rentes teorias têm diferentes gamas de aplicação.”

A raiz da suposta impossibilidade de refutação pareceria, à primeira vista, se


situar no âmbito de um postulado oculto a respeito do interesse subjetivo do
indivı́duo que lida com o conhecimento tecnológico. Podemos, no entanto,
adotar uma interpretação não-subjetiva para tal enunciado de impossibili-
dade. Conforme vimos, no universo de Popper a tecnologia se confunde com
a atividade de projeto e construção dos artefatos tecnológicos singulares. A
questão do interesse pragmático no funcionamento do objeto, que se contra-
põe ao interesse no conhecimento, expresso em uma teoria, está então ligada
à abrangência do que Popper delimita como sendo essa teoria: trata-se, no
caso, do conjunto de conhecimentos efetivamente posto em uso para a cons-
trução daquele objeto em particular. A teoria a cujo teste Popper faz menção,
no que se refere à tecnologia, deve se restringir, portanto, a enunciados2 do
Tipo 5.
Assim, embora não haja uma impossibilidade lógica de se tratar tal “te-
oria” de acordo com os mesmos protocolos que se usam para o exame e
desenvolvimento do conhecimento cientı́fico, podem ser apontadas razões de
ordem “econômica” para que tal tratamento não seja feito. A ciência pro-
cura lidar com conhecimento generalizável, e a lógica de seus protocolos é
essencialmente determinada por esse “interesse”; ao se incluir como parte do
protocolo cientı́fico o próprio processo de seleção dos problemas a serem exa-
minados pela ciência, provavelmente tais “teorias particulares” seriam excluı́-
das do campo de atividade cientı́fica. Dessa forma, elimina-se a componente
subjetiva da formulação, substituindo-a por uma componente econômica ob-
jetivável.
Para concluir a apresentação do tema por Popper (1972, p. 141), o se-
guinte trecho indica o sentido de suas observações:
2
Conforme nomenclatura estabelecida no capı́tulo anterior.
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 130

“De fato, só pelas tentativas de refutação pode a ciência ter es-
perança no progresso. Só pelo exame de como suas várias teorias
respondem à experimentação podemos distinguir entre as teorias
melhores e as menos boas, e encontrar um critério de progresso
cientı́fico.
Portanto, um simples instrumento de previsão não pode ser refu-
tado. [...] Se as teorias são apenas instrumentos para previsão,
não precisamos rejeitar nenhuma teoria em particular, mesmo
quando deixamos de acreditar na consistência da interpretação
fı́sica do seu enunciado formal.
Em suma, podemos afirmar que o instrumentalismo não pode ex-
plicar a importância que representa para a ciência pura a experi-
mentação rigorosa mesmo das implicações mais remotas das suas
teorias; não tem condições de justificar o interesse que o cientista
puro tem pela veracidade e falsidade das teorias. Contrastando
com a atitude altamente crı́tica do cientista puro, a posição do
instrumentalismo (como a da ciência aplicada) é complacente no
que concerne o êxito das suas aplicações.”

Popper, neste trecho, deixa explı́cita a sua preocupação programática. Ao


evitar a subordinação da ciência às perspectivas imediatas de sua aplicação,
evita-se a substituição do conceito regulador de verdade por um critério doxal
de êxito.
Uma questão semelhante é retomada depois por Bunge, que sistematiza
detalhadamente uma tese de que o sucesso ou insucesso do funcionamento
de artefatos tecnológicos não teria qualquer efeito de corroboração ou de
refutação sobre as teorias subjacentes à sua construção. Para os propósitos
do presente ensaio, a apresentação de Bunge é bastante conveniente, pois
permite precisar os argumentos envolvidos na polêmica, tornando possı́vel
o exame de cada ponto. Bunge inicia sua exposição nos seguintes termos
(Bunge 1972, p. 65):

“Uma teoria, se verdadeira, pode ser empregada com sucesso em


pesquisa aplicada (investigação tecnológica) e na prática em si
– na medida em que a teoria seja relevante para essas. (Teorias
fundamentais não são tão aplicáveis porque elas tratam de proble-
mas excessivamente afastados das questões práticas. Imagine-se
aplicar a teoria quântica da dispersão a colisões de automóveis).
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 131

Mas o inverso não é verdade; isto é, o sucesso ou a falha de uma


teoria cientı́fica em situações práticas não é um indicador obje-
tivo de seu valor de verdade. De fato, uma teoria pode ser ao
mesmo tempo bem sucedida e falsa; inversamente, ela pode ser
um fracasso em termos práticos e aproximadamente verdadeira.
A eficiência de uma teoria falsa pode ser devida a qualquer das
razões a seguir.”
Bunge lista quatro razões em prol de sua tese. A primeira das razões é
enunciada assim (Bunge 1972, p. 65):
“Primeiro, uma teoria pode conter apenas um grão de verdade e
este grão sozinho ser empregado nas aplicações da teoria. De fato,
uma teoria é um sistema de hipóteses e é suficiente que algumas
poucas dessas sejam verdadeiras, ou aproximadamente verdadei-
ras, para que a teoria seja capaz de implicar consequências ade-
quadas se os ingredientes falsos não forem usados na dedução ou
se eles forem inócuos na prática. Então é possı́vel manufaturar
um excelente aço pela combinação de exorcismos mágicos com as
operações prescritas pela técnica – como era feito até o inı́cio do
século dezenove; e é possı́vel melhorar a condição de neuróticos
por meio de shamanismo, psicanálise, e outras práticas, desde que
acompanhadas de meios efetivos, tais como sugestão, condiciona-
mento, tranquilizantes, combinados com estas.”
Bunge não comenta, neste seu trabalho, o fato de que essa objeção pode ser
apresentada, com a mesma estrutura lógica, contra a capacidade refutativa
de experimentos cientı́ficos, em sua relação com as teorias cientı́ficas. Por
exemplo, os experimentos de Hertz relacionados com a propagação de ondas
eletromagnéticas, considerados como corroborações da teoria eletromagné-
tica, ocorreram não obstante a presença no sistema de crenças de Maxwell
de um meio material, o éter, no qual ocorreria a propagação dessas ondas3 .
Para que a questão apontada por Bunge tenha substância, portanto, é ne-
cessário que ele esteja fazendo referência a caracterı́sticas mais especı́ficas do
conhecimento tecnológico. Um ingrediente dessa especificidade poderia ser a
complexidade dos experimentos que se praticam no contexto da tecnologia,
3
A existência desse meio foi logo depois posta em dúvida por experimentos que incluem
o paradigmático experimento de Michelson-Morley, sendo por final rejeitada a partir da
aceitação da teoria da relatividade.
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 132

que tornaria difı́cil o rastreamento, na cadeia causal de determinações, do


elo especı́fico que teria falhado em um evento de não-funcionamento de uma
previsão. Para articular este ponto, adiantamos a apresentação da quarta
“razão” de Bunge (1972, p. 66):

“Uma quarta razão para a irrelevância da prática para a vali-


dação de teorias – mesmo para teorias operativas que tratam da
ação – é que, em situações reais, as variáveis relevantes raramente
são adequadamente conhecidas e precisamente controladas. Si-
tuações reais são excessivamente complexas para isso, e a ação
efetiva é muito apressada para permitir um estudo detalhado –
um estudo que se iniciaria por isolar variáveis e por ligar algumas
delas a um modelo teórico. Sendo o desiderato a máxima efici-
ência, e definitivamente não a verdade, várias medidas práticas
irão usualmente ser tentadas ao mesmo tempo: o estrategista irá
aconselhar o uso simultâneo de armas de diversos tipos, o médico
irá prescrever um número de tratamentos supostamente conco-
mitantes, e o polı́tico poderá combinar promessas e ameaças. Se
o resultado for satisfatório, como irá o praticante saber qual das
regras teria sido eficiente, e portanto qual das hipóteses subja-
centes seria verdadeira? Se for insatisfatório, como irá ele ser
capaz de eliminar as regras ineficientes e as hipóteses subjacentes
falsas? Uma discriminação cuidadosa e o controle de variáveis
relevantes e uma avaliação crı́tica das hipóteses concernentes às
relações entre tais variáveis não é feita enquanto se matam, se cu-
ram ou se persuadem pessoas, nem enquanto se fabricam coisas,
mas em teorização e experimentação cientı́fica paciente, plane-
jada e criticamente consciente. Apenas durante a teorização ou a
experimentação nós discriminamos entre variáveis e ponderamos
a sua importância relativa, fazendo seu controle pela manipulação
ou pela medição, e checando as nossas hipóteses e inferências. Eis
porquê teorias factuais, sejam cientı́ficas ou tecnológicas, substan-
tivas ou operativas, são empiricamente testadas no laboratório –
e não no campo de batalha, no escritório de consultoria, ou no
mercado. (Laboratório é entendido aqui em um sentido amplo,
para incluir qualquer situação na qual, como em uma manobra
militar, seja permitido um controle razoável das variáveis relevan-
tes.) Eis também porquê a eficiência das regras empregadas na
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 133

fábrica, no hospital, ou na instituição social pode ser determinada


apenas em circunstâncias artificialmente controladas.”

Nesse trecho do texto, abusando um pouco, em nossa opinião, da sua prerro-


gativa de manter uma certa “instabilidade de sentido”, Bunge parece sugerir
(mas não chega a afirmar) restringir sua discussão a eventos tecnológicos efe-
tivamente colocados em prática em contextos sociais especı́ficos. Assumindo
o risco de contrariar a sua intenção4 , vamos comentar esse trecho mediante a
interpretação contrária de que o mesmo se refira em geral a eventos tecnoló-
gicos de projeto de artefatos e de sistemas – e de que nesses eventos ocorram
as chamadas “situações reais” nas quais haja a elevada complexidade e a pre-
cariedade de controle e de informação a respeito do conjunto das variáveis
intervenientes que ele menciona.
De maneira muito curiosa, o viés de contestação da possibilidade de que
experimentos possam ser utilizados para testar teorias em situações nas quais
a articulação de causas e efeitos tenha elevada complexidade foi examinada
por Popper, num contexto em que um argumento semelhante era apresentado
contra a possibilidade da refutação das próprias teorias cientı́ficas (Popper
1972, p. 139):

“Poder-se-ia objetar à concepção desenvolvida aqui – de acordo


com Duhem – que em cada teste não é só a teoria sob investigação
que está envolvida, mas também todo o sistema de nossas teorias
e premissas – de fato, mais ou menos a totalidade do nosso co-
nhecimento –, de modo que nunca poderemos ter certeza de qual
dessas premissas foi refutada. Mas essa crı́tica não leva em conta
o fato de que se tomarmos cada uma das duas teorias que vão
ser testadas por uma experiência crucial, juntamente com todo o
restante do nosso conhecimento (como é necessário), decidiremos
a respeito de dois sistemas que diferem apenas a respeito das duas
teorias em questão. A crı́tica não considera também que não afir-
mamos a refutação de uma das teorias como tal, mas da teoria
acrescentada de todo o restante do nosso conhecimento – partes
do qual poderão ser responsabilizadas, no futuro, pelo insucesso
da experiência, graças a outras experiências cruciais.”
4
No caso de estarmos errados, parece-nos que tanto nossa contra-argumentação seria
inócua quanto o próprio texto de Bunge ficaria destituı́do de qualquer conteúdo relevante,
reduzindo-se a afirmações tautológicas.
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 134

Acatando o ponto de vista de Popper, não pode ser a complexidade da cadeia


causal envolvida nos fenômenos tecnológicos o elemento determinante de sua
inutilidade para fins de teste de teorias5 . O ponto-chave na argumentação de
Bunge parece estar expresso na frase (que aparece no trecho acima):

“Sendo o desiderato a máxima eficiência, e definitivamente não a


verdade, várias medidas práticas irão usualmente ser tentadas ao
mesmo tempo [...]”

Bunge, portanto, aponta uma diferença metodológica entre o conhecimento


cientı́fico e o conhecimento tecnológico: ao invés de se procurar o isolamento
e a identificação de relações causais, se faria algo mais parecido com uma
“tentativa-e-erro”. Por trás dessa diferença metodológica, se encontraria uma
incomensurabilidade de sistemas metafı́sicos, similar àquela indicada anteri-
ormente por Popper: o conhecimento tecnológico estaria tão completamente
comprometido com uma busca da eficácia que não iria sequer tematizar uma
busca da verdade. Colocado desta forma, o argumento se divide em três
sub-afirmativas:

Procedimentos de tentativa-e-erro não seriam adequados para construir


esquemas de testes de teorias;

A busca da eficácia implicaria o uso de procedimentos de tentativa-e-


erro; e

O conhecimento tecnológico seria inteiramente orientado por uma busca


da eficácia.

A primeira sub-afirmativa parece estar também contida no trecho acima ci-


tado de Popper. Nós concordamos com o conteúdo desta afirmativa – embora
ela não seja objeto de exame neste ensaio. A segunda e a terceira afirmativas
parecem mais problemáticas – nós, em particular, não concordamos com as
mesmas. Para dar suporte a essa nossa opinião, tomemos a conjunção dessas
duas afirmativas, que teria a seguinte forma:

O conhecimento tecnológico seria caracterizado pelo uso exclusivo de


procedimentos de tentativa-e-erro.
5
Note-se que em casos especı́ficos isso pode ocorrer. Isso seria correspondente àquele
fenômeno da “blindagem teórica” pela complexidade, discutido no Capı́tulo 5, que dá ori-
gem à entre campos cientı́ficos distintos pelo mecanismo da .
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 135

Essa afirmativa pode ser imediatamente refutada pelo exame de qualquer dos
trabalhos já citados neste ensaio, até este momento, no âmbito da engenharia.
Essa constatação, claro, não refuta uma outra afirmativa mais moderada, com
a seguinte forma:

Algumas vezes o trabalho, no domı́nio da tecnologia, envolve procedi-


mentos de tentativa-e-erro.

Esta última forma de afirmativa, entretanto, não é capaz de impedir logi-


camente que experimentos no âmbito do conhecimento tecnológico tenham
a capacidade de refutar teorias, em especial aquelas teorias no âmbito do
conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico, conforme definição proposta por
nós. É importante lembrar, no entanto, que Bunge não distinguia tal tipo
de conhecimento, identificando todo o conhecimento tecnológico com aquele
conhecimento diretamente vinculado à atividade de projeto de artefatos –
contexto em que certamente é mais frequente a verificação da última forma
de afirmativa.
Continuamos o exame da argumentação de Bunge, agora apresentando a
“segunda razão” que dá suporte à sua tese (Bunge 1972, pp. 65-66):

“Uma segunda razão para o possı́vel sucesso prático de uma teoria


falsa pode ser que os requisitos de acurácia em ciência aplicada e
na prática estejam muito abaixo daqueles que prevaleçam em pes-
quisa pura, de maneira que uma teoria rudimentar e simples que
forneça rapidamente estimativas corretas de ordens de magnitude
seja muito frequentemente suficiente na prática. Coeficientes de
segurança irão de qualquer forma mascarar os detalhes mais finos
preditos por uma teoria acurada e profunda, e tais coeficientes são
caracterı́sticos da teoria tecnológica porque esta deve se adaptar
a condições que podem variar dentro de amplos limites. Pense-
se a respeito das cargas variáveis a que uma ponte pode estar
submetida, ou da variedade de indivı́duos que podem consumir
uma droga. O engenheiro e o médico estão antes interessados em
intervalos amplos e seguros centrados em valores tı́picos, que em
valores exatos. Uma maior acurácia não teria significado, uma
vez que ela não seria passı́vel de ser testada. Além disso, tal
maior acurácia poderia causar confusão porque ela iria complicar
as coisas de tal forma que o alvo – no qual a ação deve ser focada
– ficaria perdido em uma massa de detalhes. Acurácia, uma meta
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 136

da pesquisa cientı́fica, é não apenas destituı́da de significado ou


mesmo atravancadora na prática mas pode ser um obstáculo para
a própria pesquisa em seus estágios iniciais. Pelas duas razões
dadas acima – uso de apenas uma parte das premissas e baixos
requisitos de acurácia – infinitamente muitas possı́veis teorias ri-
vais podem conduzir a ‘praticamente os mesmos resultados’. O
tecnologista, e particularmente o técnico, encontram-se justifica-
dos em preferir a mais simples dentre elas: sobretudo, eles estão
primariamente interessados em eficiência ao invés de verdade; em
conseguir que coisas sejam feitas ao invés de conseguir uma com-
preensão profunda delas. Pela mesma razão, teorias profundas e
acuradas podem ser impraticáveis: utilizá-las seria parecido com
matar insetos com bombas nucleares. Seria tão absurdo – embora
não tão perigoso – quanto advogar simplicidade e eficiência em
ciência pura.”

Esse argumento de Bunge, até certo ponto, coincide com este de Poser (1998):

“Isto tem como consequência que não há necessidade de leis ou


teorias verdadeiras; o que nós precisamos são teorias ou leis sufi-
cientes no que diz respeito aos fins. Para carros, por exemplo, a
mecânica clássica ao invés da teoria da relatividade é suficiente;
então, uma teoria pode ser bem sucedida na prática, mas falsa.
Portanto, a engenharia como ciência aplicada não pode consistir
na aplicação da ciência pura, mesmo que as ciências possam ser e
sejam úteis para predizer limites teóricos. Ciências aplicadas pos-
suem seus próprios objetivos, e, consequentemente, seus próprios
métodos.”

