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MEMÓRIAS DE UM HOSPITAL
PSIQUIÁTRICO
Relatos sobre casos ocorridos no interior de um hospício
1ª EDIÇÃO
NOME – E DITORA
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NOME – E DITORA
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Capa: do autor
Copidesque:
Revisão:
Bibliografia.
ISBN 00-000-0000-0
00 - 0000
CDD- 000.00
1ª edição
1999
Coordenador
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AGRADECIMENTOS
_______________________
Aos amigos e desconhecidos que,
como eu, optaram por compreender
os caminhos do comportamento
humano.
_______________________
À minha mãe com quem sempre tive
muita dificuldade de contato, mas a
quem devo grande parte da minha
experiência e, com certeza, a minha
vida.
_______________________
Ao meu pai, alicerce do meu caráter e
médico humanista que me deu os
primeiros exemplos de bondade e
sabedoria.
_______________________
Aos meus irmãos que, mesmo
estando longe, não saem da minha
lembrança.
_______________________
À minha mulher Ziléa e a os meus
filhos Juliana, Fernanda e Luiz
Alexandre, um abraço e um beijo pela
paciência com que toleram meus
momentos mau humor.
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SUMÁRIO
Apresentação e objetivos
Foi uma ótima idéia ter feito um curso de formação didática em Psicanálise e
ter me submetido a duas psicoterapias: uma individual e outra grupal. Melhor ainda
foram as incursões que fiz em aldeias indígenas da Amaz ônia e os livros de
Antropologia que li durante esse percurso, que me ajudaram a esclarecer muitas
dúvidas sobre o comportamento individual e grupal dessas sociedades e, sobretudo,
das sociedades civilizadas. Não fosse isso eu até hoje estaria receitando remédios e
internando pessoas, numa época em que os avanços do conhecimento levaram a
considerar o cérebro como um potente órgão computacional que processa as
informações internas (do corpo) e externas (da relação social) para organizá-las de
forma coerente com as necessidades vitais.
CAPÍTULO I
Os primeiros tempos
Agora que já se passaram quase quatro décadas que eu entrei pela primeira
vez em um hospital psiquiátrico público, posso contar as lembranças desse tempo.
Todos os casos narrados aqui aconteceram realmente, apenas os nomes dos
personagens foram trocados. Alguns detalhes, desbotados pela memória, podem ter
sido omitidos ou alterados, mas não chegarão, com certeza, a mudar o significado e
o conteúdo autêntico dos relatos.
Percepção da realidade
Como um cavalo que quebra a perna e não serve mais para o trabalho, o
“nervoso” e o “doente mental” têm o mesmo destino: o abandono. Os donos do
saber os condenam ao uso interminável de drogas para “aliviar” seus protestos; os
desenganam preconizando a sua morte social, até não possuírem mais dinheiro para
manter a indústria da doença.
O individual e o coletivo
É possível que a vida humana esteja direcionada para dois pontos essenciais:
a sobrevivência e a convivência. O primeiro ponto está representado pela existência
de um corpo material – o organismo. O segundo ponto amplia a existência do
primeiro conferindo-lhe a capacidade de ser animado (anima=alma) e de coexistir
com outros organismos também animados. Portanto o sentido maior do organismo é
a sobrevivência, enquanto que o ser-animado encontra sua razão maior na
convivência.
- poderia ser traduzida pela seguinte expressão: “Seres humanos nunca estarão
preparados para lidar com grandes volumes de poder. Quando isso acontece eles
perdem a razão e se tornam violentos. E todo o povo sofre”.
Foi com essa visão que conseguimos conceber o caos que representa a vida
civilizada: na existência dos hospitais psiquiátricos, das instituições prisionais e dos
lixões habitados das grandes metrópoles. Se os índios Ianomâmi estiverem com a
razão, nós os civilizados, precisamos descobrir outras formas de conviver. Essa é
uma questão antiga que remonta a muitos séculos, antes mesmo do aparecimento
do Cristo.
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Naquela época era mais fácil um estudante de medicina conseguir uma bolsa
de estudos para trabalhar e morar, como residente, num hospital psiquiátrico público.
Quem estivesse no quarto ano da faculdade poderia pleitear um a vaga e ainda
recebia uma ajuda de custo próximo de um salário mínimo. Isso era uma verdadeira
mina para os estudantes. Após ter conseguido a bolsa passava a residir com mais
quatro colegas numa das dependências do prédio hospitalar que ficava logo à frente
e à direita do corredor central de acesso. Camas e guarda-roupas ficavam numa
ampla sala sem divisórias que dava um tom coletivo ao ambiente. Ao lado havia uma
saleta que servia de cozinha, refeitório e banheiro. Ali era uma verdadeira casa, um
mundo particular, uma república que permitia ter uma vida semelhante à de muitos
outros estudantes; onde se podia descansar, ler, conversar, receber visitas. A única
diferença era que, por estar situada no interior de um hospital psiquiátrico, tinha
cerca de hum mil e quinhentos vizinhos que nem sempre estavam com a cabeça no
devido lugar.
Entre os internos havia o grupo dos “muito pobres” que não mais recebia
visita dos familiares e não contava com qualquer atenção ou tratamento no hospital.
Esses esquecidos eram cham ados de grupo da abandonoterapia. Outro grupo era o
dos “menos pobres”, que ainda tinha familiares e visitas, recebia algum tipo de
atenção e tratamento e ainda se esforçava para fazer contatos com os funcionários,
médicos e residentes. Eram mantidos pela previdência social. Outro grupo era
constituído de pacientes particulares, pouco numeroso e que gozava de maiores
regalias entre alguns médicos e funcionários – eram os pagantes, cuja permanência
costumava ser muito curta.
O tempo foi conseguindo mostrar que o hospital servia mais para manter os
interesses dos poderosos e prepotentes adeptos da ala conservadora do que para
atender bem aos internos e oferecer treinamento de qualidade para os residentes.
