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COLEÇÃO COMPORTAMENTO HUMANO

MEMÓRIAS DE UM HOSPITAL
PSIQUIÁTRICO
Relatos sobre casos ocorridos no interior de um hospício

1ª EDIÇÃO

Luiz Gonzaga de Freitas Filho

NOME – E DITORA
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Biografia do autor: (orelha do livro)

Luiz Gonzaga de Freitas Filho é médico formado pela


Universidade Federal do Pará (1970); com curso de formação
didática em Psicanálise pelo Grupo Brasileiro de Psicoterapia
Analítica de Belo Horizonte/MG (1979/1983). Médico chefe da
Unidade Sanitária de Maués e assistente na Unidade Hospitalar
de Parintins - FSESP/AM (1971/1973) coordenou e executou
programas de saúde pública. Dirigiu a Divisão de Saúde e
Higiene da Secretaria de Saúde do então Território Federal de
Roraima (1973/1974) e participou como assistente no Curso de
Administração em Saúde Pública promovido pela
SESPA/OPS/OMS. Em 1974 chefiou o serviço de socorros de
urgência do mesmo Território Federal de Roraima. Em 1976
dirigiu o Hospital da Paranapanema S/A durante o período de
abertura de um trecho da rodovia Perimetral Norte. Participou
como médico na Unidade de Saúde Eletronorte durante o início
de implantação da usina hidroelétrica de Tucuruí/PA na
execução de trabalhos de Clínica e Assistência Materno-Infantil.
Foi, de 1976 a 1985, psiquiatra da Escola FEBEM assessorando
e executando trabalhos de reabilitação em comunidade
terapêutica para menores Infratores. Durante o período em que
viveu na Amazônia fez várias incursões em aldeias indígenas,
coletando informações e estudando os trabalhos etnográficos de
Pierre Clastres, Bronislaw Malinowski, Protázio Frikel, entre
outros etnólogos e antropólogos, que produziram trabalhos de
campo. Atualmente desenvolve e aplica em consultório
metodologia própria para uso em psicoterapia analítica e
medicina psicossomática, criando alternativas de profilaxia em
saúde mental com seus Grupos de Apoio Familiar.

É autor dos trabalhos:

F"Viver eu quero, conviver é preciso!" (texto).


FRelação de Qualidade (treinamento de pais e educadores para prevenir
comportamentos reativos em crianças e adolescentes (slides eletrônicos do Power
Point)).
FA Origem da Violência: Uma contribuição ao estudo do comportamento violento.
FDiário de um hospital psiquiátrico
Em parceria:
FManual da Comunidade-Escola: uma experiência bem sucedida em comunidade
de menores infratores (texto).
FAprendendo a Ensinar: uma experiência com alfabetização de adolescentes
marginalizados (texto).
FAmadeu, um caso especial: uma experiência com menor considerado infrator de
“alta periculosidade” (texto).
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MEMÓRIAS DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO


Contos sobre casos no interior de um hospício
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Luiz Gonzaga de Freitas Filho

MEMÓRIAS DE UM HOSPITAL PSIQUIÁTRICO


Contos sobre casos no interior de um hospício

NOME – E DITORA
5

Capa: do autor
Copidesque:
Revisão:

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ()


()

Filho, Luiz Gonzaga de Freitas.


A Origem da Violência: Uma contribuição ao
estudo do comportamento violento/ Luiz
Gonzaga de Freitas Filho – Sete Lagoas, MG E d
i t o r a, 1999. - (Coleção Comportamento
Humano)

Bibliografia.
ISBN 00-000-0000-0

1. Comportamento 2. Violência 1. Título. II.


Série.

00 - 0000
CDD- 000.00

Índices para catálogo sistemático:

1. Cultura e Comportamento: Sociologia 000.00


2. Comportamento: Aspectos sociais 000.00
3. Comportamento e cultura: Sociologia 000.00

1ª edição
1999

DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA


PORTUGUESA:
 M.R. Cornacchia Livraria e Editora Ltda. - Papirus
Editora.
Telefones: (019) 272-4500 e 272-4534 - Fax~ (019)
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736-CEP13001-970-Campinas-SP-Brasil.
E-mail: papirus@lexxa.com.br -
http://www.papirus.com.br

Proibida a reprodução total ou parcial. Editora


afiliada a ABDR.
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COLEÇÃO COMPORTAMENTO HUMANO

Comportamento é ação de pessoas, é um fenômeno que envolve, antes


de tudo, gente. É um ramo que abrange várias ciências
concomitantemente e não pertence ao campo das ciências exatas.
Transcende a esfera das meras relações econômicas.

A tendência da humanidade é a de se concentrar nas grandes cidades,


o que torna esses núcleos humanos muitas vezes fonte de violência e
neurose urbanas.

Dado esse quadro, vemos atualmente deteriorar-se cada vez mais as


relações humanas, proporcionando ao indivíduo a experiência da
violência nessas relações, que o distanciam da convivência
harmoniosa e produz alterações no seu psiquismo e no seu meio
ambiente, tornando-o cada vez mais hostil e inadequado para o
bem-estar em comum.

Esta coleção pretende ser uma ferramenta de reflexão para todos os


que se interessam pelo fenômeno da violência e pelos fatores que
determinam sua existência e expansão, assim como para os
profissionais atuantes no estudo dessa área, atendendo à demanda
por bibliografia nacional e por novas visões da dinâmica social que
possam unir vários interesses acadêmicos no grande desafio de fazer
com que, no futuro, a vida em sociedade e sua compreensão não seja
mais um privilégio de minorias, mas um direito de todo cidadão.

Coordenador
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Este livro é dedicado às pessoas que


conviveram ou ainda convivem com
portadores de alterações do comportamento.
Relata situações dramáticas e cômicas que
costumam ocorrer em clínicas e hospitais
psiquiátricos.
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AGRADECIMENTOS
_______________________
Aos amigos e desconhecidos que,
como eu, optaram por compreender
os caminhos do comportamento
humano.
_______________________
À minha mãe com quem sempre tive
muita dificuldade de contato, mas a
quem devo grande parte da minha
experiência e, com certeza, a minha
vida.
_______________________
Ao meu pai, alicerce do meu caráter e
médico humanista que me deu os
primeiros exemplos de bondade e
sabedoria.
_______________________
Aos meus irmãos que, mesmo
estando longe, não saem da minha
lembrança.
_______________________
À minha mulher Ziléa e a os meus
filhos Juliana, Fernanda e Luiz
Alexandre, um abraço e um beijo pela
paciência com que toleram meus
momentos mau humor.
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SUMÁRIO

Relatos sobre casos ocorridos no interior de um hospício 1

Apresentação e objetivos ......................................................................................... 12


CAPÍTULO I................................................................................................................ 13
Os primeiros tempos ................................................................................................. 13
Percepção da realidade ............................................................................................ 14
O individual e o coletivo ............................................................................................ 16
Entrando e conhecendo o hospital.......................................................................... 18
CAPÍTULO II ............................................................................................................... 22
Os loucos e o governador......................................................................................... 22
A professora de mitologia......................................................................................... 23
Ruídos na noite .......................................................................................................... 24
O sanfoneiro ............................................................................................................... 26
O candidato ................................................................................................................. 27
CAPÍTULO III .............................................................................................................. 30
O homem dos sacos .................................................................................................. 30
Greve no ambulatório................................................................................................ 37
O trambiqueiro............................................................................................................ 40
CAPÍTULO IV ............................................................................................................. 44
O homem-árvore........................................................................................................ 44
A promessa ................................................................................................................. 46
O filósofo ..................................................................................................................... 51
CAPÍTULO V............................................................................................................... 54
O orador ....................................................................................................................... 54
A experiência com drogas ........................................................................................ 57
A namorada do residente ......................................................................................... 59
CAPÍTULO VI ............................................................................................................. 62
A saída do hospital .................................................................................................... 62
Profecia, ruínas e missão cumprida........................................................................ 66
Discurso civilizado e idéia de reconstrução........................................................... 67
12

Apresentação e objetivos

O objetivo deste trabalho é mostrar alguns aspectos do funcionamento de um


hospital psiquiátrico antigo e trazer de volta à memória alguns acontecimentos reais,
dramáticos e cômicos, ocorridos no seu interior. Essa é uma leitura leve, sem a
preocupação acadêmica de aprofundamento maior; uma forma de mostrar como
sentem e pensam os internos e como lidam os residentes frente a situações
inusitadas.

O tempo em que convivi nesse hospital psiquiátrico como acadêmico residente,


lidando com pessoas que, além de pobres, eram chamadas de loucas, serviu para
me ensinar que a loucura é uma convenção criada pela civilização branca; que os
remédios utilizados para curá-la são ineficazes e camuflam as verdadeiras razões
que produzem a desagregação mental; que o termo “doença mental” é desprovido
de qualquer sentido lógico e não é uma doença, mas um estado reativo adquirido
pelo acúmulo de tensões que o homem experimenta desde sua infância, vivendo
numa sociedade que o despreza e esmaga seu afeto e sua dignidade.

Durante minha permanência no extinto hospital público Juliano Moreira, em


Belém do Pará, aprendi como não se deve ajudar as pessoas que manifestam
comportamentos reativos, através do uso de remédios e diagnósticos. Lá encontrei
também profissionais que, como eu, não acreditavam nos caminhos arcaicos que a
Psiquiatria Clínica seguia na época e que ainda continua seguindo até hoje.

Foi uma ótima idéia ter feito um curso de formação didática em Psicanálise e
ter me submetido a duas psicoterapias: uma individual e outra grupal. Melhor ainda
foram as incursões que fiz em aldeias indígenas da Amaz ônia e os livros de
Antropologia que li durante esse percurso, que me ajudaram a esclarecer muitas
dúvidas sobre o comportamento individual e grupal dessas sociedades e, sobretudo,
das sociedades civilizadas. Não fosse isso eu até hoje estaria receitando remédios e
internando pessoas, numa época em que os avanços do conhecimento levaram a
considerar o cérebro como um potente órgão computacional que processa as
informações internas (do corpo) e externas (da relação social) para organizá-las de
forma coerente com as necessidades vitais.

Luiz Gonzaga de Freitas Filho


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CAPÍTULO I

Os primeiros tempos

Os verdadeiros loucos são os que passam a vida


correndo atrás de dinheiro, fama e poder.

Agora que já se passaram quase quatro décadas que eu entrei pela primeira
vez em um hospital psiquiátrico público, posso contar as lembranças desse tempo.
Todos os casos narrados aqui aconteceram realmente, apenas os nomes dos
personagens foram trocados. Alguns detalhes, desbotados pela memória, podem ter
sido omitidos ou alterados, mas não chegarão, com certeza, a mudar o significado e
o conteúdo autêntico dos relatos.

É possível que tenham sido dois os motivos que me tiraram do comodismo e


me fizeram escrever. O primeiro pode ter sido o temor da velhice e o prazer de
reviver a juventude; o segundo, a necessidade de transferir experiências obtidas na
prática diária e a obstinação de me opor ao mito da loucura e das suas instituições.