Aproveitamos esse exemplo paradigmático da utilização da Mecânica Clássica


pelos engenheiros, que seria um indı́cio da associação de teorias simples e não-
verdadeiras, tais como a Mecânica Clássica, no âmbito da Tecnologia, para
examinar com mais vagar essa hipótese das conexões intrı́nsecas (tecnologia
teoria aproximada) e (ciência teoria profunda).
O estudo desse argumento de Bunge envolve a discussão da tese de que
o uso de teorias mais simples, como a Mecânica Clássica, tornaria o campo
tecnológico incapaz de produzir refutações a teorias, dado que o grau de pre-
cisão das teorias “simples” utilizadas em tecnologia não seria capaz de colocar
à prova as teorias mais precisas que constituiriam um “estado corrente” do
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 137

conhecimento. A rigor, é imediata a constatação de que os experimentos no


âmbito da tecnologia não tematizam, usualmente, o teste de teorias como
a da relatividade, não podendo portanto normalmente produzir corrobora-
ções ou refutações de uma teoria assim. Deve-se notar que, ao empregar
teorias cientı́ficas mais simples (por exemplo preferindo a Mecânica Clássica
à Mecânica Relativı́stica) a pesquisa em tecnologia torna-se de fato usual-
mente incapaz de examinar os limites, assim como de produzir refutações,
às questões da Fı́sica. Assim, a pesquisa sobre a construção de robôs (a
Robótica), por exemplo, embora seja fortemente fundada sobre a Mecânica,
normalmente não irá gerar nenhuma questão relevante que constitua tema de
pesquisa nem para a Mecânica Quântica nem para a Mecânica Relativı́stica.
Fazemos entretanto notar que mesmo no que diz respeito a essa limitação
não se deve adotar uma posição peremptória. Como um importante contra-
exemplo para essa afirmação pode-se mencionar o trabalho de Arno Penzias e
Robert Wilson que, estando envolvidos com pesquisa tecnológica relacionada
com o projeto de sistemas de comunicação por satélite nos Laboratórios Bell,
acabaram se deparando com evidências da “radiação de fundo” associada ao
“Big Bang”6 , em 1966. Esse trabalho resultou na concessão do Prêmio Nobel
de Fı́sica de 1978 aos dois pesquisadores. Tanto Wilson quanto Penzias eram
astrônomos, com interesses pessoais ligados ao campo da cosmologia; no en-
tanto, sua descoberta só se tornou possı́vel no contexto do desenvolvimento
de um artefato tecnológico cujo propósito era “prático” – detalhes do con-
texto histórico podem ser encontrados nas notas autobiográficas de Penzias
(Penzias 1978). Este exemplo é um caso emblemático de um tipo de situação
não tão rara, na qual desenvolvimentos tecnológicos com motivação relaci-
nada ao próprio avanço tecnológico acabam por resultar em descobertas com
impacto na ciência.
Esses casos atı́picos, entretanto, não são importantes em nossa discussão.
A situação da Tecnologia, por exemplo no que diz respeito à pesquisa em
Robótica, é completamente análoga à que se verifica em campos tradicio-
nalmente reconhecidos como cientı́ficos – que também não produzem expe-
rimentos capazes de desafiar nem a Mecânica Relativı́stica nem a Mecânica
Quântica, mesmo dependendo de maneira central de conhecimentos advin-
dos da Mecânica. Para elucidar a estrutura do argumento apresentado por
Bunge, tomamos para efeito de contraste o caso da Biomecânica, um ramo da
Biologia que cuida do estudo das propriedades mecânicas dos corpos dos seres
6
Uma narrativa desses eventos pode ser encontrada em (Penzias 1978).
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 138

biológicos, e das funções que emergem da interação desses corpos com o meio
fı́sico. Como seria razoável esperar, o exame da literatura da área revela o
uso da Mecânica Clássica em lugar da Mecânica Relativı́stica (McElroy, Hic-
key & Reilly 2008), o uso da Fluidodinâmica Clássica, em lugar da Mecânica
Estatı́stica (Cox 2008, Hedenstrom & Spedding 2008), e assim por diante.
A localização da Biomecânica no campo das ciências puras parece inequı́-
voca, de maneira que não parece haver suporte para a hipótese de que estejam
intrinsicamente associadas as teorias do campo cientı́fico com as teorias cuja
descrição da realidade seja a mais exata disponı́vel – havendo antes uma
analogia entre a situação verificada na Tecnologia e a situação observada,
por exemplo, na Biologia, no que se refere à relação dessas áreas com a
Mecânica. Se Bunge concede que a Tecnologia não deveria mesmo procurar
experimentos capazes de colocar à prova a Teoria da Relatividade, dado
seu “interesse prático”, em contraste com a “busca da verdade” que seria
caracterı́stica das ciências, vem então a pergunta: o campo da Biomecânica
deveria propor tais experimentos? Ou esse fato seria um indı́cio de que a
Biomecânica não teria compromisso com uma “busca da verdade”, não sendo
portanto uma “ciência”?
Um exame um pouco mais abrangente levaria à constatação de que a
Biomecânica não seria exceção, e de que diversos campos reconhecidos como
pertencentes à ciência pura tenderiam a usar as versões simples das teorias
fı́sicas que fossem suficientes para descrever adequadamente os fenômenos
em seu âmbito de atuação. Isso ocorre não obstante esses campos da ciência
desenvolverem o escrutı́nio sistemático das teorias que os caracterizam, em
processos que necessariamente envolvem, em alguma medida, o mecanismo
de corroboração/refutação das proposições contidas nessas teorias – mas não
(ou não necessariamente) a corroboração/refutação das proposições contidas
na Fı́sica, ou em outras teorias adjacentes a esses campos.
Chamamos a atenção para similaridade do argumento de Bunge contido
nesta “segunda razão” com a tese da “redução epistemológica” das ciências7 :
o seu sentido poderia ser interpretado como a enunciação de uma versão
pragmática da irredutibilidade da tecnologia às ciências, supostamente fun-
dada em seu não-interesse pela verdade. Assim, enquanto a tecnologia seria
supostamente irredutı́vel (por não buscar a verdade), todas as teorias que
seriam “cientı́ficas” seriam redutı́veis (por buscarem a verdade) sendo, por-
tanto, potencialmente capazes de colocar em questão qualquer proposição de
7
Ver capı́tulo 4.
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 139

que façam uso sobre a realidade – mesmo aquelas proposições originárias de


outros domı́nios da ciência (o que se tornaria possı́vel com a dissolução das
fronteiras entre os diferentes domı́nios, por meio da “redução”)8 .
O trecho a seguir, que apresenta a “terceira razão” de Bunge para a irre-
futabilidade do conhecimento tecnológico, parece sugerir tal linha de pensa-
mento (Bunge 1972, p. 66):
“Uma terceira razão pela qual a maioria das teorias cientı́ficas
fundamentais não possuem valor prático não é relacionada com a
conveniência e robustez requeridas pela prática mas possui uma
raiz ontológica profunda. As transações práticas do homem ocor-
rem principalmente em seu próprio nı́vel; e este nı́vel, assim como
outros, é apoiado nos nı́veis inferiores mas goza de uma certa au-
tonomia com respeito a eles, no sentido de que nem toda mudança
ocorrida nos nı́veis inferiores possui efeitos apreciáveis nos mais
elevados. Isto é o que nos permite lidar com a maioria das coisas
nos seus próprios nı́veis, recorrendo no máximo aos nı́veis ime-
diatamente adjacentes. Em resumo, nı́veis são em certa medida
estáveis: os nı́veis são em certa medida intercambiáveis, e isto
constitui uma raiz tanto para o acaso (aleatoriedade devida à
independência) quanto para a liberdade (auto-movimentação em
certos aspectos). Teorias de um nı́vel irão, portanto, ser sufici-
entes para muitos propósitos práticos. Apenas quando um co-
nhecimento das relações entre os diversos nı́veis é requerido para
implementar um tratamento de ‘controle remoto’, é que teorias
multi-nı́veis devem ser tentadas. As mais interessantes realizações
a este respeito são as da psicoquı́mica, cuja meta é, precisamente,
o controle do comportamento pela manipulação de variáveis no
nı́vel bioquı́mico subjacente.”
Bunge, aqui, parece reconhecer que campos do conhecimento possam possuir
uma delimitação própria, mas chama isso de “desinteressante”, e concede que
perpetuar essa delimitação seja legı́timo apenas no âmbito da Tecnologia, ou
do interesse prático – que não se encontraria comprometido com a “busca da
8
Nesse momento, a Biomecânica supostamente passaria não apenas a investigar o vôo
do morcego e o nado do jacaré a partir da Mecânica Quântica e da Mecânica Relativı́stica,
mas ainda a formular proposições sobre os movimentos do morcego e do jacaré que desa-
fiassem essas formulações da Mecânica, de forma que experimentos de verificação dessas
proposições tivessem o poder de corroborar ou refutar aquelas versões da Mecânica.
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 140

verdade”. Consequentemente, os campos pertencentes à ciência não deveriam


proceder dessa forma, devendo então ser redutı́veis, necessariamente devendo
empreender esforços para realizar a “redução”, como decorrência de seu com-
promisso com a busca da verdade. Assim, na hipótese de tal “redução” ser
efetivada, a totalidade da ciência passaria a supostamente coincidir com as
teorias cientı́ficas “mais sofisticadas e precisas”, e nesse caso faria sentido
distinguir as tecnologias das ciências, de acordo com tal critério. Embora
Bunge não leve seu argumento às últimas consequências, parece inevitável a
propagação do mesmo no âmbito das ciências até que, em última instância,
todas as questões consideradas “legı́timas” pertençam apenas à Fı́sica.
Assim, o efeito dessa concepção expressa por Bunge aparece na forma de
duas consequências inseparáveis uma da outra:

As tecnologias seriam definidas como campos do conhecimento nos


quais não existiriam questões teóricas a serem formuladas ou respon-
didas. Somente haveria, nesses campos, questões de interesse prático
desprovidas de valor no sentido do acúmulo e sistematização do conhe-
cimento; e

As ciências seriam definidas como campos do conhecimento que apenas


provisoriamente teriam questões próprias a serem tratadas, e teriam
como programa de longo prazo, necessariamente, sua redução à Fı́sica.

Por fim, parece-nos importante apresentar mais um trecho do mesmo ar-


tigo de Bunge, que retoma de forma mais explı́cita um aspecto já mencionado
em sua “segunda razão” (Bunge 1972, p. 71):

“Nós vemos que não há uma única rota da prática para o co-
nhecimento, do sucesso para a verdade: o sucesso não autoriza a
inferência de uma lei a partir de uma regra mas coloca o problema
de explicar a aparente eficiência da regra. Em outras palavras,
as rotas do sucesso para a verdade são infinitamente muitas e
consequentemente teoricamente inúteis ou quase: isto é, nenhum
grupo de de regras efetivas sugere uma teoria verdadeira. Por
outro lado, as rotas da verdade para o sucesso são limitadas em
número, portanto factı́veis. Esta é uma das razões pelas quais o
sucesso prático, seja de um tratamento médico ou de uma medida
governamental, não é um critério de verdade para as hipóteses
subjacentes. Também por isto a tecnologia – em contraste com
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 141

as artes pré-cientı́ficas e os ofı́cios – não começa com regras e ter-


mina com teorias mas trafega no outro sentido. Eis porquê, em
resumo, a tecnologia é ciência aplicada, enquanto a ciência não é
tecnologia purificada.”

Bunge essencialmente argumenta que:

Várias diferentes teorias “falsas” poderiam, cada uma por uma via
“aproximativa” diferente, levar à construção de sistemas que funcio-
nassem;

Uma teoria “correta”, ao ser aplicada à construção de um sistema, ne-


cessariamente levaria à construção de um sistema que funcionasse.

Assim, um sistema que funcionasse poderia ser tanto resultante da aplicação


de uma teoria “correta” quanto da aplicação de uma dentre as várias versões
possı́veis de teorias “falsas” mas aproximadamente correspondentes, em suas
previsões, à teoria “correta”. Dessa forma, a constatação do funcionamento
desse sistema não poderia ter seu efeito propagado para servir de critério
para julgar a correção da premissa teórica empregada na construção desse
sistema.
A respeito desse argumento, fazemos notar que, em uma forma forte9 , ele
possui estrutura lógica similar à do próprio argumento central desenvolvido
por Popper no seu trabalho fundacional (Popper 1934), o qual indica que
nenhuma teoria cientı́fica com conteúdo empı́rico pode jamais ser compro-
vada por nenhum tipo de experimento. Nos termos de Bunge, várias teorias
cientı́ficas “falsas” poderiam explicar os dados gerados pelos experimentos
até então realizados, e o máximo que tais experimentos seriam capazes de
indicar ou negar seria uma condição “aproximativa” da teoria em relação à
“realidade subjacente”. Nessa forma forte, portanto, tal argumento, ao invés
de revelar uma dessemelhança do conhecimento tecnológico em relação ao
conhecimento cientı́fico, iria indicar uma similaridade entre ambos.
9
Não nos arriscamos, aqui, a tentar inferir qual “forma fraca” desse argumento poderia
contar com a aprovação de Bunge, visto que ele próprio não fornece elementos para tanto.
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 142

7.2 Corroboração e Refutação em Tecnolo-


gia: Uma Imagem Alternativa
Examinemos, como alternativa à formulação de Bunge, a nossa hipótese a
respeito do conhecimento tecnológico. Segundo essa hipótese:
O conhecimento tecnológico inclui, em seu âmbito, conhecimento de um
tipo diretamente relacionado com o projeto de artefatos, e também um
outro tipo de conhecimento, ligado à formulação de sistemas hipotético-
dedutivos: o conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico.
O conhecimento a respeito de “como projetar artefatos” se apóia em três
categorias de conhecimentos teóricos: (i) teorias cientı́ficas adjacentes;
(ii) teorias tecnológicas do tipo cientı́fico de campos adjacentes; e (iii)
a teoria tecnológica do tipo cientı́fico da própria área em questão. Por
exemplo, o projeto de robôs envolve: (i) conhecimentos de Fı́sica (Me-
cânica Clássica); (ii) conhecimentos de Teoria de Controle (projeto de
controladores); e (iii) conhecimentos da própria Robótica (cooperação
de agentes, dinâmica de corpos flexı́veis com múltiplos acoplamentos,
etc).
O conhecimento cientı́fico do tipo tecnológico, sobre o qual se funda-
menta o conhecimento a respeito do projeto de artefatos, se constitui
segundo uma dinâmica muito semelhante à do conhecimento cientı́fico.
Em particular, sua construção se apóia em experimentos concebidos
para produzir a corroboração / refutação de proposições.
Uma série de fatores poderia, em uma interpretação dos fatos de acordo
com nossa hipótese, dar origem aos elementos factuais que poderiam ter mo-
tivado a concepção defendida por Bunge, anteriormente exposta. Um fator
fundamental seria o princı́pio de que o objetivo de eventos de projeto e cons-
trução de artefatos, ao invés da “corroboração” ou “refutação” de teorias, seria
usualmente a obtenção do próprio artefato em si. Essa forma de conceber
os experimentos de projeto de artefatos efetivamente conduz, normalmente,
à pouca efetividade de um hipotético propósito de gerar corroborações / re-
futações de proposições teóricas. O mecanismo segundo o qual essa pouca
efetividade se constitui pode ser descrito da seguinte forma:
Se um experimento é bem sucedido, mas as teorias subjacentes a esse
experimento se encontram em uma situação de se encontrarem “bem
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 143

estabelecidas”, o resultado desse experimento não se trata exatamente


de uma corroboração dessas teorias (termo que, na prática da ciência,
se aplica à obtenção de dados favoráveis a uma teoria ainda não conso-
lidada, que se encontra em fase de verificação), mas de uma informação
redundante. Com frequência muito maior do que na ciência, esse é o
caso no âmbito da tecnologia, no que se refere à atividade de projeto
de artefatos. Pela própria natureza do artefato tecnológico, este per-
manece sendo útil, e portanto permanece sendo projetado e construı́do,
muito tempo depois das teorias subjacentes ao projeto do artefato esta-
rem consolidadas, sendo portanto o evento de sua construção destituı́do
de valor de conhecimento.

Mesmo no caso do projeto de artefatos que são construı́dos sobre teo-


rias ainda não completamente consolidadas, o sucesso do projeto muitas
vezes não tem valor de corroboração sobre a teoria, em função de um
mecanismo que se origina de uma opção (que, embora seja subjetiva,
possui explicação objetiva) dos projetistas: o experimento de projeto
usualmente é concebido para ocorrer exatamente nas faixas de validade
das teorias, onde estas podem ser consideradas “seguras”. Assim, ao
contrário da situação na ciência, onde se concebem experimentos pre-
cisamente nos domı́nios em que se supõe que as teorias possam falhar,
de forma a gerar informação nova a respeito do campo cientı́fico em
questão, nas situações de projeto de artefatos tecnológicos são usual-
mente evitadas as regiões em que se imagina que possam ocorrer falhas
das teorias. Assim, por exemplo, se um projetista de um avião sus-
peita que os parâmetros de um controlador, ajustados de determinada
forma, poderiam levar à instabilidade do avião durante o vôo, ele não
irá prescrever tal ajuste para esses parâmetros, não obstante o interesse
epistemológico que ele pudesse ter, de ver confirmada sua conjectura
de que a teoria que prescreveu aqueles parâmetros fosse falhar naquelas
circunstâncias.

Assim, os experimentos de projeto de artefatos tornam-se realmente,


“em média”, menos efetivos para o propósito de testar teorias que os
experimentos cientı́ficos, cuja concepção é feita exatamente para vascu-
lhar os terrenos onde seria previsı́vel que ocorressem falhas das teorias
conhecidas. É de se esperar que ocorram muito mais eventos de corro-
boração / refutação nesses últimos experimentos que nos primeiros.
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 144

No âmbito do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico, no entanto, o


panorama é mais parecido com o verificado nas ciências. Os experimen-
tos, nos campos desse tipo de conhecimento, são concebidos também
com o interesse especı́fico de vasculhar aqueles domı́nios nos quais as
teorias são menos conhecidas, ou onde imagina-se que possam falhar.