Manter a situação estagnada servia aos propósitos e privilégios adquiridos até então
pelos controladores da mente e da “doença mental”; mudar e organizar significava o
fim do parasitismo institucional e a perda do poder e dos privilégios de alguns. O
“doente mental” servia como matéria prima para a manutenção do caos. Foi possível
compreender que a expressão “saber científico” não possui qualquer valor real; que
ela pode servir aos detentores do saber segundo suas próprias intenções, sobretudo
quando dignidade e cidadania são substituídas pela ganância e voracidade dos que
controlam o poder do conhecimento.
CAPÍTULO II
Os loucos e o governador
Certa vez houve uma festa junina no hospital. Nesse dia tinha um pouco de
tudo: fogueira, quadrilha, quebra-potes, pau-de-sebo e outras brincadeiras. Havia
nos fundos do hospital uma grande área onde se podia jogar “pelada”, voleibol e que
também era usada para outra atividades. Por toda parte se via bandeirolas coloridas
e no centro do imenso quintal a fogueira já estava acesa.
A professora de mitologia
Certo dia ela perguntou ao residente o que ele sabia a respeito de mitologia
grega. Ele respondeu: “Quase nada”. Ela o censurou e perguntou em qual ano da
faculdade ele estava. Falou que estava no quinto ano. Ela, ironicamente, perguntou
como ele poderia ser médico dela se ainda não havia concluído o curso e ela já
havia até lecionado em sua universidade. O residente falou que estava treinando
para cuidar de pessoas e que gostava muito desse trabalho.
Brigou com ele durante muito tempo e, após certo período, passou a tratá-lo
como filho e como aluno. Essas entrevistas se transformaram em aulas de mitologia
grega e ele se tornou um ouvinte atento e aprendeu muita coisa que não sabia sobre
a Grécia Antiga. Nos intervalos das aulas falava sobre sua vida. Era solteira, tinha
cinqüenta e oito anos, morava só num apartamento modesto e estava aposentada.
Sentia-se muito solitária. Nunca dera sorte no amor, pois, segundo dizia, os homens
a temiam e não conseguiam se aproximar.
No dia da sua alta pediu desculpas por ter sido ríspida com ele em algumas
entrevistas, abriu sua bolsa e ofereceu um velho livro sobre a História da Civilização
Grega. O residente sorriu e a abraçou em agradecimento. Ela despediu-se e saiu do
hospital acenando com a mão e com a bolsa pendurada no ombro.
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Ruídos na noite
- Não vou ficar internado. Se tentarem isso eu quebro esse hospital. Só quero
dormir um pouco e tirar essa confusão da minha cabeça.
O residente respondeu que não seria obrigado a ficar. Poderia cuidar dos
ferimentos e logo em seguida, se quisesse, sairia. Mas se quisesse dormir um pouco
tínhamos remédio para isso e para a “confusão na cabeça”. Resistiu muito, mas,
finalmente, fez um acordo: cuidaria dos ferimentos, dormiria aquela noite no hospital
e quando acordasse voltaria a conversar e fazer novo acordo. Ele aceitou, mas na
hora de tomar a injeção de sedativo ameaçou o enfermeiro:
- Se doer, eu vou quebrar a cara dele – falou olhando com a cara feia para o
enfermeiro.
O residente não concordou com a ameaça e mandou suspender a injeção.
Falou que ele estava recusando nossa ajuda e que a alternativa que restava seria a
de mandá-lo de volta para o quartel. Ele logo reagiu e concordou que precisava
dormir porque estava muito cansado. Foi feito o sedativo e, após alguns segundos, a
montanha começou a desmoronar. Suas pálpebras foram ficando pesadas, suas
palavras se desarticulavam e aquele corpo de mais de cem quilos se dobrou de lado
e foi deitando no banco. Caiu em profundo sono e seus colegas de farda ajudaram o
enfermeiro a colocá-lo na maca. Foi levado para o interior do hospital. O residente
voltou para sua cama aliviado, mas não conseguia dormir; seu corpo ainda tremia e
o ruído do despertador anunciava que um novo dia estava começando.
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O sanfoneiro
Com jeito humilde e embaraçado o homem falou: “Doutor, eu não quero tomar
muito o seu tempo; queria só uma explicação e uma ajuda”. Olhando sempre para
suas mãos, informou que tocava sanfona e queria se aperfeiçoar mais. Tinha a
impressão que as peles que uniam a base dos seus dedos dificultavam o movimento
de cada dedo isoladamente. Explicou que quando mexia um dedo o do lado também
se mexia. Isso, segundo ele, atrapalhava a autonomia de cada dedo e poderia ser o
fator responsável pelos seus erros quando estava tocando o instrumento. Queria
também aprender datilografia e esse “problema” poderia incomodá-lo. Perguntou se
aquelas peles eram mesmo necessárias e se era possível fazer uma cirurgia para
corta-las um pouco. Talvez, assim, pudesse ficar com os dedos mais livres, mais
ágeis, diminuindo seus erros.
O candidato
Iria abrir uma vaga para estudante residente no hospital. Um dos residentes
que cursava o sexto ano iria sair em Dezembro. Alguns alunos do quarto e do quinto
ano da faculdade freqüentavam o hospital para tentar conseguir a tão disputada
vaga. Havia os que, após entrarem em contato com os pacientes, jamais voltavam;
outros resistiam heroicamente ao medo e, ainda que temerosos, procuravam se
adaptar. Meses antes que essa vaga se consolidasse eles se tornavam assíduos
freqüentadores da nossa república. Perguntavam, nos acompanhavam e trocavam
idéias sobre os diferentes trabalhos realizados no hospital. O estudante que
conseguisse a vaga receberia, além de uma bolsa equivalente a um salário mínimo,
alimentação gratuita fornecida pelo hospital e um certo prestígio junto aos outros
alunos da faculdade.
Certa vez um dos residentes voltara para o quarto rindo muito e, ao mesmo
tempo, se lamentando. Um paciente que estava sendo entrevistado havia arrancado
bruscamente os seus óculos e os partira ao meio, ficando com a outra metade. O
paciente argumentara que repartir os óculos em dois pedaços e ficar com um deles
para si, lhe parecia mais justo do que deixar o residente ser proprietário de ambos os
lados. Lançar objetos, gritar com o entrevistador, agarrar-se ou rasgar as roupas do
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O Habib foi chamado para uma reunião secreta e lhe foram explicados todos
os detalhes do novo plano. Ele sorria e concordava balançando a cabeça num gesto
afirmativo. Era um veterano e já tinha sido protagonista de muitas encenações e
brincadeiras com diferentes gerações de estudantes.
