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Tipo Cientı́fico
Ricardo H. C. Takahashi
30 de Novembro de 2008
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NOTAS INTRODUTÓRIAS 5
cadas do século XX. Esse objeto, bastante distinto das técnicas desde sempre
empregadas pela humanidade para satisfazer suas necessidades materiais por
meio da aplicação de conhecimento sistematizado, diz respeito a uma moda-
lidade especı́fica de conhecimento sistematizado, que é fundado nas teorias,
na metodologia e na cosmovisão caracterı́sticas da ciência contemporânea.
O perı́odo de cerca de um século desde o surgimento da tecnologia con-
temporânea até hoje representa a esta altura um acúmulo de eventos e de
mudanças que ainda demanda uma assimilação por fazer. A humanidade
foi definitivamente impactada nesse perı́odo, de uma forma que não encon-
tra precedentes. Por um lado, a velocidade na criação de novidades, com
a proliferação de novos objetos anteriormente inexistentes no mundo, pode
suscitar no imaginário uma condição de homem-demiurgo, limitado apenas
pelo alcance da própria vontade. Por outro lado, limites na disponibilidade
de recursos, anteriormente não divisados, têm sido rapidamente atingidos,
sendo hoje vislumbrado o esgotamento do espaço geográfico, dos recursos
minerais, da energia, das águas, da informação e do tempo.
Toda essa escala de efeitos de ordem material e cultural, entretanto, ainda
não teve desvendado seu mecanismo básico de desenvolvimento do conheci-
mento tecnológico. Essencialmente, não sabemos ainda hoje de que forma
as inovações tecnológicas são gestadas. Não compreendemos a dinâmica se-
gundo a qual o conhecimento tecnológico é elaborado e re-elaborado, e não
entendemos de que forma a face visı́vel da tecnologia, que é o artefato tecnoló-
gico, pode emergir a partir desse conhecimento. Nós não sabemos hoje o que
são (ou mesmo se existem) teorias que sintetizem o conhecimento tecnológico,
sendo ao contrário muitı́ssimo presente tanto no imaginário popular quanto
na literatura filosófica a crença de que a tecnologia seria mera decorrência
direta do conhecimento cientı́fico básico disponı́vel, dispensando qualquer es-
forço de análise epistemológica especı́fica. A filosofia da tecnologia, em sua
forma atual, encontra-se mais próxima de sugerir que o conhecimento especi-
ficamente tecnológico seria essencialmente assistemático e não susceptı́vel de
ser formalizado que de propor modelos que tentem explicar a dinâmica desse
conhecimento.
Esse estado pré-filosófico dos estudos sobre a filosofia da tecnologia tem
constituı́do um obstáculo, até este momento, para que se faça qualquer esboço
de formulação sobre temas tais como: Qual seria a estrutura dos experimen-
tos no âmbito de teorias da tecnologia? Em qual medida uma realização
prática de um artefato tecnológico constituiria um experimento para uma
teoria tecnológica? Que tipo de proposições pode conter uma teoria tecnoló-
NOTAS INTRODUTÓRIAS 7
gica? Que tipos de entidades teóricas podem estar presentes em uma teoria
tecnológica, e que caracterı́sticas distinguem essas entidades daquelas previs-
tas em teorias da ciência básica? De que maneiras interagem o conhecimento
sintetizado na forma de teorias tecnológicas e a prática da sı́ntese de produtos
tecnológicos? Em quais sentidos se pode corroborar ou refutar uma teoria
tecnológica?
Este ensaio aborda o tema geral da epistemologia do conhecimento tec-
nológico. De forma mais especı́fica, este ensaio trata da dinâmica da geração
do conhecimento tecnológico, procurando identificar os elementos reguladores
de racionalidade epistemológica constituintes dessa dinâmica. Uma conclusão
central deste trabalho é a identificação de uma nova entidade, o conhecimento
tecnológico do tipo cientı́fico – que deve constituir o núcleo teórico ao redor
do qual o conhecimento tecnológico se organiza. Em linhas gerais, este ensaio
segue o roteiro de: (i) mostrar a necessidade de tal entidade; (ii) identificar
elementos indicadores de sua presença; (iii) caracterizar sua estrutura; e (iv)
descrever seu funcionamento, em um processo de interação dinâmica com a
prática da tecnologia. Toda a discussão é conduzida aqui fazendo o exame,
em paralelo, da controvérsia que se instala entre a proposta aqui apresentada
e as concepções filosóficas hoje existentes.
A parte I, que compreende os capı́tulos 1 e 2, apresenta algum material
que constitui um conjunto de premissas metodológicas ao redor das quais
este ensaio se articula.
O capı́tulo 1 discute o tema da verdade em sua relação com o conheci-
mento cientı́fico. Uma função importante desse capı́tulo no conjunto deste
ensaio é a de estabelecer, de partida, nosso posicionamento em relação à filo-
sofia da ciência contemporânea. Nós situamos nosso ponto de vista no campo
do realismo cientı́fico, e conduzimos uma discussão que visa esclarecer a mo-
dalidade de realismo cientı́fico por nós adotada.
O capı́tulo prossegue apresentando uma proposta nossa para tratar o pro-
blema da indução em ciência, estabelecendo um critério que possibilita rotular
parcelas do conhecimento com o status de consolidado. A idéia contida nesse
critério é a seguinte: Em princı́pio, toda e qualquer parcela do conhecimento
cientı́fico registrado na forma de teorias está sempre sujeita à possibilidade
de revisão futura, dado que sempre será hipoteticamente plausı́vel que novas
observações venham a ser feitas, no futuro, contradizendo a teoria presen-
temente aceita. Essa herança fundamental do refutacionismo de Popper,
entretanto, deve ser modulada pela observação empı́rica de que determina-
dos setores do conhecimento cientı́fico se encontram, num dado momento, em
NOTAS INTRODUTÓRIAS 8
suas propriedades podem ser escrutinadas da mesma forma que as das enti-
dades do mundo natural.
O estudo da estrutura do conhecimento tecnológico, portanto, faz sentido
somente nesse contexto da realização, no qual é possı́vel por exemplo indagar
em que medida o conhecimento tecnológico teria uma dinâmica semelhante
ou distinta da dinâmica da ciência, ou em que medida regras metodológicas
para o exame de teorias cientı́ficas poderiam ser estendidas ao conhecimento
tecnológico. Para além de consequências intra-filosóficas ou metodológico-
prescritivas, o grande valor a ser alcançado talvez seja o de incorporar o
conhecimento tecnológico ao âmbito do que a nossa cosmovisão acredita ser
o campo do real, dotado de leis e regularidades, e acessı́vel à compreensão – de
forma que a tecnologia deixe de ser esse enorme território escuro, enclavado
bem no meio de nossa cultura contemporânea.
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1.1 Conhecimento e Ciência
Nos primórdios da civilização ocidental, a busca de uma ordem racional no
mundo que pudesse orientar a conduta dos homens constituı́a um problema
de ordem prática, em cuja solução se depositavam as esperanças de se estabe-
lecer a razoabilidade nas relações entre as pessoas, e destas com as instituições
polı́ticas da sociedade em construção. Tal busca, formalizada, veio a cons-
tituir a Filosofia, cujas primeiras tarefas estiveram ligadas aos domı́nios de
um mundo empı́rico à primeira vista susceptı́vel de ser narrado em termos de
eventos envolvendo sujeitos e objetos apreensı́veis pela observação – ou seja,
em termos de fatos.