Para exemplificar esse último ponto, bem como, de forma geral, mostrar
a existência de uma metodologia, rotineiramente empregada, de corrobora-
ção/refutação no âmbito do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico, apre-
sentamos a seguir um estudo de caso. Nossa hipótese é de que o mecanismo
de corroboração/refutação, em moldes bastante semelhantes ao seu emprego
no âmbito das ciências puras, tem sua aplicação requerida quando se incluem
as entidades famı́lias de problemas de sı́ntese, e quando se incorporam à teo-
ria enunciados dos Tipos 1 a 4 (em adição aos enunciados do Tipo 5 que são
tradicionalmente reconhecidos no campo das tecnologias).
Para dar suporte a essa hipótese, recorremos a um evento ocorrido há pou-
cos anos no âmbito da Teoria de Controle Robusto. Trata-se da descoberta do
fenômeno da fragilidade nos controladores robustos10 . Explicando de maneira
concisa o problema: a teoria de controle robusto, ao ser inventada, tinha o
propósito de permitir o projeto de controladores que permitissem controlar
sistemas mesmo quando estes fossem sujeitos a incertezas de modelo. Por
exemplo, ao executar o controle da altitude, direção e velocidade de uma ae-
ronave (em “piloto automático”), o controlador automático deveria ser capaz
de manter todas as variáveis nos seus valores pré-estabelecidos, mesmo diante
de variações tais como as velocidades do vento variando de forma aleatória,
ou a carga transportada no avião sendo diferente a cada viagem11 .
A teoria de controle robusto foi desenvolvida a partir de frentes de traba-
lho distintas, sendo que um de seus ramos principais tem origem no trabalho
de Zames (1981). Em meados da década dos 1990, quando tal ramo da
teoria já tinha se tornado consensual (ou paradigmático), um trabalho de
Keel & Bhattacharyya (1997) aborda como tema exatamente a apresentação
de exemplos de casos nos quais a teoria estabelecida pretensamente iria fa-
lhar, em um sentido que, à época, causou certa surpresa: a teoria vigente
não levava em consideração possı́veis incertezas de modelo existentes no pró-
10
Um exame mais detalhado desse estudo de caso é apresentado no Apêndice A deste
ensaio.
11
Essa teoria será explicada em maior detalhe no próximo capı́tulo, o qual se dedicará
ao estudo de eventos ocorridos em seu âmbito.
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 145

prio dispositivo controlador. Na época, era de certa forma implicitamente


esperado que o processo de fabricação desses dispositivos não desse origem
a diferenças significativas entre as caracterı́sticas especificadas no projeto e
aquelas efetivamente obtidas no dispositivo fabricado. O trabalho (Keel &
Bhattacharyya 1997) veio exatamente mostrar que pequenas variações de ca-
racterı́sticas do controlador, compatı́veis com o que seria de se esperar que
ocorressem em um processo de fabricação usual, poderiam dar origem a com-
portamentos inesperados, descritos como perda de robustez, que colocariam
por terra o comportamento do sistema que se deveria esperar a partir de um
projeto feito no âmbito da teoria do controle robusto. Esse comportamento
inesperado foi chamado de fragilidade pelos autores daquele artigo.
Esse artigo surgiu em um contexto no qual a teoria de controle robusto
não sofria questionamentos em relação à sua validade. Na verdade, não temos
conhecimento de nenhum relato registrado, até hoje, de algum controlador
que tenha sido construı́do para alguma aplicação prática, seguindo a teoria
de controle robusto, no qual tenha sido verificada a ocorrência do fenômeno
da fragilidade. Não parece ter havido, no caso, aquele comportamento que
Popper (assim como muitos outros) supunha que devesse ocorrer no âmbito
do conhecimento tecnológico, segundo o qual o interesse pelo êxito das aplica-
ções iria se sobrepor ao interesse por desvendar fenômenos desconhecidos. Ao
contrário, o tema daquele artigo se parece menos com uma orientação para a
eficácia, e mais com aquilo que Popper chamaria de“implicações mais remotas
da teoria”: à publicação daquele artigo, seguiu-se uma duradoura polêmica
a respeito da validade dessa refutação. Surgiram argumentos contrários que
defenderam, por exemplo, que tal refutação à teoria teria pouco significado,
uma vez que os exemplos exibidos seriam “artificiais”, tendo sido construı́-
dos sobre sistemas de tipo “raro” – ou inexistentes, na prática. Esse tipo
de argumento, sem dúvida, exemplifica a lógica instrumentalista, conforme
descrita por Popper, que certamente encontra adeptos nas comunidades cien-
tı́ficas das diversas áreas do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico. Por
contraste, essa argumentação também ajuda a situar a natureza do trabalho
de Keel & Bhattacharyya (1997) âmbito do interesse pelo escrutı́nio de uma
teoria cientı́fica – na investigação de seus limites.
Para a análise desse estudo de caso, apontamos que são centrais as seguin-
tes caracterı́sticas da teoria em questão: (1) trata-se de uma teoria referente
a famı́lias de problemas de sı́ntese; e (2) essa teoria é constituı́da de enunci-
ados dos tipos 1 ao 5. Trata-se de uma teoria de caráter abrangente (sendo
portanto “econômico” investir esforços em seu exame), contendo enunciados
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 146

universais (sendo portanto logicamente susceptı́vel de ser refutada mesmo


após ter sido corroborada).
A seguir, cabe colocar em relevo um aspecto que, sintomaticamente, não
é mencionado por Bunge: o significado epistemológico de um insucesso no
projeto de um artefato tecnológico. O insucesso de um projeto de artefato di-
ficilmente conduz, de maneira imediata, à refutação de uma teoria. Isso pode
ser atribuı́do à complexidade da rede de causalidades presente na constru-
ção do artefato: uma falha poderia se originar em diversos pontos diferentes
dessa rede, levando ao não-funcionamento do artefato, de forma que não se-
ria possı́vel que esse evento isoladamente servisse para refutar qualquer das
teorias envolvidas em tal projeto.
Deve-se notar que o panorama, no caso da ciência, não é essencialmente
diferente: o insucesso de experimentos normalmente não causa, de imediato,
o abandono de teorias cientı́ficas. Ao contrário, um evento de insucesso
inicia um processo de escrutı́nio das causas desse insucesso, que poderiam
em princı́pio se encontrar em diversos pontos de uma cadeia de causalidade:
no aparato instrumental, em interferências originárias de fontes imprevistas,
em falhas do protocolo experimental, etc – assim não devendo o insucesso
experimental necessariamente incidir sobre a teoria em questão. Dessa forma,
o aparecimento de um insucesso normalmente gera aquilo que Kuhn (Kuhn
1962) denomina anomalia.
Como na ciência, entretanto, as anomalias ou os insucessos observados
em problemas de projeto de artefatos podem motivar investigações ulteriores,
as quais normalmente não se processam através de outros experimentos de
projetos de artefatos, mas sim através de experimentos mais especı́ficos des-
tinados a investigar as causas desses insucessos. Essas investigações podem,
então, concluir pela refutação de uma teoria, com a consequente necessidade
de sua substituição – evento que normalmente ocorre apenas quando uma
nova teoria, capaz de acomodar as anomalias, já se encontra esboçada e dis-
ponı́vel para substituir a anterior.
Um exemplo bastante emblemático de insucesso em um projeto tecno-
lógico é a ponte suspensa de Tacoma Narrows. Essa ponte desabou, em
novembro de 1940, apenas quatro meses após ter sido construı́da, em um
evento espetacular (que foi filmado e exibido em todo o mundo) que durou
pouco mais de 40 minutos. A causa do problema foi uma interação entre
a estrutura e o vento, que deu origem a uma oscilação auto-sustentada que
acabou por fazer romper os cabos de sustentação da ponte (Billah & Scanlan
1991, Nakao 1996). Os estudos posteriores ao evento indicaram que este
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 147

ocorreu em virtude de causas desconhecidas e imprevisı́veis à época do projeto


(Nakao 1996):
“Oscilação auto-excitada induzida por vento lateral foi responsá-
vel pelo colapso. A causa foi ‘desconhecimento’, e não ‘ignorân-
cia’. A auto-destruição da ponte, de fato, ocorreu num momento
em que a técnica dos experimentos em túneis de vento estava em
vias de desenvolvimento. A Ponte de Tacoma Narrows foi uma
das pontes suspensas projetadas aplicando a ‘teoria da deflecção’,
que havia sido formulada na Áustria para pontes de concreto em
arco.”
O projeto havia sido feito de acordo com teorias existentes à época. No
entanto, a faixa para a qual tais teorias já haviam sido testadas não incluı́a os
valores de parâmetros empregados naquele projeto especı́fico. De certa forma,
aquele insucesso mostrou a impossibilidade da aplicação daquelas teorias para
uma faixa de valores de parâmetros como aqueles em questão naquele projeto
(Nakao 1996):
“Esta teoria permitiu reduzir a quantidade de material de reforço
e os custos de construção. Ela pareceu uma abordagem de projeto
ideal para pontes suspensas de vão longo. Entretanto, o projetista
estendeu demais o conceito de vão fino, e o novo projeto causou
a excessiva flexibilidade da ponte.”
O evento da queda da ponte, por si só, não constituiu a base para a refor-
mulação das teorias que haviam fundamentado o projeto. Ao invés disso,
tal evento suscitou novas investigações que procuraram determinar a causa
precisa do evento, por meio da elucidação dos mecanismos envolvidos (Nakao
1996):
“A investigação da causa da falha e testes em túnel de vento de
modelos tridimensionais em escala concluı́ram que: (1) A flexi-
bilidade excepcional e a pequena resistência contra a torção da
ponte permitiram que ela se colocasse rapidamente em oscilação.
(2) A forma era aerodinamicamente instável. As vigas em forma
de H permitiram que o fluxo de ar se separasse facilmente nas
bordas, e a geração de vórtices aconteceu de coincidir com a os-
cilação das vigas. Os vórtices gerados pelo vento movimentaram
as vigas que então geraram novos vórtices. Os projetistas não
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 148

tinham conhecimento desse mecanismo de vibração excitada pelo


vento.”
Como resultado das investigações, emergiu um fenômeno de grande comple-
xidade, até hoje não completamente compreendido (Billah & Scanlan 1991):
“Descobriu-se que o fenômeno de interação vento-estrutura asso-
ciado com a formação natural de vórtices é muito complexo, en-
volvendo tanto forças externamente iniciadas pelo vento quanto
forças de auto-excitação que se sincronizam com o movimento
da estrutura. Longe de ser um caso de ressonância simples, este
fenômeno impressionante da dinâmica dos fluidos em corpos rom-
budos foi – e continua a ser – uma das áreas mais recônditas do
campo da moderna aeroelasticidade.”
Até a determinação de uma explicação satisfatória para o evento, passaram-
se mais de 30 anos, ao longo dos quais ocorreu um esforço sustentado de
pesquisa sobre o tema (Billah & Scanlan 1991):
“O interesse da engenharia nos problemas da estabilidade de pon-
tes diante de ventos, uma questão bastante importante para os
novos projetos, conduziu a investigações ulteriores. Algumas das
primeiras dessas explorações foram levadas adiante por Farquhar-
son, na Universidade de Washington, e por Karman e Dunn, no
Instituto de Tecnologia da Califórnia, nos anos 1940 e 1950. [...]
No princı́pio dos anos 1970 Scanlan e Tomko, repetindo parte
desse trabalho sobre um modelo de seção da Tacoma Narrows, e
levando o trabalho mais adiante, demostraram conclusivamente
que o modo catastrófico da ponte velha de Tacoma Narrows foi
um caso daquilo que eles denominaram vibração torsional de um
único grau de liberdade devido a fluxo separado complexo. [...]
A oscilação final destrutiva da ponte velha de Tacoma Narrows
produziu uma vibração estimulada, e não uma esteira de vórtices
de Karman.”
De fato, o campo da Aeroelasticidade de Estruturas foi de certa forma inau-
gurado com as pesquisas em torno de tal evento.
O quadro delineado no evento da ponte de Tacoma Narrows exempla-
riza o mecanismo que usualmente entra em funcionamento nas situações de
insucesso no projeto de artefatos, quando tal projeto é feito no âmbito da
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 149

pesquisa tecnológica (ou seja, quando não se trata de projeto rotineiro). O


conhecimento diretamente relacionado com o projeto de artefatos singula-
res se expressa nas teorias tecnológicas, na forma de proposições do Tipo
5. A refutação de proposições desse tipo tem pouco impacto direto no âm-
bito de teorias, mas possui o papel de gerar as anomalias que motivam o
desenvolvimento de trabalhos de pesquisa ulteriores. Assim, o insucesso de
um procedimento de projeto, expresso por tal refutação, possui articulação
com outros domı́nios teóricos, e os novos experimentos realizados para sua
investigação podem ter repercussão mais abrangente. Nesses experimentos
ulteriores, as proposições dos Tipos 1 a 4 (proposições de maior universali-
dade) serão submetidas a teste, ficando sujeitas a refutação.
Deve-se notar que o insucesso de eventos de projeto de artefatos, ao ser
investigado, pode tanto conduzir à rejeição de proposições ou hipóteses na te-
oria ligada ao próprio domı́nio no qual ocorreu o projeto, como também pode
em princı́pio conduzir à determinação de dificuldades em teorias adjacentes,
sejam essas teorias tecnológicas do tipo cientı́fico, sejam elas cientı́ficas. É de
se esperar que, associadas a eventos de insucesso de projeto de artefatos, seja
mais frequente a deteção de problemas nas teorias tecnológicas que nas teo-
rias cientı́ficas. Isso deve ocorrer pela própria tendência da tecnologia para
utilizar as teorias mais consolidadas que estiverem disponı́veis e que forem
capazes de dar suporte à função tecnológica requerida do artefato: é mais
plausı́vel que o artefato esteja sendo construı́do de forma a estar nos limia-
res do conhecimento tecnológico disponı́vel que para estar nas fronteiras do
conhecimento cientı́fico daquele momento.
Assim, de maneira oposta à tese de Bunge, admitimos aqui a hipótese
de que existam limites do conhecimento, ou questões teóricas em aberto, no
âmbito da própria tecnologia. No âmbito dessa nossa formulação, não parece
haver obstáculo a que essas questões emerjam e sejam tratadas pelos meca-
nismos usuais do método cientı́fico, não obstante uma não-coincidência das
dificuldades encontradas no campo da tecnologia com os problemas corren-
temente abordados na Fı́sica: a nosso ver, a exigência dessa coincidência soa
completamente arbitrária e, em nosso sistema, ela é desnecessária.
Em sı́ntese, não nos parece sustentável, com os elementos hoje disponı́-
veis, a hipótese de que o conhecimento tecnológico como um todo não possa
envolver eventos em que ocorram refutações ou corroborações de teorias. A
nosso ver, tal afirmação pode ser articulada, ainda que com reservas, ape-
nas para um subconjunto do conhecimento tecnológico – aquele diretamente
relacionado com os eventos singulares de projeto e construção de artefatos
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 150

tecnológicos em contextos sociais especı́ficos com forte determinação de uma


demanda pragmática. Toda a argumentação de Bunge em defesa daquela hi-
pótese se estrutura ao redor desse subconjunto do conhecimento tecnológico
(além de também implicar uma polêmica tese de redutibilidade ontológica de
todas as ciências).
Parece factualmente indiscutı́vel que tal subconjunto seja predominante,
quando se examina a composição do conhecimento empregado na atividade
tecnológica que se pratica, relacionada com a atividade econômica que a
humanidade desenvolve para a produção de suas condições materiais de exis-
tência. Nossa argumentação neste ensaio, no entanto, não requer a negação
de tal dado factual. Nós apontamos aqui que um outro subconjunto do co-
nhecimento tecnológico, o conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico, escapa
à formulação de Bunge. Nossa tese é a de que é precisamente esse sub-
conjunto que define a estrutura epistemológica do conhecimento tecnológico,
constituindo sua estrutura lógico-dedutiva formal – a qual é susceptı́vel de
ser submetida à análise epistemológica. Mais que isso, nossa tese também
é: todo o processo de avanço tecnológico hoje observado seria não-inteligı́vel
sem a presença do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico como instância
articuladora de todo o conhecimento tecnológico.
Um argumento que aparece de maneira recorrente como fundamento para a
tese de que o conhecimento tecnológico deva ter uma estrutura diferente do
conhecimento cientı́fico é o de que o conhecimento tecnológico se orientaria
por um interesse pela eficácia, ao contrário do conhecimento cientı́fico, que se
orientaria pela busca da verdade. Esse argumento merece um tratamento de-
talhado, dada a sua aceitação pela quase totalidade dos autores que abordam
o tema da Filosofia da Tecnologia – formando hoje uma opinião certamente
hegemônica nesse campo de estudos.
Neste capı́tulo nós abordamos esse tema, mostrando particularmente sua
conexão com a disputa entre o “instrumentalismo” e o “realismo cientı́fico”,
no âmbito da filosofia da ciência: de forma inusitada, essas concepções diver-
gentes parecem confluir (por motivos diferentes) para uma conclusão comum
a respeito do conhecimento tecnológico – qual seja a de que este deva ser ori-
entado pelo interesse pela eficácia. Grosso modo, nós mostramos de maneira
esquemática que, por um lado, para os instrumentalistas o conhecimento
tecnológico deve ser orientado pela eficácia por um motivo de consistência
com sua visão da ciência que seria, ela própria, orientada para a eficácia
(orientada, portanto, para a geração de tecnologias). Por outro lado, para os
realistas o conhecimento tecnológico também deve ser orientado pela eficácia,
agora pelo motivo oposto: com tal orientação, o conhecimento tecnológico
seria facilmente separável do conhecimento cientı́fico, podendo este último
ficar preservado de qualquer contaminação pela tecnologia – numa tentativa
de manter a integridade da busca da verdade do conhecimento cientı́fico, em
oposição a qualquer argumento de “interesse prático”.
Toda a discussão conduzida neste ensaio tem como pressuposto o campo

151
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 152

do realismo cientı́fico. Não obstante, neste capı́tulo nós mostramos que tal es-
tratégia elaborada por alguns defensores do “realismo cientı́fico” sofre de um
mal-condicionamento lógico irremediável, na medida em que recai em uma
circularidade de argumentação. Ao contrário, nós mostramos que assumir
que uma parcela do conhecimento tecnológico – o conhecimento tecnológico
do tipo cientı́fico – seja orientado pela busca da verdade permite estabelecer
um quadro explicativo coerente para a tecnologia, para a ciência e para a
interação entre ambas, nos marcos do realismo cientı́fico. Ao final deste ca-
pı́tulo, nosso modelo de interação entre o campo da aplicação das tecnologias
ao mundo prático e o campo do conhecimento tecnológico do tipo cientı́-
fico, apresentado no capı́tulo 7, é retomado de forma a explicitamente lidar
com a questão do interesse pela eficácia e da busca da verdade no âmbito da
tecnologia.

8.1 A questão do interesse pela eficácia


Começamos nossa análise com o exame de um trecho bastante curioso de
Bunge (1980b, p. 191):

“Consideremos a pesquisa tecnológica. Do ponto de vista metodo-


lógico, não difere da investigação cientı́fica. Em ambos os casos,
um ciclo de investigação tem as seguintes etapas:

- discernir o problema;
- tratar de resolver o problema com ajuda do conhecimento
(teórico ou empı́rico) disponı́vel;
- se a tentativa anterior não for bem sucedida, elaborar hipó-
teses ou técnicas (ou, ainda, sistemas hipotético-dedutivos)
capazes de resolver o problema;
- obter uma solução (exata ou aproximada) do problema com
auxı́lio do novo instrumental conceitual ou material;
- pôr à prova a solução (p. ex. com ensaios de laboratório ou
de campo);
- efetuar as correções necessárias nas hipóteses ou técnicas, ou
mesmo na formulação do problema original.
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 153

Além de serem metodologicamente parecidas, em ambos os casos


a pesquisa é orientada em direção a metas, embora suas metas
sejam diferentes. A finalidade da investigação cientı́fica é a ver-
dade pela própria verdade. A meta da investigação tecnológica é
a verdade útil a alguém.”