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regatão - tipo de comércio ambulante. Aquele que compra em grosso para vender a retalho.
Vendedor que percorre os rios de barco, parando de lugar em lugar: "Os regatões são os traficantes
que levam em canoas, por todos os rios, lagoas, furos e lugares, mercadorias estrangeiras ou
nacionais, e as vendem a dinheiro, ou as permutam pelos produtos do país". (Aurélio).
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CAPÍTULO III
Ele era um paciente solitário, gostava apenas da companhia dos seus sacos.
Não participava de atividades grupais e estava sempre muito desconfiado. Para
melhorar nosso contato com ele passamos a presenteá-lo com vários objetos sem
importância como: caixas de fósforos e de chicletes vazias, pedaços de papel de
chocolate, prospectos de remédios com figuras coloridas, etc. Ele os recebia para
depois selecioná-los. Guardava no saco os que eram aprovados por ele e jogava
fora os restantes. Um dia perguntamos a ele por que selecionava os objetos.
Respondeu: - “Para separar o joio do trigo”. Explicou que as pessoas e os objetos
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Ele era um dos pacientes que nunca recebia visitas dos familiares. Era
solteiro. Perguntamos sobre sua família. Ficou calado e abriu o saco grande, tirou
de lá vários papéis e pôs-se a contá-los na nossa frente. Perguntamos por que
resolveu contar os papéis na nossa frente, já que não gostava de fazer isso na
frente das pessoas: - “Você é muito curioso, mas é uma pessoa boa” - respondeu.
Despediu-se em seguida e saiu pela porta do consultório carregando os dois sacos.
Passamos alguns meses conversando com ele sem tocar no assunto relativo à sua
família. Já éramos amigos e tínhamos até permissão de retirar alguns objetos de
ambos os sacos, um de cada vez, para examiná-los com as nossas próprias mãos.
Fizemos vários requerimentos solicitando a sua “libertação” do hospital. Nenhum
resultado concreto.
Passou três semanas sem nos procurar, mas, um belo dia, pediu para
termos “uma conversa em particular”. Não queria entrar no consultório para
conversarmos porque acreditava que “até as paredes têm ouvidos”. Fomos
conversar debaixo de uma mangueira velha que havia no fundo do quintal do
hospital. Puxamos dois tijolos e sentamos. Confortavelmente instalados nos tijolos
iniciamos a nossa conversa. Com os sacos perto de si, começou a falar sobre sua
família.
Percebíamos pela primeira vez que ele estava lúcido e falava a verdade.
Naquela conversa o seu delírio de grandeza aparecia apenas poucas vezes; logo
em seguida retomava o fio da realidade e continuava falando de forma coerente e
compreensível. Durante todo o tempo não olhou uma só vez para os sacos.
Terminada a conversa levantamos dos tijolos e fomos andando vagarosamente em
direção ao prédio do hospital. Havíamos andado poucos metros quando ele, de
repente, se voltou e saiu correndo para buscar os sacos que havia esquecido perto
dos tijolos. Era a primeira vez que havia ficado tão longe dos sacos.
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Era conhecido como Papai Noel. Já havia brigado muito com outros
pacientes por causa desse apelido. Agredia todos os que ousassem aproximar-se
para abrir seus sacos.
Explicando os códigos:
José havia ensacado a sua vida afetiva durante muitos anos para não se
sentir só e para preservar sua identidade, sua memória e suas emoções. Conhecia
o conteúdo de cada um dos sacos como a palma de sua mão e os mantinha
separados para não perder a sua sanidade mental. Evitava os grupos porque o seu
grupo original (sua família) o tinha expulsado precocemente do seu convívio e o
havia esquecido. Seu grupo confiável eram os sacos, resumo valioso e silencioso
de toda a sua história. Como confiar em grupos, se os grupos o rejeitavam e o
consideravam como um estranho, um louco?
Certa vez ele nos confidenciou que achava que dessa vez iria conseguir sua
“‘libertação”. Aquelas pessoas - segundo ele - não estavam mentindo, pois já
conseguira algumas visitas dos irmãos, que lhe trouxeram presentes e dinheiro.
Suas roupas já não eram tão sujas como antigamente e os banhos não tão
insuportáveis assim. Mas os sacos continuavam perto dele.
Certo dia seus parentes vieram buscá-lo para que passasse o fim de semana
com eles. Concordou em ir e queria levar os sacos, mas o convencemos de que
ele, como o novo José, deveria levar apenas a chave do armário. Ele aceitou e foi
embora com os parentes. Voltou na segunda feira pela manhã com um terceiro
saco. Na verdade não era um saco e sim uma sacola. Estava cheia de objetos
diferentes dos outros que estavam no armário. Continha escova, creme dental,
roupas, sapato, sandálias, cadernos, biscoitos e um pente novo.
Numa outra reunião do grupo José pediu que guardássemos sua sacola
nova, pois temia que os outros pacientes roubassem seus objetos, fato bastante
freqüente entre eles. Queria ficar com alguns objetos de uso pessoal e com a chave
do armário. Pediu também que queimássemos os outros dois sacos antigos.
Respondemos que os sacos antigos ficariam guardados até um ano após sua saída
do hospital. Gostaríamos que ele próprio, após um ano e junto com a sua família,
voltasse a nos visitar e junto conosco, procedesse ao ritual de incineração dos
velhos sacos. Aceitou a idéia e voltou para a sua aula do Mobral que já havia
iniciado há cinco minutos atrás.
O novo José já não era o mesmo homem dos sacos e a nossa equipe já não
era a mesma dos velhos tempos. Havíamos aprendido, com ele e com outros
pacientes, formas novas de preencher nossos “sacos intelectuais” com conteúdos
de muito valor. Nós, José e os outros pacientes estávamos melhorando, mesmo
estando todos, internados no mesmo hospício.
Concluído o curso do Mobral ele já escrevia uns bilhetes para os seus
familiares. As visitas já eram semanais e as saídas do hospital se prolongavam por
uma semana a até por um mês. Estava na hora de José sair.