A entidade lógica primitiva constituinte dos fatos é a proposição – uma
afirmativa a respeito de um evento ou de um estado de coisas singular. Assim,
seriam proposições, por exemplo, afirmativas tais como: “o indivı́duo X possui
cinco moedas no bolso”; ou ainda “Juscelino Kubitschek foi presidente do
Brasil de 1956 a 1961”. Dá-se hoje o nome de lógica aristotélica (ou lógica
proposicional) ao sistema formal desenvolvido por Aristóteles (Aristoteles 323
A.C.) que estabelece regras de raciocı́nio capazes de fundamentar a extração
de conclusões a partir de conjuntos de proposições (Grayling 1996).
No contexto das situações de aplicação prática da lógica proposicional,
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CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 18
sava à geração de certezas pela via da justificação de uma crença, que assim
supostamente se ligaria de maneira definiva a uma verdade.
A ciência deve, assim, lidar com crenças em uma modalidade cética –
que lhes atribua uma falibilidade essencial, potencialmente detectável a cada
exame de novos dados. As crenças em ciência devem ser, portanto, provisó-
rias. A justificação, por sua vez, deve perder sua pretensão de mecanismo
certificador, passando a se estruturar como um processo de construção da
aceitabilidade racional de um enunciado. Por fim, como discutido anterior-
mente, também a noção de verdade não se encontra disponı́vel para ser direta-
mente examinada no contexto da Filosofia da Ciência, e é preciso substituı́-la,
na formulação do critério de aceitação de uma teoria, por algum outro crité-
rio que seja verificável e que seja capaz de cumprir a mesma função de impor
ao conhecimento cientı́fico a adesão a uma base relacional fixa, com a qual
seja possı́vel estabelecer um número arbitrário de comparações, atualizando a
qualquer momento e possivelmente contradizendo uma justificação anterior.
É preciso ainda, fundamentalmente, que esse critério possua pelo menos forte
relação com o conceito orientador de verdade2 .
Esta dificuldade não foi examinada, de maneira explı́cita, por Popper
(Popper 1934). Por um lado, ele se concentrou na questão da justificação
de teorias (no sentido relaxado aqui definido). Seu falsificacionismo diz res-
peito à agregação de observações empı́ricas as quais, estando de acordo com
a teoria cientı́fica, produzem sua corroboração – ou sua justificação. Entre-
tanto, esse falsificacionismo ainda diz respeito à agregação sucessiva de novas
observações, que vão se acumulando com o tempo, possivelmente corrobo-
rando, de maneira repetida, a mesma teoria. Trata-se de um processo mais
complexo do que o de uma hipotética justificação da definição convencional
de conhecimento: trata-se de um escrutı́nio retomado diversas vezes, com
bases empı́ricas sempre diferentes. A âncora estável em que se apoiaria o
conhecimento cientı́fico, neste caso, seria tanto a sequência de corroborações
a que a teoria tenha sido efetivamente submetida quanto o fato (idealizado)
de que tal sequência poderia ser potencialmente infinita.
Thomas Kuhn (Kuhn 1962) introduz a noção de paradigma cientı́fico
como estrutura que substitui a noção de verdade na ancoragem do conhe-
2
Note-se que optamos aqui, nos casos das e da , por relaxar a defi-
nição convencional. Já no caso da , mantivemos intacto o significado do termo –
que designa um conceito fundador insubstituı́vel – apontando porém a necessidade de se
definir um outro conceito auxiliar, referenciado na verdade, mas não idêntico a esta, para
fundamentar a construção do conhecimento cientı́fico.
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 22
Tal problema é tratado por Bunge de maneira normativa: ele apresenta vinte
critérios (denominados desideratos da teoria cientı́fica), agrupados em requi-
sitos de ordem sintática, semântica, epistemológica, metodológica e filosófica.
Esse conjunto de requisitos é apresentado como uma expressão de sintomas
de verdade: na ausência de um critério possı́vel para estabeler a simples ver-
dade das teorias cientı́ficas, ele passa a constituir o fundamento para que
se possa enquadrar a ciência como conhecimento. Notamos que esse con-
junto de desideratos constitui, no âmbito da praxis da ciência contemporâ-
nea, uma métrica relativamente satisfatória para comparar diferentes teorias
candidatas a servirem de fundamento para determinado campo da ciência.
No entanto, a formulação de Bunge não chega a estabelecer um fundamento
lógico para a designação do estatuto de verdade a uma teoria. Enquanto
o falsificacionismo de Popper tinha implı́cita uma sucessão de processos de
corroboração conduzindo tendencialmente a uma presumida verdade, a dinâ-
mica das revoluções cientı́ficas de Kuhn, ao instanciar tal sucessão na história
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 24
Uma tentativa de sı́ntese dessas duas posições poderia conduzir a uma formu-
lação idealizada de verdade do tipo tendencial, conforme aponta Habermas
(1999, p. 46):
5
Esse trabalho foi desenvolvido por Habermas fora do contexto da Filosofia da Ciência.
6
Para transpor a discussão de Habermas para o contexto da Filosofia da Ciência, con-
vém interpretar sua em um sentido relaxado, similar ao da justificação de
teorias cientı́ficas, conforme discutido anteriormente neste capı́tulo. De toda forma, o
texto de Habermas deixa clara a conotação falibilista de sua noção de justificação.
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 26
“Por certo, há para nós, enquanto nos movemos no nı́vel do dis-
curso, uma conexão epistemológica incontornável de verdade e
justificação. Mas [...] não resulta dessa circunstância nenhuma
conexão conceitual entre verdade e assertibilidade racional em
condições ideais. Caso contrário, não poderı́amos compreender a
verdade como uma “propriedade inalienável” de enunciados. Até
mesmo os argumentos que nos convencem aqui e agora da verdade
de podem se revelar falsos em outra situação epistêmica. Ra-
zões pragmaticamente “irresistı́veis” não são razões obrigatórias
no sentido lógico de validade definitiva. O emprego acautelador
do predicado de verdade – por mais que seja bem justificado,
ele pode ainda se revelar falso – pode ser compreendido como a
expressão gramatical de uma falibilidade que experimentamos em
nós mesmos no curso de muitas argumentações e que observamos
nos outros na retrospectiva histórica sobre cursos de argumenta-
ções passadas.”
que são suficientes para isso, perdem a força que caracteriza uma
idéia reguladora e lhe permite orientar o comportamento, porque
elas não podem ser cumpridas nem mesmo de maneira aproxima-
tiva por sujeitos capazes de falar e agir, tal como os conhecemos.”
Essa máquina não visita o mesmo estado duas vezes. Isso quer dizer que
se, num dado momento, todos os itens que compõem esta definição do
conhecimento especializado são instanciados de determinada maneira e
num momento seguinte são instanciados de outra maneira, é impossı́vel
haver um retorno posterior ao primeiro conjunto de instanciações.
os quais grandes consensos sejam destruı́dos por tais causas, dos mecanismos
que levam ao abandono de paradigmas pela simples emergência de outros (em
um processo semelhante ao “modismo”). Dessa forma, o simples abandono de
um paradigma sem que o mesmo tenha sido fundamentalmente questionado
não constituiria um evento de resolução, e as duas situações de término de
um paradigma seriam distinguı́veis, de acordo com nossa conjectura.