Como estudante universitário acreditei em muitas idéias e conceitos escrito


nos compêndios acadêmico e difundido pela boca dos arautos da “doença mental”.
Foi preciso vivenciar muitas situações reais para, então, descobrir o véu do discurso
tradicional e encontrar, por detrás dele, as verdades que não podiam ser anunciadas
para os jovens estudantes naquela época. Hoje posso, com relativa clareza, falar
dessas verdades com naturalidade e afirmar para os que ainda têm dúvidas, que a
loucura é um conceito ultrapassado e obscurantista defendido por fanáticos ou
ingênuos que ainda aceitam a existência dos hospitais psiquiátricos como local de
segregação e isolamento; essas instituições são a latrina e a vala comum onde são
depositados vivos, pela sociedade civilizada, os restos humanos que sobram do
“progresso tecnológico” e do “processo de desenvolvimento”.
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Percepção da realidade

Percebi que não são os comprimidos, as gotas e as injeções os verdadeiros


remédios que atingem o centro dos distúrbios da emoção e do sentimento humano.
Compreendi também que a grande maioria das alterações do psiquismo não são
causadas por bactérias, vírus, desvios bioquímicos e processos degenerativos. É a
própria ausência da igualdade de oportunidades e de solidariedade que produz e
mantém as chamadas “doenças mentais”. Acredito que o amor e a generosidade,
quando acompanhados de um sólido conhecimento científico e empenho pessoal,
são mais eficazes e produzem resultados certamente mais efetivos.

Concluí - como muitos outros profissionais já o fizeram - que o falso discurso


científico, que o lucro voraz obtido com o comércio de medicação psiquiátrica, que a
prática de manter pessoas semi-sedadas com o uso de ansiolíticos, tranqüilizantes e
antidepressivos são resultado de uma mentalidade individualista e consumista que
altera a convivência saudável e impede a manutenção de uma vida equilibrada.

Como um cavalo que quebra a perna e não serve mais para o trabalho, o
“nervoso” e o “doente mental” têm o mesmo destino: o abandono. Os donos do
saber os condenam ao uso interminável de drogas para “aliviar” seus protestos; os
desenganam preconizando a sua morte social, até não possuírem mais dinheiro para
manter a indústria da doença.

As falsas técnicas e conceitos alardeados por comerciantes de livros, religiões


salvadoras e cursos de auto-ajuda, funcionam como ópio para a esperança dos que
acreditam na prosperidade súbita, no autoconhecimento mágico, no empírico poder
da mente e em muitos outros “pacotes lucrativos”. O comércio da venda de ilusões
para a multidão de decepcionados com a nossa civilização desequilibrada, gera
acumulação de riqueza material e pobreza de espírito para aqueles que o
gerenciam.

Atualmente é fácil constatar o pulular dos misticismos de diferentes matizes e


de idéias e conceitos híbridos em que uma combinação de pseudociência, religião e
ocultismo se misturam, compondo um verdadeiro “coquetel salvador” para os sem
esperança. Apregoam as “energias positivas” (?), os encontros miraculosos com a
felicidade, com a harmonia cósmica, com o sucesso individual. Pirâmides, cristais,
gnomos e mapas astrais mantêm as ilusões na crença de um mundo melhor, onde
cada um, individualmente, possa encontrar as soluções mágicas desejadas para si.
Essas fórmulas, quase sempre, não premiam as soluções realistas para a vida
coletiva; enquanto isso, a sorte ou azar dos apostadores aumentam o comércio e a
produção das quinquilharias ligadas a essas viagens da imaginação.
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Ninguém está disposto a construir o mundo da convivência sob parâmetros


realistas. É preferível sonhar! O alicerce da realidade, que sustenta os sentimentos,
princípios e valores coletivos exige esforço e não dão lucros. Ninguém quer ser, a
maioria quer obter. Isso me leva a compreender porque na vida social dos indígenas
não circulam o lucro, as fantasias materialistas, as desigualdades e a violência.
Talvez eles tenham descoberto, há milênios, que para conviver humanamente e
produzir bem -estar basta sentir, pensar e agir coletivamente. Não vi “nervosos” nem
“doentes mentais” entre eles; talvez porque, no mundo deles, a razão da Vida esteja
apontada para a direção correta da convivência humana solidária, onde o todo vale
mais do que a parte. A parafernália civilizada deve ser vista por eles como um
hospício: de um lado os normais poderosos, de outro, os loucos desesperados. É
possível que um dia acordemos dos nossos sonhos e, por sobre nossos castelos de
areia, possamos construir uma nova civilização sob o alicerce sólido da realidade
coletiva.
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O individual e o coletivo

É possível que a vida humana esteja direcionada para dois pontos essenciais:
a sobrevivência e a convivência. O primeiro ponto está representado pela existência
de um corpo material – o organismo. O segundo ponto amplia a existência do
primeiro conferindo-lhe a capacidade de ser animado (anima=alma) e de coexistir
com outros organismos também animados. Portanto o sentido maior do organismo é
a sobrevivência, enquanto que o ser-animado encontra sua razão maior na
convivência.

Se olharmos o corpo sob uma visão puramente biológica iremos compreendê-


lo como um conjunto de órgãos cujas funções foram projetadas geneticamente para
manter a vida material equilibrada - a saúde orgânica. Ao concebermos um ser-
animado alargamos essa visão restrita e, vendo-o na interação com outros,
passamos a admitir a necessidade da sua existência em grupos humanos estáveis,
aquilo que chamamos de vida social. As características dessa associação em
grupos, por sua vez, irão determinar não apenas sua sobrevivência mas, sobretudo,
a qualidade de vida que poderá ter.

Observando a vida social dos grupos humanos “in loco” – e através de


estudos etnológicos – percebemos muitas diferenças entre o conviver coletivo das
sociedades naturais e o conviver individualista nas sociedades contemporâneas.
Apontamos o processo civilizatório como o mais provável divisor de águas nessa
composição de diferenças e a criação do Estado Nacional como instituto que permite
e mantém as desigualdades sociais – um equivoco institucionalizado.

A sobrevivência sempre foi um forte estímulo mobilizador do comportamento


humano. Em épocas remotas, quando o homem só podia contar com o ambiente
natural para sobreviver, necessitava da força do grupo como elemento indispensável
para manter-se vivo. O individuo sempre precisou estar ligado a grupos para existir,
sobreviver e identificar-se como individualidade.

É possível que os avanços tecnológicos – desde a invenção da flecha e da


roda até a corrida espacial – produções humanas, tenha contribuído fortemente para
as mudanças nas relações dos grupos humanos atuais. É preciso admitir que a
divisão dos bens produzidos e da riqueza material é tarefa difícil. Exige qualidades
nem sempre a disposição de todos os indivíduos.

Pierre Clastres, etnólogo francês que estudou os índios Ianomâmi refere-se a


aspectos profundos da sua organização sócio-politico-religiosa contida no cerne de
sua vida tradicional. Uma profunda sabedoria extraída da síntese do comportamento
desse povo – que não conhece e nem aceita a estrutura política do Estado Moderno
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- poderia ser traduzida pela seguinte expressão: “Seres humanos nunca estarão
preparados para lidar com grandes volumes de poder. Quando isso acontece eles
perdem a razão e se tornam violentos. E todo o povo sofre”.

Foi com essa visão que conseguimos conceber o caos que representa a vida
civilizada: na existência dos hospitais psiquiátricos, das instituições prisionais e dos
lixões habitados das grandes metrópoles. Se os índios Ianomâmi estiverem com a
razão, nós os civilizados, precisamos descobrir outras formas de conviver. Essa é
uma questão antiga que remonta a muitos séculos, antes mesmo do aparecimento
do Cristo.
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Entrando e conhecendo o hospital

Naquela época era mais fácil um estudante de medicina conseguir uma bolsa
de estudos para trabalhar e morar, como residente, num hospital psiquiátrico público.
Quem estivesse no quarto ano da faculdade poderia pleitear um a vaga e ainda
recebia uma ajuda de custo próximo de um salário mínimo. Isso era uma verdadeira
mina para os estudantes. Após ter conseguido a bolsa passava a residir com mais
quatro colegas numa das dependências do prédio hospitalar que ficava logo à frente
e à direita do corredor central de acesso. Camas e guarda-roupas ficavam numa
ampla sala sem divisórias que dava um tom coletivo ao ambiente. Ao lado havia uma
saleta que servia de cozinha, refeitório e banheiro. Ali era uma verdadeira casa, um
mundo particular, uma república que permitia ter uma vida semelhante à de muitos
outros estudantes; onde se podia descansar, ler, conversar, receber visitas. A única
diferença era que, por estar situada no interior de um hospital psiquiátrico, tinha
cerca de hum mil e quinhentos vizinhos que nem sempre estavam com a cabeça no
devido lugar.

O antigo e amplo casarão hospitalar, de arquitetura neoclássica, ocupava


uma quadra inteira, cerca de dez mil metros quadrados e abrigava os pacientes
separados em duas alas: do lado direito ficava a ala feminina com aproximadamente
oitocentas pessoas e do esquerdo a ala masculina, com cerca de setecentos
ocupantes. Os médicos também se dividiam em duas categorias: os que possuíam
idéias antigas e praticavam a psiquiatria tradicional com seus diagnósticos, remédios
e eletrochoques e os que defendiam idéias novas e propugnavam por mudanças e
por uma visão mais humanista e integradora em relação aos internos. Por ser um
hospital pobre – contava com poucos recursos do governo estadual – funcionava
também como se fora uma Santa Casa de Misericórdia, pois outros hospitais
costumavam recusar atendimento à “doentes mentais”. Clinica geral, pequenas
cirurgias e até partos eram feitos, sempre que possível, no próprio hospital; só em
casos especiais os doentes eram encaminhados para receber atendimento externo.

Entre os internos havia o grupo dos “muito pobres” que não mais recebia
visita dos familiares e não contava com qualquer atenção ou tratamento no hospital.
Esses esquecidos eram cham ados de grupo da abandonoterapia. Outro grupo era o
dos “menos pobres”, que ainda tinha familiares e visitas, recebia algum tipo de
atenção e tratamento e ainda se esforçava para fazer contatos com os funcionários,
médicos e residentes. Eram mantidos pela previdência social. Outro grupo era
constituído de pacientes particulares, pouco numeroso e que gozava de maiores
regalias entre alguns médicos e funcionários – eram os pagantes, cuja permanência
costumava ser muito curta.

Os residentes escolhiam apoiar e seguir a linha progressista dos médicos e


funcionários voltados a provocar mudanças na estrutura e funcionamento do velho
hospital. Embora simples estudantes possuíam um certo poder dentro do hospital
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pelo fato de residir lá dentro. Seguiam um sistema de plantões de vinte e quatro


horas feito em rodízio, com isso estavam em contato permanente com internos e
funcionários. Havia também uma contínua troca de informações entre residentes
sobre fatos e ocorrências do dia, o que os deixava razoavelmente atualizados. Os
outros funcionários e a direção, ao término do expediente diurno, retornavam para
as suas residências e voltavam no dia seguinte. Após o horário de expediente
normal o residente de plantão assumia a direção, podendo ser chamado a qualquer
hora da noite para decidir sobre assuntos ligados ao funcionamento normal das
atividades.

Em três anos de convivência com internos, médicos e funcionários fica mais


fácil compreender como é doloroso não ter família, ser pobre e perder a condição de
ser tratado com a dignidade que merece um cidadão ou cidadã. O rótulo da “doença
mental” determina não apenas uma perda dos direitos, mas, sobretudo, das três
grandes aspirações desejadas pelo homem civilizado:

• Perda do poder político (restrição da vontade, do ato, da liberdade).


• Perda do poder econômico (restrição da administração dos bens)
• Perda da dignidade pessoal (cidadania, restrição da identidade social).