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Ele nunca mais retornou para aquele hospital, não voltou para queimar os
sacos. O que foi feito dos sacos velhos nem nós sabemos responder. Talvez,
esquecidos como tantas outras quinquilharias do hospital, devem ter recebido o
destino do lixo ou queimados sem a nossa presença, numa grande fogueira de São
João. O que, aliás, era muito comum acontecer com os papéis velhos.
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Greve no ambulatório
A conclusão final da reunião foi a de que a ordem não deveria ser acatada.
Além de antiética e desonesta, iria refletir-se negativamente na evolução dos casos
que estavam sob controle; seria um completo absurdo aceitá-la. A posição a ser
seguida seria, depois de esgotada a medicação existente, interromper os controles.
Os pacientes teriam que ser avisados com antecedência sobre a possibilidade da
falta de medicação nas semanas seguintes. Todos concordaram que os pacientes
não poderiam ser enganados e teriam que ser informados sobre a crise pela qual o
ambulatório estava passando, uma completa desorganização. Comunicamos ao
médico coordenador nossa posição e não recebemos qualquer resposta sobre o
assunto.
Contada a medicação que ainda restava foi fixado um dia para o início da
greve. Enquanto havia medicação, pacientes e familiares estavam sendo avisados e
as providências para iniciar a greve iam sendo discutidas. No dia fixado nenhum
residente compareceu ao ambulatório e em várias paredes podiam ser lidos cartazes
que explicavam os motivos da interrupção. Os funcionários do ambulatório aderiram
ao movimento, mas ficaram cumprindo seus horários de rotina; ficavam informando
as pessoas sobre os motivos do movimento.
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No dia seguinte, pela manhã, fomos informados que uma grande quantidade
de medicação anticonvulsivante havia chegado ao ambulatório. Na parte da tarde o
funcionamento se normalizou para atender uma grande multidão que se espremia a
espera de atendimento. Era uma sexta-feira. Nesse dia o trabalho dos residentes só
terminou ao anoitecer. Funcionários e residentes, após o expediente, foram para um
bar da esquina comemorar a vitória da greve. Entre os cascos de cerveja vazios e os
restos de tira-gostos jazia a figura franzina e insignificante do coordenador – a
personagem mais comentada da festa.
O trambiqueiro
O residente mais novo possuía uns primos na cidade. Eram primos afastados
com os quais mantinha contatos esporádicos. Eram cinco moças e um rapaz com
dezenove anos. Chamava-se Paulo. Desde criança era hiperativo, brigava muito e
aprontava mil problemas dentro de casa. Seus pais moraram numa cidade grande
do interior e haviam mudado há pouco tempo para a capital. Era uma família de
classe média e a filha mais velha, Ana, havia completado o curso de advocacia há
dois anos. Todos trabalhavam, só os três filhos menores não estavam empregados.
Numa tarde de sábado Ana chegou ao hospital aflita. Veio acompanhada pelo
amante, um senhor mais velho, e pediu para conversar em particular. O residente,
seu primo, os conduziu para uma sala de entrevistas e ela falou que seu irmão Paulo
havia se metido numa grande enrascada. Estava foragido, sob ameaça de morte e
sendo procurado pela polícia. A família estava tentando localizá-lo e ela pretendia
interná-lo no hospital sob a alegação de que poderia estar sofrendo das faculdades
mentais. Perguntou se poderia ser utilizado algum diagnóstico que o protegesse da
ação da justiça. Ela não tinha muitas informações a respeito do caso porque só
havia falado com ele durante poucos minutos através de um telefone público.
O residente informou que a internação poderia ser feita pelo prazo máximo de
noventa dias, em caráter de observação, até que se chegasse a alguma conclusão
sobre o seu caso. Seria tratado sem privilégios, como qualquer outro paciente e
seguiria as normas do hospital. O residente, pelo fato de ter grau de parentesco com
ele, o encaminharia para um colega que acompanharia seu caso supervisionado por
um médico assistente. Ela não gostou muito das condições expostas e perguntou se
teria de pagar pela internação. Foi informada que pagaria pela tabela hospitalar, pois
apenas as pessoas comprovadamente carentes poderiam receber atendimento
gratuito. Saiu um pouco desapontada, mas aceitou as condições.
O residente que deveria acompanhar seu caso ficou impressionado com sua
facilidade de contato. Morava com seu pai no interior e pouco vinha a capital.
Informou que o residente, que era seu primo distante, o vira pela ultima vez quando
tinha apenas dez anos de idade. Sua irmã falara que ele roubava objetos de casa
para vender, fazia empréstimos e não pagava. Vivia de falcatruas. Havia levado
muitas surras dos pais para corrigir-se, mas ia piorando cada vez mais. Ultimamente
vivia mais fora do que dentro de casa. Andava bem limpo e perfumado, suas roupas
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eram sempre caras e elegantes; não lhe faltava dinheiro no bolso. Estávamos diante
de um caso típico de personalidade psicopática.
Não demorou muito para que o Paulo tentasse se aproximar do residente que
era seu primo e dos outros residentes, para lembrar laços de parentesco e fazer
amizade. O residente que era seu primo o tratava com cordialidade, mas evitava
intimidades. Ele era oito anos mais novo do que o residente e certo dia começou a
chamá-lo de “tio”. Foi advertido que o tratasse pelo nome e usasse de bom senso
com as pessoas do hospital. Passou a visitar assiduamente os residentes.
Num domingo de tarde Paulo contou suas peripécias diante de todos os que
estavam conversando no quarto. Entre os risos da platéia ele se comportava como
um ator, contando os casos e aventuras pelas quais havia passado. Havia falsificado
alguns cheques e sacado muito dinheiro de um banco. Comprou jornal e leu uma
notícia que anunciava a inauguração de uma usina termoelétrica. Essa usina seria
inaugurada dentro de uma semana em uma pequena cidade do interior. Fretou um
táxi aéreo e se dirigiu para aquela cidade alguns dias antes da data marcada para a
inauguração. Estava muito elegante com terno, sapato novo e uma gravata de seda
fina. Havia combinado com o piloto que faria vários vôos e pagaria o total quando
retornasse a cidade de origem. Chamava-se Dr. Paulo, engenheiro eletrônico. Dias
antes telefonara para o prefeito anunciando que havia antecipado a inauguração por
mudanças e alterações na sua agenda. Chegaria no dia seguinte, pela manhã.