Essas conjecturas, em conjunto, representam um passo adiante na pre-
missa realista aqui adotada: além da possibilidade de se adquirir informa-
ção a respeito de campos de fenômenos naturais, agora se afirma também
a possibilidade de se adquirir informação a respeito da estrutura da própria
informação adquirida. Em nossa opinião, esse passo não representa a ado-
ção de premissas consideravelmente mais “fortes” (ou restritivas) que aquelas
anteriormente admitidas.
Retomando agora o problema do déficit do conhecimento em relação à
realidade, pode-se constatar que a admissão das duas conjecturas acima tem
como consequência que todo evento de resolução deve causar uma redução
do déficit do conhecimento em relação à realidade. O tamanho do conjunto
terminal associado a essas resoluções, conforme já discutido, não pode ser
determinado, sob pena de permitir a quantificação do déficit. Neste ponto,
uma consequência dessa formulação deve ser apontada: a parcela intrı́nseca
da indeterminação do tamanho do conjunto terminal decorre essencialmente
da necessidade lógica de se reservar ao futuro a possibilidade da invenção de
estruturas teóricas completamente novas que venham a abarcar os campos
do conhecimento hoje estruturados de acordo com as teorias atuais. O reco-
nhecimento disso permite estabelecer uma distinção entre diferentes formas
de não se atingir a verdade:
1. É possı́vel não se ter informação alguma sobre determinado campos
de fenômenos. Isso equivaleria a não se possuir sequer uma coletânea
de dados que fossem reconhecidamente pertencentes a um campo de
fenômenos com determinada identidade (se houvesse tal coletânea, isso
já seria alguma informação). Sob o ponto de vista da máquina de
estados, haveria informação zero.
2. É possı́vel, dado que se possua informação empiricamente coletada so-
bre determinado conjunto de fenômenos, que não haja qualquer siste-
matização dessa informação. Tal informação, organizada à semelhança
de um grande catálogo, não seria capaz de produzir generalizações.
Nesse caso, na formulação da máquina de estados, não teriam ainda
CAPÍTULO 1: ENTROPIA E INDETERMINAÇÃO 35
3. É possı́vel ainda que haja pelo menos uma teoria capaz de explicar
parte dos dados disponı́veis, havendo discrepância em relação a outra
parcela dos dados (nessa mesma situação, agrupamos a situação em
que existam várias teorias competindo entre si, cada uma explicando
parte dos dados e considerando anômalos outros dados). Neste caso, se
constata um déficit observável do conhecimento em relação à realidade.
É possı́vel que a máquina de estados desse conhecimento especializado
já tenha atingido um conjunto terminal, que demanda ainda ulteriores
reduções.
17
Ou, no âmbito da ciência, a atividade de formulação de novas teorias.
2.1 Escolha em Teorias Cientı́ficas
No capı́tulo intitulado Racionalidade e Escolha de Teorias de seu último
livro, O Caminho Desde a Estrutura, Thomas Kuhn problematiza a questão
da racionalidade no processo de evolução temporal da ciência (Kuhn 2000,
p. 256):
41
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 42
“melhor alternativa” não necessariamente é única, uma vez que podem exis-
tir teorias empiricamente equivalentes que partam de hipóteses metafı́sicas
distintas. Além disso, mesmo que tal“melhor alternativa”tenha sido adotada,
não será possı́vel reconhecer de maneira inequı́voca esse fato3 . A escolha de
uma forma teórica, que necessariamente se coloca como questão, é feita sobre
o subconjunto que contém as alternativas conhecidas pelos cientistas naquele
momento de tomada de decisão, mas possivelmente não contém uma “melhor
alternativa” dentre elas. É possı́vel que a escolha deva ser feita sobre um sub-
subconjunto de opções que, quando confrontadas duas a duas, apresentem
sempre uma caracterı́stica em que uma seja melhor, e uma caracterı́stica em
que a outra seja melhor. Fazendo uso da terminologia introduzida no capı́tulo
anterior, o conjunto das escolhas efetivamente existentes, num sentido global,
de formulações teóricas para um determinado campo de conhecimento deve
estar incluı́do em um conjunto terminal desse campo. Em cada momento,
mesmo que não se tenha ainda atingido esse conjunto terminal, é possı́vel
que se apresentem escolhas, considerando apenas as alternativas disponı́veis.
Apontamos aqui que não se colocam de fato escolhas quando:
Duas formas teóricas se ajustam igualmente aos dados disponı́veis, e
uma delas apresenta vantagens sobre a outra, tais como a “profundi-
dade”, ou a “compatibilidade com teorias conexas”, enquanto a outra
não evidencia nenhuma vantagem dessa ordem4 ;
Uma forma teórica se adequa a apenas um subconjunto dos dados que
são ajustados por outra forma, estando em desconformidade com os
demais dados, sendo que a primeira também não possui vantagens de
outra ordem, tais como a “profundidade”, ou a “compatibilidade com
teorias conexas”;
Uma forma teórica, se comparada com outra, explica melhor todos os
dados disponı́veis, e também apresenta outras vantagens tais como a
“profundidade”, ou a “compatibilidade com teorias conexas”, não apre-
sentando desvantagem teórica.
Nesses casos, é compulsória a indicação de uma forma em detrimento da
outra, pois tal opção é vantajosa sob pelo menos um critério, não sendo
3
Ver discussão a esse respeito no capı́tulo anterior.
4
O leitor deve ficar atento para o fato de que seria possı́vel uma primeira teoria possuir
algumas vantagens sobre a segunda ao mesmo tempo em que esta tivesse outras vantagens
sobre a primeira. Essa situação será analisada mais à frente.
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 44
Escolhas entre uma forma teórica que se ajuste melhor aos dados até
certo momento disponı́veis e outra forma teórica que seja dotada de
outros atributos desejáveis (por exemplo, maior “nı́vel de parcimônia”,
ou maior “compatibilidade com outras teorias conexas”);7
Escolhas entre formas teóricas tais que uma seja dotada de alguns atri-
butos desejáveis (por exemplo, maior “nı́vel de parcimônia”), e a outra
seja dotada de outros atributos também desejáveis (por exemplo, “maior
“compatibilidade com outras teorias conexas”);
6
A capacidade preditiva da mecânica quântica para as pequenas escalas versus a capa-
cidade da mecânica relativı́stica para as grandes escalas exemplifica essa situação.
7
Como exemplo dessa situação pode ser mencionada a transição da astronomia de
Ptolomeu (inicialmente, e por muito tempo, mais precisa) para o sistema de Coopérnico.
A escolha da segunda alternativa possivelmente ocorreu em um contexto em que ficava
aparente a maior fertilidade desta (Kuhn 1962).
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 46
12. Fertilidade. A teoria deve ter poder explanatório: deve estar habili-
tada para guiar nova pesquisa e sugerir novas idéias, experimentos e
problemas no mesmo campo ou em campos aliados.
O próprio Bunge deixa claro que não há uma ordenação total entre esses desi-
deratos. Alguns são requisitos dificilmente dispensáveis em qualquer teoria,
tais como aqueles que lhes asseguram um conteúdo empı́rico: a interpre-
tabilidade empı́rica, a escrutabilidade, a refutabilidade, a confirmabilidade.
Outros desideratos podem ter maior ou menor importância no julgamento
de teorias, dependendo do contexto em que isso ocorre. Por exemplo, a cor-
reção sintática é desejável, mas sua exigência pode ser relaxada no caso de
novas teorias, que frequentemente apresentam inconsistências que devem ser
corrigidas através de algum trabalho teórico, sem serem por isso rejeitadas
de antemão. Outro exemplo, que revela uma possı́vel ambivalência desses
desideratos: a compatibilidade de cosmovisão, se por um lado normalmente
CAPÍTULO 2: ESCOLHA E CONSTRIÇÃO 49
Pode-se ainda decidir por manter mais de uma formulação em uso13 , até
que novas evidências estejam disponı́veis para subsidiar uma decisão.