O alienado mental, como ainda é chamado, perde sua condição legal de


cidadão, perde o poder sobre seus bens materiais, perde o contato com sua família
e com a sociedade e cria dentro de si um mundo próprio, onde imagina “compensar”
todas as perdas que o seu delírio possa recuperar. Na verdade ele ganha a pobreza,
o abandono e a desatenção. Perde a cidadania e ganha outra condição – a de louco.

Um levantamento realizado no hospital com todos os internos confirmou a


existência de dois grupos de pacientes: os que ainda conseguiam estabelecer algum
contato pessoal e os que não conseguiam (ou não queriam?) fazer contatos. Foram
identificadas duzentas e oitenta e três pessoas que viviam em completo estado de
abandono, esquecidos pela instituição e que perambulavam sem identidade e sem
qualquer objetivo pessoal. Eram como zumbis, já não sabiam falar o próprio nome,
nem lembravam dos familiares ou de endereços; eram mortos-vivos esquecidos de
si mesmos e de todos. Eram conhecidos como “pacientes crônicos”, “terminais” ou
“irrecuperáveis”, isto é, o lixo humano da instituição. Como não participavam de
atividades e também não recebiam qualquer tipo de tratamento, foram ironicamente
chamados pelos residentes de “grupo da abandonoterapia”.

Os residentes eram proibidos de fazer prescrições por conta própria e de


alterar o rumo dos tratamentos médicos instituídos. Ficava difícil, portanto, mudar a
situação existente. Começaram, junto com alguns médicos e funcionários, a projetar
uma nova organização para o hospital. Era necessário ter muita habilidade porque já
sabiam que, mudar e melhorar o atendimento iria mexer com muitos interesses,
expor vários erros, apontar omissões e distribuir melhor as responsabilidades.
20

Pacientes particulares podiam receber visitas diárias e até em fins-de-


semana. Os mantidos pela previdência eram atendidos semanal ou mensalmente
em entrevistas-relâmpago. Outros podiam ficar meses sem qualquer atendimento. A
atuação de alguns médicos chegava a ser absurda e, algumas vezes, até cômica.
Havia médicos que prescreviam eletrochoques, outros davam passes magnéticos
em seus pacientes e outros médicos os esqueciam durante meses. Certa vez os
residentes foram informados pelo enfermeiro de plantão que um profissional
costumava reunir quinze pacientes e, numa cena que mais parecia um programa de
auditório de televisão, contava piadas e prescrevia em grupo, ou seja, todos os
integrantes do grupo recebiam o mesmo padrão de tratamento medicamentoso. A
prescrição era escrita em um prontuário e recopiada para os demais.

A proposição de mudanças encabeçada pelo grupo progressista iniciou um


estado de guerra na instituição. De um lado ficavam os defensores da estagnação e
do outro os adeptos da mudança e reorganização. O diretor do hospital, homem
liberal e cauteloso, ocupou uma posição moderadora entre as partes.

Certa vez um dos médicos da ala conservadora, criticando um trabalho de


pesquisa iniciado por dois residentes e orientado por outro médico progressista,
assim se pronunciou na reunião semanal: “Não acredito que estudantes de medicina
estejam preparados para desenvolver um trabalho científico. Há muitos que, com um
QI de imbecil, conseguem passar no exame vestibular”. Retrucou uma médica da ala
progressista, completando a fala: “... e se formar, doutor!”. Era assim naqueles
tempos: batalhas verbais, boicotes, críticas pesadas e ameaças.

O tempo foi conseguindo mostrar que o hospital servia mais para manter os
interesses dos poderosos e prepotentes adeptos da ala conservadora do que para
atender bem aos internos e oferecer treinamento de qualidade para os residentes.
Manter a situação estagnada servia aos propósitos e privilégios adquiridos até então
pelos controladores da mente e da “doença mental”; mudar e organizar significava o
fim do parasitismo institucional e a perda do poder e dos privilégios de alguns. O
“doente mental” servia como matéria prima para a manutenção do caos. Foi possível
compreender que a expressão “saber científico” não possui qualquer valor real; que
ela pode servir aos detentores do saber segundo suas próprias intenções, sobretudo
quando dignidade e cidadania são substituídas pela ganância e voracidade dos que
controlam o poder do conhecimento.

A medida em que o hospital ia ficando cada vez menos doente, os pacientes


melhoravam. Já não ficavam tão presos e mendigos porque eram estimulados a sair
e reivindicar seus direitos. Participavam de festas, jogos, passeios e pequenas
viagens e excursões. O estímulo às suas famílias aumentava o número de visitas e
provocava a diminuição das doses de remédios e da freqüência dos eletrochoques.
Os conservadores se irritavam e alguns pacientes já conseguiam sorrir. Havia um
certo temor de irritar demasiadamente os conservadores para evitar que os sorrisos
se transformassem em gargalhadas de deboche. Era necessário atenuar os atritos e
21

mantê-los em nível suportável, o importante era que o clima de livre expressividade


continuasse crescendo e sufocasse o autoritarismo da instituição. Esse clima era
muito bem -vindo e desejado por internados e residentes.

Na verdade o clima existente em um hospital psiquiátrico não difere muito de


outras instituições como família, escola e empresa. A liberdade quando se torna
expressiva, solidária e responsável acaba se tornando construtiva e alegre.
22

CAPÍTULO II

Os loucos e o governador

Certa vez houve uma festa junina no hospital. Nesse dia tinha um pouco de
tudo: fogueira, quadrilha, quebra-potes, pau-de-sebo e outras brincadeiras. Havia
nos fundos do hospital uma grande área onde se podia jogar “pelada”, voleibol e que
também era usada para outra atividades. Por toda parte se via bandeirolas coloridas
e no centro do imenso quintal a fogueira já estava acesa.

O diretor do hospital, figura de grande influência política, havia convidado


algumas autoridades para a inauguração das reformas feitas recentemente nessa
área de lazer e para participarem da festa que marcava essa obra. O convidado
central era o governador do Estado, que vinha sempre acompanhado de numerosa
comitiva. Dois internos, um branco e um negro adoravam ficar próximo às
autoridades nas inaugurações e festas que ocorriam no hospital. Já era um fato
comum e repetido em outras ocasiões.

No dia dos preparativos para a festa o hospital mais parecia um formigueiro.


Enquanto uns levavam cadeiras e mesas, outros colavam bandeirolas ou estavam
varrendo o chão, carregando lenha e ajudando na cozinha. No final da tarde a festa
começou. Os internos dançavam pela música de um velho sistema de som instalado
às pressas. Mais tarde alguém pede a palavra e anuncia a chegada do governador e
sua comitiva. Todos pararam de dançar e ficaram assistindo aos longos discursos
feitos pelas autoridades. Após o discurso do governador elogiando o hospital,
seguiram -se as palavras de agradecimento do diretor. Foram servidas as comidas e
bebidas.

O paciente negro, junto ao governador, observava com atenção olhando-o de


cima a baixo enquanto ele saboreava as deliciosas comidas e bebidas. Quando ele,
satisfeito, se despedia para sair o paciente negro o interrompeu e falou: “Doutor,
agora que o senhor já comeu bem, está na hora de ajudar a gente a levar de volta
para o refeitório as mesas e as cadeiras”. O paciente branco, visivelmente
embaraçado e cumprimentando o governador, falou: “Não se preocupe excelência, o
nosso amigo aqui é um paciente em recuperação. Ele é gente boa. Estava só
brincando”. O governador, um pouco constrangido, disfarçou com um sorriso
eleitoral, cumprimentou ambos os internos e foi saindo. Atrás dele foram as
autoridades, o diretor, sua comitiva e os adeptos da ala conservadora. Agora já era
possível o representante do governo estadual conversar e apertar a mão dos
“loucos”.
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A professora de mitologia

Na ala feminina havia uma paciente que era professora universitária e


especialista em História da Civilização Grega. Era bem branca, alta e magra, seu
rosto apresentava traços finos, elegantes, denotava um ar aristocrata. Seu porte
altivo e ereto e sua fisionomia séria e imponente impunham muito respeito. Seu
timbre de voz era agudo e estridente. Falava sem parar.

Certa manhã abordou o residente no corredor reclamando que seu médico a


estava obrigando a tomar muitos tranqüilizantes. O residente conversou com seu
médico e ele concordou em transferir para ele a continuidade do seu tratamento. O
residente retirou uma parte dos remédios e aumentou o número de entrevistas.

Certo dia ela perguntou ao residente o que ele sabia a respeito de mitologia
grega. Ele respondeu: “Quase nada”. Ela o censurou e perguntou em qual ano da
faculdade ele estava. Falou que estava no quinto ano. Ela, ironicamente, perguntou
como ele poderia ser médico dela se ainda não havia concluído o curso e ela já
havia até lecionado em sua universidade. O residente falou que estava treinando
para cuidar de pessoas e que gostava muito desse trabalho.

Brigou com ele durante muito tempo e, após certo período, passou a tratá-lo
como filho e como aluno. Essas entrevistas se transformaram em aulas de mitologia
grega e ele se tornou um ouvinte atento e aprendeu muita coisa que não sabia sobre
a Grécia Antiga. Nos intervalos das aulas falava sobre sua vida. Era solteira, tinha
cinqüenta e oito anos, morava só num apartamento modesto e estava aposentada.
Sentia-se muito solitária. Nunca dera sorte no amor, pois, segundo dizia, os homens
a temiam e não conseguiam se aproximar.

No dia da sua alta pediu desculpas por ter sido ríspida com ele em algumas
entrevistas, abriu sua bolsa e ofereceu um velho livro sobre a História da Civilização
Grega. O residente sorriu e a abraçou em agradecimento. Ela despediu-se e saiu do
hospital acenando com a mão e com a bolsa pendurada no ombro.
24

Ruídos na noite

O residente acordou atordoado. Teve a impressão de ter ouvido uma sirene


de ambulância. Pensou ter sonhado e, sonolento, conferiu as horas: eram três horas
da manhã. Voltou a deitar e, logo em seguida, ouviu fortes murros na porta do
quarto. Rapidamente correu e abriu a porta, ele era o plantonista naquela noite. Viu
o rosto tenso do funcionário da portaria que gaguejando falou: “Tem ocorrência aí
fora e o homem está violento”. O residente vestiu apressadamente as calças e o
jaleco branco, enfiou os pés nos sapatos e lançou um olhar preguiçoso sobre as
camas. Todos os outros residentes dormiam e roncavam tranqüilamente. Enquanto
se preparava ouvia vozes que ecoavam altas e, em seguida, um ruído de vidros se
partindo.

Chegou na portaria e deparou com a cena que ainda se desenrolava. O chão


estava coberto de cacos de vidro. Duas viaturas da polícia militar estavam paradas
na rua. Oito policiais militares, com cordas nas mãos, se protegiam por detrás do
enorme portão de entrada do hospital. Um sargento com dois metros de altura, com
as mãos sangrando, ainda quebrava os restos de vidros da estante da portaria. Ele
estava enfurecido e com cheiro de bebida; insultava os policiais que o observavam
através do portão de ferro, pelo lado de fora. O porteiro do hospital, acuado num
canto, pedia calma enquanto olhava os pedaços de vidro espalhados pelo chão.