O avião desceu às oito horas na pequena pista de pouso. O Dr. Paulo falou
para o piloto que retornasse após dois dias para apanha-lo, pois ele teria outras
viagens a fazer. O piloto assentiu com um sorriso nos lábios antevendo os lucros
que teria com o novo e polido cliente.
Foi recebido pelo prefeito, pelos vereadores e por uma comitiva composta de
pessoas importantes da cidade. Havia até uma pequena banda de música presente
na recepção. Entre abraços e cumprimentos foi conduzido e instalado na casa do
prefeito. Esforçou-se para não aceitar, mas foi gentilmente convencido a não ir para
um hotel e nem fazer refeições em restaurantes. Educadamente desculpou-se por
ter antecipado a inauguração e pelo fato de ter sido obrigado a substituir o outro
engenheiro que havia ficado doente, cujo nome constava no jornal.
Nesses dois dias inaugurou a obra junto com as autoridades, passeou pela
cidade, compareceu a almoços e jantares oferecidos e ainda ensaiou um breve
namoro com a filha do prefeito. Era um belo partido para qualquer moça que
estivesse interessada por um jovem engenheiro solteiro e competente.
outras viagens e, para isso precisaria de uma quantia maior. O prefeito insistiu e lhe
fez a proposta: “... Doutor fique tranqüilo, o senhor vai aceitar a minha oferta e
quando concluir as viagens pode depositar o dinheiro na minha conta. Qual é o
problema?” Chamou um de seus assessores e determinou que fosse ao banco sacar
uma razoável quantia para acalmar o preocupado engenheiro. Ele havia percebido o
interesse da filha pelo ilustre visitante e os havia deixado conversando, em algumas
oportunidades, talvez imaginando em ter futuras alegrias. Quem sabe se aquele
simpático jovem poderia vir a ser um dia mais um membro da família? A sua filha
mais nova era a única das filhas que ainda estava solteira.
Ria-se muito dos casos do Paulo e ele se sentia à vontade no quarto dos
residentes. O residente que acompanhava seu caso fora avisado, em diferentes
ocasiões, sobre os riscos da excessiva intimidade do Paulo com os residentes e com
outros funcionários do hospital. Com apenas um mês de permanência ele já havia
obtido privilégios e a confiança do residente responsável por ele. Trabalhou na
secretaria onde executou um excelente trabalho de organização e limpeza.
Organizou o almoxarifado e deu nova vida a sala da direção. Era rápido e
inteligente, respeitado pela maioria dos pacientes e simpático com todos. Obteve
cópias de quase todas as chaves de locais importantes do hospital. Já havia feito
amizade com o diretor tornando-se seu colaborador e seu “moleque de recados”. No
segundo mês já tinha o hospital nas mãos.
CAPÍTULO IV
O homem-árvore
Era necessário ter paciência para ficar observando durante longo tempo
àquela figura curiosa do homem -árvore. Enquanto comia ou andava seus
movimentos eram muito lentos e cuidadosos e só costumava se comunicar com o
residente que o acompanhava.
Pedi ao residente que o internara para acompanhar junto com ele aquele caso
curioso. Só conversava com aquele colega e só para ele desvendava os seus
mistérios de planta. Não comia alimentos do seu reino vegetal e bebia muita água.
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Certa vez cavou um buraco no quintal, enterrou seus pés, e com uma lata
velha molhava, de tempo em tempo, as suas raízes (pés). Mudava com freqüência a
sua identidade vegetal. De manhã poderia ser uma jaqueira, de tarde u'a mangueira
e de noite um abacateiro. Gostava das árvores frutíferas. Nunca pretendera ser um
capim ou um pé de couve, segundo as informações do residente.
A promessa
Já de noite, quando quase todos tinham ido embora, ele falou que àquele
parecia ser um caso bem interessante. Veio com seu pai e um irmão que narraram
sua estória. O paciente era magro e alto, olhos bem abertos, que pulavam de uma
para outra pessoa. Quase não mexia com a cabeça. Quando alguém falava, ele
apenas virava os olhos na direção da pessoa e ficava prestando atenção. Havia dois
meses que não articulava uma só palavra e nem emitia um som qualquer. Tinha
parado de estudar e gostava de ficar só no seu quarto. Tinha vinte e dois anos e,
uma semana após ter brigado com a namorada, parou de falar com todo mundo.
Quando alguém lhe fazia uma pergunta arregalava os olhos e passava a língua nos
lábios; repetia sempre esse gesto e era só o que fazia.
Havia muitos meses que o residente não mais chamava o Pedro para
entrevistá-lo no consultório. Era uma pura perda de tempo. Preferia vê-lo na
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Dito efeito. O Pedro mostrou para o residente o papel onde anotara a data e a
hora da promessa. Estava tudo certo, não passou nem um minuto sequer do tempo
combinado. Fazia um ano certo que ele parara de falar e agora reconquistara a voz.
O acordo estava cumprido e o papel era o documento original desse acordo.
Pedro queria sair do hospital naquele dia para encontrar-se com a namorada
e mostrar a ela aquele comprovante do acordo cumprido. Ele era um rapaz ingênuo
e tímido. Nunca havia experimentado uma relação sexual com mulher. Só sabia
masturbar-se e contar piadas eróticas no tempo em que falava. Na verdade não
tinha namorada. Havia se apaixonado pela vizinha e não conseguia aproximar-se
dela para falar do seu amor e do seu desejo. Sua namorada era fruto da sua
imaginação e a "voz" que lhe dera a ordem era uma alucinação da sua própria
mente, uma defesa que ele poupava o sacrifício e a dificuldade que tinha em fazer
contato com as mulheres.
O grupo que ajudava Pedro atendia vários outros pacientes, mas, para cada
caso, mudava de nome; o grupo de Pedro chamava-se "Amor e Desejo". Nesse
plano de trabalho o objetivo era: “fazer com que a voz de Pedro, saindo da cabeça,
descesse para o coração, ganhasse impulso para cima e saísse pela boca”.