Para exemplificar esse ponto, o seguinte evento pode ser evocado (Kuhn 1962,
p. 112):
cimento tenha atingido uma estabilidade que o situa pelo menos no nı́vel
da “confirmação”, conforme terminologia introduzida no Capı́tulo 1. Além
disso, essa indicação unı́voca trata-se de um requisito indispensável para um
campo do conhecimento se situar no nı́vel do “referendo”. Complementar-
mente, a presença de escolhas na formulação teórica padrão de um campo
do conhecimento indica que se este não se encontrar no nı́vel da elaboração,
deve se encontrar no máximo no nı́vel da confirmação. O uso social do conhe-
cimento cientı́fico frequentemente pressupõe a consolidação da base teórica
empregada, de tal modo a referendar as conclusões especı́ficas em questão.
A presença de escolhas na base teórica, nesse caso, serve de um indicador da
necessidade de maior cautela na aceitação de quaisquer conclusões advindas
dessa base.
Tanto no interior da ciência quanto na interface desta com a sociedade, é
realista admitir que a presença de incerteza não necessariamente tenha como
consequência a impossibilidade de formulação de juı́zos ou condutas racio-
nais. Reconhecer a eventual necessidade de fazer escolhas é uma ponte mais
segura, no trajeto para um possı́vel futuro estado de maior disponibilidade
de informação no qual a arbitrariedade das escolhas seja dispensável, do que
a crença numa imagem idealizada da ciência que afirmasse que estas jamais
seriam feitas17 ou jamais deveriam ser feitas18 .
17
Essa crença corresponde ao postulado de que sempre que houver uma disputa entre dois
sistemas teóricos distintos, necessariamente estará disponı́vel uma justificativa epistêmica
para descartar um dos dois.
18
Essa crença equivale a uma prescrição para rejeitar todas as possibilidades de sistemas
teóricos disponı́veis quando não houver justificativas epistêmicas para considerar um deles
mais adequado que os demais.
61
O lugar da técnica no quadro do conhecimento tido como “filosoficamente
relevante” é um tema que parece se originar (pelo menos dentro da tradição
ocidental) na própria constituição do “mundo grego”, ligado à própria questão
que a construção desse mundo procurava responder. Além de sua origem
semântica, é possı́vel identificar um ponto focal de toda a carga simbólica
que referencia a atitude do homem contemporâneo em relação à técnica no
conceito grego de techné.
De maneira central no programa grego, ultrapassando as racionalidades
instrumentais presentes em todas as sociedades de antes e de depois, buscava-
se o fio de uma universalidade capaz de inaugurar um projeto antropocêntrico
de civilização que desse suporte à noção da alteridade como requisito funda-
cional de tal projeto. Assim, o mundo grego, para além de instituir leis para
reger sua sociedade, procurou as leis imanentes à natureza e ao espı́rito, a
verdade acima do sujeito, para a partir destas reger sua própria sociedade.
Aglomerados humanos progressivamente maiores poderiam se formar, com
fundamento no acesso de cada indivı́duo, por meio da racionalidade, à pres-
crição da própria conduta, e aos espaços de mediação de interesses. Tal
projeto civilizatório era um construto que fundamentava-se, acima de tudo,
na criação, pelo homem, de um homem até então inexistente, não encontrá-
vel em estado natural, e também não genericamente associado às formas de
agregado humano que precederam a civilização grega.
No mundo em que se ergueu o projeto da civilização grega, a noção de
techné designava a ordem dos conhecimentos de cunho prático, que eram
caracterı́sticos de cada povo, em sua singularidade, mas comuns a todos os
povos, na medida em que representavam requisitos para a viabilidade de sua
62
CAPÍTULO 3: CIÊNCIA E TECHNÉ 63
Como Bacon já divisava, a reflexão sobre o mundo não podia prescindir
do contato com esse mundo. Tal contato, por seu turno, devolvia ao mundo
o resultado do escrutı́nio intelectual a respeito da sua estrutura perene. Essa
tarefa da busca desinteressada do universal por um lado imaginadamente
se autonomizou, procurando se apartar das contingências da ordem do ime-
diato, como requisito indispensável para sua consecução. Por outro lado,
denotando a eficácia do próprio programa de construção de uma civilização
antropocêntrica que a postulou, o conhecimento resultante dessa busca re-
sultou em profundos impactos sobre o mundo, tanto no que diz respeito à
cosmovisão quanto naquilo que pode ser considerado aspiração humana ra-
cional, ou ainda nas disponibilidades materiais que contornam o homem. A
partir do Renascimento, ficava claro que já não se tratava do mesmo homem
da antiguidade, agora dotado de “sabedoria”, mas de um homem-efeito, a
demonstrar a validade daquele postulado primitivo da eficácia da busca do
universal. O mundo agora possuı́a mais classes de objetos, mais entidades,
incluindo um outro homem, e o escopo da busca da “verdade” cada vez menos
teria a possibilidade de permanecer consensual.
A contradição intrı́nseca ao programa grego que postulava uma atitude
desinteressada, da busca pela busca, dentro do âmbito de um programa de
transformação de uma civilização, proseguiu ecoando. As conseqüências da
mudança de perspectiva da ciência tiveram um impacto que seria insuspeito
no século XVI, mas que se tornou inevitável já no século XVIII (Dear 2005):
CAPÍTULO 3: CIÊNCIA E TECHNÉ 66
“Eu desejaria que esta frase, ‘ciência aplicada’, jamais tivesse sido
inventada. Pois ela sugere que existe um tipo de conhecimento
cientı́fico de uso prático direto, que pode ser estudado separada-
mente de outro tipo de conhecimento cientı́fico, que não possui
CAPÍTULO 3: CIÊNCIA E TECHNÉ 67
71
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 72
4.1 Antecedentes
É importante mencionar que a necessidade da adoção de uma distinção seme-
lhante àquela aqui proposta possui alguns antecedentes recentes. Entretanto,
3
Fı́sica, Quı́mica e alguns ramos da Biologia.
4
Conforme discutido no capı́tulo 2.
5
Ainda que, em última instância, tal conhecimento gerado venha a ser utilizado para
interagir com a realidade.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 74
não parece ter havido ainda nem um estudo sistemático do tema nem a in-
dicação precisa de uma distinção tal como aquela proposta neste ensaio – o
atual estado do debate no âmbito da Filosofia da Ciência / da Tecnologia
parece se encontrar, antes, no estágio inicial da tomada de consciência do
problema.
Vincenti (2001), por exemplo, propõe uma descrição do campo da tecno-
logia que apresenta similaridades com nossa proposta. Em seu trabalho, o
autor parte da observação de sua própria experiência de pesquisa como enge-
nheiro, ocorrida junto a um grupo que atuava na “ponta” do conhecimento,
desenvolvendo a tecnologia que veio a permitir a construção dos primeiros
aviões supersônicos. Ele vislumbra o reconhecimento, naquele contexto, de
duas novas entidades, o “engenheiro de pesquisa” e a “ciência da engenharia”
(Vincenti 2001):
Assim, pode até mesmo ser útil, como metáfora, comparar o “conhecimento”
disponı́vel para uso por seres biológicos ou por consumidores com o conhe-
cimento cientı́fico, e é possı́vel que alguns insights interessantes possam ser
sugeridos por tal analogia. Parece entretanto tautologicamente destituı́do
de sentido um questionamento quanto a serem tais tipos de conhecimento
idênticos ao conhecimento cientı́fico, sob o ponto de vista de sua estrutura
epistemológica.