O sargento enfurecido viu o residente chegar e partiu ameaçador em sua


direção. O residente sentiu as pernas irem ficando duras enquanto o coração
parecia disparar e bater na garganta. Teve a impressão de que um pesado trator iria
lhe esmagar sem que pudesse mover-se. O sargento-gigante abotoou-o pelo jaleco
e quase o tira do chão. Em seguida falou:
- É você que é o Doutor?
O residente balbuciou:
- Sim...
O sargento falou:
- Já tomei dez cachaças só para poder dar um bafo na cara de um doutor. E
deu o bafo.
O sangue voltou a circular no corpo do residente e ele, tentando manter-se
calmo, falou:
- Se você soltar o meu jaleco, acho que podemos conversar.
O residente usava toda a sua coragem para aparentar calma e serenidade
naquele momento. O sargento olhou ao redor e aos poucos foi soltando sua roupa.
Para acalmá-lo e para evitar que suas próprias pernas tremessem o residente
convidou-o a sentar-se num banco que estava próximo. As forças do residente
estavam voltando e ele perguntou o que estava acontecendo. O sargento falava alto,
25

gesticulava e ia respingando sangue e saliva. Olhava para os colegas e os insultava


com palavrões, maldizia sua corporação, criticava o hospital, sua própria família e
ameaçava o porteiro. Estava muito agitado. Fazia quatro noites que não dormia e
bebia muito para se acalmar.

De vez em quando interrompia o relato para chamar os colegas de covardes,


traidores e outras expressões impublicáveis. O residente ficou ouvindo durante
quase uma hora as suas queixas e indignações. Falou:

- Não vou ficar internado. Se tentarem isso eu quebro esse hospital. Só quero
dormir um pouco e tirar essa confusão da minha cabeça.

O residente respondeu que não seria obrigado a ficar. Poderia cuidar dos
ferimentos e logo em seguida, se quisesse, sairia. Mas se quisesse dormir um pouco
tínhamos remédio para isso e para a “confusão na cabeça”. Resistiu muito, mas,
finalmente, fez um acordo: cuidaria dos ferimentos, dormiria aquela noite no hospital
e quando acordasse voltaria a conversar e fazer novo acordo. Ele aceitou, mas na
hora de tomar a injeção de sedativo ameaçou o enfermeiro:
- Se doer, eu vou quebrar a cara dele – falou olhando com a cara feia para o
enfermeiro.
O residente não concordou com a ameaça e mandou suspender a injeção.
Falou que ele estava recusando nossa ajuda e que a alternativa que restava seria a
de mandá-lo de volta para o quartel. Ele logo reagiu e concordou que precisava
dormir porque estava muito cansado. Foi feito o sedativo e, após alguns segundos, a
montanha começou a desmoronar. Suas pálpebras foram ficando pesadas, suas
palavras se desarticulavam e aquele corpo de mais de cem quilos se dobrou de lado
e foi deitando no banco. Caiu em profundo sono e seus colegas de farda ajudaram o
enfermeiro a colocá-lo na maca. Foi levado para o interior do hospital. O residente
voltou para sua cama aliviado, mas não conseguia dormir; seu corpo ainda tremia e
o ruído do despertador anunciava que um novo dia estava começando.
26

O sanfoneiro

Entrou no consultório o último paciente que iria se atendido naquele tarde de


sexta-feira. Era um homem baixo, atarracado, com a cabeça globosa e ar simpático.
Seu rosto era expressivo, falava em voz baixa com ritmo pausado, quase suplicante.

O cansaço era visível no rosto do residente, depois de uma semana cheia e


movimentada. Ele já se via caminhando para o quarto, tomando um bom banho e
jantando. Depois decidiria se iria a um cinema ou a qualquer outro lugar.

Com jeito humilde e embaraçado o homem falou: “Doutor, eu não quero tomar
muito o seu tempo; queria só uma explicação e uma ajuda”. Olhando sempre para
suas mãos, informou que tocava sanfona e queria se aperfeiçoar mais. Tinha a
impressão que as peles que uniam a base dos seus dedos dificultavam o movimento
de cada dedo isoladamente. Explicou que quando mexia um dedo o do lado também
se mexia. Isso, segundo ele, atrapalhava a autonomia de cada dedo e poderia ser o
fator responsável pelos seus erros quando estava tocando o instrumento. Queria
também aprender datilografia e esse “problema” poderia incomodá-lo. Perguntou se
aquelas peles eram mesmo necessárias e se era possível fazer uma cirurgia para
corta-las um pouco. Talvez, assim, pudesse ficar com os dedos mais livres, mais
ágeis, diminuindo seus erros.

Os olhos e ouvidos do residente estavam centrados na estória do sanfoneiro.


Estava perplexo, pois nunca havia se deparado com um “problema” daquele tipo.
Enquanto o sanfoneiro falava o residente, num turbilhão de idéias, pensava nas
possibilidades de solução para o caso. Ao encerrar sua estória suplicou para que o
residente fizesse a cirurgia de que tanto necessitava. Ao se despedir o residente
prometeu que iria ouvir a opinião de um colega que fazia estágio em cirurgia geral.
Assim que tivesse uma resposta o informaria sobre o que fazer nesse caso.

Por coincidência o residente encontrou-se com o colega estagiário no dia


seguinte e contou o caso do sanfoneiro. Depois de rir muito o estagiário ficou
pensativo e falou: “Sabe que eu nunca tinha pensado nisso. Não sei realmente qual
seria o efeito desse tipo de cirurgia”.

O residente decidiu arbitrariamente que a cirurgia não deveria ser tentada e


comunicou essa decisão ao sanfoneiro. Argumentou dizendo que tudo o que a
natureza faz tem algum sentido e função. O sanfoneiro baixou a cabeça e ficou em
silêncio, parecendo ter se conformado com a explicação. O residente, porém, ficou
em dúvida se agiu de modo acertado, mas com a convicção de não iria ser ele o
autor da estranha cirurgia.
27

O candidato

Iria abrir uma vaga para estudante residente no hospital. Um dos residentes
que cursava o sexto ano iria sair em Dezembro. Alguns alunos do quarto e do quinto
ano da faculdade freqüentavam o hospital para tentar conseguir a tão disputada
vaga. Havia os que, após entrarem em contato com os pacientes, jamais voltavam;
outros resistiam heroicamente ao medo e, ainda que temerosos, procuravam se
adaptar. Meses antes que essa vaga se consolidasse eles se tornavam assíduos
freqüentadores da nossa república. Perguntavam, nos acompanhavam e trocavam
idéias sobre os diferentes trabalhos realizados no hospital. O estudante que
conseguisse a vaga receberia, além de uma bolsa equivalente a um salário mínimo,
alimentação gratuita fornecida pelo hospital e um certo prestígio junto aos outros
alunos da faculdade.

Os residentes veteranos possuíam uma relativa experiência, uma espécie de


“olho clínico” para perceber o perfil psicológico dos candidatos à vaga. Além de
paciência, “sangue frio” e disposição para um trabalho duro, era preciso ter uma
razoável estrutura pessoal para conviver durante alguns anos num hospício.

Um dos candidatos era o Tarcísio, jovem de raciocínio lento, muito meticuloso


e excessivamente organizado. Não gostava de abraçar os pacientes e evitava os
contatos que pudessem macular a brancura das suas roupas. Mas era persistente e
não desistia facilmente de lutar pela vaga. Não era muito admirado pelos residentes
e pela maioria dos funcionários; sempre perguntava se a comida era de boa
qualidade e se o pagamento saia direitinho no final do mês.

Certa tarde os residentes reunidos resolveram submeter o Tarcísio a uma


bateria de testes que pudesse comprovar sua boa vontade e interesse pelo trabalho,
uma espécie de “prova de fogo” que conseguisse checar seu preparo para trabalhar
naquele hospital, separando a vocação pela vaga da vocação pelo trabalho. Esses
testes teriam que ser mantidos em segredo pelos residentes até seu término. Era
justo que tivesse que enfrentar os testes, pois, pelo que se podia perceber, ele não
conseguiria suportar seis meses de permanência naquele lugar, ocupando a vaga
desnecessariamente. As experiências diárias com os pacientes eram difíceis e
inusitadas.

Certa vez um dos residentes voltara para o quarto rindo muito e, ao mesmo
tempo, se lamentando. Um paciente que estava sendo entrevistado havia arrancado
bruscamente os seus óculos e os partira ao meio, ficando com a outra metade. O
paciente argumentara que repartir os óculos em dois pedaços e ficar com um deles
para si, lhe parecia mais justo do que deixar o residente ser proprietário de ambos os
lados. Lançar objetos, gritar com o entrevistador, agarrar-se ou rasgar as roupas do
28

interlocutor e fazer reclamações intermináveis, eram situações de rotina naquele


lugar.

O Tarcísio precisava engraxar seus sapatos brancos. Fora informado de que


havia um paciente experiente nesse ofício. Os sapatos foram levados para a ala
masculina e voltaram muito bem engraxados, mas sem o couro dos bicos. Quem os
calçasse ficaria com os dedos à mostra. O Tarcísio ficou irritado com o prejuízo, mas
o residente que os trouxe falou que o paciente decidiu que assim ficaria melhor, pois
fazia muito calor naqueles dias.

Outras brincadeiras foram feitas com o Tarcísio. Colocar bolas de manteiga


no bico dos sapatos, cortar todos os botões da roupa ou esconder objetos de uso
pessoal, eram formas de testar sua paciência e esportividade. Mas ele resistia e
continuava freqüentando a república e o hospital. Mas chegou o dia em que um dos
residentes teve uma idéia genial, um verdadeiro teste-limite para o candidato. Esse
seria o último a ser feito para completar a bateria.

Havia um senhor já velho - o Habib - paciente antigo no hospital. Morava no


mesmo quarto coletivo junto com os residentes. Ajudava nos serviços domésticos:
arrumava as camas, recolhia a roupa suja, esquentava a comida, servia as refeições
e varria o quarto. Era libanês e veio tentar sua vida no Brasil no tempo em que ainda
era bem novo. Muito prestativo e educado já vira passar muitos outros estudantes
que viveram parte de suas vidas naquele quarto. Ganhava meio salário mínimo pago
pelo hospital, merecia uma atenção especial e recebia presentes dos estudantes e
funcionários. De vez em quando entrava em crises delirantes onde relembrava os
velhos tempos em que era comerciante de peles e de outros produtos. Foi
comerciante ambulante, dono de “regatão1” e havia viajado por grande extensão da
Amazônia brasileira e em algumas localidades da Bolívia, do Peru e da Colômbia.

O Habib foi chamado para uma reunião secreta e lhe foram explicados todos
os detalhes do novo plano. Ele sorria e concordava balançando a cabeça num gesto
afirmativo. Era um veterano e já tinha sido protagonista de muitas encenações e
brincadeiras com diferentes gerações de estudantes.

O Tarcísio guardava um certo temor do velho Habib, sobretudo quando este


começava a delirar. Fora inventada uma estória sobre suas crises. Dizia-se que,
nesses momentos, ele se tornava agressivo, perigoso. Havia, em algumas ocasiões,
empunhado garfos e facas para atingir quem estivesse próximo. Era um homicida
impulsivo que já havia feito três vítimas, por motivos fúteis, quando ainda exercia sua
atividade de comerciante. Não deveria ser perturbado de forma alguma quando
demonstrasse comportamento delirante ou esquisito, situações em que poderia
alterar seu humor e transformar-se num terrível predador. Essa estória era contada
para os estudantes visitantes que não mereciam a simpatia dos residentes.
29

O Tarcísio foi convidado para almoçar no domingo com os residentes. Nesse


dia todos vestiram suas roupas mais velhas e usavam sandálias de borracha.
Quando o Tarcísio chegou, cabelos bem penteados e de roupa nova, estavam todos
conversando animadamente, sentados ou deitados sobre as camas. Após certo
tempo o Habib interrompeu a conversa e, educadamente, convidou a todos para
sentarem-se à mesa. A comida era muita e estava com uma aparência convidativa.
Todos já haviam se servido quando o velho Habib, de repente, começou a fazer um
discurso para o fogão, como se o fogão fosse uma pessoa. Insultava o fogão e,
subitamente, entoava canções de amor para ele. Falava e cantava, ora em
português, ora em árabe e também em espanhol. O Tarcísio, de olhos arregalados,
estava perplexo assistindo aquele ritual estranho. Os residentes estavam quietos e
olhavam apenas para seus pratos cheios de comida. Alguém sussurrou para o
Tarcísio: “Olha para o teu prato e fica quieto. Ele está delirando”. Ele obedeceu e
ficamos assistindo a representação magistral do Habib.