Bunge essencialmente postula que o conhecimento tecnológico segue as mes-


mas regras utilizadas pela ciência, e utiliza o mesmo corpus de conhecimento
– nisso se identificando com esta. A diferença estaria no seu fim especı́fico de
produzir artefatos, ao contrário da ciência, que teria como fim produzir mais
conhecimento (ou “buscar a verdade”). Isso é compatı́vel com a sua defini-
ção de conhecimento tecnológico, mostrada no Capı́tulo 4. O aspecto curioso
deste trecho é a concessão que Bunge faz, à possı́vel necessidade de se elabo-
rarem “hipóteses, ou técnicas, ou ainda sistemas hipotético-dedutivos”, como
parte do processo que é caracterı́stico do desenvolvimento do conhecimento
tecnológico.
Essa formulação de Bunge em certa medida entra em contradição com seu
texto (Bunge 1972), escrito pouco mais de uma década antes. Essa mudança
de ponto de vista parece estar relacionada com o contexto do inı́cio da década
dos 1980, no qual já não seria possı́vel ignorar a existência de comunidades
atuando no processo de desenvolvimento de conhecimento tecnológico, em sis-
temas sociais cujo processo de divisão do trabalho gera toda uma diversidade
de postos não diretamente relacionados com a construção de artefatos através
da aplicação direta de conhecimento cientı́fico básico – quadro que teria sido
difı́cil imaginar algumas décadas antes. Bunge, entretanto, ao mesmo tempo
em que reconhece a existência de uma organização do conhecimento em ter-
mos teórico-dedutivos no âmbito da tecnologia, subordina a integralidade do
trabalho de investigação nesse âmbito à atividade diretamente relacionada
com o “projeto de artefatos”. Tal dissonância, como veremos, parece estar
relacionada com uma crescente dificuldade para se estabelecer uma linha de-
marcatória entre a tecnologia e a ciência, dada a crescente semelhança de
seus métodos, o que inclui até mesmo a construção em ambos os contextos
de estruturas teórico-dedutivas para a articulação dos respectivos campos do
conhecimento, ao mesmo tempo em que se mostra inadmissı́vel uma hipótese
de identificação entre esses campos.
A premissa por detrás de toda a dificuldade parece ser a necessidade de
se preservar uma linha demarcatória entre os dois campos. Tal necessidade
deriva, principalmente, da polêmica aberta com o instrumentalismo, como foi
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 154

visto na Seção 7.1. A inevitável proximidade do conhecimento tecnológico


com o interesse prático o deixa perigosamente ao alcance do ponto de vista
instrumentalista. Considere-se, no âmbito das filosofias, o ponto de vista que
defende o papel estruturante do conhecimento cientı́fico, no âmbito da cul-
tura, como requisito para a aspiração de universalidade. O tema da verdade
somente faz sentido no âmbito desse campo, e o tema da ciência como busca
da verdade se faz crucial (Popper 1972, p. 145):

“Há uma distinção importante entre dois tipos de previsão cien-


tı́fica – distinção que o instrumentalismo não pode fazer, e que
está associada ao problema da descoberta cientı́fica. Trata-se da
distinção entre a previsão de eventos de tipo conhecido e de no-
vos tipos de eventos (o que os fı́sicos chamam de ‘novos efeitos’).
Parece-me que o instrumentalismo só pode explicar as descobertas
da primeira categoria. Se entendemos que as teorias são instru-
mentos de previsão, precisamos admitir que seu objetivo pode ser
determinado previamente, como acontece com outros instrumen-
tos. As previsões do segundo tipo só podem ser compreendidas
perfeitamente como descobertas.”

Nossa hipótese é de que um importante elemento explanatório da incon-


gruência que se verifica nas análises contemporâneas da relação entre tecnolo-
gia e ciência é a própria necessidade de se estabelecer uma linha demarcatória
entre a busca da verdade e busca da eficácia. Esses pólos de atração se cons-
tituem na própria gênese da filosofia1 , e são herdados, na forma de polêmica,
pela ciência moderna – muito antes do surgimento da tecnologia no seu sen-
tido contemporâneo de ser uma atividade relacionada com o conhecimento
cientı́fico.
Nesse contexto, parece plausı́vel que tenha sido conveniente, para ambos
os lados da disputa, situar o campo da tecnologia fora do campo da busca
pela verdade. No campo que Popper denomina “terceiro ponto de vista”2 (que
certamente é integrado por Bunge), essa manobra permite evitar embaraços
relacionados com a força relativa dos diversos tipos de argumentos de justi-
ficação: isolando-se a tecnologia fora do âmbito da ciência, pode-se eliminar
o principal vı́nculo da busca do conhecimento com quaisquer propósitos de
1
Vide por exemplo embates como o de Platão com os “sofistas” (Platao 348 A.C.).
2
O “terceiro ponto de vista” é definido por Popper (1972, p. 141) em oposição aos
pontos de vista do “essencialismo” e do “instrumentalismo”.
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 155

ordem finalı́stica. Assim, a justificação do que permanecesse no âmbito da


ciência iria se processar pela via de um referencial epistêmico.
Já no campo do instrumentalismo, em uma manobra que não ocorre si-
metricamente em relação à anterior, inserindo-se a tecnologia no âmbito da
busca pela eficácia, produz-se um efeito de sustentação para o ponto de vista
instrumental-relativista, que a seguir se conecta com o programa relativista
para a totalidade do conhecimento. Essa manobra, ao contrário da anterior,
não implica a separação da tecnologia da ciência: sua construção lógica se
inicia situando a tecnologia no âmbito do instrumentalismo, prosseguindo
então fazendo uma subordinação da ciência à tecnologia, assim destemati-
zando a busca pela verdade. Para não nos determos no exame desse ponto
de vista, apresentamos apenas dois trechos que ilustram essa fórmula. O
primeiro apresenta um enunciado de caráter perene, que procura descrever o
que seria uma relação fundamental entre tecnologia e ciência (Mitcham 1994,
p. 203-204):

“Uma crı́tica um tanto diferente da idéia positivista da tecnologia


como ciência aplicada começa por uma reconsideração do caráter
da própria ciência, ao perguntar se ciência pode ser distinguida de
outras formas de cognição em virtude de alguma alegação especial
de objetividade. O resultado não se traduz tanto em estabelecer
a tecnologia como independente da ciência, mas em dissolver dis-
tinções de forma a minar a habilidade de pensar na ’aplicação’
como uma via de mão única. Na medida em que tecnologia é
ciência aplicada, ciência é também tecnologia aplicada. Embora
a engenharia aeronáutica aplique fı́sica, a fı́sica também aplica a
tecnologia de aceleradores de partı́culas.”

O outro trecho faz uma curiosa concessão, admitindo que no passado a ci-
ência tivesse tido precedência, situação que teria agora se invertido, com a
tecnologia passando a ocupar papel preponderante (Queralto 1998):

“De fato, o arcabouço teórico da razão cientı́fica é invadido pelo


escopo pragmático dos estı́mulos tecnológicos. Desnecessário di-
zer, o objetivo da razão tecnológica é primariamente pragmática:
a manipulação e a transformação do objeto natural para ser adap-
tado aos requisitos da objetividade cientı́fica. Da mesma forma, a
busca da objetividade cientı́fica não é mais uma busca puramente
teórica pela verdade cientı́fica, mas é especialmente influenciada
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 156

pelos objetivos concernentes às tendências e imposições da rea-


lidade. Deve-se dizer que o fato a ser notado é que o objetivo
tecnológico, devido à sua intensificada relevância, condiciona a
realização dos objetivos teóricos relativos à busca da verdade ci-
entı́fica. Já não é mais o caso de que o escopo teórico ocupe o
primeiro lugar e o prático seja subordinado a ele; agora a meta
pragmática adquiriu um nı́vel ao menos tão importante quanto a
meta teórica, na medida em que a tecnologia atingiu uma condi-
ção de possibilitar o conhecimento cientı́fico.”
Essa paradoxal confluência de pontos de vista antagônicos possui como de-
nominador comum a identificação entre o conhecimento tecnológico e a busca
da eficácia (em contraposição à busca da verdade). É inevitável, no entanto,
a constatação empı́rica da existência de “sistemas hipotético-dedutivos” no
âmbito do conhecimento tecnológico, que tende a sugerir a existência de pro-
cessos autônomos de busca do conhecimento no âmbito da tecnologia. Se,
para um instrumentalista, essa constatação é conveniente, pois permite ar-
rastar junto todo o empreendimento de busca do conhecimento do âmbito
cientı́fico para o domı́nio instrumental, por uma óbvia constatação da simi-
laridade das duas tarefas, para o “terceiro ponto de vista” isso constitui uma
ameaça, pelo mesmo motivo.
Nossa conjectura é de que, nesse ponto, interveio na formulação de Bunge
um mecanismo ad hoc que repôs as posições relativas dos dois pontos de vista:
foi postulado que o critério de demarcação entre a ciência e a tecnologia
seria o interesse subjetivo do indivı́duo que estivesse à frente da busca do
conhecimento. Nas palavras de Bunge (1972, p. 63):
“Olhando de um ângulo prático, as teorias tecnológicas são mais
ricas que as teorias da ciência na medida em que – longe de serem
limitadas a levar em consideração o que o prefeito faça, tenha feito
ou fará independentemente do que o tomador de decisão faça –
elas são ocupadas em encontrar o que poderia ser feito para cau-
sar, evitar ou apenas mudar o rumo dos acontecimentos ou o seu
curso de uma maneira preestabelecida. Em um sentido concei-
tual, as teorias da tecnologia são definitivamente mais pobres que
aquelas da ciência pura: elas são invariavelmente menos profun-
das, e isto porque o homem prático, a quem elas são devotadas, é
primariamente interessado nos efeitos lı́quidos que ocorrem e que
são controláveis à escala humana: ele quer saber como coisas ao
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 157

seu alcance podem ser colocadas para trabalhar para ele, ao invés
de como as coisas de quaisquer tipos de fato são.”

Uma leitura recente de Bunge por Poser (1998) ajuda a articular esses ele-
mentos:

“A distinção tradicional entre ciências puras e aplicadas foi es-


tabelecida por Mario Bunge 30 anos atrás (ver Bunge, 1966, e
versões revisadas em Mitcham e Mackey, 1972, e Rapp, 1974).
Em seu bem conhecido artigo ele fez a proposta de compreender
a engenharia como um tipo especı́fico de ciência aplicada. Bunge
explica que não é a orientação para a satisfação de necessidades
que marca a diferença entre ciência pura e aplicada, ’mas o li-
mite deve ser traçado entre o investigador que procura uma nova
lei da natureza e o investigador que aplica leis conhecidas para o
projeto de um objeto útil.’ Enquanto o primeiro quer compreen-
der melhor as coisas, o último deseja melhorar o nosso domı́nio
sobre elas (ver Bunge em Rapp, 1974, p. 20). Isto torna claro
que essas teorias e leis são incrustradas em um contexto abso-
lutamente diferente, normativo e intencional, na medida em que
o engenheiro busca fins práticos, enquanto o cientista almeja co-
nhecimento cognitivo. Como um engenheiro, nós não queremos
obter conhecimento melhor e mais profundo, mas fins melhores.”

Assim, a busca do conhecimento feita no âmbito da ciência seria sempre equi-


valente à busca da verdade, enquanto a busca do conhecimento no âmbito da
tecnologia seria sempre uma busca da eficácia. Estando erguida tal barreira,
pela estranha via de um “postulado”, seria possı́vel preservar o domı́nio da
racionalidade epistemológica da ciência, ao preço de se subordinar a tecnolo-
gia a uma “racionalidade instrumental”, não regulada pela “verdade”. Assim,
a busca cientı́fica e a busca tecnológica – mecanismos dotados de estrutu-
ras semelhantes –, obedeceriam a leis não apenas distintas, mas até mesmo
irredutı́veis (ou incomensuráveis), de forma que a análise dessas estruturas
devesse se processar de maneira independente (Poser 1998):

“Tudo isto não exclui que as ciências da engenharia façam uso


de idealizações ou de conceitos teóricos; de outra forma elas não
seriam capazes de predizer metas resultantes da aplicação de tec-
nologias. Mas essas predições não funcionam como testes das
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 158

teorias em questão; a idéia por trás delas é ‘encontrar o que de-


veria ser feito para causar, evitar, ou apenas mudar o rumo dos
acontecimentos ou o seu curso de uma maneira preestabelecida’
(p. 23).

Kornwachs (1998), ainda explicitamente filiado ao pensamento de Bunge,


expõe o mesmo ponto, mencionando de forma clara a natureza epistemológica
da diferença entre os dois tipos de conhecimento:

“A relação entre conhecimento cientı́fico, tecnológico e prático foi


caracterizada por Bunge (1967b) em termos da relação entre ver-
dade, efetividade e eficiência. Se a prática não possui poder de
validação, i.e., se a aplicação frequente e bem-sucedida do conhe-
cimento tecnológico, sua efetividade, não assegura a verdade do
conhecimento cientı́fico relevante, então a tecnologia e a ciência
são ao menos independentes com respeito à sua epistemologia.
No raciocı́nio cotidiano da engenharia, o sucesso de fato justifica
o conhecimento tecnológico; questões de fundamentos do conhe-
cimento são menos interessantes no contexto de departamentos
de pesquisa e desenvolvimento. No entanto, Bunge nega uma co-
nexão lógica (i.e., uma relação formalizável que garantisse uma
conclusão ou derivação) entre conhecimento cientı́fico e tecnoló-
gico.”

Assim, o esquema de compartimentação da busca da verdade em relação à


busca da eficácia, em conexão com a suposta impossibilidade de refutação
do conhecimento tecnológico já discutida anteriormente, representaria o me-
canismo segundo o qual o interesse subjetivo do indivı́duo engajado em tal
busca iria produzir efeitos de demarcação, colocando de um lado a ciência, e
do outro a tecnologia.

8.1.1 Nossa crı́tica


Em nossa opinião, a dificuldade central desse esquema de demarcação é a
premissa sobre o qual ele se contrói, que supõe ser possı́vel (ou razoável)
fazer tal demarcação a partir da subjetividade dos indivı́duos que conduzem
os processos de busca do conhecimento. A interpretação para o postulado
do interesse pragmático intrı́nseco na atividade tecnológica, que no caso da
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 159

argumentação de Popper (discutida na subseção anterior) pareceu estar li-


gado à circunscrição dessa atividade exclusivamente ao projeto de artefatos
singulares, não é aplicável agora, pois já se reconhece de maneira explı́cita
a existência da atividade de construção de sistemas hipotético-dedutivos no
âmbito da tecnologia.
Para que houvesse uma materialidade em tal critério de demarcação, a
fonte “subjetiva” da diferença, conforme postulada, deveria se expressar em
estruturas epistemológicas distintas para os sistemas hipotético-dedutivos (as
“teorias”) nos campos da ciência e da tecnologia. Do contrário, suponha-se
que alguns membros da comunidade ligada a uma teoria do campo da tec-
nologia convertessem sua orientação subjetiva para a busca da verdade. Se
o único elemento determinante da distinção entre a ciência e a tecnologia
fosse a subjetividade dos indivı́duos, sem qualquer efeito sobre os resulta-
dos materiais da atividade de investigação, isso bastaria para equiparar esses
campos. Note-se que é reconhecido que há “cientistas” (no sentido de “indivı́-
duos que desenvolvem trabalho no âmbito da ciência”) que possuem crenças
distintas em relação ao significado de seu trabalho e em relação aos pres-
supostos metafı́sicos da própria ciência – sendo que há inclusive cientistas
“instrumentalistas”. Veja-se por exemplo essa passagem de Popper (1972, p.
145):
“Contrastando com a atitude altamente crı́tica do cientista puro,
a posição do instrumentalismo (como a da ciência aplicada) é
complacente no que concerne o êxito das suas aplicações. Por isso,
o instrumentalismo pode ser responsável pela recente estagnação
da teoria quântica.”
Esse fato não tem gerado qualquer reivindicação de que grupos distintos de
cientistas, em que cada grupo compartilhasse das mesmas crenças subjetivas
e se distinguisse dos demais por essas crenças, pudesse gerar resultados que
constituissem sistemas epistemológicos distintos, um para cada grupo. A
tendência tem sido, como expresso no trecho acima, considerar que as crenças
desses grupos possam afetar a fertilidade de seu trabalho e o alcance de
seus resultados, sem no entanto impedir que tais resultados façam parte de
um mesmo sistema de conhecimento, a ciência. A âncora que impede a
proliferação de diversas “lógicas cientı́ficas” distintas, ligadas aos diversos
sistemas de crenças subjetivas, parece ser o referencial regulador da verdade.
A busca da verdade, alimentada pelo processo criativo de gênese de teo-
rias e tratada de forma sistemática pela estruturação de sistemas hipotético-
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 160

dedutivos que dão forma a essas teorias, define estruturalmente a ciência.


Note-se que, por um lado, o processo de gênese de teorias vem sendo man-
tido fora do escopo analı́tico da filosofia da ciência a partir da introdução
da distinção entre o contexto da descoberta e o contexto da justificação, en-
quanto que o processo de estruturação de sistemas hipotético-dedutivos, que
é susceptı́vel de ser examinado pela filosofia da ciência, tem sido reconhecido
como idêntico nos campos da ciência e da tecnologia3
Dessa forma, a expressão da distinção entre as teorias na ciência e na
tecnologia necessariamente precisaria se situar na tematização da verdade,
para adquirir alguma materialidade. As razões estruturais para isso só pode-
riam ser de duas ordens: ou (i) não haveria verdade a ser buscada no âmbito
da tecnologia, ou (ii) a descoberta dessa verdade seria irrelevante para a
atividade tecnológica.
Argumentos do tipo (ii), para os quais converge um grande número de
autores, já foram estudados na Seção 7.1. Para retomar a questão, reapre-
sentamos um trecho de Poser (1998):
“Isto tem como consequência que não existe necessidade de leis ou
teorias verdadeiras; o que nós precisamos são leis ou teorias sufi-
cientes com respeito a fins. Para carros, por exemplo, a mecânica
clássica ao invés da teoria da relatividade é suficiente; então, uma
teoria pode ser bem-sucedida na prática, mas falsa (p. 25). Por-
tanto, engenharia como uma ciência aplicada não pode consistir
na aplicação de ciência pura, mesmo se as ciências puderem ser
e forem úteis com respeito a limites teóricos. As ciências aplica-
das têm suas próprias metas, e, consequentemente, seus próprios
métodos.”
Argumentos desse tipo necessariamente recaem, como discutido na Seção 7.1,
na tese da redução ontológica mútua de todo o campo cientı́fico. A partir
dessa tese, esses argumentos postulam que só seriam susceptı́veis de perten-
cer aos domı́nios da verdade as proposições pertencentes às teorias cientı́ficas
mais básicas (cujas entidades teóricas não fossem construı́das sobre entidades
provenientes de outras teorias). CQD, a constatação de que as teorias tecno-
lógicas não tematizam os problemas dessas teorias mais básicas iria conduzir
à conclusão, dentro dessa linha de pensamento, de que a tecnologia não po-
deria de forma alguma empreender a busca da verdade. Esperamos já haver
3
Isso equivale a reconhecer que as regras da lógica têm sido reconhecidas como tendo
aplicabilidade universal, seja num contexto ou noutro.
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 161

discutido em suficiente detalhe a estrutura desse tipo de argumento, de forma


que não nos deteremos mais nesse ponto.
Examinando a seguir os argumentos do tipo (i), observa-se que estes em
geral tangenciam uma espécie de “idealismo filosófico”, negando a materiali-
dade de limitações à possibilidade de construção de artefatos: é recorrente
a metáfora que equipara essa atividade de construção com um “exercı́cio do
livre-arbı́trio” (Kornwachs 1998):

“Para continuar esta análise, o verdadeiro cerne da tecnologia


deve incluir metas, propósitos e desejos; i.e., ele deve conter ex-
pressões normativas. Seria possı́vel expressar isto metaforica-
mente: tecnologia tem a ver com questões do poder humano e
de suas instituições humanas. Se esta conjectura for verdadeira,
a tecnologia deverá ser considerada como algo que tenha a ver
com livre-arbı́trio por um lado e com lei natural por outro lado.”