O ponto principal aqui levantado é: pareceria metodologicamente incor-
reto propor como delimitação de áreas do conhecimento itens como: (i) a
Biologia Evolutiva mais o conhecimento evolutivamente útil para os seres
9
Conjecturamos que a motivação para a existência de um esforço continuado investido
em estudos com tal recorte tenha raı́zes na histórica tensão entre “filosofia natural” e
“techné”, conforme foi narrado de maneira sucinta no capı́tulo anterior.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 79
A magneto-resistência gigante
A descoberta da magneto-resistência gigante (GMR) e seu uso para o
desenvolvimento de uma tecnologia de leitura de discos rı́gidos estão ligados
ao nome do fı́sico alemão Peter Grünberg. Ele ganhou, em 2007, o Prêmio
Nobel de Fı́sica pela descoberta desse efeito, juntamente com o fı́sico francês
Albert Fert. Na palestra proferida por ocasião do recebimento do prêmio12 ,
Grünberg relata sua trajetória: ele obteve o doutorado em Fı́sica em 1969,
fazendo a seguir um estágio de pós-doutorado entre 1969 e 1972. A partir
de 1972, se integrou ao Instituto de Magnetismo do Centro de Pesquisas
12
Os slides da palestra e um vı́deo de sua apresentação estão disponı́veis no sı́tio do
Prêmio Nobel na internet (Grunberg 2007).
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 83
Já se notam aı́ algumas caracterı́sticas que, de fato, são compartilhadas por
muito do que seria o trabalho no âmbito da tecnologia:
Em sı́ntese, eles desenvolvem uma teoria capaz de indicar quais são os limites
de desempenho que qualquer controlador pode atingir, dadas as suas especi-
ficações de projeto. Assim, eles revelam algo que pode ser interpretado como
leis naturais, que devem ser obedecidas por todos os possı́veis controladores.
A importância disso é discutida no trecho (Boyd & Barratt 1991, p. 12):
Esses enunciados têm o estatuto de leis universais, e podem ser úteis tanto
para permitir desenvolvimentos teóricos ulteriores (por exemplo relacionados
com a estrutura dos controladores cuja existência a lei permite, relacionando
essa estrutura com o seu “grau de desempenho”) quanto em situações práticas
de projeto, para responder a questões da ordem de se o projeto especificado
é factı́vel, ou o quão “bom” é um controlador resultante de um procedimento
de projeto.
Por fim, examinemos como esse trabalho se situa na “rede de citações”.
Para esse exame, empregaremos as referências de e para o artigo (Boyd
et al. 1988), no qual os resultados aqui discutidos foram primeiramente apre-
sentados. Utilizando a base bibliográfica do ISI16 , verifica-se que ele foi citado
por 81 outros artigos também no âmbito do ISI. Desses, apenas 10 diziam
de alguma maneira respeito a alguma aplicação especı́fica. Os demais diziam
também respeito a trabalhos teóricos, no âmbito da Teoria de Controle Au-
tomático. Por outro lado, das 39 citações feitas pelo artigo, cinco se referem
a textos do campo da Ciência da Computação, uma é um texto da Teoria da
Otimização, e todas as demais se originam do campo da Teoria de Controle
16
O acesso a essa base foi feito no dia 03/07/2008.
CAPÍTULO 4: CONHECIMENTO TEC. DO TIPO CIENTÍFICO 94
95
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 96
5
Devemos notar que Hoffmann possivelmente não concordaria com essa nossa interpre-
tação.
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 109
que constitua a sı́ntese em questão seja tão longa e complexa, contando com
número tão grande de determinações, que surja uma dificuldade de ordem
prática para atribuir eventuais falhas do processo de sı́ntese aos primeiros
elos da cadeia, situados nas “teorias básicas” que dão sustentação ao pro-
cesso. Equivalentemente, poderia ocorrer que alguns elos da cadeia fossem
pouco compreendidos teoricamente, envolvendo o uso de conhecimento a res-
peito de operações cuja eficácia fosse constatada empiricamente, mas para as
quais não houvesse uma formalização teórica disponı́vel capaz de descrever
os mecanismos envolvidos6 Em ambos os casos, instala-se a impossibilidade
de percorrer a cadeia causal em sentido inverso, conectando um eventual in-
sucesso de um processo de sı́ntese à falsificação de uma premissa situada no
inı́cio da cadeia.
Esse argumento se conecta à questão dos “nı́veis ônticos”, que foi abor-
dada na seção anterior. Retomando aquele exemplo da Inteligência Compu-
tacional: caso um programa que devesse fazer a classificação de objetos, por
exemplo, venha a falhar, a causa dessa falha será procurada nas entidades
previstas pela própria Inteligência Computacional, ou no máximo no nı́vel an-
terior, onde se situam métodos numéricos de natureza genérica. Certamente
não ocorrerá uma busca de causas profundas da falha que venha a conside-
rar a possibilidade de problemas na teoria eletromagnética que estivessem na
raiz de comportamentos anômalos em correntes e tensões no processador do
computador, que pudessem causar o mal funcionamento do programa.
Observe-se que este argumento, ligado à complexidade da cadeia de deter-
minações envolvida na sı́ntese, pode ser tornado independente do anterior, re-
lacionado à estabilidade das teorias “básicas” subjacentes, da seguinte forma:
No caso dos computadores atuais, cujo funcionamento interno se baseia na
teoria eletromagnética clássica e em interações relativamente bem conhecidas
dos campos eletromagnéticos com materiais semicondutores, se acoplaria a
este argumento aquele anterior, segundo o qual essencialmente não haveria
racionalidade em se colocar em questão a teoria cientı́fica “de base”. Ima-
ginando um cenário distinto, em que os mesmos programas fossem testados
em um “computador quântico” experimental, cujo comportamento também
fosse relativamente desconhecido, o argumento ainda se manteria de pé: seria
irracional examinar uma cadeia de determinações que se estendesse do fun-
cionamento de cada dispositivo até chegar ao comportamento de programas
6
No caso especı́fico do artigo (Komatsu et al. 2005), conforme narrado por Hoffmann
(2007), tal situação se verifica no que se refere aos procedimentos de sı́ntese.
CAPÍTULO 5: ONTOLOGIA DA TECNOLOGIA 111
que sirva para levantar objeção (em certo sentido, “refutação”) a alguma hi-
pótese teórica que preveja a impossibilidade dessa sı́ntese. Em menor escala
de importância epistemológica, ela ainda pode servir como uma confirmação
adicional (corroboração) para uma teoria que ainda não esteja firmemente
aceita. A análise do problema puro de sı́ntese, cuja definição foi aqui pro-
posta a partir de uma releitura de (Hoffmann 2007), permite concentrar o
foco na estrutura epistemológica do problema quando nenhum desses inte-
resses epistemológicos derivados das ciências básicas conexas pode existir.
Os “problemas de sı́ntese” essencialmente coincidem com os “problemas
de projeto de artefatos”, na medida em que o resultado de ambos é um roteiro
para a obtenção do objeto artificial. Dessa forma, os “problemas puros de
sı́ntese” constituem um subconjunto da classe dos problemas de projeto de
artefatos. Possivelmente, dentro do domı́nio do conhecimento tecnológico
atual, devem existir muito mais problemas puros de sı́ntese do que problemas
com conseqüências epistemológicas derivadas para as ciências básicas.