Queríamos que aprendesse a falar em alto e bom som sobre seus sentimentos, para
que sua amada o ouvisse e pudesse compreendê-lo. Se não conseguíssemos isso,
Pedro continuaria a ser um soldado raso, sem voz e sem vontade própria. Um
recruta que só saberia marchar pelas enfermarias da vida com um capacete de
papel na cabeça e um cabo de vassoura no ombro. Um ridículo soldadinho mudo
que só sabia cumprir ordens e bater continência para os outros.
Certa tarde, numa reunião do grupo Amor e Desejo, Pedro, timidamente, fez
uma comunicação. Estava gostando de uma jovem paciente da ala feminina. Ela
tinha dezoito anos, morena, cabelos longos e negros, muito calada e tímida como
ele. Já haviam conversado em duas oportunidades: a primeira vez foi dentro do
hospital, no salão de festas, onde havia ocorrido uma tarde-dançante. Era uma festa
que acontecia mensalmente para estimular a ressocialização entre pacientes da ala
masculina e feminina. A segunda vez foi durante um passeio ao zoológico da cidade.
O seu nome era Rita.
Numa tarde de terça-feira, o grupo Amor e Desejo teve a mais infeliz das
idéias. Convidou dois familiares de Pedro para participarem da reunião do grupo e
comunicou o plano de trabalho que estava sendo desenvolvido para sua
recuperação. Encerrada a reunião os dois parentes se dirigiram ao diretor do
hospital e nos acusaram de perverter os princípios morais e religiosos de Pedro; de
atentar contra a sua castidade e induzi-lo ao pecado. Éramos os demônios que
queriam destruir a pureza de Pedro e o estávamos impedindo de trilhar pelo caminho
da salvação de sua alma rumo ao Reino do Senhor.
Coitado do Pedro. Será que voltou a ser soldado raso? Ou se insurgiu contra
os seus superiores e mandou todo mundo a vassouradas para as profundezas do
inferno? Não tivemos mais notícias dele. A partir dessa fatídica terça-feira o nosso
grupo, a exemplo de Pedro, também fez uma promessa: "jamais voltaríamos a
convidar fanáticos religiosos para participar das nossas reuniões de
acompanhamento intensivo de casos".
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O filósofo
Havia um paciente jovem na ala masculina. Tinha vinte e cinco anos, era
branco e possuía uma barba bem cuidada e cabelos longos. Vestia-se
modestamente e andava muito limpo, trazendo sempre alguns livros debaixo do
braço. Jean-Jacques Rousseau, Bertrand Russell, Michel Foucault e Eric Fromm
eram seus autores prediletos.
Era alto, pernas compridas, andar macio. Falava baixo, com palavras
cuidadosamente articuladas e com um português precioso, de fazer inveja a
qualquer mestre da língua pátria. Gostava de conversar com os residentes e
estudantes que visitavam o hospital. Havia passado no vestibular de Filosofia,
Ciências e Letras. Cursara até o primeiro semestre dessa faculdade.
Sua família era pobre e, por diferentes razões, resolveu abandonar o curso e
correr mundo, como costumava dizer. Veio parar no hospital por que agredia seus
familiares que o chamavam de "maluco". Na verdade era um neurótico comum como
qualquer um dos médicos, funcionários ou residentes. Ia ficando no hospital porque
não tinha para onde ir e sua família não o aceitava mais em casa.
corpo e não atuam nas emoções". Era o que falava sempre que lhe ofereciam
remédios.
Convidamos o Péricles - esse era o seu nome - para participar dos nossos
grupos de acompanhamento intensivo de pacientes. Ele ficou muito emocionado e
aceitou prontamente o convite. No dia seguinte produziu um texto belíssimo falando
sobre a natureza humana, o trabalho com doentes mentais e a futura extinção dos
hospícios. Ficamos tão impressionados com o texto que resolvemos deixá-lo em
exposição permanente, pendurado na parede do nosso quarto. Foi transcrito com
letras bem elaboradas em papel-linho e ganhou moldura com vidro e tudo.
Estudantes e visitas que iam ao nosso quarto não acreditavam que aquela produção
tivesse saído da cabeça de um paciente.
Descobrimos que Péricles tinha uma namorada na ala feminina. Ela possuía
belos olhos verdes, temperamento calmo e contemplativo como o dele. Queria ser
cantora quando saísse do hospital. Para ela o nosso colaborador compunha letras
de música, poesias, textos românticos e filosóficos. Conversavam sobre essas
produções quando se encontravam. Recebia dela relatórios escritos sobre fatos
importantes que ocorriam na ala feminina, através do "correio sentimental". Através
desses relatórios detalhados Péricles se mantinha informado do funcionamento
interno da ala feminina, das pacientes que melhoravam e pioravam e de outras
notícias mais. Por essa razão podia trazer informações tão precisas sem necessitar
quebrar o regulamento do hospital, que proibia a entrada de pacientes do sexo
masculino na ala feminina. Era um diplomata e um romântico espião com ares de
filósofo.
empresa. Não era uma tarefa difícil, havia muitos livros interessantes e de fácil
comercialização, pelo que podíamos observar no catálogo.
No final do mês fez questão que recebêssemos o dinheiro que lhe foi
emprestado. Abriu crédito numa loja onde comprou roupas e sapatos para ele e para
a namorada. Trouxe de presente vários pares de meias e os distribuiu entre os que o
ajudaram a conseguir o emprego. Estava feliz. Ficou durante oito meses trabalhando
fora e dormindo no hospital. Levava seu almoço numa marmita e só voltava para
jantar e dormir.
Certa vez anunciou que tinha restabelecido as relações com sua família.
Tinha conta bancária, talão de cheques e, além do salário, ganhava boas comissões
vendendo livros e revistas para hospitais, clínicas e escolas. Pediu que
providenciássemos sua alta para antes do Natal. Iria passá-lo junto com a família e
com sua nova namorada, uma colega de trabalho.