As limitações que incidiriam sobre a tecnologia, segundo essa visão, seriam


então decorrentes das leis naturais (onde residiriam as “verdades”). Para
além dessas limitações, cujo estudo caberia à ciência, a questão passaria a
se situar no âmbito das “escolhas”, feitas tanto no nı́vel do indivı́duo que
projeta artefatos quanto no nı́vel do social, do contexto que demandou o
empreendimento de fabricação desses artefatos. Destacando novamente um
trecho de Poser (1998), já incluı́do em citação anterior:

“Isto torna claro que essas teorias e leis [da engenharia] são in-
crustradas em um contexto absolutamente diferente, normativo e
intencional, na medida em que o engenheiro busca fins práticos.”

Essa classe de argumentos converge para a tese de que os conhecimentos


especificamente tecnológicos teriam um caráter normativo. Reservaremos
o próximo capı́tulo para tratar especificamente deste tema, uma vez que o
mesmo envolve desdobramentos importantes.

8.2 Conhecimento Tecnológico do Tipo Cien-


tı́fico e Verdade
Usando a definição de conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico, é possı́vel
remover as dificuldades que conduzem à circularidade de argumentação acima
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 162

mostrada. O panorama (muito mais simples) que se apresenta fica assim


delineado:

A pesquisa no âmbito do conhecimento tecnológico seria organizada


segundo dois setores distintos. Um desses seria dedicado à geração de
novos artefatos tecnológicos. Seu resultado seria, essencialmente, a ge-
ração de roteiros de sı́ntese (ou, em termos lógicos, de proposições do
Tipo 5). O outro setor seria dedicado à geração de conhecimento de-
talhado a respeito da natureza dos artefatos de determinado campo,
de seus limites, de suas possibilidades, de seus princı́pios, de suas co-
nexões. O resultado da pesquisa nesse segundo setor seria a coleção
de enunciados dos Tipos 1 a 4 que compõem as teorias do respectivo
campo do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico que estabelece os
fundamentos para a atividade de projeto de artefatos.

O interesse pela eficácia inerente à pesquisa ligada ao projeto de arte-


fatos, naquele primeiro setor, tende a fazer com que os experimentos
de sı́ntese sejam planejados de forma a minimizar a possibilidade da
ocorrência de efeitos imprevistos – assim se reduzindo a possibilidade
de que tais experimentos produzam eventos de refutação.

Assim, torna-se relativamente rara a ocorrência de eventos, nesse tipo


de experimento, nos quais as teorias subjacentes ao experimento sejam
confrontadas com as suas possibilidades de falha. Ao se tornar menos
frequente a ocorrência dos eventos de refutação, torna-se menos intenso
o efeito regulador destes, como mecanismo de aproximação da verdade.

As falhas nesses experimentos também podem ocorrer, e podem condu-


zir à identificação de problemas nas teorias tecnológicas. O mecanismo
de propagação dessas falhas para as teorias, entretanto, dificilmente
possui a aparência de um “evento de refutação”. Ao contrário, esse me-
canismo usualmente possui a aparência de um “evento de deteção de
anomalia”.

Dois processos são desencadeados quando da ocorrência de um “evento


de deteção de anomalia” em um experimento de sı́ntese: por um lado,
o grupo que conduzia o experimento usualmente irá procurar outros
caminhos para sintetizar o mesmo artefato, evitando as partes proble-
máticas, substituindo-as por outros meios para atingir os mesmos fins.
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 163

Esse processo de busca de uma finalidade, com pouco compromisso em


relação ao meio empregado para atingı́-la, não se assemelha, de fato,
com o arquétipo da atividade desenvolvida na atividade cientı́fica4 , e
em particular não se qualifica como um empreendimento de busca in-
condicionada da “verdade”. Ao contrário, ajusta-se à descrição corrente
de uma “busca da eficácia”.

Um segundo processo, normalmente de dinâmica mais lenta, coloca-


se também em funcionamento: a “anomalia” detectada é transferida,
como problema, ao segundo setor, no qual se processa o desenvolvi-
mento da pesquisa tecnológica do tipo cientı́fico. Ali esse problema é
tratado na forma de um desafio às teorias vigentes, podendo conduzir à
revisão de fundamentos, ou podendo resultar em explicações de elevada
sofisticação ainda que no âmbito da própria teoria em vigor.

Além de responder a estı́mulos provenientes do primeiro setor (aquele


em que ocorre o projeto de artefatos), o segundo setor (no qual se
produz a elaboração teórica em tecnologia) também conta com uma
dinâmica própria, através da qual as teorias do campo tecnológico per-
manecem constantemente sob processo de escrutı́nio. Essa dinâmica é
idêntica à dinâmica reconhecida na ciência – e pode ser adequadamente
descrita como uma “busca da verdade”.

Os aperfeiçoamentos que constamente ocorrem nas teorias tecnológicas


do tipo cientı́fico, que são gerados tanto em virtude do exame daquelas
“anomalias” detectadas pelo primeiro setor quanto em decorrência da
dinâmica autônoma de “busca da verdade” intrı́nseca ao segundo setor,
acabam por retornar ao primeiro setor (onde ocorre o projeto de arte-
fatos). Esse retorno, na forma de teorias mais refinadas, termina por
permitir ganhos de eficácia em tal atividade de projeto de artefatos.
4
Não obstante, o exame da atividade de pesquisa cientı́fica como ela é de fato praticada
irá revelar uma surpreendente similaridade da ciência com a pesquisa tecnológica, no
que se refere a uma orientação para os fins. Quando a falha em uma teoria emerge em
um experimento, de forma imprevista, dificilmente ela é prontamente admitida como um
“evento de refutação”, sendo normalmente estocada na forma de um “evento de deteção de
anomalia”. Além disso, com grande frequência simplesmente se passa adiante, tentando-se
outra forma de se produzir o mesmo experimento, mesmo sem que a causa da falha anterior
esteja completamente elucidada. O panorama descrito por Kuhn (1962) é compatı́vel com
essas observações.
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 164

Chamamos a atenção de que os dados que procuramos explicar aqui por


meio de nossa hipótese da centralidade estrutural do conhecimento tecnoló-
gico do tipo cientı́fico para o desenvolvimento do conhecimento tecnológico,
já haviam sido interpretados de maneira distinta por uma tradição de pen-
samento originária da obra de Bunge. Segundo tal tradição, a “eficácia”
seria mais que o ponto de chegada da atividade de pesquisa tecnológica,
constituindo antes sua limitação estrutural. Notamos que tal corrente de
pensamento se apóia na estranha hipótese de que a “busca pela eficácia” se
propagaria como princı́pio orientador de toda uma sub-cadeia de atividades
que desemboca no projeto de artefatos – até atingir a fronteira convencio-
nada para a separação entre tecnologia e ciência. Nesse ponto, subitamente
essa propagação se estancaria, e passaria a vigorar um novo princı́pio orien-
tador da “busca da verdade”, ao longo de uma outra sub-cadeia de atividades
caracterı́stica das áreas convencionais da ciência.
Em nossa opinião, a formulação aqui proposta para explicar a observa-
ção dos dados reais apresenta grandes vantagens em relação à tradição de
pensamento originária do trabalho de Bunge. Isso pode ser verificado pelo
exame dos “desideratos” apresentados pelo próprio Bunge, listados no Ca-
pı́tulo 2. Fazemos notar que, ao contrário de um possı́vel temor quanto à
possibilidade de que a entrada de alguma pesquisa tecnológica no âmbito da
ciência pudesse causar a destematização da “busca da verdade” como aspecto
fundacional da ciência e da filosofia, nossa proposta parece eliminar grandes
dificuldades que decorreriam exatamente da tentativa de apartamento entre
tecnologia e ciência.
No nosso modelo, pemanece sendo explicada a face mais visı́vel da tec-
nologia – a agregação de eficácia aos artefatos –, com os seus consequentes
impactos sobre a existência material dos homens. Uma série de interações
dinâmicas, entretanto, intervém em nosso modelo, conectando um setor da
tecnologia que executa diretamente a atividade do projeto de artefatos e um
outro setor, que desenvolve o conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico. O
sucesso do projeto de artefatos, embora se vincule com o desenvolvimento
deste último tipo de conhecimento, não determina, em nosso modelo, a es-
trutura epistemológica deste. Ao contrário, interpretamos tal sucesso em
grande parte como decorrência de um efeito de maior “aproximação da ver-
dade” das teorias subjacentes ao projeto – propiciada pelo princı́pio regulador
da “busca da verdade” que deve estar presente em toda pesquisa do tipo ci-
entı́fico. Isso não se trata, em nossa opinião, de uma inclinação individual
dos pesquisadores, que poderiam ou não buscar a verdade, mas de uma res-
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 165

trição estrutural da pesquisa cientı́fica: a “busca da verdade” é o único modo


conhecido de conduzı́-la.
Este capı́tulo conclui o presente ensaio fazendo o exame de mais um campo
de controvérsias, agora ligado à tese geral de que o conhecimento tecnológico
teria um caráter normativo, ou seja, ligado à formulação de juı́zos e valores
e à expressão de vontades, em contraposição ao caráter do conhecimento ci-
entı́fico, que seria relacionado com a descrição de uma realidade natural que
independeria de quaisquer juı́zos ou valores humanos. Em um dos extremos
de uma grande variedade de formas sob as quais essa argumentação aparece,
encontra-se o argumento da redução ontológica da tecnologia às ciências bási-
cas, agora reprocessado para afirmar que, em tecnologia: (i) o conhecimento
sistematizável em forma de “leis cientı́ficas” seria todo ele intrı́nseco às ciên-
cias básicas, não pertencendo ao campo da tecnologia; e (ii) o conhecimento
especificamente tecnológico seria apenas do tipo “normativo”, ou seja, ligado
a escolhas, juı́zos e valores. Nós apontamos, neste capı́tulo, que a resposta a
essa ordem de argumentos pode ser estruturada de forma semelhante à res-
posta à tese da redutibilidade do conhecimento tecnológico ao conhecimento
cientı́fico, já trabalhada no capı́tulo 5.
No outro extremo do espectro de linhas argumentativas, encontra-se uma
estratégia de recorte dos fenômenos que anexa a todo experimento, ou a toda
teoria do campo tecnológico, uma carga de “normatividade” que lhe retira a
possibilidade de uma sistematização nos moldes do conhecimento cientı́fico.
Nesse caso, embora um fenômeno tecnológico até pudesse ter alguma estru-

166
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 167

tura racional na forma de leis próprias1 , a sistematização completa desse fenô-


meno em forma de enunciados teóricos seria em última instância impossı́vel
em virtude da necessária existência, nesse fenômeno, de decisões arbitrárias
carregadas de valores e juı́zos, ambos necessariamente não susceptı́veis de
serem sistematizados.
É verdade que um aparato tecnológico, ao ser construı́do, envolve a to-
mada de decisões que não são unı́vocas, no sentido de que aparatos distintos,
equivalentes ou aproximadamente equivalentes em termos funcionais, pode-
riam ter sido construı́dos em lugar daquela realização especı́fica efetivamente
escolhida para ser materializada. No entanto, nossa interpretação desse fato,
à luz de nossa hipótese da existência do conhecimento tecnológico do tipo
cientı́fico, nos conduz a uma conclusão oposta à dessa última corrente de
pensamento. Examinando empiricamente o processo de “normatização”, nós
observamos que é precisamente o estabelecimento explı́cito de um conjunto
de escolhas que permite situar, a partir do ponto em que essa explicitação
ocorrer, o problema da aquisição do conhecimento tecnológico a respeito do
problema assim normatizado como um problema objetivado, agora indepen-
dente de ulteriores julgamentos ou decisões – e portanto susceptı́vel de ser
completamente sistematizado.
Em um mundo de fantasia, em que o inventor ao mesmo tempo que tivesse
a idéia de um novo dispositivo já planejasse seu projeto e, em meio à sua con-
cepção já o colocasse em fucionamento, certamente a tecnologia não seria um
fenômeno cultural susceptı́vel de análise – parecendo-se mais com um fenô-
meno mı́stico de iluminação. Nesse mundo, também o cientista, à maneira
descrita nos gibis, ficaria horas olhando para experimentos e cálculos aparen-
temente desconexos, até repentinamente gritar “eureka”, e instantaneamente
estaria pronta uma nova teoria – e assim também a ciência se reduziria a um
fenômeno psı́quico não apreensı́vel racionalmente. Essa imagem já foi vencida
pela ciência em duas ocasiões: Primeiro quando do nascimento da própria
ciência contemporânea, com a aplicação dos métodos empı́ricos junto aos mé-
todos teórico-dedutivos. Nesse momento a ciência, tomando a forma de um
procedimento sistematizado, se tornou um empreendimento tanto plausı́vel
quanto reprodutı́vel e transmissı́vel. Segundo, quando a filosofia da ciên-
cia clássica estabeleceu pela primeira vez essa distinção entre o contexto da
descoberta e o contexto da justificação – o que permitiu que o processo de
1
A maior parte da literatura ligada a essa corrente de argumentação se omite quanto
a esse ponto, não afirmando nem negando a existência dessas leis.
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 168

construção da ciência se tornasse ele próprio susceptı́vel de ser descrito, no


âmbito de uma filosofia da ciência. Nesse momento os filósofos perceberam
que, deixando à parte o aspecto arbitrário do gênio criativo, tornaria-se pos-
sı́vel analisar sistematicamente a parcela do conhecimento cientı́fico ligada à
estrutura lógico-formal desse conhecimento.
É curioso que tenha escapado até hoje à observação filosófica um pro-
cesso que é central na tecnologia contemporânea: a divisão do processo de
elaboração do conhecimento em uma etapa de normatização (ou, num con-
texto menos estruturado, de especificação) seguida de uma etapa de estudos
teórico-empı́ricos que pode ser chamada de etapa de realização. Nós con-
jecturamos que o nascimento da tecnologia contemporânea se confunda com
o preciso momento em que teria ocorrido essa separação. Nesse momento,
a divisão do trabalho tı́pica dos processos de geração do conhecimento ci-
entı́fico pôde se colocar em marcha, a serviço da geração de conhecimento
tecnológico.
Para completar o ciclo, falta agora o reconhecimento, no âmbito da fi-
losofia da tecnologia, dessa distinção entre o contexto da normatização e o
contexto da realização – permitindo afinal uma descrição racional do pro-
cesso de geração do conhecimento tecnológico. Esta é, em sı́ntese, a hipótese
principal articulada neste capı́tulo – que finaliza este ensaio.

9.1 A formulação de Bunge


Começamos nossa análise neste capı́tulo examinando a colocação da questão
por Bunge (1972, p. 68):

“Da mesma forma como ciência pura enfoca padrões objetivos ou


leis, a pesquisa orientada-à-ação visa estabelecer normas estáveis
de comportamento humano bem-sucedido – ou seja, regras. O
estudo de regras – as regras fundamentadas da ciência aplicada –
é portanto central para a filosofia da tecnologia.
Uma regra prescreve um curso de ação: ela indica como alguém
deveria proceder para atingir uma meta predeterminada. Mais
explicitamente: uma regra é uma instrução para perfazer um nú-
mero finito de atos em uma dada ordem e com um dado objetivo.
A espinha dorsal de uma regra pode ser representada como uma
cadeia ordenada de sı́mbolos, por exemplo, 1 2 , na
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 169

qual cada numeral representa um ato correspondente; o último


ato, , é a única coisa que separa o operador que tiver executado
todas as operações, exceto , de atingir a meta. Em contraste
com fórmulas do tipo lei, que dizem qual é a forma dos possı́veis
eventos, regras são normas. O campo da lei é assumido ser toda
a realidade, incluindo os fazedores de regras; o campo da regra é
não mais que o gênero humano: homens, e não estrelas, podem
obedecer regras e violá-las, inventá-las e aperfeiçoá-las. Asser-
ções de leis são descritivas e interpretativas, enquanto regras são
normativas. Consequentemente, enquanto os enunciados de leis
podem ser mais ou menos verdadeiros, regras podem apenas ser
mais ou menos efetivas.”
Nesse trecho, Bunge essencialmente postula que o conhecimento cientı́fico
seja constituı́do de leis, enquanto o conhecimento tecnológico seria consti-
tuı́do de regras. A diferença destas para aquelas seria que as regras teriam
limites apenas na medida em que não devam violar as leis. As regras, em si,
além desses limites, não teriam nenhum outro limite objetivo – constituindo
um campo no qual se exerceria uma liberdade de escolha, que seria aplicada
quando do projeto de artefatos. A localização dos limites das regras preci-
samente (e apenas) nas leis cientı́ficas fica mais explicitamente formulado no
seguinte trecho (Bunge 1972, p. 68-69):
“Para decidir que uma regra seja efetiva é necessário, embora
insuficiente, mostrar que ela tenha sido bem sucedida em uma
elevada percentagem dos casos. Mas esses casos poderiam ser
apenas coincidências, tais como aquelas que pudessem ter con-
sagrado o ritual mágico que acompanhava as caçadas do homem
primitivo. Antes de adotar uma regra empiricamente efetiva nós
deverı́amos saber por quê ela é efetiva: nós deverı́amos tomá-la
à parte, e atingir uma compreensão de seu modus operandi. Este
requisito da fundamentação de regras marca a transição entre as
artes e ofı́cios pré-cientı́ficos e a tecnologia contemporânea. Agora
a única fundamentação válida para uma regra é um sistema de
fórmulas do tipo lei, porque espera-se que estas por si sós sejam
capazes de explicar corretamente os fatos – por exemplo, o fato
de que uma dada regra funcione. Isto não corresponde a dizer que
a efetividade de uma regra depende de se ela é fundamentada ou
sem fundamento mas apenas que, para ser capaz de julgar se uma
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 170

regra possui alguma chance de ser efetiva, bem como para me-
lhorar a regra e em algum momento substituı́-la por uma outra
mais efetiva, nós devemos desvendar as leis a ela subjacentes, se
estas existirem. Nós podemos dar um passo adiante e reivindicar
que a aplicação cega de regras práticas nunca foi proveitosa no
longo prazo: a melhor polı́tica é, primeiro, tentar fundamentar
nossas regras, e, segundo, tentar transformar algumas fórmulas
do tipo lei em regras tecnológicas objetivas. O nascimento e de-
senvolvimento da moderna tecnologia é o resultado desses dois
movimentos.”