Encerrado o ritual com o fogão, o velho ator se aproximou da mesa dando


gargalhadas e falando palavras desconexas. Pegou uma grande concha e começou
a distribuir a comida que estava nas travessas por sobre as cabeças de cada um dos
participantes do almoço. Colocava macarrão, arroz, salada e feijão por dentro das
camisas e por sobre os braços e pernas dos convidados e às vezes provava com a
língua e estalando-a comentava: “O tempero está no ponto!” Cantava e discursava
enquanto ia lambuzando todos. Os residentes começaram a imitar o Habib e logo
estavam depositando comida na cabeça e nas roupas dos vizinhos mais próximos.
Rindo e cantando junto com o Habib o grupo formava um coro e manifestava uma
grande alegria em participar daquele estranho festival de comidas. O Tarcísio,
assustadíssimo, foi sendo obrigado a submeter-se aos procedimentos. Entre sorrisos
amarelos e sem compreender o que estava acontecendo, participou a contragosto
daquela orgia alimentar.

Quando a comida acabou o Habib, ainda cantando, foi apanhar toalhas de


banho para todos e organizou uma fila em frente ao banheiro. Após o banho todos
ajudaram na faxina para limpar a sujeira espalhada por sobre a mesa, pelo chão e
pelas paredes do refeitório. Foram emprestadas roupas limpas para o Tarcísio voltar
para casa. Essa foi a última vez que o vimos no hospital. Perdemos, assim, o nosso
candidato.

1
regatão - tipo de comércio ambulante. Aquele que compra em grosso para vender a retalho.
Vendedor que percorre os rios de barco, parando de lugar em lugar: "Os regatões são os traficantes
que levam em canoas, por todos os rios, lagoas, furos e lugares, mercadorias estrangeiras ou
nacionais, e as vendem a dinheiro, ou as permutam pelos produtos do país". (Aurélio).
30

CAPÍTULO III

O homem dos sacos

Havia um paciente no hospital que andava sempre com um saco. Dentro do


saco muitos objetos poderiam ser encontrados: pedras, pedaços de madeira, folhas
secas, pequenas caixas vazias, etc. Tratava esses objetos como se fossem peças
muito valiosas. Seu discurso era o de um magnata, falava que possuía muitas
terras e gado, minas de ouro e de pedras preciosas, prédios e navios, aviões e
lanchas. Era um homem podre de rico. Vivia solicitando licenças para sair do
hospital e cuidar dos seus negócios lá fora. Pedia para todos que o ajudassem a
fazer petições, requerimentos e cartas para a direção do hospital, pois estava tendo
muitos prejuízos. Seus funcionários o estavam roubando e dilapidando seus bens
na sua ausência.

Ficava horas contando os seus papéis velhos e gravetos e os escondia


rapidamente quando alguém se aproximava. Prometia grandes somas em dinheiro
para os enfermeiros se eles conseguissem a sua “libertação”. Queria, porém, um
documento com assinatura do diretor e de todos os médicos do hospital para que
pudesse legalizar lá fora a sua vida e seus bens.

Certa vez fugiu do hospital aproveitando-se da distração dos funcionários


num dia de festa. Estavam todos no grande quintal que ficava atrás dos prédios,
quando ele pulou o muro com o saco nas costas. Ficou oito dias na rua. Regressou
no nono dia contando várias estórias. Ao invés de um saco, já possuía dois. O
maior, que conseguira na rua, estava cheio de objetos catados pelas esquinas.
Disse que não poderia misturar o conteúdo dos sacos porque esses conteúdos
pertenciam a dois mundos diferentes: o da rua e o do hospital. Se o fizesse - dizia -
poderia desorganizar sua cabeça, que já sabia de cor o que havia e quanto havia
dentro de cada um.

Ele era um paciente solitário, gostava apenas da companhia dos seus sacos.
Não participava de atividades grupais e estava sempre muito desconfiado. Para
melhorar nosso contato com ele passamos a presenteá-lo com vários objetos sem
importância como: caixas de fósforos e de chicletes vazias, pedaços de papel de
chocolate, prospectos de remédios com figuras coloridas, etc. Ele os recebia para
depois selecioná-los. Guardava no saco os que eram aprovados por ele e jogava
fora os restantes. Um dia perguntamos a ele por que selecionava os objetos.
Respondeu: - “Para separar o joio do trigo”. Explicou que as pessoas e os objetos
31

são divididos em “bons” e “maus”; os bons devem ser guardados e os maus


jogados fora.

Ele era um dos pacientes que nunca recebia visitas dos familiares. Era
solteiro. Perguntamos sobre sua família. Ficou calado e abriu o saco grande, tirou
de lá vários papéis e pôs-se a contá-los na nossa frente. Perguntamos por que
resolveu contar os papéis na nossa frente, já que não gostava de fazer isso na
frente das pessoas: - “Você é muito curioso, mas é uma pessoa boa” - respondeu.
Despediu-se em seguida e saiu pela porta do consultório carregando os dois sacos.
Passamos alguns meses conversando com ele sem tocar no assunto relativo à sua
família. Já éramos amigos e tínhamos até permissão de retirar alguns objetos de
ambos os sacos, um de cada vez, para examiná-los com as nossas próprias mãos.
Fizemos vários requerimentos solicitando a sua “libertação” do hospital. Nenhum
resultado concreto.

Em uma das nossas conversas tivemos a feliz idéia de associar sua


“libertação” à sua família. Falamos que só se sentiria livre para sair do hospital
quando o hospital deixasse de significar para ele uma família. Teria que tentar uma
reaproximação com a sua verdadeira família para poder livrar-se do hospital.

Passou três semanas sem nos procurar, mas, um belo dia, pediu para
termos “uma conversa em particular”. Não queria entrar no consultório para
conversarmos porque acreditava que “até as paredes têm ouvidos”. Fomos
conversar debaixo de uma mangueira velha que havia no fundo do quintal do
hospital. Puxamos dois tijolos e sentamos. Confortavelmente instalados nos tijolos
iniciamos a nossa conversa. Com os sacos perto de si, começou a falar sobre sua
família.

Morava no interior e sua família possuía uma fazenda com plantações e


gado. Possuíam um barco com motor a óleo diesel e um pequeno estabelecimento
comercial. Eram oito irmãos e havia muitas brigas quando se tratava de repartir os
lucros ou administrar as atividades. Tinha vindo estudar na capital aos doze anos
de idade e aos quatorze começou a sentir uma certa confusão na cabeça. Parou de
estudar e de receber ajuda dos familiares. Morava com uma tia na capital e esta,
sem receber apoio financeiro da sua família, resolveu interná-lo no hospital.
Atualmente tinha quarenta e oito anos de idade. Sua primeira internação se dera
quando ainda tinha vinte anos.

Percebíamos pela primeira vez que ele estava lúcido e falava a verdade.
Naquela conversa o seu delírio de grandeza aparecia apenas poucas vezes; logo
em seguida retomava o fio da realidade e continuava falando de forma coerente e
compreensível. Durante todo o tempo não olhou uma só vez para os sacos.
Terminada a conversa levantamos dos tijolos e fomos andando vagarosamente em
direção ao prédio do hospital. Havíamos andado poucos metros quando ele, de
repente, se voltou e saiu correndo para buscar os sacos que havia esquecido perto
dos tijolos. Era a primeira vez que havia ficado tão longe dos sacos.
32

Nos dirigimos diretamente para a sala de arquivos do hospital. Examinamos


e checamos seus prontuários velhos e o atual. Foi possível fazer a reconstituição
da sua vida hospitalar e familiar naquela confusão de informações escritas nos
papéis. O que nos falara estava escrito nos prontuários e a sua estória começou a
ganhar um sentido diferente e real. Naquela tarde, na reunião de acompanhamento
de casos, falamos sobre as descobertas que haviam sido feitas. Residentes,
assistentes sociais, enfermeiros e terapeutas ocupacionais foram mobilizados para
ativar o contato com familiares, estimular contatos grupais, projetar um plano de
trabalho para a sua futura saída do hospital. O homem dos sacos agora já não
estava só com seus sacos, possuía uma retaguarda disposta a entender o seu
dilema com eles. Na verdade eram muitos esses dilemas.

Era conhecido como Papai Noel. Já havia brigado muito com outros
pacientes por causa desse apelido. Agredia todos os que ousassem aproximar-se
para abrir seus sacos.

A primeira providência tomada pela equipe foi a de resgatar o seu verdadeiro


nome. Chamava-se José. Agora todos passariam a chamá-lo pelo seu nome. As
assistentes sociais descobriram o endereço da sua tia e de mais três irmãos que
residiam na capital.

As reuniões com os familiares tinham o objetivo de restabelecer os contatos


e mostrar que, com a ajuda deles, José poderia recuperar a sua posição normal de
membro da família. As resistências foram muitas e intensas, mas as esperanças
continuavam.

Nessa época compreendemos como era falso o mito da loucura e do “louco


varrido”. O psiquismo humano, analogamente ao sistema imunológico do
organismo, possui poderosas defesas para preservar o equilíbrio mental. O
comportamento “anormal” mantém preservada sua coerência e seu lado saudável
para poder suportar os desequilíbrios da família e da sociedade.

Explicando os códigos:

O enigma de José estava contido simbolicamente na sua relação com seus


sacos. O saco pequeno, que guardava objetos adquiridos dentro do hospital,
representava seus núcleos afetivos hospitalares (grupo afetivo hospitalar) onde
passara grande parte da sua vida. Era pequeno porque não lhe interessava muito
que crescesse. O saco grande representava seus núcleos afetivos sociofamiliares
(família e sociedade) para onde desejava retornar. Era a sua “libertação”, tantas
vezes solicitada por requerimentos e cartas.
33

Seu delírio de riqueza, representado pelo ouro, dinheiro e propriedades,


simbolizava o seu abandono pela família, que o deixava mendigo desse afeto tão
importante e valioso e que era recolhido pelo chão em forma de objetos,
convencionalmente de pouco valor. Denunciava, ao mesmo tempo, a ambição
materialista existente em suas família e na sociedade que conhecia. Como não
possuía (naquela época só tinha o saco hospitalar) uma forma concreta e palpável
de realizar seu desejo, fugiu do hospital para adquiri-lo e o fez maior, depositando-o
num saco bem grande. Sua fuga não foi uma indisciplina, mas, tão somente, o
resgate material do seu sonho: uma grande vontade de reaproximação sócio-
familiar, isto é, um desejo de reintegrar-se à vida real.

Contar e recontar os objetos de cada saco, era manter-se em contato


permanente com os dois núcleos afetivos que possuía. Mantê-los sob severa
vigilância significava evitar mais um grande roubo afetivo na história da sua vida.
Mantê-los separados serviria para distinguir duas histórias completamente
diferentes e opostas entre si. Misturar o conteúdo dos sacos seria misturar seus
conteúdos diferentes e desorganizar sua cabeça, a sua vida afetiva. Ninguém
poderia intrometer-se para não desordenar o que havia conseguido ordenar com
tanto trabalho e durante tanto tempo.