CAPÍTULO V
O orador
Para nós era comum entrar na ala masculina e encontrar uma figura
barulhenta, vestida com um paletó surrado e um fiapo de gravatas pendurado no
pescoço. Gritava em altos brados e deitava uma falação interminável de cima de um
caixote de madeira. Era Raul, discípulo de Péricles, um brilhante orador e destemido
político. Raul era um contestador, vibrante e agressivo orador que queria mudar o
mundo. Sua tribuna era um velho caixote de cerveja ainda bastante forte para
manter no alto os seus longos e inflamados discursos.
Alguns pacientes o avisaram, talvez para inflamar mais seu ânimo, que ele
poderia ser preso a qualquer momento por causa do teor subversivo das suas idéias.
Deveria falar baixo para não ser ouvido por algum militar ou policial que por ventura
passasse nas imediações do hospital. Estávamos no ano de 1968, em plena
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vigência da ditadura militar, mas, mesmo assim, o Raul, baluarte da democracia, não
baixava a sua voz. Mesmo que fosse preso e torturado - dizia - levaria sua tribuna
para dentro da prisão e, de lá, continuaria a sua luta pela liberdade do povo e pela
salvação do Brasil!
O Raul sofria de uma gagueira perturbadora. Evitava falar fora dos discursos
porque, freqüentemente, era alvo da zombaria dos outros pacientes. Não conseguia
falar uma palavra sem se engasgar com a segunda. Senti muita vergonha e
costumava andar com lápis e papel no bolso para, através de bilhetes, resolver
algumas questões de comunicação. De resto, preferia permanecer calado. Não
gaguejava durante os discursos, sua voz era forte e suas palavras fluíam com
incrível facilidade.
Há semanas que essa idéia não lhe saía da cabeça. Andava de um lado para
outro cantarolando músicas sertanejas, talvez se preparando para algum projeto
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artístico no futuro. Certo dia o Raul fugiu do hospital e nunca mais foi visto.
Soubemos de notícias suas quase um ano depois. Escreveu uma carta com
endereço do hospital e dirigida para o enfermeiro que o havia iniciado na arte da
música. Dizia que era vaqueiro e vivia numa fazenda no interior. Possuía um
gravador e algumas fitas cassetes. Cantava e gravava nos fins-de-semana com o
pessoal da fazenda. Nada informava sobre a sua gagueira.
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Apenas um, entre os cinco residentes, usava eventualmente a droga nos fins-
de-semana e, quase sempre, fora do hospital. Entre os pacientes havia cerca de
trinta pessoas, cujo principal motivo da internação estava relacionado com o uso
excessivo e habitual da maconha. O contato com eles se tornava bastante difícil pelo
fato de usarem uma linguagem própria, uma gíria específica e grupal, um verdadeiro
código secreto, particular aos entendidos em drogas.
Sendo jovens, nos sentíamos um pouco "caretas" e "por fora" desse mundo e
dessa terminologia, que expressava estados mentais esquisitos, provocados pela
ação da droga. Resolvemos um dia experimentá-la e organizamos uma série de
sessões para observar como cada um agiria sob os efeitos da maconha. Decidimos
que seriam escolhidos os domingos como os dias de testes, já que era raro
recebermos visita nesse dia. Como éramos cinco, decidimos que o plantonista do dia
ficaria observando e anotando a reação dos que estivessem experimentando a
droga. Fizemos o rodízio e após cinco domingos todos fizeram uso da droga.
Outro colega viu um "garfo fugindo" e saiu correndo atrás dele, morrendo de
rir. Um outro viu sua cama transformada em um barco e, com duas vassouras,
punha-se a remar desesperadamente para vencer a "correnteza". Pedia a ajuda de
todos, pois se encontrava em grande perigo. Suava muito e só parou de remar
quando chegou em "terra firme". A fome despertada pela maconha era tão forte que
os quatro residentes, antes tão solidários e educados, brigavam agora por um
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pedaço de pão, como se fossem quatro crianças pequenas. Devoraram tudo o que
havia na cozinha.
Outro residente, que há poucos dias tinha brigado com a namorada, agora
chorava, cantava e fazia versos de amor para sua amada; olhava seu rosto e a
beijava sem parar. Quando soltava o travesseiro, este estava úmido e todo babado
de tanto amor.
Era assim no quarto dos residentes, tudo era possível. Não era à-toa que
estávamos internados num hospital psiquiátrico. Só faltava um pequeno estímulo,
como a maconha, para que nossas loucuras se mostrassem ao mundo. Os outros
loucos estavam nas alas, e nós, concentrados naquele quarto, vivenciávamos
nossas loucuras estimulados pela droga.
Talvez o maior efeito que essa experiência nos proporcionou foi a obtenção
de um maior respeito e compreensão em relação aos dependentes de drogas do
hospital. Essa experiência não mais foi repetida e cada um que cuidasse de si em
relação às drogas e as alterações do comportamento que ela proporciona.
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A namorada do residente
Um dos colegas do quarto tinha uma linda namorada. Uma loura insinuante e
esbelta. Visitava o hospital com freqüência nos sábados e ficava horas conversando
conosco. Era simpática, mas um pouco ingênua e orgulhosa de sua beleza. Sentia
um ciúme doentio pelo nosso colega residente. Às vezes, em voz baixa, perguntava
se alguma garota vinha conversar com ele no hospital. Sempre negávamos:
"Jamais! Ele é muito dedicado ao trabalho. Ele te adora!".
Um colega falou: "Será que devemos contar o que aconteceu?". Olhava para
nós, esperando a nossa reação. Todos, de cabeça baixa, olhavam para o chão com
um misterioso ar de embaraço e dúvida. O clima estava ficando pesado quando
ouvimos um barulho na porta. Ela foi aberta calmamente pelo namorado plantonista
que, com um sorriso no rosto, aproximou-se da princesa e demorou-se num
prolongado beijo. Em seguida pediu licença e dirigiu-se ao banheiro. Pedimos, entre
sussurros, que ela não demonstrasse nada na frente dele; quando ele saísse
iríamos continuar a conversa.
A porta voltou a fechar-se e nós voltamos à carga. Tudo dava certo. Ouvimos
os passos do colega desaparecendo no corredor. Ela interrompeu o silêncio cheia
de curiosidade e falou: "E daí...?"; o residente que havia falado por último continuou:
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"Eu não sei se a gente deveria estar te falando sobre isso, mas o teu namorado
precisa de ajuda. Parece não estar batendo bem da bola".