Coloquemos em discussão essa concepção. Parece-nos que seria plausı́vel


definir conhecimento tecnológico e conhecimento cientı́fico a partir de um
postulado como esse acima: todas as proposições de tipo universal (ou seja,
em nosso modelo as proposições dos Tipos 1 a 4 pertencentes a campos do
conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico) pertenceriam ao “conhecimento
cientı́fico”, e as proposições particulares que associassem um determinado ro-
teiro de projeto a seu resultado (em nosso modelo, as proposições do Tipo
5) constituiriam o “conhecimento tecnológico”. Essa concepção torna-se pro-
blemática, no entanto, se for interpretada como um enunciado a respeito de
entidades previamente definidas de outra forma: o conhecimento cientı́fico e
o conhecimento tecnológico, conforme definidos pelo próprio Bunge. A di-
ficuldade mais evidente diz respeito a que, assim formulada, tal concepção
implica (i) ou a proibição da existência de leis no âmbito do conhecimento
tecnológico, (ii) ou a redutibilidade de todas as leis no âmbito do conheci-
mento tecnológico a leis no campo da ciência básica, de forma a que não
restassem leis especificamente tecnológicas.
Vamos verificar primeiro a hipótese da negação da existência de leis no
âmbito do conhecimento tecnológico. O estatuto lógico da concepção de que
o conhecimento cientı́fico não pudesse ter limites além daqueles estabelecidos
pelas leis estudadas pelas ciências naturais recairia em um idealismo ingênuo
se assumisse que o conhecimento especificamente tecnológico simplesmente
não pudesse ter limites. Isso implicaria que enunciados dos Tipos 1 a 4,
como definidos no Capı́tulo 6, simplesmente não poderiam existir no âmbito
do conhecimento tecnológico. Além de contradizer as evidências empı́ricas
que nós apresentamos (que sugerem a existência desses tipos de enunciado),
tal formulação teria ainda o ônus de explicar por qual motivo determinados
sistemas hipotético-dedutivos (no caso, os da ciência) poderiam induzir a
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 171

existência de limites, e outros (no caso, os do conhecimento tecnológico)


teriam tal prerrogativa negada.
Apenas para exemplificar o significado dessa formulação, tomemos o caso
dos “limites de desempenho” de controladores, tratados na referência (Boyd
& Barratt 1991). No estudo de caso apresentado no Capı́tulo 4, tal referên-
cia reivindica ter encontrado uma “lei” que pode ser instanciada, de forma
simples, para um enunciado com a seguinte estrutura: dado um sistema di-
nâmico a ser controlado, e dados dois funcionais a serem minimizados (por
exemplo as normas ∞ e 2 do sistema em malha fechada2 , há uma depen-
dência entre o mı́nimo que se pode atingir no que diz respeito a um funcional
com o mı́nimo que se pode atingir com o outro funcional. Por exemplo, se se
estabelece que a norma ∞ deva ser menor que 1 0, o mı́nimo valor alcan-
çável para a norma 2 seria, por exemplo, 5 0. Se se estabelece, entretanto
que a norma ∞ deva ser menor que 0 1, o mı́nimo valor alcançável para a
norma 2 passaria a ser, por exemplo, 15 0 (esses valores são hipotéticos,
apenas para fim de exemplificação; os valores de fato observados são diferen-
tes em cada caso, e dependem do modelo do sistema a ser controlado). A
hipótese da inexistência de limites especificamente tecnológicos, nessa versão
“ingênua” da formulação de Bunge, iria afirmar que nenhum desses limites de
desempenho poderia existir, e que em todos os casos (ou seja, para todos os
sistemas possı́veis) seria sempre plausı́vel fazer ambas as normas iguais a 0,
desde que o controlador fosse escolhido “corretamente”.
Uma conseqüência de tal hipótese “ingênua”, que pode ser entendida
mesmo pelo leitor não versado em teoria de controle, é que isso significa-
ria que todo sistema poderia ser controlado de maneira “perfeita”, com a
eliminação completa de toda e qualquer perturbação que o atingisse. Um
carro, por exemplo, deveria poder ser projetado de forma que nenhuma per-
turbação proveniente de irregularidades na estrada fosse perceptı́vel para os
passageiros e, ao mesmo tempo, a aderência dos pneus à estrada fosse sem-
pre perfeita, sem nenhuma possibilidade de derrapagem, etc. Infelizmente,
há teorias, por exemplo a apresentada em (Boyd & Barratt 1991), que afir-
mam que obter um desempenho “perfeito” não é simplesmente questão de
vontade do projetista, e que há limites teóricos para o desempenho que pode
ser atingido por qualquer projeto – sendo que essas teorias vêm sendo confir-
2
Essas normas medem, em determinado sentido, o quanto certas perturbações externas
afetam o sistema – quanto menores as normas, menor o efeito das perturbações sobre o
sistema. Assim, o melhor cenário possı́vel seria o das normas serem 0, o que significaria
que as perturbações externas simplesmente não afetariam o sistema.
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 172

madas por todos os experimentos de projeto de artefatos até hoje relatados.


A esta altura de desenvolvimento do conhecimento humano, uma afirmativa
de que não poderiam existir tais limites teóricos precisaria vir consubstanci-
ada com um mı́nimo de justificação, para além de um simples “postulado”,
para merecer um exame mais detalhado.
Assim, passamos à outra forma lógica possı́vel para a formulação: a hipó-
tese da redutibilidade de toda lei pertencente ao conhecimento tecnológico às
leis da ciência básica. Assim, todos os eventuais limites que fossem identifica-
dos no conhecimento tecnológico, por exemplo relacionados com a impossibi-
lidade de que determinados artefatos fossem fabricados, ou com a associação
da presença de uma determinada propriedade em um artefato com a presença
de outra propriedade no mesmo artefato, seriam necessariamente imediata-
mente redutı́veis a leis pertencentes a alguma ciência natural. Para tentar
compreender o significado disso, recorremos novamente ao mesmo exemplo
dos “limites de desempelho de controladores”, apresentados pela referência
(Boyd & Barratt 1991), no âmbito da Teoria de Controle. Qualquer inspe-
ção que se faça nessa referência revelará que seu conteúdo não faz referência
explı́cita a nenhuma ciência básica. Ao contrário, o rastreamento da origem
dessa teoria retrocede várias décadas, em textos situados especificamente no
âmbito da Teoria de Controle.
Não há dúvida de que seja possı́vel percorrer o caminho entre tal teoria
e a modelagem fı́sica de sistemas dinâmicos empı́ricos (o que resultará, com
freqüência, em leis pertencentes a uma combinação de mecânica dos sólidos,
mecânica de fluidos, termodinâmica, eletromagnetismo, etc). O caminho en-
tre (Boyd & Barratt 1991) e essas teorias fı́sicas, no entanto, é tão longo
(tanto em termos de desenvolvimento histórico quanto em termos da com-
plexidade dos passos teóricos necessários para ligar todos os elos) que parece
não haver sustentação para uma afirmativa de que tal passagem seria “tri-
vial”. A redutibilidade, portanto, possui estatuto lógico semelhante ao da
redutibilidade mútua das ciências: trata-se de uma hipótese metafı́sica refe-
rente a um estado futuro do conhecimento, em que todo ele seria enunciável
em termos de algumas poucas leis básicas das quais “tudo” seria prontamente
derivável.
Em nossa opinião, esse postulado metafı́sico possui pouco valor no que
diz respeito à sua capacidade de sugerir programas de articulação do conheci-
mento cientı́fico, ou do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico. O preço
que Bunge paga pela pretensa defesa da ciência contra o instrumentalismo
acaba sendo abrir mão do contato com a ciência como ela é praticada – fi-
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 173

cando o filósofo à espera da chegada da ciência como ele a idealiza. Neste


ponto deixamos Bunge, e partimos para o exame de outros pontos de vista
ligados a essa questão da normatividade na tecnologia.

9.2 Outros autores


A questão dos limites da realidade, que se expressam tanto no mundo fı́sico
quanto nos artefatos construı́dos, é colocada também por Jarvie (1972, p.
58):

“Neste momento eu penso que nós possamos separar ciência da


tecnologia dizendo o seguinte: as leis da ciência delineiam os li-
mites daquilo que é possı́vel, mas dentro desses limites há muitas
variações contingentes conectadas de perto à tecnologia. O que
a tecnologia faz é explorar e explicar o detalhe fino dos fatos de
nosso mundo. Isto corresponde a tomar a tecnologia como abar-
cando a ciência aplicada, a invenção, a engenharia, e assim por
diante.
Quando eu digo que a ciência estabelece os limites daquilo que
é possı́vel, eu quero dizer fisicamente possı́vel. Mas o quê, você
pode indagar, é possibilidade fı́sica? Deixe-me ilustrar o que eu
quero dizer. Nós poderı́amos de maneira útil imaginar um con-
junto de quatro cı́rculos concêntricos, cada um dos quais repre-
senta uma maior área de possibilidade. Ao cı́rculo exterior nós
podemos chamar de cı́rculo da lógica, que limita a área daquilo
que é logicamente possı́vel; isto é, daquilo que pode ser dito sem
violar a lei da contradição. Esta é a área da máxima possibilidade.
Dentro do cı́rculo da lógica está o cı́rculo daquilo que é matema-
ticamente possı́vel. A teoria de Bertrand Russel de que esses dois
primeiros cı́rculos coincidissem se mostrou um equı́voco. Dentro
do cı́rculo daquilo que é matematicamente possı́vel (por exem-
plo, espaços n-dimensionais) encontra-se o cı́rculo daquilo que é
fisicamente possı́vel, e aqui nós encontramos as leis fundamen-
tais da ciência. Os primeiros dois cı́rculos circunscrevem todos
os mundos logicamente e matematicamente possı́veis; o cı́rculo
da ciência circunscreve o mundo fı́sico real. Dentro desses três
cı́rculos se encontra o cı́rculo mais estreito, os limites daquilo que
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 174

nós podemos imaginar como possı́vel, daquilo que nós podemos


visualizar com o nosso olho da mente. Você pode estar surpreso
com a minha sugestão de que aquilo que nós podemos imaginar
seja menor do que aquilo que é, especialmente na medida em que
as nossas noções daquilo que é, as nossas teorias cientı́ficas, são
produtos de nossas imaginações. Tudo o que eu quero dizer é que
o que qualquer um de nós pode imaginar dificilmente abrange to-
das as maravilhas da natureza que de fato existem: a verdade é,
eu diria, mais forte que a ficção. Mas uma vez que a ciência é
um produto de nossa imaginação, e dado que às vezes nós imagi-
namos estados de coisas impossı́veis, seria melhor fazermos esses
dois últimos cı́rculos terem sobreposição, ao invés de encapsular
um dentro do outro.”
A diferença apontada entre a ciência e a tecnologia não é enunciada por
Jarvie como uma impossibilidade de a tecnologia encontrar leis, ou limites,
que lhe sejam próprios: Jarvie (1972, p. 59) retorna ao tema da tecnologia
como sendo especificamente situada na construção de artefatos singulares,
destituı́dos de sistemas teóricos próprios:
“Agora enquanto a ciência determina as leis do mundo fı́sico, estas
são leis um tanto gerais. A tecnologia, entrementes, é um tanto
especı́fica. Mesmo na superfı́cie da terra o que é boa tecnologia
em um lugar não o é em outro. Tecnologia é o que nós podemos
denominar ‘ambiente-especı́fica’. A tecnologia da construção de
casas na Groenlândia, em Tóquio e no Arizona é um tanto dife-
rente devido aos ambientes diferentes. Se você considerar alguns
dos problemas básicos com os quais a tecnologia constantemente
se atraca, tais como alimentação, abrigo, e transporte, você verá
como as demandas que são apresentadas à tecnologia e os tipos de
soluções que ela sugere são ‘ambiente-especı́ficas’. Aquilo que é
alimentação adequada na Groenlândia pode se deteriorar em ho-
ras no Arizona; aquilo que transporta uma pessoa eficientemente
sobre a neve da Groenlândia pode não levá-la a lugar algum no
Arizona. Aquilo que proteger um homem no Arizona não irá
protegê-lo em um avião a jato, ou sobre a Lua. O que a tecno-
logia sabe é, dentro dos limites das leis gerais da natureza, como
resolver esses problemas de alimentação, moradia, e proteção em
diferentes partes do universo. A fı́sica não coloca barreiras às
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 175

viagens espaciais, mas nossa tecnologia está apenas lentamente


atingindo um ponto em que ela pode resolver todos os problemas
‘ambiente-especı́ficos’ do ambiente espacial. O nosso know-how
está apenas lentamente começando a lidar com essa tarefa.”

Como já vimos, essa formulação não é contraditória com as observações dis-
ponı́veis, desde que se estabeleça, por definição, que aquela entidade que
nós denominamos aqui de conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico seja
incluı́da no campo da ciência.
Um aspecto mais importante da formulação de Jarvie, no contexto de
nossa discussão aqui, aparece no seguinte trecho (Jarvie 1972, p. 59):

“Então quando eu digo que a tecnologia preenche os detalhes finos


dentro do quadro estabelecido pelas leis da natureza eu quero di-
zer o seguinte. Conhecimento tecnológico é conhecimento dentro
dos limites do cı́rculo que eu descrevi que coincide com as leis da
ciência. O que a tecnologia manipula dentro de tais limites são
os problemas práticos postos pela sociedade. Enquanto a ciência
de certa forma coloca a questão para a natureza, a tecnologia
coloca a questão tanto para a sociedade quanto para a natureza.
Quando um fı́sico procura a relação entre massa e energia ele não
pergunta à sociedade o que ela gostaria que fosse o resultado.
Mas na tecnologia não é tão simples assim. Peça a um enge-
nheiro de tráfego para resolver o problema de congestionamento
de trânsito em uma cidade e ele irá retornar a pergunta: ‘O quão
longe você está preparado para ir, quanto você pode gastar?’ O
interlocutor pode ser um polı́tico que precisa de votos e que diz,
‘Não me peça para banir carros e não me peça para aumentar os
impostos mais que um ou dois porcento.’ Dentro desses limites
o engenheiro irá ao trabalho. Todos nós sabemos que o tráfego é
facilitado se você banir os carros. Poucos de nós saberemos que
sistemas de vias de mão única, proibição de retornos, cadeias de
sincronização de semáforos, isolamento de pedestres, construção
de viadutos e vias de contorno podem fazer o mesmo até que
um engenheiro de tráfego nos diga que é assim. Eles aumenta-
ram o nosso conhecimento, mas esse não é conhecimento do tipo
mais profundo, no sentido metafı́sico de profundo. Devo acres-
centar que este sentido metafı́sico de ‘profundo’ não carrega, no
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 176

que eu quero dizer, nenhuma tonalidade esnobe. Ele não é neces-


sariamente conhecimento mais difı́cil, ou mais interessante: ele é
simplesmente conhecimento a respeito da estrutura do mundo.”
Jarvie, nesse trecho, coloca uma questão que depois irá reaparecer de forma
recorrente na literatura, até os dias de hoje: a peculiaridade do conhecimento
tecnológico de lidar com o chamado “conhecimento normativo”, entendido
agora como o conjunto de limitações estabelecidas em virtude de decisões
ou escolhas humanas. Apontamos, como diferença fundamental em relação
a Bunge, o fato de que Jarvie situa as limitações a serem obedecidas pelo
conhecimento tecnológico como a conjunção dos limites oriundos das leis
naturais com os limites originários das normas, além de não haver em Jarvie
a preocupação em negar as teorias no campo tecnológico (Jarvie, na verdade,
simplesmente se omite quanto a este último ponto).
O mesmo tema reaparece em um texto publicado simultaneamente (Jonas
1972):
“Obviamente, este é um tipo diferente de conhecimento que tem
a ver com a desejabilidade dos fins, e um tipo diferente que tem a
ver com factibilidade, meios, e execução. De novo, dentro do úl-
timo tipo, o conhecimento que se pronuncia sobre a possibilidade
em princı́pio é diferente daquele que mapeia, ainda em abstrato,
possı́veis formas de realização, fazendo isso a partir do discerni-
mento do curso de ação mais praticável em dadas circunstâncias.
Nós temos aqui uma escala descendo do geral para o particular,
do simples para o complexo, e ao mesmo tempo da teoria para
a prática, a qual é complexidade ela própria. O conhecimento
da possibilidade se assenta nos princı́pios universais do campo,
em suas leis constitutivas (os pontos terminais do que Galileu
chamou ‘método resolutivo’), o conhecimento, finalmente, do quê
fazer agora é inteiramente particular, colocando a tarefa dentro
do contexto da totalidade da situação concreta. Os primeiros
dois passos estão ambos dentro da teoria ou, antes, cada um de-
les pode ter desenvolvida sua teoria. A teoria no primeiro caso
pode ser chamada propriamente de ciência, tal como a fı́sica teó-
rica; à teoria no segundo caso, derivada dela por lógica, ainda que
nem sempre de fato, nós podemos chamar ciência tecnológica ou
aplicada – a qual, deve-se lembrar, ainda é ‘teoria’ com respeito
à própria ação, na medida em que oferece as regras especı́ficas
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 177

de ação como partes de um todo racionalizado e sem tomar uma


decisão. A execução particular, por si, não possui teoria própria
e não pode ter uma. Embora aplique a teoria, ela não é simples-
mente derivada dela mas envolve decisão baseada em julgamento;
e não há ciência do julgamento (tampouco há uma da decisão)
– isto é, julgamento não pode ser substituı́do por, ou transfor-
mado em, ciência, tanto o quanto ele próprio pode se servir das
descobertas e mesmo da disciplina intelectual da ciência e é ele
próprio um tipo de conhecimento, uma faculdade cognitiva. Jul-
gamento, diz Kant, é a faculdade de subsumir o particular ao
universal; e, uma vez que a razão é a faculdade do universal e
a ciência a operação dessa faculdade, o julgamento dizendo res-
peito aos particulares encontra-se necessariamente fora da ciência
e estritamente na ponte entre as abstrações da compreensão e a
concretude da vida.”