Colocam-se as perguntas:
115
CAPÍTULO 6: ESTRUTURA DAS TEORIAS 116
Uma lista muito mais extensa de requisitos de projeto deve ser acres-
centada, até que tenham sido definidos todos os parâmetros necessários
para possibilitar a efetiva construção da antena para aquela aplicação
especı́fica. Essa lista deve incluir aspectos como: comprimento e lar-
gura máximos admissı́veis, requisitos de resistência mecânica, etc.
Menor custo de fabricação (esse critério seria uma função dos materiais
utilizados e dos processos de fabricação especificados).
Um roteiro de sı́ntese contém a especificação de uma seqüência de passos
de cálculo que conduz ao detalhamento de um artefato que satisfaz ao pro-
blema de sı́ntese. Usualmente, podem existir diferentes roteiros de sı́ntese
conduzindo a diferentes artefatos, todos eles satisfazendo às especificações
contidas no problema de sı́ntese.
Várias instâncias de problemas de sı́ntese parecidos entre si são usual-
mente possı́veis. No caso do projeto de antenas, seria possı́vel haver con-
juntos de especificações diferentes (definindo, portanto, problemas de sı́ntese
diferentes) para antenas cuja função fosse essencialmente a mesma. No caso
mencionado das antenas para telefonia celular, por exemplo, seria possı́vel
que sistemas diferentes fossem concebidos, nos quais tanto as antenas tives-
sem requisitos de funcionamento diferentes quanto por exemplo os equipa-
mentos eletrônicos de recepção/transmissão também fossem diferentes, assim
compensando mutuamente as diferenças, de tal forma que o sistema como
um todo tivesse comportamento similar no que diz respeito ao atendimento
dos requisitos de funcionamento do conjunto. Além disso, dispositivos cujas
funções fossem diferentes poderiam ter similaridade tal entre si que o conhe-
cimento empregado para sistematizar o projeto de um pudesse ser em grande
parte aproveitado para o projeto do outro – levando a uma maior generalidade
desse conhecimento. Assim, as antenas para telefonia celular constituem ca-
sos particulares de um conjunto maior de antenas de comunicação das quais
se requer uma banda de funcionamento “larga” e a possibilidade de se con-
trolar a sua área de cobertura. O exame da prática tecnológica, conforme
essa ocorreu, revela que foi primeiro desenvolvido um conhecimento geral a
respeito do projeto de antenas com tais caracterı́sticas, sendo esse conheci-
mento então instanciado para se tornar particularmente aplicável ao projeto
de antenas para telefonia celular (essa aplicação, na verdade, é relativamente
recente).
Assim, às classes de entidades anteriormente mencionadas, presentes nos
campos do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico, deve-se acrescentar
mais uma:
As famı́lias de problemas de sı́ntese. Estas entidades aglomeram pro-
blemas que são inter-relacionados.
Tais entidades, ao escaparem da particularidade de cada caso de projeto,
definindo temas gerais a serem tomados como foco de “atividade tecnoló-
CAPÍTULO 6: ESTRUTURA DAS TEORIAS 119
trabalho de Vukosavic, Jones, Levi & Varga (2005), onde é estudado o pro-
jeto de um controlador feito especificamente para controlar um determinado
motor elétrico. É preciso ainda notar que há situações intermediárias, como
pode ser ilustrado pelo trabalho de Venkataramanan et al. (2003) já discutido
no capı́tulo anterior. Esse artigo descreve uma metodologia que é especı́fica
para o projeto de controladores para discos rı́gidos de computador mas, em-
bora haja tal especificidade, ainda se mantém uma certa generalidade, uma
vez que o referente não é um tipo especı́fico de disco rı́gido de computador,
sedo possı́vel a aplicação da metodologia a discos rı́gidos de tipos diferentes.
124
A formulação, proposta neste ensaio, de que o conhecimento tecnológico te-
nha como núcleo estruturante uma entidade que denominamos conhecimento
tecnológico do tipo cientı́fico já surge envolta, de antemão, em intensa con-
trovérsia. Isso decorre de uma já estabelecida tradição analı́tica que veio
elaborando, por mais de meio século, uma concepção segundo a qual o co-
nhecimento tecnológico não poderia ter algumas das propriedades que aqui
atribuı́mos a essa entidade proposta. Para aquela tradição, por exemplo, o
conhecimento tecnológico não poderia possuir um mecanismo regulador se-
melhante ao da ciência, segundo o qual uma teoria fosse sendo aperfeiçoada
com base em experimentos, utilizando a informação proveniente de eventuais
desajustes observados entre os dados experimentais e a predição teórica como
indicador da necessidade de reformulação da teoria, com sua substituição por
outra teoria mais acurada. Esse mecanismo de deteção de desvios entre teo-
ria e dados empı́ricos é denominado de refutação da teoria – e constitui um
dos principais mecanismos lógicos associados ao aperfeiçoamento das teorias
cientı́ficas. De acordo com as correntes de pensamento abrigadas sob tal tra-
dição, por diversos motivos o conhecimento tecnológico não seria susceptı́vel
de sofrer refutação, não podendo portanto exibir esse mecanismo regulador
caracterı́stico das ciências.
Este capı́tulo se dedica ao exame dessa questão da pretensa irrefutabi-
lidade do conhecimento tecnológico. Após a apresentação geral das idéias
envolvidas na controvérsia, são apresentados estudos de caso que visam mos-
trar que: (i) o mecanismo de corroboração / refutação cumpre, nas teorias
tecnológicas, um papel similar àquele desempenhado nas teorias cientı́ficas; e
(ii) a dinâmica do acúmulo de observações de desajustes teóricos observados
125
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 126
“De fato, só pelas tentativas de refutação pode a ciência ter es-
perança no progresso. Só pelo exame de como suas várias teorias
respondem à experimentação podemos distinguir entre as teorias
melhores e as menos boas, e encontrar um critério de progresso
cientı́fico.
Portanto, um simples instrumento de previsão não pode ser refu-
tado. [...] Se as teorias são apenas instrumentos para previsão,
não precisamos rejeitar nenhuma teoria em particular, mesmo
quando deixamos de acreditar na consistência da interpretação
fı́sica do seu enunciado formal.
Em suma, podemos afirmar que o instrumentalismo não pode ex-
plicar a importância que representa para a ciência pura a experi-
mentação rigorosa mesmo das implicações mais remotas das suas
teorias; não tem condições de justificar o interesse que o cientista
puro tem pela veracidade e falsidade das teorias. Contrastando
com a atitude altamente crı́tica do cientista puro, a posição do
instrumentalismo (como a da ciência aplicada) é complacente no
que concerne o êxito das suas aplicações.”
Essa afirmativa pode ser imediatamente refutada pelo exame de qualquer dos
trabalhos já citados neste ensaio, até este momento, no âmbito da engenharia.
Essa constatação, claro, não refuta uma outra afirmativa mais moderada, com
a seguinte forma:
Esse argumento de Bunge, até certo ponto, coincide com este de Poser (1998):
biológicos, e das funções que emergem da interação desses corpos com o meio
fı́sico. Como seria razoável esperar, o exame da literatura da área revela o
uso da Mecânica Clássica em lugar da Mecânica Relativı́stica (McElroy, Hic-
key & Reilly 2008), o uso da Fluidodinâmica Clássica, em lugar da Mecânica
Estatı́stica (Cox 2008, Hedenstrom & Spedding 2008), e assim por diante.