Falamos que ele não aceitava nossas ponderações sobre seus casos com as
garotas da ala feminina. Do seu envolvimento íntimo com elas. Era um grupo de
jovens desmioladas e, embora muito atraentes, apresentavam precedentes criminais
graves. Mostramos os bilhetes e a carta. Apresentamos como prova o jaleco todo
sujo de batom e arrematamos, dizendo que ele passava a maior parte do tempo na
ala feminina. Poderia haver risco de gravidez, expulsão do hospital,
comprometimento da sua futura vida profissional e complicações com os familiares
das jovens pacientes.
A nossa beldade estava com rosto pálido e olhos arregalados, lendo a carta e
os bilhetes. Suas mãos tremiam e as primeiras lágrimas começaram a cair. Apertou
os olhos e ficou muda por alguns instantes e, logo em seguida, explodiu num choro
convulsivo. O seu corpo desabou na cama como o de um animal abatido por um tiro.
Afundou o rosto num travesseiro que estava próximo e que abafava suas lágrimas e
sua voz.
Ficamos ouvindo, silenciosos, o som dos seus sapatos altos que, como
cascos de um cavalo, pisoteavam com força o chão de cerâmica do corredor. Um
colega correu para a porta e ainda a viu descer a escada de entrada do hospital.
Quando ele retornou ao quarto, explodindo em gargalhadas, apertamos nossas
mãos em conjunto e demos do nosso grito de guerra. "Urra! Urra!". Tínhamos
cumprido mais uma missão. Rimos bastante e, logo depois, chegou o nosso
plantonista. Estava cansado e preocupado com seu paciente. Logo notou a ausência
da namorada.
Nosso colega baixinho, com seu cinismo natural, explicou que ele havia
demorado muito, mas que ela deixara um recado. Deveria ligar para ela, logo mais à
noite e não poderia esquecer, pois ela tinha novidades para contar. O plantonista
assentiu com a cabeça, mas estava com o rosto triste e o olhar vago. Sua
preocupação estava com seu paciente na enfermaria.
A guerreira loura colocou a caixa em cima de uma cama, tirou o cinto da sua
delgada cintura e saiu correndo atrás dos residentes. Todos pulavam de uma cama
para outra, tentando livrar-se do ataque inesperado. Quase pisaram em cima do
bolo. Conseguiu acertar várias chicotadas que, quando acertava nas costas, doía
bastante. Ofegante, recolocou o cinto e falou: "Vocês são uns filhos da puta!".
Xingou bastante. Daí a alguns minutos estávamos todos cantando os parabéns para
o plantonista, bebendo refrigerantes e cervejas e saboreando o delicioso bolo de
chocolate.
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CAPÍTULO VI
A saída do hospital
Era o último ano de hospital. O sexto ano da faculdade era muito corrido. Os
estágios, nas diversas clínicas, nos deixavam mais fora que dentro do hospital e do
quarto dos residentes. Muitas vezes éramos apenas informados da evolução dos
casos nos grupos de acompanhamento pelos outros colegas e de forma resumida.
Nestes tempos de crise interna, um dos residentes teve um sonho: Eram dois
hospitais que, ligados entre si, possuíam um só portal de entrada e saída ao mesmo
tempo. Os que saíssem de um, ingressariam fatalmente no outro. Um era cheio de
pobres, de médicos, de remédios, de estudantes e de enfermarias. O outro não tinha
nada disso. Por ser maior, nele se viam carros, avenidas, hotéis, restaurantes e
pessoas bonitas e poderosas. Eram loucos disfarçados de pessoas normais.
Disputavam entre si seus poderes e riquezas. Viviam correndo de um lado para
outro e não podiam perder tempo algum. Seus delírios de riqueza, prestígio e poder
os deixavam tão ocupados e, porisso, nunca conseguiam parar nas esquinas das
suas consciências para descansar seus espíritos. Eram loucos varridos estes do
outro hospital! Nós também corríamos um grande risco. Deveríamos passar para o
outro lado do portão e solicitar internação do lado de lá.
homem dos sacos que, agarrado aos seus sonhos, teria que abandonar sua família,
catar papéis e documentos para se sentir seguro e perambular pela vida. Era um
homem-árvore que, plantado dentro de si mesmo, não queria caminhar. Teria que
fazer como Péricles: abrir a página de classificados e descobrir uma oportunidade
qualquer. Estava perdido no presente, agarrado ao passado e com medo do futuro.
Parou em frente ao hospital e viu um enorme vazio. Ele já não existia mais.
Havia sido demolido há algum tempo. Apenas pedaços de tijolos e restos de
alicerce, sobraram naquele lugar deserto. Parecia mais um cemitério abandonado.
Ali estava sepultada, para sempre, a sua memória de estudante.
Foi a partir de 1972 que, seguindo essa linha de pensamento, iniciamos uma
observação mais minuciosas do comportamento humano, através dos conceitos de
Comportamento Ativo e Comportamento Reativo, ambos relacionados ao meio
sócio-familiar-cultural, onde se situam os indivíduos. Percebemos que as pessoas
agem e reagem frente a situações do meio ambiente externo (família, sociedade,
cultura) e interno (psiquismo individual). Que as formas de agir ou reagir, são
tentativas de readaptar-se ou protestar; que geralmente estão ligadas a
sobrevivência física e emocional; que o intercâmbio entre esses meios é a única e
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modelo cultural equilibrado e sem problemas, que já possuiu, quando ainda era um
"ser" naturalmente primitivo.
É possível falar da idéia - mas não dos projetos - para essa reconstrução,
pois eles ainda circulam nas cabeças cheias de esperanças de muitos homens,
sem soluções definitivas. Sonho do presente ou realidade do futuro? Não sabemos.
Mas podemos acreditar em coisas, como: a evolução cíclica do universo e a
capacidade criadora do homem. Pensando bem, estamos a tão pouco tempo na
Terra, que acabamos não tendo certeza em que fase do desenvolvimento nos
encontramos. Se for preciso recomeçar tudo de novo, aqui estamos para oferecer
voluntariamente nossa ajuda nesse mutirão.
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