Jonas já é bastante explı́cito quanto à necessidade de se admitir a existência


de teorias especificamente tecnológicas, embora ainda estabelecendo restri-
ções quanto ao escopo “permitido” para tais teorias: elas teriam de tratar
especificamente de fenômenos ligados à “ação”, o que parece excluir a possi-
bilidade de que possuam leis de formato geral em seu âmbito. Não iremos
nos deter na discussão deste último ponto, uma vez que a maior parte da dis-
cussão a respeito da concepção de Bunge aqui também se aplica. Mantemos
o foco no tema da “arbitrariedade” das normas, e em uma suposta impos-
sibilidade de sua vinculação à estrutura do conhecimento epistemicamente
articulado.

9.3 Abordagens recentes


Esse tema da autonomização do “conhecimento normativo”, constituı́do à
margem da racionalidade cientı́fica, vem sendo recorrentemente enunciado
como uma caracterı́stica que distinguiria o conhecimento tecnológico do co-
nhecimento cientı́fico, desde então. Formulações mais recentes têm identi-
ficado a linha demarcatória entre eles exatamente nesse conhecimento nor-
mativo, que seria o núcleo do conhecimento tecnológico, e que não estaria
presente no conhecimento cientı́fico. Um exemplo dessa corrente de pensa-
mento pode ser encontrado em (Kornwachs 1998):
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 178

“Se o conhecimento de teoria de sistemas for interpretado como


uma descrição de uma seção da realidade, a ciência natural de-
sempenha o papel de uma teoria fenomenológica ou periférica
(por exemplo, encontrando um material de trabalho adequado
com as propriedades desejadas). A razão é que, dentro de uma
teoria substancial de uma dada tecnologia, o nı́vel pragmático
de fazer coisas não pode ser descrito apenas por enunciados de
leis; condições de contorno são uma condição necessária adicio-
nal. Portanto a ciência natural não é o cerne do conhecimento
tecnológico; este é o conhecimento de como fazer coisas. Este
conhecimento é transferı́vel sem o conhecimento da ciência na-
tural, e a tecnologia relevante pode funcionar com conhecimento
preparatório apenas (saber como sem saber porquê).
Para continuar esta análise, o verdadeiro cerne da tecnologia deve
incluir metas, propósitos e desejos; isto é, ele deve conter expres-
sões normativas. Seria possı́vel expressar isso metaforicamente:
tecnologia tem a ver com questões de poder humano e de suas
instituições humanas. Se esta conjectura for verdadeira, a tec-
nologia deve ser considerada como algo que tem a ver com livre
arbı́trio por um lado e com leis naturais por outro lado.”

Um outro trecho representativo dessa corrente é, por exemplo (de Vries 2005):

“O conhecimento tecnológico possui um componente normativo


que o conhecimento cientı́fico não possui. Quando nós temos co-
nhecimento sobre um computador, este frequentemente compre-
ende julgamentos normativos: ele funciona bem ou ele não funci-
ona bem. No conhecimento de normas técnicas, regras e padrões
como um outro tipo de conhecimento tecnológico nós também
encontramos um componente normativo. [...] Considerando que
nós gostarı́amos de perguntar pelo ‘conhecimento’ em tecnologia,
iriam emergir duas questões. Em primeiro lugar nem todo conhe-
cimento em tecnologia pode ser expresso em proposições. Quando
nós dizemos: ‘o aprendiz deve saber como usar um martelo’, nós
não queremos dizer que o aprendiz deva acreditar em proposições
a respeito de como usar um martelo. Isto seria o ‘saber que’ e o
quê nós realmente queremos dizer é ‘saber como’ [...]. Uma se-
gunda objeção contra a definição clássica de conhecimento é que
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 179

em tecnologia há tipos de conhecimento proposicional que não


podem adequadamente ser associados à verdade, porque eles não
se referem a um estado de coisas real.”

É interessante notar que, embora a maioria desses textos recentes se apresente


como tributária de Bunge, suas formulações normalmente evitam aquela con-
tradição acima discutida (referente à simultânea proibição de que a tecnologia
possua teorias próprias e de que as teorias relativas à tecnologia pudessem
ser absorvidas na ciência). A raiz dessa contradição de Bunge usualmente
não é sequer tematizada nos textos recentes.
Tendo como foco a distinção entre ciência e tecnologia, e sem fazer uso de
um conceito como o do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico aqui pro-
posto, os textos mais recentes tendem a erguer a cerca de separação fazendo
uso do conceito de conhecimento normativo. A questão da distinção entre
ciência e tecnologia pode mesmo ser recolocada a partir de uma perspectiva
ontológica, ou seja, sob a perspectiva de que o conhecimento normativo altere
as próprias entidades sob observação (Kroes 2001):

“Finalmente, o status ontológico das propriedades funcionais e es-


truturais parece ser um tanto diferente. Funções não se ajustam
muito bem à ontologia das ciências fı́sicas. De um ponto de vista
fı́sico, objetos não possuem funções. Em contraste com propri-
edades fı́sicas que são consideradas intrı́nsecas aos objetos, isto
é, possuı́das por aqueles objetos independentemente de qualquer
outra coisa, em particular de observadores conscientes, funções
são geralmente consideradas serem extrı́nsecas, isto é, atribuı́das
ao objeto pelos usuários: A coisa importante de se ver neste ponto
é que funções nunca são intrı́nsecas à fı́sica de qualquer fenômeno
mas são designadas de fora por observadores conscientes e usuá-
rios. Funções, em resumo, nunca são intrı́nsecas, sendo sempre
relativas ao observador.
A existência de caracterı́sticas do mundo relativas ao observador
não acrescenta quaisquer novos objetos materiais à realidade, mas
pode adicionar caracterı́sticas epistemicamente objetivas à reali-
dade na qual as caracterı́sticas em questão existam relativas a
observadores e usuários. É, por exemplo, uma caracterı́stica epis-
temicamente objetiva desta coisa que ela seja uma chave de fenda,
mas tal caracterı́stica existe apenas relativamente a observadores
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 180

e usuários, e assim a caracterı́stica é ontologicamente subjetiva.


[...]
[...] a noção de função de sistema é [...] resolutamente não de-
rivada de julgamento. Coisas ou têm ou não têm uma capaci-
dade/disposição; mas sob esse ponto de vista, não existe nenhum
sentido particular a ser extraı́do da reivindicação de que existam
capacidades/disposições particulares que elas devessem possuir,
mas que estivessem temporariamente ou permanentemente inca-
pacitadas de exercer mesmo sob condições que pareçam ser com-
pletamente apropriadas ou normais. A principal diferença entre
função de sistema e função própria é portanto que a última é
normativa enquanto a primeira não é.
Uma vez que a normatividade desempenha tão importante pa-
pel em distinguir disposições funcionais de disposições fı́sicas, nós
iremos terminar com duas observações breves a respeito de nor-
matividade e funções técnicas. Primeiro, deve ser notado que a
atribuição de uma função técnica a um objeto e a questão de sa-
ber se o objeto a executa bem ou não parecem estar relacionadas.
[...] Segundo, de acordo com Preston, a questão da normativi-
dade somente aparece com respeito a funções próprias, e não com
respeito a funções de sistema [...]. Mesmo se um objeto executar
uma função por acidente, o seu desempenho nessa função pode ser
avaliado normativamente. Funções, sejam próprias ou de sistema,
parecem ser inerentemente normativas.”

A principal dificuldade em relação a essa concepção, em nosso entender, é


a de situar todo o conhecimento tecnológico fora do alcance da análise episte-
mológica que seria caracterı́stica dos campos cientı́ficos. Em nosso entender,
tal abordagem não capta questões sutis, porém importantes: (i) a estrutura
do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico, e (ii) a estrutura racional sub-
jacente aos processos de escolha chamados de “normativos”. Esse é o tema
da próxima seção.

9.4 Da norma à realidade objetiva


Como foi visto anteriormente, a alegada caracterı́stica normativa do conhe-
cimento tecnológico deriva de uma arbitrariedade essencial na definição do
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 181

limite entre o que seria a adequada execução de uma tarefa e o que seria um
mal-funcionamento, caracterizado pela execução inadequada da função atri-
buı́da ao artefato. Além disso, haveria ainda a sub-determinação dos meios
para se construı́rem artefatos em relação à função requerida para esses ar-
tefatos. Via de regra, há múltiplas formas de se construı́rem artefatos que
executem a mesma função. As correntes de pensamento ligadas à filosofia da
tecnologia mencionadas neste capı́tulo têm identificado a atividade de “nor-
matização”, entendida como a tomada de todas as decisões capaz de eliminar
tais indeterminações, como uma consagração da arbitrariedade na atividade
tecnológica.
No meio tecnológico, a potencial instabilidade ontológica que poderia re-
sultar dessa indeterminação recebeu, já há muito, um tratamento “norma-
tivo”, com o desenvolvimento das chamadas normas técnicas. Ao contrário
do que seria sugerido por aquelas correntes filosóficas, estas vêm cumprir o
papel oposto de fixar os elementos arbitrários, retirando-os do domı́nio da
escolha arbitrária do projetista. Em contrapartida, a “normatização” define
o campo de liberdade da atividade do projetista em bases materiais, esta-
belecendo os limites arbitrários que complementam os limites relacionados
às leis fı́sicas, a que deve se submeter o projeto. Nesses limites, como vere-
mos, a atividade de projeto pode ser sistematizada na forma de conhecimento
objetivado.
Para exemplificar esse ponto, tome-se o caso do problema de projeto de
motores elétricos para veı́culos de tração elétrica. Trata-se do problema de
projetar motores, seja DC3 ou AC4 , para a tarefa de movimentar veı́culos.
Evidentemente, é possı́vel movimentar objetos utilizando dispositivos cujo
princı́pio de funcionamento seja eletromagnético através de infindáveis for-
mas diferentes. No entanto, alguns dos artefatos que desempenham esse tipo
de função tornaram-se commodities, no sentido de que são comercialmente
disponı́veis de forma ampla, sendo que o comprador pode esperar um com-
portamento padronizado de um dispositivo desses. Os motores AC e DC de
tipo genérico constituem essas “commodities”. A especificação desses dispo-
sitivos é estabelecida em documentos denominados normas técnicas, que se
tratam de uma espécie de “acordo” capaz de garantir a concordância entre
o fabricante do dispositivo, que se compromete a produzir um artefato com
caracterı́sticas bem determinadas, e o usuário desse dispositivo, que sabe o
3
Corrente contı́nua.
4
Corrente alternada.
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 182

que esperar do dispositivo, em termos de limites mı́nimos de desempenho


assegurado, definidos de forma objetiva. O seguinte texto-padrão aparece
nas normas técnicas do IEEE5 , esclarecendo a natureza arbitrária dessas
normas (IEEE Standard for Rotating Electric Machinery for Rail and Road
Vehicles 2000):

“O uso de uma Norma IEEE é completamente volutário. A exis-


tência de uma Norma IEEE não implica que não existam outras
formas de produzir, testar, medir, comprar, vender, ou fornecer
outros bens e serviços relacionados com o escopo da Norma IEEE.
Além disso, o ponto de vista expresso no momento em que uma
norma é aprovada e emitida é sujeito a mudanças causadas por
desenvolvimentos no estado da arte e por comentários recebidos
de usuários da norma. [...]
Interpretações: Ocasionalmente questões podem surgir com res-
peito ao significado de porções das normas na medida em que
estas se relacionam com aplicações especı́ficas. Quando a neces-
sidade de interpretações é trazida à atenção do IEEE, o Instituto
irá iniciar ações para preparar respostas apropriadas. Uma vez
que as Normas do IEEE representam um consenso de todos os
interesses envolvidos, é importante assegurar que qualquer inter-
pretação também tenha recebido a concorrência de um balanço
de interesses.”

O escopo e objetivo das normas acima mencionadas é assim definido (IEEE


Standard for Rotating Electric Machinery for Rail and Road Vehicles 2000):

“1.1 Escopo
Esta norma se aplica ao maquinário elétrico girante que forma
parte do equipamento de propulsão e dos equipamentos auxiliares
principais em veı́culos de trilho e estrada eletricamente propelidos
com potência gerada internamente ou externamente, e similares
grandes veı́culos de transporte e reboque e os seus trailers onde
estiver especificado no contrato. Equipamentos auxiliares princi-
pais incluem equipamentos tais como motores para sopradores e
compressores, grupos motor-gerador e motor-alternador, gerado-
res auxiliares, e excitatrizes, usualmente maiores que 3 kW.
5
Institute of Electrical and Electronic Engineers.
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 183

1.2 Propósito
O propósito desta norma é o de definir dimensionamentos, tes-
tes, e procedimentos de cálculo para permitir a comparação entre
máquinas para uso similar, e permitir a avaliação da adequação
de máquinas para um determinado uso.”
Especificamente, essas normas mencionadas definem o que seriam as funções
requeridas de um motor elétrico para uso em veı́culos de tração elétrica, em
termos de grandezas fı́sicas passı́veis de serem medidas, estabelecendo ainda
como deveriam ser feitas as respectivas medições. Apenas para exemplificar,
veja-se o trecho abaixo, que faz parte da definição de como devem ser enten-
didos como os “valores nominais de potência” desses motores (IEEE Standard
for Rotating Electric Machinery for Rail and Road Vehicles 2000):
“4. Limites operacionais e testes de subida de temperatura
4.1 Classes de limites operacionais
Esta norma reconhece três classes de limites operacionais: limites
de operação contı́nua, limites de 1 h de operação, e limites de
sobrecarga de curta duração.
4.2 Limites de operação contı́nua e testes de subida de tempera-
tura
4.2.1
O limite de operação contı́nua de uma máquina aplicado em ciclo
de trabalho longo comparado com a constante de tempo térmica
da máquina geralmente será o ponto de maior esforço trativo com
o maior nı́vel de fluxo contı́nuo. O teste será realizado com en-
tradas como em serviço a menos que 4.6.1 se aplique. Será asse-
gurado que nenhum outro ponto seja limitante.”
Uma “rede” de outras normas define termos tais como “sobrecarga de curta
duração”, “ciclo de trabalho”, e outros. Após uma série de definições desse
tipo, uma série de tabelas associa tipos de motores a valores admissı́veis de
elevação de temperatura. Por exemplo, um motor de “classe H” deveria ter
um aumento de temperatura do enrolamento girante da armadura menor ou
igual a 120o C, quando medido pelo método do sensor resistivo, em um teste
de uma hora de duração executado segundo procedimentos detalhadamente
definidos. São especificados valores limites para diversas outras variáveis
consideradas relevantes.
O ponto aqui é: normas como essas eliminam muitas das componentes da
escolha do projetista em um projeto. A partir da decisão de se projetar um
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 184

dispositivo que atenda a determinado conjunto de normas, as considerações


relativas à função do objeto tornam-se irrelevantes: desempenhar a função
torna-se equivalente a atender às caracterı́sticas especificadas na norma. Em
meio a tais limites objetivados, a tarefa do projeto do dispositivo se desven-
cilha de uma arbitrariedade que seria essencial – ou ontológica – que estaria
ligada às questões de definir o quê seria o objeto e quais seriam suas pro-
priedades inerentes. Resta uma sub-determinação de muito menor impacto
epistemológico, na medida em que ainda seriam possı́veis diversos roteiros
de projeto diferentes, conduzindo a motores diferentes que atendessem aos
mesmos requisitos objetivos.
De fundamental, deve ser apontado que nessas circunstâncias nada im-
pede que o conhecimento tecnológico se traduza em leis. Conforme nosso
modelo, as proposições dos tipos 1 a 5 podem ser geradas nesse contexto,
podendo constituir sistemas teóricos hipotético-dedutivos. A existência da
sub-determinação no que diz respeito às instâncias de motores que atendem
a determinado conjunto de especificações funcionais, na verdade, acaba por
permitir a definição das famı́lias de problemas de sı́ntese, conforme discutido
no Capı́tulo 6, possivelmente delimitando dessa forma sub-conjuntos dos do-
mı́nios das teorias tecnológicas do tipo cientı́fico.

9.5 Contexto da normatização e contexto da


realização
Nós mencionamos há pouco o mecanismo das normas técnicas, que serviria
para criar uma separação entre duas parcelas da atividade de projeto de ar-
tefatos: (i) a atividade da definição das entidades a serem projetadas, em
termos da definição tanto de sua estrutura quanto dos limites paramétri-
cos dentro dos quais estas constituem sua identidade; e (ii) a atividade de
instanciação dessas entidades em projetos de artefatos especı́ficos. O cha-
mado conhecimento normativo, que a tradição da filosofia da tecnologia vem
identificando como sendo não susceptı́vel de exame epistemológico, coincide
precisamente com a parcela (i). A parcela (ii), por sua vez, é claramente
susceptı́vel de ser sistematizada, podendo ser denominada, como aqui, co-
nhecimento tecnológico do tipo cientı́fico.
Não pode escapar à observação, entretanto, o fato de que as normas téc-
nicas se aplicam sobretudo ao projeto de artefatos quando estes se reduzem
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 185

a commodities tecnológicas, ou seja, quando são fabricados por muitos pro-


dutores independentes para um mercado que espera uma padronização do
produto. No caso de invenções, ou seja, aparelhos fabricados pela primeira
vez, não é plausı́vel sua delimitação em termos de uma norma técnica6 . A
questão que imediatamente se colocaria é: nesses casos, o conhecimento nor-
mativo iria então predominar, na forma de um determinante do conhecimento
tecnológico, conforme prescreve a literatura? Ou seja, nos casos de invenções,
o conhecimento tecnológico deixaria de ser susceptı́vel à análise epistemoló-
gica, e não obedeceria a determinantes racionais?
Nós propomos aqui uma tese mais plausı́vel, que se assenta em uma dis-
tinção entre as atividades pertencentes ao contexto da normatização e as
pertencentes ao contexto da realização:

Contexto da normatização: Este contexto incluiria toda a tarefa de ima-


ginar os novos possı́veis artefatos, suas funcionalidades, sua estrutura.
Após um momento de descrição qualitativa dos artefatos, iria por fim
desembocar na descrição quantitativa de requisitos de desempenho para
esses artefatos.

Contexto da realização: A partir da descrição estrutural mais a descrição


de requisitos de desempenho de um artefato, neste contexto seria feito o
estudo sistemático dos possı́veis artefatos fı́sicos e de suas propriedades.
Como ponto final, nesse contexto, seria também feita a instanciação de
artefatos singulares capazes de corresponder à descrição obtida no outro
contexto.