A localização da Biomecânica no campo das ciências puras parece inequı́-
voca, de maneira que não parece haver suporte para a hipótese de que estejam
intrinsicamente associadas as teorias do campo cientı́fico com as teorias cuja
descrição da realidade seja a mais exata disponı́vel – havendo antes uma
analogia entre a situação verificada na Tecnologia e a situação observada,
por exemplo, na Biologia, no que se refere à relação dessas áreas com a
Mecânica. Se Bunge concede que a Tecnologia não deveria mesmo procurar
experimentos capazes de colocar à prova a Teoria da Relatividade, dado
seu “interesse prático”, em contraste com a “busca da verdade” que seria
caracterı́stica das ciências, vem então a pergunta: o campo da Biomecânica
deveria propor tais experimentos? Ou esse fato seria um indı́cio de que a
Biomecânica não teria compromisso com uma “busca da verdade”, não sendo
portanto uma “ciência”?
Um exame um pouco mais abrangente levaria à constatação de que a
Biomecânica não seria exceção, e de que diversos campos reconhecidos como
pertencentes à ciência pura tenderiam a usar as versões simples das teorias
fı́sicas que fossem suficientes para descrever adequadamente os fenômenos
em seu âmbito de atuação. Isso ocorre não obstante esses campos da ciência
desenvolverem o escrutı́nio sistemático das teorias que os caracterizam, em
processos que necessariamente envolvem, em alguma medida, o mecanismo
de corroboração/refutação das proposições contidas nessas teorias – mas não
(ou não necessariamente) a corroboração/refutação das proposições contidas
na Fı́sica, ou em outras teorias adjacentes a esses campos.
Chamamos a atenção para similaridade do argumento de Bunge contido
nesta “segunda razão” com a tese da “redução epistemológica” das ciências7 :
o seu sentido poderia ser interpretado como a enunciação de uma versão
pragmática da irredutibilidade da tecnologia às ciências, supostamente fun-
dada em seu não-interesse pela verdade. Assim, enquanto a tecnologia seria
supostamente irredutı́vel (por não buscar a verdade), todas as teorias que
seriam “cientı́ficas” seriam redutı́veis (por buscarem a verdade) sendo, por-
tanto, potencialmente capazes de colocar em questão qualquer proposição de
7
Ver capı́tulo 4.
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 139
“Nós vemos que não há uma única rota da prática para o co-
nhecimento, do sucesso para a verdade: o sucesso não autoriza a
inferência de uma lei a partir de uma regra mas coloca o problema
de explicar a aparente eficiência da regra. Em outras palavras,
as rotas do sucesso para a verdade são infinitamente muitas e
consequentemente teoricamente inúteis ou quase: isto é, nenhum
grupo de de regras efetivas sugere uma teoria verdadeira. Por
outro lado, as rotas da verdade para o sucesso são limitadas em
número, portanto factı́veis. Esta é uma das razões pelas quais o
sucesso prático, seja de um tratamento médico ou de uma medida
governamental, não é um critério de verdade para as hipóteses
subjacentes. Também por isto a tecnologia – em contraste com
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 141
Várias diferentes teorias “falsas” poderiam, cada uma por uma via
“aproximativa” diferente, levar à construção de sistemas que funcio-
nassem;
Para exemplificar esse último ponto, bem como, de forma geral, mostrar
a existência de uma metodologia, rotineiramente empregada, de corrobora-
ção/refutação no âmbito do conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico, apre-
sentamos a seguir um estudo de caso. Nossa hipótese é de que o mecanismo
de corroboração/refutação, em moldes bastante semelhantes ao seu emprego
no âmbito das ciências puras, tem sua aplicação requerida quando se incluem
as entidades famı́lias de problemas de sı́ntese, e quando se incorporam à teo-
ria enunciados dos Tipos 1 a 4 (em adição aos enunciados do Tipo 5 que são
tradicionalmente reconhecidos no campo das tecnologias).
Para dar suporte a essa hipótese, recorremos a um evento ocorrido há pou-
cos anos no âmbito da Teoria de Controle Robusto. Trata-se da descoberta do
fenômeno da fragilidade nos controladores robustos10 . Explicando de maneira
concisa o problema: a teoria de controle robusto, ao ser inventada, tinha o
propósito de permitir o projeto de controladores que permitissem controlar
sistemas mesmo quando estes fossem sujeitos a incertezas de modelo. Por
exemplo, ao executar o controle da altitude, direção e velocidade de uma ae-
ronave (em “piloto automático”), o controlador automático deveria ser capaz
de manter todas as variáveis nos seus valores pré-estabelecidos, mesmo diante
de variações tais como as velocidades do vento variando de forma aleatória,
ou a carga transportada no avião sendo diferente a cada viagem11 .
A teoria de controle robusto foi desenvolvida a partir de frentes de traba-
lho distintas, sendo que um de seus ramos principais tem origem no trabalho
de Zames (1981). Em meados da década dos 1990, quando tal ramo da
teoria já tinha se tornado consensual (ou paradigmático), um trabalho de
Keel & Bhattacharyya (1997) aborda como tema exatamente a apresentação
de exemplos de casos nos quais a teoria estabelecida pretensamente iria fa-
lhar, em um sentido que, à época, causou certa surpresa: a teoria vigente
não levava em consideração possı́veis incertezas de modelo existentes no pró-
10
Um exame mais detalhado desse estudo de caso é apresentado no Apêndice A deste
ensaio.
11
Essa teoria será explicada em maior detalhe no próximo capı́tulo, o qual se dedicará
ao estudo de eventos ocorridos em seu âmbito.
CAPÍTULO 7: IRREFUTABILIDADE 145
151
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 152
do realismo cientı́fico. Não obstante, neste capı́tulo nós mostramos que tal es-
tratégia elaborada por alguns defensores do “realismo cientı́fico” sofre de um
mal-condicionamento lógico irremediável, na medida em que recai em uma
circularidade de argumentação. Ao contrário, nós mostramos que assumir
que uma parcela do conhecimento tecnológico – o conhecimento tecnológico
do tipo cientı́fico – seja orientado pela busca da verdade permite estabelecer
um quadro explicativo coerente para a tecnologia, para a ciência e para a
interação entre ambas, nos marcos do realismo cientı́fico. Ao final deste ca-
pı́tulo, nosso modelo de interação entre o campo da aplicação das tecnologias
ao mundo prático e o campo do conhecimento tecnológico do tipo cientı́-
fico, apresentado no capı́tulo 7, é retomado de forma a explicitamente lidar
com a questão do interesse pela eficácia e da busca da verdade no âmbito da
tecnologia.
- discernir o problema;
- tratar de resolver o problema com ajuda do conhecimento
(teórico ou empı́rico) disponı́vel;
- se a tentativa anterior não for bem sucedida, elaborar hipó-
teses ou técnicas (ou, ainda, sistemas hipotético-dedutivos)
capazes de resolver o problema;
- obter uma solução (exata ou aproximada) do problema com
auxı́lio do novo instrumental conceitual ou material;
- pôr à prova a solução (p. ex. com ensaios de laboratório ou
de campo);
- efetuar as correções necessárias nas hipóteses ou técnicas, ou
mesmo na formulação do problema original.