Só quem conseguisse, como ele, perceber essas diferenças poderia


aproximar-se dos sacos. Naqueles sacos estavam guardadas as únicas coisas de
valor que possuía na vida. Os objetos que não serviam mais para os outros,
representavam restos de afeto que ele cuidadosamente coletava e selecionava
para depois juntar seus pedaços e incorporá-los, enriquecendo o seu mundo pobre
de afeto. Selecionar seria o mesmo que separar as boas das más experiências
afetivas pelas quais havia passado.

José havia ensacado a sua vida afetiva durante muitos anos para não se
sentir só e para preservar sua identidade, sua memória e suas emoções. Conhecia
o conteúdo de cada um dos sacos como a palma de sua mão e os mantinha
separados para não perder a sua sanidade mental. Evitava os grupos porque o seu
grupo original (sua família) o tinha expulsado precocemente do seu convívio e o
havia esquecido. Seu grupo confiável eram os sacos, resumo valioso e silencioso
de toda a sua história. Como confiar em grupos, se os grupos o rejeitavam e o
consideravam como um estranho, um louco?

Nossa relação de amizade estreitava-se cada vez mais e nossas conversas


já eram mais longas e profundas. Já eram, quase todas, feitas dentro do
consultório. Fomos apresentando gradativamente os membros da equipe para o
José. Após certo tempo já não conversávamos mais sozinhos, havia um grupo que
conversava, do qual José era membro participante. No princípio falava pouco, mas
com o tempo foi tomando a palavra e se incorporando ao trabalho da equipe. José
estava experimentando as vantagens de participar do seu primeiro grupo confiável.
Denominamos esse grupo de “Grupo Trabalho e Esperança”.
34

Certa vez ele nos confidenciou que achava que dessa vez iria conseguir sua
“‘libertação”. Aquelas pessoas - segundo ele - não estavam mentindo, pois já
conseguira algumas visitas dos irmãos, que lhe trouxeram presentes e dinheiro.
Suas roupas já não eram tão sujas como antigamente e os banhos não tão
insuportáveis assim. Mas os sacos continuavam perto dele.

Nós compreendíamos cada vez mais a solidão de José e, ao mesmo tempo,


o nosso despreparo para lidar com casos semelhantes ao dele. Achamos mesmo
que as pessoas olham para os “loucos” da mesma forma como olham para as
crianças e adolescentes: como se fossem sacos grandes ou pequenos,
completamente vazios, ou melhor, cheios de coisas sem valor por conterem dentro
de si quinquilharias que necessitam ser selecionadas pelos conselhos e normas
“educativas” dos adultos. Que precisam de muita proteção por não possuírem
conteúdo e objetivos próprios. Sentem-se donas desses sacos e os carregam de
um lado para o outro, segundo seus próprios sonhos e desejos, sem se importarem
com os seus próprios conteúdos de valor. Seriam como os sacos de José: simples
objetos, cuja função seria a de proteger seu dono com suas presenças. Protegê-lo
de sua insegurança e solidão.

José começou a participar de outros grupos de pacientes e ganhava mais


confiança em si mesmo. Fazia anos que não tomava remédios no hospital. Era um
esquecido hospitalar desde o tempo em que era conhecido como Papai Noel. A
partir das nossas primeiras conversas, a equipe havia resolvido que ele não tomaria
remédios como parte do seu tratamento. Nunca lhe foi oferecido nem nunca pediu.
Continuou sempre assim: sem remédios. Era um antigo membro do grupo da
abandonoterapia (apelido que dávamos aos esquecidos), que agora já possuía
identidade e se chamava José ; membro com voz e voto dentro do grupo “Trabalho
e Esperança”, escolhido e eleito pela equipe do hospital para ser o cidadão de sua
própria libertação.

José pediu-nos que guardássemos os seus sacos na sala de reuniões, onde


havia um velho armário cheio de desenhos e objetos confeccionados por pacientes
da terapia ocupacional. Perguntou se era um lugar seguro e quem guardava as
chaves desse armário. Falamos que era seguro e que as chaves ficavam com o
nosso grupo. Perguntamos se ele queria ter uma chave só para ele. Aceitou, e a
nova chave foi confeccionada e lhe foi entregue. Andava com ela pendurada no
pescoço e dormia com ela. Não tinha mais o trabalho de carregar os dois sacos
porque os havia trocado provisoriamente por uma chave, símbolo da sua confiança
em nosso grupo.

Com o passar do tempo parou de coletar objetos do chão e entrou para um


grupo do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização) que havia sido instalado
no hospital para pacientes que queriam aprender a ler e escrever. Seus delírios
eram pouco freqüentes e só reapareciam quando retirava seus sacos do armário
para tê-los junto a si, e desapareciam quando nos confiava a guarda dos mesmos.
35

Ensinamos a ele que não revidasse quando alguém, relembrando os velhos


tempos, o chamasse de Papai Noel. Para nós e para quase todos ele era o novo
cidadão chamado José e deveria ser assim para sempre.

Certo dia seus parentes vieram buscá-lo para que passasse o fim de semana
com eles. Concordou em ir e queria levar os sacos, mas o convencemos de que
ele, como o novo José, deveria levar apenas a chave do armário. Ele aceitou e foi
embora com os parentes. Voltou na segunda feira pela manhã com um terceiro
saco. Na verdade não era um saco e sim uma sacola. Estava cheia de objetos
diferentes dos outros que estavam no armário. Continha escova, creme dental,
roupas, sapato, sandálias, cadernos, biscoitos e um pente novo.

Ele estava alegre, mas conversava pouco com os parentes. Aproveitamos a


presença deles e fizemos uma reunião conjunta do grupo “Trabalho e Esperança”.

O grupo ia ficando maior com o passar do tempo e já mostrava alguns


resultados. Na reunião, os irmãos queriam que ele saísse do hospital e retornasse
para a casa de um deles. O José ficou reticente e acabamos concordando que sua
saída teria que ser decidida por ele e que deveria aproveitar e concluir seu curso do
Mobral.

Já sabíamos muito a respeito da sua vida familiar. Seus irmãos contaram


muitas estórias que não estavam escritas nos prontuários velhos a nem nos novos.
Parte de sua família morava na capital e possuía boa situação financeira. O pai de
José havia falecido há dez anos, mas sua mãe ainda morava na mesma fazenda
com os filhos mais novos.

Numa outra reunião do grupo José pediu que guardássemos sua sacola
nova, pois temia que os outros pacientes roubassem seus objetos, fato bastante
freqüente entre eles. Queria ficar com alguns objetos de uso pessoal e com a chave
do armário. Pediu também que queimássemos os outros dois sacos antigos.
Respondemos que os sacos antigos ficariam guardados até um ano após sua saída
do hospital. Gostaríamos que ele próprio, após um ano e junto com a sua família,
voltasse a nos visitar e junto conosco, procedesse ao ritual de incineração dos
velhos sacos. Aceitou a idéia e voltou para a sua aula do Mobral que já havia
iniciado há cinco minutos atrás.

O novo José já não era o mesmo homem dos sacos e a nossa equipe já não
era a mesma dos velhos tempos. Havíamos aprendido, com ele e com outros
pacientes, formas novas de preencher nossos “sacos intelectuais” com conteúdos
de muito valor. Nós, José e os outros pacientes estávamos melhorando, mesmo
estando todos, internados no mesmo hospício.
Concluído o curso do Mobral ele já escrevia uns bilhetes para os seus
familiares. As visitas já eram semanais e as saídas do hospital se prolongavam por
uma semana a até por um mês. Estava na hora de José sair.
36

Na nossa última reunião do grupo “Trabalho e Esperança” fizemos uma


brincadeira com José: redigimos uma “Carta de Libertação” concedendo ao Sr.
José Oliveira da Silva, os títulos de Cidadão Livre, Mem bro Honorário da Equipe a
de senhor de todos os bens e riquezas que ele conseguisse adquirir dali por diante
com o seu próprio esforço. Essa Carta continha também todas as aquisições que
fizera desde que passara a se constituir um membro integrante do nosso grupo até
aquele dia. Só omitimos na Carta a existência dos dois sacos velhos que ainda
jaziam no armário, símbolos de sua loucura, e ao mesmo tempo, da manutenção da
sua sanidade. Presenças concretas do seu esforço solitário em manter seu próprio
equilíbrio, sem a ajuda de ninguém, durante muitos anos.

José saiu do hospital numa sexta-feira de tarde acompanhado por sua


sacola nova, pelos parentes, pelos membros do Grupo Trabalho e Esperança e por
alguns pacientes que haviam se tornado seus amigos nos últimos tempos. Sentia-
se mais confiante e, na porta de entrada do hospital, se despediu de todos, entrou
no carro com seus parentes e desapareceu entre os acenos dos que ficaram.

Lembramos que, quando recebeu sua “Carta de Libertação”, percebeu, com


um sorriso, a assinatura de quase todos os médicos do hospital, funcionários e
pacientes que o conheciam bem. Mais parecia um abaixo assinado. Já sabia ler e
escrever. Apôs seu nome na última linha, dobrou o papel e o colocou no bolso.

O Grupo Trabalho e Esperança já não existia mais e se transformou,


naqueles dias, num grande saco vazio com a saída do José.

Ele nunca mais retornou para aquele hospital, não voltou para queimar os
sacos. O que foi feito dos sacos velhos nem nós sabemos responder. Talvez,
esquecidos como tantas outras quinquilharias do hospital, devem ter recebido o
destino do lixo ou queimados sem a nossa presença, numa grande fogueira de São
João. O que, aliás, era muito comum acontecer com os papéis velhos.
37

Greve no ambulatório

Ao lado do hospital funcionava um ambulatório. Era um anexo do hospital, de


construção mais recente, que atendia as pessoas carentes do bairro. O atendimento
era dirigido para portadores de disritmia cerebral, desde epilepsias mais graves até
as disfunções leves do ritmo cerebral.

O coordenador do ambulatório era um médico do hospital que se dizia


pertencer à ala progressista, mas se comportava, na maioria das vezes, como os
médicos da ala conservadora. Era uma personalidade instável que fluía e refluía de
acordo com os humores políticos da direção ou com situações ligadas aos seus
próprios interesses pessoais. De porte franzino e gestos aristocráticos, quase não se
encontrava presente e deixava o funcionamento diário à mercê dos residentes e dos
auxiliares de enfermagem que lá trabalhavam. Só tomava alguma atitude quando,
por falta de medicamentos ou por motivo de grande importância, era insistentemente
solicitado. Estava sempre ausente e não participava da rotina do ambulatório.

Em certa ocasião o estoque de medicamentos utilizados para controle das


disritmias se esgotou. Duas semanas antes havia sido avisado várias vezes para dar
solução ao problema. Nenhuma providência foi tomada. A ordem, dada por telefone,
era para ser usada medicação tranqüilizante em substituição aos anticonvulsivantes
normalmente empregados, para “contornar” o problema até que fosse providenciada
nova remessa de medicação específica. Os residentes não concordaram com a
decisão e foi marcada uma reunião com todos os funcionários.