Formalmente, no contexto da normatização seriam definidas as restrições de


projeto que delimitam um problema de projeto. Já no contexto da realização,
seriam estabelecidos os roteiros de sı́ntese. Com essa distinção, pode-se sub-
meter o conhecimento tecnológico a uma análise epistemológica: a parcela
arbitrária desse conhecimento ficaria confinada ao contexto da normatização,
enquanto que sistemas teóricos hipotético-dedutivos poderiam ser estabele-
cidos para fundamentar o contexto da realização. Assim, o conhecimento
tecnológico do tipo cientı́fico, conforme definido neste ensaio, se situaria em
articulação com o contexto da realização – definindo possibilidades, limites,
propriedades, alternativas –, aplicáveis à realização dos projetos.
6
Não obstante, algumas normas ainda devem se aplicar, tais como as normas de con-
formidade a redes elétricas, ou de emissão de radiações, ou ainda de segurança.
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 186

A partir desta distinção, assume-se a hipótese de que casos como o acima


discutido, nos quais existam normas técnicas formalmente descritas anterior-
mente ao inı́cio da atividade de projeto, seriam uma situação-modelo limı́to-
fre. Mesmo nos casos em que isso não ocorra com tal nitidez, é possı́vel supor
que existam, ainda que embricadas, as etapas nas quais uma estrutura é ima-
ginada, seguida das etapas nas quais a tradução dessa estrutura em termos
de objetos analisáveis é processada. Nossa hipótese quanto a isto é um dos
pontos centrais em torno dos quais se estrutura o pensamento desenvolvido
neste ensaio:

Hipótese da gênese da tecnologia: Existe um consenso há muito esta-


belecido quanto à definição da tecnologia ocorrer a partir do momento
em que a técnica (ou seja, a atividade de fabricação de artefatos) passa
a incorporar o conhecimento cientı́fico. Nossa hipótese é a de que esse
momento ocorra precisamente quando o homem estabelece a separação
entre o contexto da normatização e o contexto da realização.

Assim, ao se separar aquilo que se deseja daquilo que é racionalmente pos-


sı́vel obter, torna-se viável estabelecer o lugar para o conhecimento sistemá-
tico na atividade de produção de artefatos. A ciência logo se coloca como
elemento estruturante desse lugar do conhecimento sistemático. Simulta-
neamente, ainda que de forma embrionária, se estabelece a possibilidade da
sistematização do próprio conhecimento tecnológico. Nessa cunha, acaba por
se formar o conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico, como necessidade li-
gada ao próprio avanço tecnológico.
Epistemologicamente, é possı́vel conceber a sı́ntese de artefatos sem que
haja, em algum momento, a descrição destes em termos de variáveis fı́sicas
definidas de forma não-ambı́gua, assim como em termos de conjuntos ad-
missı́veis para essas variáveis? Com certeza é possı́vel, e a isso denomina-se
técnica. A tecnologia se estabelece no momento em que o conjunto de va-
gos desejos a respeito de um objeto dotado de “funcionalidades” se traduz
em descrições objetivas, capazes de serem confrontadas com leis e princı́pios
gerais da ciência. Nossa hipótese é de que, em toda tecnologia devam existir
os nı́veis da normatização e da realização, distintos e individualizados.
Assim, em conformidade com a tendência dominante na literatura da
Filosofia da Tecnologia, nós não descartamos a existência de um nı́vel de
conhecimento normativo na tecnologia. Divergindo, entretanto, dessa ten-
dência dominante, em nosso modelo esse conhecimento normativo não possui
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 187

implicações estruturais profundas sobre o que seria o conhecimento sistemá-


tico na tecnologia. Em particular, o conhecimento normativo não define,
para nós, um caráter nem arbitrário nem não-susceptı́vel de ser analisado
racionalmente para a totalidade do conhecimento tecnológico, como parece
querer a literatura. Nosso modelo, ao contrário, ao blindar o contexto da rea-
lização, na tecnologia, da interferência do conhecimento normativo, permite
estabelecer um domı́nio no qual prevalece exatamente a dinâmica do conheci-
mento cientı́fico, onde se formulam e se testam teorias, e onde o conhecimento
possa ser propriamente acumulado (pelo menos no mesmo sentido em que o
conhecimento cientı́fico o possa).
São instrutivas algumas analogias que se podem fazer da distinção pro-
posta com a distinção entre o contexto da descoberta e o contexto da justi-
ficação, no caso da Filosofia da Ciência. Da mesma forma que a atividade
de imaginar novos objetos ainda não inventados, a tarefa de imaginar novas
estruturas teóricas até então insuspeitas é em grande medida carregada de
subjetividade, e não se presta (pelo menos ainda) a ser descrita de forma
sistemática. A Filosofia da Ciência, ao examinar o contexto da justificação,
procura enfocar a parcela da atividade cientı́fica que a um tempo é susceptı́-
vel de sofrer uma análise sistemática e também de funcionar como recipiente
daquilo que possa ser considerado o “conhecimento acumulado” a respeito de
um assunto. No caso da tecnologia, similarmente, o contexto da normatização
não admite uma explicação formal completa, sendo carregado de julgamento
subjetivo. Já o contexto da realização, ao propor problemas formulados de
maneira precisa, acaba por se desdobrar em sistemas de proposições e, em
última instância, em conhecimento acumulado. O contexto da normatiza-
ção certamente é o campo de trabalho de indivı́duos formados no manejo do
contexto da realização, de forma que não se pode dizer que o primeiro seja
inteiramente independente do segundo – em exata analogia com o que ocorre
com os indivı́duos que atuam no contexto da descoberta, via de regra formados
primeiro em atividades que se desdobram no contexto da justificação7 .

7
Essa analogia, no entanto, não se faz completa: no , em tec-
nologia, se encontram os problemas definidos de forma objetiva. Daı́ emergem tanto os
problemas singulares de sı́ntese, como ainda o problema da formulação de teorias gerais
estruturantes para o campo em questão. Assim, a proposição das
ainda iria requerer, por si, uma e uma .
Ankiewicz, P., de Swardt, E. & de Vries, M. (2006). Some implications
of the Philosophy of Technology for Science, Technology and Society
(STS) studies, International Journal of Technology and Design Educa-
tion 16: 117–141.
Aristoteles (323 A.C.). Organon. (English translation:
).
Astrom, K. J. (2005). Nyquist and his seminal papers, ASME Ny-
quist Lecture 2005 (Retrieved on 2008-09-07). Available at:
.
Bachelard, G. (1928). Essai sur la connaissance approchée, Librairie Philo-
sophique J. Vrin. (Ensaio sobre o Conhecimento Aproximado (trad.),
Contraponto Editora, 2004).
Bacon, F. (1605). The Advancement of Learning, Project Gutenberg (Trans-
cribed from the 1893 Cassell & Company edition). available at:
.
Baird, D. (1999). Organic necessity: thinking about thinking about techno-
logy, Techné 5(1): 1–14.
Barron, A. (2008). Nanomaterials for alternative energy sources, Dalton
Transactions 40: 5399.
Billah, K. & Scanlan, R. (1991). Resonance, Tacoma Narrows bridge fai-
lure, and undergraduate physics textbooks, American Journal of Phy-
sics 59(2): 118–124.
Bode, H. W. (1945). Network analysis and feedback amplifier design, Van
Nostrand Reinhold.

188
BIBLIOGRAFIA 189

Boyd, S., Baratt, C. & Norman, S. (1990). Linear controller design: li-
mits of performance via convex optimization, Proceedings of the IEEE
78(3): 529–574.
Boyd, S. P., Balakrishnan, V., Barratt, C. H., Khraishi, N. M., Li, X., Meyer,
D. G. & Norman, S. A. (1988). A new CAD method and associated
architectures for linear controllers, IEEE Transactions on Automatic
Control 33(3): 268–283.
Boyd, S. P. & Barratt, C. H. (1991). Linear controller design: limits of
performance, Prentice-Hall, Inc., Upper Saddle River, NJ, USA.
Brakel, J. V. (1997). Chemistry as the science of the transformation of
substances, Synthese 111: 253–282.
Bunge, M. (1967). Scientific Research II: The Search for Truth, Springer,
Berlin.
Bunge, M. (1972). Toward a philosophy of technology, in C. Mitcham &
R. Mackey (eds), Philosophy and Technology - Readings in the philo-
sophical problems of technology, Macmillan Publishing Co., pp. 62–76.
Bunge, M. (1974). Teoria e Realidade (trad.), Série Debates 72, Ed. Pers-
pectiva.
Bunge, M. (1980a). Ciencia Y Desarrollo, Siglo Veinte. (Ciência e Desenvol-
vimento (trad.), Editora Itatiaia, 1989).
Bunge, M. (1980b). Epistemologı́a: Curso de Actualización, 2a edn, Ed.
Ariel S/A. (Epistemologia: Curso de Atualização (trad.), T. A. Queiroz
Editor, 1987).
Chen, J. (1995). Sensitivity integral relations and design trade-offs in li-
near multivariable feedback systems, IEEE Transactions on Automatic
Control 40(10): 1700–1716.
Chibeni, S. S. (1997). Aspectos da Descrição Fı́sica da Realidade, Coleção
CLE - 21, Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência da
UNICAMP.
Cox, J. P. L. (2008). Hydrodynamic aspects of fish olfaction, Journal of the
Royal Society Interface 5: 575–593.
BIBLIOGRAFIA 190

de Vries, M. J. (2003). The nature of technological knowledge: extending em-


pirically informed studies into what engineers know, Techné: Research
in Philosophy and Technology 6(3).

de Vries, M. J. (2005). The nature of technological knowledge: philosophi-


cal reflections and educational consequences, International Journal of
Technology and Design Education 15: 149–154.

Dear, P. (2005). What is the history of science the history of? Early modern
roots of the ideology of modern science, ISIS 96: 390–406.

Dirac, P. A. M. (1929). Quantum mechanics of many-electron systems, Pro-


ceedings of the Royal Society of London A123: 714–733.

Doyle, J. C., Glover, K., Khargonekar, P. P. & Francis, B. A. (1989). State-


space solutions to standard 2 and ∞ control problems, IEEE Tran-
sactions on Automatic Control 34(8): 831–847.

Durbin, P. T. (2006). Philosophy of technology: in search of discourse synthe-


sis, Techné: Research in Philosophy and Technology 10(2): 3–320. (Spe-
cial issue: a book by Paul T. Durbin).

Geromel, J. C., Peres, P. L. D. & Bernussou, J. (1991). On a convex parame-


ter space method for linear control design of uncertain systems, SIAM
Journal on Control and Optimization 29: 381–402.

Goldman, S. L. (1991). The social captivity of engineering, in P. T. Durbin


(ed.), Critical Perspectives on Nonacademic Science and Engineering,
Lehigh University Press, Bethlehem, PA, pp. 11–23.

Gorokhov, V. (1998). A new interpretation of technological progress, Philo-


sophy and Tecnology 4(1): 26–34.

Grayling, A. C. (1996). Epistemology, in N. Bunnin & E. P. Tsui-James


(eds), The Blackwell Companion to Philosophy, Blackwell Publishers.
(Compêndio de Filosofia (trad.), Edições Loyola, 2002).

Grunberg, P. A. (1990). Magnetic field sensor with ferromagnetic thin


layers having magnetically antiparallel polarized components, US Pa-
tent 4949039. Applicant: Kernforschungsanlage Juelich (DE).
BIBLIOGRAFIA 191

Grunberg, P. A. (2007). From spinwaves to giant magnetoresistance (gmr)


and beyond, Nobel Lecture (Retrieved on 2008-02-07). Available at:

Habermas, J. (1968). Technik und Wissenschaft als “Ideologie”, Ed. Suhr-


kamp Verlag. (Técnica e Ciência como “Ideologia” (trad.), Edições 70).

Habermas, J. (1999). Wahrheit und Rechtfertigung - Philosophische Aufsätze,


Ed. Suhrkamp Verlag. (Verdade e Justificação (trad.), Edições Loyola,
2004).

Hedenstrom, A. & Spedding, G. (2008). Beyond robins: aerodynamic analy-


ses of animal flight, Journal of the Royal Society Interface 5: 595–601.

Hempel, C. G. (1983). Physics, Philosophy and Psychoanalysis: Essays in


Honor of Adolf Gruünbaum, Reidel, Boston, chapter Valuation and ob-
jectivity in science, pp. 73–100.

Hoffmann, R. (2007). What might philosophy of science look like if chemists


built it?, Synthese 155: 321–336.

IEEE Standard for Rotating Electric Machinery for Rail and Road Vehicles
(2000). IEEE Standard.

Jaeger, W. (1935). Paideia: Die Formung des Griechischen Menschen, 4a


edn, Walter de Gruyter, Berlin. (Paidéia: a formação do homem grego
(trad.), Martins Fontes, 2001).

Jarvie, I. C. (1972). Technology and the structure of knowledge, in C. Mit-


cham & R. Mackey (eds), Philosophy and Technology - Readings in the
philosophical problems of technology, Macmillan Publishing Co., pp. 54–
61.

Jonas, H. (1972). The practical uses of theory, in C. Mitcham & R. Mac-


key (eds), Philosophy and Technology - Readings in the philosophical
problems of technology, Macmillan Publishing Co., pp. 335–346.

Keel, L. H. & Bhattacharyya, S. P. (1997). Robust, fragile, or optimal?,


IEEE Transactions on Automatic Control 42(8): 1098–1105.
BIBLIOGRAFIA 192

Komatsu, K., Murata, M. & Murata, Y. (2005). Encapsulation of molecular


hydrogen in fullerene 60 by organic synthesis, Science 307: 238–240.

Kornwachs, K. (1998). A formal theory of tecnology?, Philosophy and Tec-


nology 4(1): 47–64.

Kroes, P. (2001). Technical functions as dispositions: a critical assessment,


Techné 5(3): 1–16.

Kuhn, T. S. (1962). The Structure of Scientific Revolutions, The Univ. of


Chicago Press. (A Estrutura das Revoluções Cientı́ficas (trad.), Ed.
Perspectiva, Série Debates 115, 1992).

Kuhn, T. S. (2000). The Road Since Structure, The University of Chicago.


(O caminho desde a estrutura (trad.), Editora Unesp, 2003).

Maturana, H. (1997). A Ontologia da Realidade, Editora UFMG.

McElroy, E. J., Hickey, K. L. & Reilly, S. M. (2008). The correlated evolu-


tion of biomechanics, gait and foraging mode in lizards, The Journal of
Experimental Biology 211: 1029–1040.

McIntyre, L. (2007). Emergence and reduction in chemistry: ontological or


epistemological concepts?, Synthese 155: 337–343.

Mitcham, C. (1994). Thinking Through Technology - The path between engi-


neering and philosophy, The University of Chicago Press, Chicago.

Moles, A. A. (1956). La Création Scientifique, Ed. René Kister. (A Criação


Cientı́fica (trad.), Ed. Perspectiva, 1981).

Moser, P. K., Mulder, D. H. & Trout, J. D. (1997). The Theory of Kno-


wledge: A Thematic Introduction, Oxford University Press. (A Teoria
do Conhecimento: Uma Introdução Temática (trad.), Ed. Martins Fon-
tes, 2004).

Nakao, M. (1996). Collapse of Tacoma Narrows bridge, Failure Knowledge


Database - 100 Selected Cases, The University of Tokyo (Retrieved on
08-01-2008). Available at: .

Nyquist, H. (1932). Regeneration theory, Bell System Technical Journal


11: 126–147.
BIBLIOGRAFIA 193

Papineau, D. (1996). Philosophy of science, in N. Bunnin & E. P. Tsui-James


(eds), The Blackwell Companion to Philosophy, Blackwell Publishers.
(Compêndio de Filosofia (trad.), Edições Loyola, 2002).

Penzias, A. (1978). Arno Penzias - The Nobel Prize


in Physics 1978 - Autobiography, Nobel Prize Home-
page (Retrieved on July 28th, 2008). Available at:

Platao (348 A.C.). Teeteto, Diálogos. (Trad., Editora Universitária UFPA,


2001).

Popper, K. R. (1934). Logic der Forschung, Julius Springer Verlag. (A Lógica


da Pesquisa Cientı́fica (trad.), Ed. Cultrix, 1974).

Popper, K. R. (1966). The open society and its enemies, Routledge & Kegan
Paul. (A Sociedade Aberta e seus Inimigos (trad.), Ed. Abril Cultural,
1980).

Popper, K. R. (1972). Conjectures and Refutations, Routledge & Kegan,


London, chapter Three views concerning human knowledge, pp. 125–
146. (Três pontos de vista sobre o conhecimento humano (trad.), Ed.
Universidade de Brası́lia, 1972).

Poser, H. (1998). On structural differences between science and engineering,


Philosophy and Technique 4(2): 81–93.

Queralto, R. (1998). Technology as a new condition of the possibility of


scientific knowledge, Philosophy and Technology 4(2): 95–102.

Ropohl, G. (1997). Knowledge types in technology, International Journal of


Technology and Design Education 7: 65–72.

Scerri, E. R. & McIntyre, L. (1997). The case for the philosophy of chemistry,
Synthese 111: 213–232.

Scharff, R. C. & Dusek, V. (eds) (2003). Philosophy of Technology: The


Technological Condition: An Anthology, Blackwell Publishing.

Schummer, J. (2003). The philosophy of chemistry, Endeavour 27(1): 37–41.


BIBLIOGRAFIA 194

Steward, L. E., Fernandez-Salas, E., Francis, J., Li, S., Gilmore, M. A. &
Aoki, K. R. (2008). New modified clostridial toxin comprises a clostri-
dial toxin enzymatic domain, a clostridial toxin translocation domain,
a targeting domain, and a protease cleavage site, useful for producing a
polypeptide molecule, US Patent US2008161543-A1.

Teixeira, C. G., Teixeira, C. F. & Neuhauss, E. (2007). Parasitology diagnosis


procedure for helmintiases, involves using paramagnetic micro-spheres
without molecule linker, and isolating worm eggs in fecal sediment or
other suspensions of biological material, Patent BR200504182-A.

Uzan, P. (2007). The arrow of time and meaning, Foundations of Science


12: 109–137.

Venkataramanan, V., Peng, K., Chen, B. M. & Lee, T. H. (2003). Discrete-


time composite nonlinear feedback control with an application in design
of a hard disk drive servo system, IEEE Transactions on Control Sys-
tems Technology 11(1): 16–23.

Vincenti, W. (1990). What engineers know and how they know it, Johns
Hopkins University Press, Baltimore.

Vincenti, W. G. (2001). The experimental assessment of engineering theory


as a tool for design, Techné 5(3): 31–39.

Vukosavic, S. N., Jones, A., Levi, E. & Varga, J. (2005). Rotor flux oriented
control of a symmetrical six-phase induction machine, Electric Power
Systems Research 75(2-3): 142–152.

Walker, E. (1968). Goals of engineering education - final report of the goals


committee, Journal of Engineering Education 58: 367–446.

Xu, Y. (2008). Immunology detecting method and kits, by combining im-


mune particles and detecting test sample, or competing with sample
and depositing to form particle immune complex, detecting quantity of
immune particles and content in sample, Patent CN101153873-A.

Zames, G. (1981). Feedback and optimal sensitivity: model reference trans-


formations, multiplicative seminorms and approximate inverses, IEEE
Transactions on Automatic Control 26(2): 301–320.

You might also like