CAPÍTULO 8: EFICÁCIA VERSUS VERDADE 153
O outro trecho faz uma curiosa concessão, admitindo que no passado a ci-
ência tivesse tido precedência, situação que teria agora se invertido, com a
tecnologia passando a ocupar papel preponderante (Queralto 1998):
seu alcance podem ser colocadas para trabalhar para ele, ao invés
de como as coisas de quaisquer tipos de fato são.”
Uma leitura recente de Bunge por Poser (1998) ajuda a articular esses ele-
mentos:
“Isto torna claro que essas teorias e leis [da engenharia] são in-
crustradas em um contexto absolutamente diferente, normativo e
intencional, na medida em que o engenheiro busca fins práticos.”
166
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 167
regra possui alguma chance de ser efetiva, bem como para me-
lhorar a regra e em algum momento substituı́-la por uma outra
mais efetiva, nós devemos desvendar as leis a ela subjacentes, se
estas existirem. Nós podemos dar um passo adiante e reivindicar
que a aplicação cega de regras práticas nunca foi proveitosa no
longo prazo: a melhor polı́tica é, primeiro, tentar fundamentar
nossas regras, e, segundo, tentar transformar algumas fórmulas
do tipo lei em regras tecnológicas objetivas. O nascimento e de-
senvolvimento da moderna tecnologia é o resultado desses dois
movimentos.”
Como já vimos, essa formulação não é contraditória com as observações dis-
ponı́veis, desde que se estabeleça, por definição, que aquela entidade que
nós denominamos aqui de conhecimento tecnológico do tipo cientı́fico seja
incluı́da no campo da ciência.
Um aspecto mais importante da formulação de Jarvie, no contexto de
nossa discussão aqui, aparece no seguinte trecho (Jarvie 1972, p. 59):
Um outro trecho representativo dessa corrente é, por exemplo (de Vries 2005):
limite entre o que seria a adequada execução de uma tarefa e o que seria um
mal-funcionamento, caracterizado pela execução inadequada da função atri-
buı́da ao artefato. Além disso, haveria ainda a sub-determinação dos meios
para se construı́rem artefatos em relação à função requerida para esses ar-
tefatos. Via de regra, há múltiplas formas de se construı́rem artefatos que
executem a mesma função. As correntes de pensamento ligadas à filosofia da
tecnologia mencionadas neste capı́tulo têm identificado a atividade de “nor-
matização”, entendida como a tomada de todas as decisões capaz de eliminar
tais indeterminações, como uma consagração da arbitrariedade na atividade
tecnológica.
No meio tecnológico, a potencial instabilidade ontológica que poderia re-
sultar dessa indeterminação recebeu, já há muito, um tratamento “norma-
tivo”, com o desenvolvimento das chamadas normas técnicas. Ao contrário
do que seria sugerido por aquelas correntes filosóficas, estas vêm cumprir o
papel oposto de fixar os elementos arbitrários, retirando-os do domı́nio da
escolha arbitrária do projetista. Em contrapartida, a “normatização” define
o campo de liberdade da atividade do projetista em bases materiais, esta-
belecendo os limites arbitrários que complementam os limites relacionados
às leis fı́sicas, a que deve se submeter o projeto. Nesses limites, como vere-
mos, a atividade de projeto pode ser sistematizada na forma de conhecimento
objetivado.
Para exemplificar esse ponto, tome-se o caso do problema de projeto de
motores elétricos para veı́culos de tração elétrica. Trata-se do problema de
projetar motores, seja DC3 ou AC4 , para a tarefa de movimentar veı́culos.
Evidentemente, é possı́vel movimentar objetos utilizando dispositivos cujo
princı́pio de funcionamento seja eletromagnético através de infindáveis for-
mas diferentes. No entanto, alguns dos artefatos que desempenham esse tipo
de função tornaram-se commodities, no sentido de que são comercialmente
disponı́veis de forma ampla, sendo que o comprador pode esperar um com-
portamento padronizado de um dispositivo desses. Os motores AC e DC de
tipo genérico constituem essas “commodities”. A especificação desses dispo-
sitivos é estabelecida em documentos denominados normas técnicas, que se
tratam de uma espécie de “acordo” capaz de garantir a concordância entre
o fabricante do dispositivo, que se compromete a produzir um artefato com
caracterı́sticas bem determinadas, e o usuário desse dispositivo, que sabe o
3
Corrente contı́nua.
4
Corrente alternada.
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 182
“1.1 Escopo
Esta norma se aplica ao maquinário elétrico girante que forma
parte do equipamento de propulsão e dos equipamentos auxiliares
principais em veı́culos de trilho e estrada eletricamente propelidos
com potência gerada internamente ou externamente, e similares
grandes veı́culos de transporte e reboque e os seus trailers onde
estiver especificado no contrato. Equipamentos auxiliares princi-
pais incluem equipamentos tais como motores para sopradores e
compressores, grupos motor-gerador e motor-alternador, gerado-
res auxiliares, e excitatrizes, usualmente maiores que 3 kW.
5
Institute of Electrical and Electronic Engineers.
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 183
1.2 Propósito
O propósito desta norma é o de definir dimensionamentos, tes-
tes, e procedimentos de cálculo para permitir a comparação entre
máquinas para uso similar, e permitir a avaliação da adequação
de máquinas para um determinado uso.”
Especificamente, essas normas mencionadas definem o que seriam as funções
requeridas de um motor elétrico para uso em veı́culos de tração elétrica, em
termos de grandezas fı́sicas passı́veis de serem medidas, estabelecendo ainda
como deveriam ser feitas as respectivas medições. Apenas para exemplificar,
veja-se o trecho abaixo, que faz parte da definição de como devem ser enten-
didos como os “valores nominais de potência” desses motores (IEEE Standard
for Rotating Electric Machinery for Rail and Road Vehicles 2000):
“4. Limites operacionais e testes de subida de temperatura
4.1 Classes de limites operacionais
Esta norma reconhece três classes de limites operacionais: limites
de operação contı́nua, limites de 1 h de operação, e limites de
sobrecarga de curta duração.
4.2 Limites de operação contı́nua e testes de subida de tempera-
tura
4.2.1
O limite de operação contı́nua de uma máquina aplicado em ciclo
de trabalho longo comparado com a constante de tempo térmica
da máquina geralmente será o ponto de maior esforço trativo com
o maior nı́vel de fluxo contı́nuo. O teste será realizado com en-
tradas como em serviço a menos que 4.6.1 se aplique. Será asse-
gurado que nenhum outro ponto seja limitante.”
Uma “rede” de outras normas define termos tais como “sobrecarga de curta
duração”, “ciclo de trabalho”, e outros. Após uma série de definições desse
tipo, uma série de tabelas associa tipos de motores a valores admissı́veis de
elevação de temperatura. Por exemplo, um motor de “classe H” deveria ter
um aumento de temperatura do enrolamento girante da armadura menor ou
igual a 120o C, quando medido pelo método do sensor resistivo, em um teste
de uma hora de duração executado segundo procedimentos detalhadamente
definidos. São especificados valores limites para diversas outras variáveis
consideradas relevantes.
O ponto aqui é: normas como essas eliminam muitas das componentes da
escolha do projetista em um projeto. A partir da decisão de se projetar um
CAPÍTULO 9: NASCIMENTO DA TECNOLOGIA 184
7
Essa analogia, no entanto, não se faz completa: no , em tec-
nologia, se encontram os problemas definidos de forma objetiva. Daı́ emergem tanto os
problemas singulares de sı́ntese, como ainda o problema da formulação de teorias gerais
estruturantes para o campo em questão. Assim, a proposição das
ainda iria requerer, por si, uma e uma .
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