A conclusão final da reunião foi a de que a ordem não deveria ser acatada.
Além de antiética e desonesta, iria refletir-se negativamente na evolução dos casos
que estavam sob controle; seria um completo absurdo aceitá-la. A posição a ser
seguida seria, depois de esgotada a medicação existente, interromper os controles.
Os pacientes teriam que ser avisados com antecedência sobre a possibilidade da
falta de medicação nas semanas seguintes. Todos concordaram que os pacientes
não poderiam ser enganados e teriam que ser informados sobre a crise pela qual o
ambulatório estava passando, uma completa desorganização. Comunicamos ao
médico coordenador nossa posição e não recebemos qualquer resposta sobre o
assunto.

Contada a medicação que ainda restava foi fixado um dia para o início da
greve. Enquanto havia medicação, pacientes e familiares estavam sendo avisados e
as providências para iniciar a greve iam sendo discutidas. No dia fixado nenhum
residente compareceu ao ambulatório e em várias paredes podiam ser lidos cartazes
que explicavam os motivos da interrupção. Os funcionários do ambulatório aderiram
ao movimento, mas ficaram cumprindo seus horários de rotina; ficavam informando
as pessoas sobre os motivos do movimento.
38

O médico coordenador tomou conhecimento do fato e acionou a direção do


hospital para conter a greve. Já haviam se passado três dias que o ambulatório não
funcionava quando os residentes foram convocados para uma reunião da direção do
hospital. Lá estavam frente a frente o diretor, o coordenador e os residentes.

Passava das dezesseis horas quando a reunião iniciou. Vimos o coordenador


branquela, baixinho e com a cara fechada, afundado em sua poltrona, em frente à
mesa do diretor. Sustentava um ar de superioridade e não se dignou em olhar para
os residentes. O diretor pediu que todos sentassem e deu inicio a conversa. O
coordenador começou falando à maneira de um respeitável magistrado, com uma
visível e afetada serenidade. Os residentes foram metralhados, bombardeados e
esquartejados pelo coordenador; suas críticas tinham um objetivo arquitetado, isto é,
eliminar os residentes do quadro de funcionários do hospital.

O diretor ouvia atento e balançava a cabeça sinalizando estar concentrado na


exposição. Os residentes olhavam para a figura insignificante do coordenador e se
esforçavam para conter a irritação. Quase uma hora havia se passado e, finalmente,
o coordenador encerrou seu discurso. O diretor virou o rosto, compôs seu pescoço
cansado e falou para os residentes: “O que vocês tem a dizer?”

A fala seguinte coube aos residentes que explicaram detalhadamente os


motivos da paralisação. Foram com freqüência interrompidos pelos apartes do
coordenador. Estavam ali para dizer que eram estudantes e que, nessa condição,
queriam aprender direito a profissão de médico. Não estavam no hospital para
aprender a enganar pacientes e familiares, leigos na arte médica. Não aceitavam
uma aprendizagem onde a ética e o conhecimento científico pudessem estar
subordinados às irresponsabilidades e deficiências da administração do ambulatório.
Finalizaram afirmando que estavam decididos a sair do ambulatório e do hospital se
fossem obrigados a se submeter a erros e anomalias da instituição. Eram estudantes
solteiros e não tinham nada a perder. Tentariam outra instituição que lhes pudesse
oferecer um estágio de melhor qualidade. Mas se procurados pela mídia, falariam
sem constrangimento sobre as ocorrências que originaram a greve.

Em certa altura o coordenador chamou ironicamente os estudantes de “os


cinco mosquiteiros da doença mental”. Os residentes responderam dizendo que
conheciam bem os “camaleões” do hospital, profissionais que se fantasiavam de
progressistas para tirar proveito da reorganização profunda que estava acontecendo
na instituição. Usaram todo o seu poder de fogo porque sabiam como seria difícil
substituir subitamente cinco residentes com razoável experiência por candidatos
novos e inexperientes para lidar com o complexo atendimento do hospital e do
ambulatório.
Essa estratégia funcionou. O diretor contemporizou dizendo que os pacientes
nada tinham a ver com as nossas diferenças internas e que todos deveriam voltar ao
trabalho. O coordenador resolveria a questão dos remédios de forma adequada e os
residentes voltariam a atender normalmente. A reunião terminou. Os residentes se
39

retiraram e o coordenador continuou afundado em sua poltrona. Estava irritado e


desmoralizado por não ter conseguido atingir seu objetivo.

No dia seguinte, pela manhã, fomos informados que uma grande quantidade
de medicação anticonvulsivante havia chegado ao ambulatório. Na parte da tarde o
funcionamento se normalizou para atender uma grande multidão que se espremia a
espera de atendimento. Era uma sexta-feira. Nesse dia o trabalho dos residentes só
terminou ao anoitecer. Funcionários e residentes, após o expediente, foram para um
bar da esquina comemorar a vitória da greve. Entre os cascos de cerveja vazios e os
restos de tira-gostos jazia a figura franzina e insignificante do coordenador – a
personagem mais comentada da festa.

Naquele tempo estávamos aprendendo que as distorções nas instituições


podem corromper os fundamentos básicos da cidadania. Que os profissionais,
independentemente dos seus títulos e funções de chefia, podem prostituir suas
consciências para não perder seus empregos ou para submeter-se a interesses de
terceiros e poder garantir seus privilégios.
40

O trambiqueiro

O residente mais novo possuía uns primos na cidade. Eram primos afastados
com os quais mantinha contatos esporádicos. Eram cinco moças e um rapaz com
dezenove anos. Chamava-se Paulo. Desde criança era hiperativo, brigava muito e
aprontava mil problemas dentro de casa. Seus pais moraram numa cidade grande
do interior e haviam mudado há pouco tempo para a capital. Era uma família de
classe média e a filha mais velha, Ana, havia completado o curso de advocacia há
dois anos. Todos trabalhavam, só os três filhos menores não estavam empregados.

Numa tarde de sábado Ana chegou ao hospital aflita. Veio acompanhada pelo
amante, um senhor mais velho, e pediu para conversar em particular. O residente,
seu primo, os conduziu para uma sala de entrevistas e ela falou que seu irmão Paulo
havia se metido numa grande enrascada. Estava foragido, sob ameaça de morte e
sendo procurado pela polícia. A família estava tentando localizá-lo e ela pretendia
interná-lo no hospital sob a alegação de que poderia estar sofrendo das faculdades
mentais. Perguntou se poderia ser utilizado algum diagnóstico que o protegesse da
ação da justiça. Ela não tinha muitas informações a respeito do caso porque só
havia falado com ele durante poucos minutos através de um telefone público.

O residente informou que a internação poderia ser feita pelo prazo máximo de
noventa dias, em caráter de observação, até que se chegasse a alguma conclusão
sobre o seu caso. Seria tratado sem privilégios, como qualquer outro paciente e
seguiria as normas do hospital. O residente, pelo fato de ter grau de parentesco com
ele, o encaminharia para um colega que acompanharia seu caso supervisionado por
um médico assistente. Ela não gostou muito das condições expostas e perguntou se
teria de pagar pela internação. Foi informada que pagaria pela tabela hospitalar, pois
apenas as pessoas comprovadamente carentes poderiam receber atendimento
gratuito. Saiu um pouco desapontada, mas aceitou as condições.

Dois dias depois chegava o Paulo ao hospital. Rapaz de ótima aparência:


alto, forte, simpático, de cor branca e conversa envolvente. Mais parecia um alto
executivo de multinacional. Bem vestido, falava um português impecável, possuía
uma postura educada e discreta. Seu carisma atingia a todos os que conversassem
com ele.

O residente que deveria acompanhar seu caso ficou impressionado com sua
facilidade de contato. Morava com seu pai no interior e pouco vinha a capital.
Informou que o residente, que era seu primo distante, o vira pela ultima vez quando
tinha apenas dez anos de idade. Sua irmã falara que ele roubava objetos de casa
para vender, fazia empréstimos e não pagava. Vivia de falcatruas. Havia levado
muitas surras dos pais para corrigir-se, mas ia piorando cada vez mais. Ultimamente
vivia mais fora do que dentro de casa. Andava bem limpo e perfumado, suas roupas
41

eram sempre caras e elegantes; não lhe faltava dinheiro no bolso. Estávamos diante
de um caso típico de personalidade psicopática.

Não demorou muito para que o Paulo tentasse se aproximar do residente que
era seu primo e dos outros residentes, para lembrar laços de parentesco e fazer
amizade. O residente que era seu primo o tratava com cordialidade, mas evitava
intimidades. Ele era oito anos mais novo do que o residente e certo dia começou a
chamá-lo de “tio”. Foi advertido que o tratasse pelo nome e usasse de bom senso
com as pessoas do hospital. Passou a visitar assiduamente os residentes.

Num domingo de tarde Paulo contou suas peripécias diante de todos os que
estavam conversando no quarto. Entre os risos da platéia ele se comportava como
um ator, contando os casos e aventuras pelas quais havia passado. Havia falsificado
alguns cheques e sacado muito dinheiro de um banco. Comprou jornal e leu uma
notícia que anunciava a inauguração de uma usina termoelétrica. Essa usina seria
inaugurada dentro de uma semana em uma pequena cidade do interior. Fretou um
táxi aéreo e se dirigiu para aquela cidade alguns dias antes da data marcada para a
inauguração. Estava muito elegante com terno, sapato novo e uma gravata de seda
fina. Havia combinado com o piloto que faria vários vôos e pagaria o total quando
retornasse a cidade de origem. Chamava-se Dr. Paulo, engenheiro eletrônico. Dias
antes telefonara para o prefeito anunciando que havia antecipado a inauguração por
mudanças e alterações na sua agenda. Chegaria no dia seguinte, pela manhã.

O avião desceu às oito horas na pequena pista de pouso. O Dr. Paulo falou
para o piloto que retornasse após dois dias para apanha-lo, pois ele teria outras
viagens a fazer. O piloto assentiu com um sorriso nos lábios antevendo os lucros
que teria com o novo e polido cliente.

Foi recebido pelo prefeito, pelos vereadores e por uma comitiva composta de
pessoas importantes da cidade. Havia até uma pequena banda de música presente
na recepção. Entre abraços e cumprimentos foi conduzido e instalado na casa do
prefeito. Esforçou-se para não aceitar, mas foi gentilmente convencido a não ir para
um hotel e nem fazer refeições em restaurantes. Educadamente desculpou-se por
ter antecipado a inauguração e pelo fato de ter sido obrigado a substituir o outro
engenheiro que havia ficado doente, cujo nome constava no jornal.

Nesses dois dias inaugurou a obra junto com as autoridades, passeou pela
cidade, compareceu a almoços e jantares oferecidos e ainda ensaiou um breve
namoro com a filha do prefeito. Era um belo partido para qualquer moça que
estivesse interessada por um jovem engenheiro solteiro e competente.

Numa conversa com o prefeito, o Dr. Paulo, um pouco embaraçado, anunciou


que havia esquecido o seu talão de cheques e que estava com pouco dinheiro no
bolso. O prefeito sorriu e, com palmadinhas no ombro, perguntou: “... o Dr. precisa
de quanto?”. O Dr. Paulo agradeceu a oferta, mas insinuou que ainda teria de fazer
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outras viagens e, para isso precisaria de uma quantia maior. O prefeito insistiu e lhe
fez a proposta: “... Doutor fique tranqüilo, o senhor vai aceitar a minha oferta e
quando concluir as viagens pode depositar o dinheiro na minha conta. Qual é o
problema?” Chamou um de seus assessores e determinou que fosse ao banco sacar
uma razoável quantia para acalmar o preocupado engenheiro. Ele havia percebido o
interesse da filha pelo ilustre visitante e os havia deixado conversando, em algumas
oportunidades, talvez imaginando em ter futuras alegrias. Quem sabe se aquele
simpático jovem poderia vir a ser um dia mais um membro da família? A sua filha
mais nova era a única das filhas que ainda estava solteira.

No terceiro dia o avião do Dr. Paulo desceu na pista e os abraços e apertos


de mão se repetiram. Todos batiam palmas e sorriam enquanto o Dr. Paulo acenava
do avião. O prefeito estava emocionado e sua filha não pôde conter as lagrimas.
Aquele Dr. Paulo era mesmo um homem muito atraente, um pedaço de mau
caminho.

Minutos após a decolagem pousava na mesma pista outro avião. Dele


desembarcou o engenheiro que na data e hora certas, segundo o publicado no
jornal, estava chegando para inaugurar a usina termoelétrica. Chamava-se Dr.
Mauricio e vinha acompanhado de mais dois auxiliares para cumprir sua missão. Em
outro local descia do avião o Dr. Paulo, satisfeito e com dinheiro no bolso. Pagou o
piloto com um “cheque frio” e combinou novas viagens para a próxima semana. No
mesmo dia tomou um barco para outra cidade e comprou outro jornal.

Ria-se muito dos casos do Paulo e ele se sentia à vontade no quarto dos
residentes. O residente que acompanhava seu caso fora avisado, em diferentes
ocasiões, sobre os riscos da excessiva intimidade do Paulo com os residentes e com
outros funcionários do hospital. Com apenas um mês de permanência ele já havia
obtido privilégios e a confiança do residente responsável por ele. Trabalhou na
secretaria onde executou um excelente trabalho de organização e limpeza.
Organizou o almoxarifado e deu nova vida a sala da direção. Era rápido e
inteligente, respeitado pela maioria dos pacientes e simpático com todos. Obteve
cópias de quase todas as chaves de locais importantes do hospital. Já havia feito
amizade com o diretor tornando-se seu colaborador e seu “moleque de recados”. No
segundo mês já tinha o hospital nas mãos.

Sua irmã Ana telefonava para o residente responsável solicitando


informações sobre seu comportamento. Estava satisfeita com os progressos obtidos
e pelo fato do Paulo ter ficado dois meses com uma conduta irrepreensível. Mas
ficou desconfiada e ligou para seu parente residente para confirmar as informações.
Ele informou que sua saída se daria em menos de um mês e que não acreditava na
sua recuperação. Tinha a impressão que o Paulo estava preparando o terreno para
fugir; já havia comunicado essa idéia ao residente responsável, mas não queria
interferir no encaminhamento do caso.
43

Só faltava uma semana para expirar o prazo da sua permanência quando,


num sábado bem cedo, o Paulo sumiu. Sumiram junto com ele: uma razoável
quantia em dinheiro da secretaria, máquinas de calcular e de datilografia, vários
objetos do diretor e alguns remédios do almoxarifado. Pequenos empréstimos feitos
a pacientes e funcionários e alguns cheques de residentes foram junto com ele. Para
o residente parente deixou um bilhete: “Prezado tio, até a próxima vez”. Para o
residente responsável outro: “Peço desculpas ao amigo, mas minha vida é lá fora”. E
assinava embaixo dos bilhetes com uma verdadeira letra de doutor; abaixo dela o
carimbo do hospital.
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CAPÍTULO IV

O homem-árvore

Naquele tempo se iniciava uma intensa reorganização na estrutura de


atendimento do hospital. Os pacientes andavam de um lado para o outro sem
atividades, sem plano de trabalho individualizado ou grupal, vagueando a toa pelos
corredores e dependências do hospital. Era um verdadeiro depósito de doentes
mentais, um hospício.
Uma figura conhecida era vista quase sempre no mesmo lugar. Plantado no
corredor de braços abertos, um homem de meia idade e barbudo permanecia
imóvel. Seu cabelo era grande e desalinhado; seus olhos eram vermelhos e parados
como todo o resto do corpo, fixos no infinito. Parecia um cristo redentor com traje de
mendigo.

Nesse dia o residente resolveu aproximar-se dele e colocou-se a sua frente.


Perguntou seu nome. Nem se mexeu. Tentou várias vezes fazer contato e não
obteve qualquer resultado. Seu cheiro era azedo, uma mistura de fermentações
variadas. O residente resolveu sair e ficar de longe observando. De vez em quando
ele mexia o braço direito para assoar o nariz com a ponta da camisa rasgada e
imunda. Eram poucas a vezes que saia da imobilidade para coçar a orelha ou a
bunda.

O residente desistiu e foi ao arquivo procurar seu prontuário. Lá encontrou


parte da sua estória. Considerava-se uma árvore, uma planta. Costumava enfeitar-
se com folhas que ficavam cuidadosamente amarradas as suas roupas. Não podia
se mexer muito porque – segundo acreditava – as flores e frutos que imaginava
pendentes de seus galhos (braços) poderiam cair. Não gostava de andar ou correr
porque as plantas não fazem isso – argumentava. Considerava-se um autentico
vegetal.

Foi encaminhado ao hospital pela polícia porque ficava imóvel, de braços


abertos, no meio da rua, atrapalhando o trânsito e arriscando sua vida. Várias vezes
foi retirado das ruas e para lá tornava a ocupar a mesma posição.

Era necessário ter paciência para ficar observando durante longo tempo
àquela figura curiosa do homem -árvore. Enquanto comia ou andava seus
movimentos eram muito lentos e cuidadosos e só costumava se comunicar com o
residente que o acompanhava.

Pedi ao residente que o internara para acompanhar junto com ele aquele caso
curioso. Só conversava com aquele colega e só para ele desvendava os seus
mistérios de planta. Não comia alimentos do seu reino vegetal e bebia muita água.
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Quando chovia, saía devagar e ficava de braços abertos aproveitando a chuva ou se


postava debaixo de alguma bica para beneficiar-se com o jorro da água.

Certa vez cavou um buraco no quintal, enterrou seus pés, e com uma lata
velha molhava, de tempo em tempo, as suas raízes (pés). Mudava com freqüência a
sua identidade vegetal. De manhã poderia ser uma jaqueira, de tarde u'a mangueira
e de noite um abacateiro. Gostava das árvores frutíferas. Nunca pretendera ser um
capim ou um pé de couve, segundo as informações do residente.

Só deitava para dormir quando ninguém mais estivesse olhando. Dormia


encolhido sobre um cobertor velho, em posição fetal. De manhã bem cedo voltava à
posição original de planta. Dava muito trabalho para fazer refeições e pedia que os
outros pacientes colocassem a comida bem devagar em sua boca.

Um dia o homem-planta sumiu. Foi encontrado morto no dia seguinte, no


fundo do quintal, debaixo de uma goiabeira. Estava deitado sobre o seu lençol velho
e bem escondido sob um capinzal fechado. Ficamos tristes com a morte daquela
planta humana. Ele e seus mistérios vegetais foram enterrados juntos. Nós
havíamos perdido mais uma chance de penetrar e compreender o misterioso mundo
do comportamento humano. A causa da morte estava escrita num atestado de óbito:
parada cardíaca. Sua família não foi encontrada e teve de ser enterrado como
indigente.
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A promessa

Nas tardes de sábado os estudantes residentes gostavam de reunir-se no


quarto coletivo para conversar. As camas, dispostas uma do lado da outra, ficavam
cheias de jovens de bermudas e sem camisas.

Rapazes e moças da faculdade, que pretendiam ingressar no hospital ou por


simples curiosidade, ficavam conversando a tarde inteira conosco no quarto.
Sentados ou deitados nas camas contava-se piadas, falava-se de vários assuntos
ou cantávamos acompanhados pelo violão e berimbau. De noite poderiam surgir
vários programas. Comentários sobre festas, filmes, peças de teatro ou sobre
simples farras, circulavam por todo lado. Era a juventude aproveitando as folgas da
faculdade.

A grande e antiga porta de madeira do quarto foi aberta de forma barulhenta e


súbita. Todos pararam e olharam. Em seguida ouviu-se um coro de palmas, vaias e
assobios. Sorrindo e se rebolando, a figura do Roberto vinha se aproximando do
grupo de jovens. Era o residente plantonista do dia. Calçava sapatos brancos, jaleco
branco e calças "jeans". Era baixinho e engraçado, um ótimo colega. Havia acabado
de internar m ais um paciente.

Já de noite, quando quase todos tinham ido embora, ele falou que àquele
parecia ser um caso bem interessante. Veio com seu pai e um irmão que narraram
sua estória. O paciente era magro e alto, olhos bem abertos, que pulavam de uma
para outra pessoa. Quase não mexia com a cabeça. Quando alguém falava, ele
apenas virava os olhos na direção da pessoa e ficava prestando atenção. Havia dois
meses que não articulava uma só palavra e nem emitia um som qualquer. Tinha
parado de estudar e gostava de ficar só no seu quarto. Tinha vinte e dois anos e,
uma semana após ter brigado com a namorada, parou de falar com todo mundo.
Quando alguém lhe fazia uma pergunta arregalava os olhos e passava a língua nos
lábios; repetia sempre esse gesto e era só o que fazia.

No hospital, após algum tempo, resolveu comunicar-se através de gestos,


sinais e mímica. Não aceitava escrever ou desenhar. Não gostava de participar de
grupos, mas arrumava sozinho sua cama e era muito limpo e organizado. Ainda não
conseguia virar a cabeça; quando alguém fazia barulho às suas costas, girava o
corpo inteiro para poder olhar. Parecia um robô quando andava.

Seu nome era Pedro. Obedecia a todas as normas do hospital e gostava de


marchar. Havia cumprido bem o serviço militar e seu corte de cabelo permanecia o
mesmo dos tempos de quartel. Alguns pacientes descobriram o gosto de Pedro pela
marcha e pelas ordens militares. Conseguiram um velho cabo de vassoura e fizeram
de uma folha de jornal um capacete para ele. Pedro agora já possuía um fuzil e um
belo capacete. Certa noite de plantão o Roberto ouviu uma algazarra vinda de uma
enfermaria próxima. Eram duas horas da manhã e ele vinha andando pelo corredor
vazio, após ter atendido um paciente velhinho que sofria de bronquite alérgica.
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Devagar, caminhou para a enfermaria e ficou observando. A cena era


engraçadíssima. Vários pacientes formavam um corredor humano, batiam com
pedaços de pau nas camas de ferro ou em pequenas latas. Um paciente, com um
canudo de papelão na boca imitava uma corneta. Todos desentoavam o hino
nacional. Pedro, com seu capacete de papel e com o cabo de vassoura ao ombro,
marchava no meio e ia de uma extremidade a outra da enfermaria. Seu rosto era
duro e sério como o de um verdadeiro militar e o fundo do seu pijama era frouxo e
pendia como um saco velho. O pano branco e transparente do pijama deixava
entrever, contra a luz, os seus órgãos genitais que balançavam de um lado para o
outro enquanto marchava. Todos estavam concentrados e cônscios dos seus
deveres naquela magnífica parada militar.

O homem da corneta tocava fora do ritmo, mas ninguém se importava com


isso. A bateria estava mais entrosada, mas uma meia dúzia de pacientes semi-
sedados se encarregava do contra-ritmo. Estavam tão envolvidos no desfile que não
perceberam a cabeça do Roberto esgueirando-se pela porta para assistir aquele
triunfante espetáculo marcial.

A barriga doía e os olhos lacrimejavam de tanto rir. O Roberto assustou-se


quando pressentiu que alguém se aproximava por trás dele. Era o enfermeiro do
plantão noturno que também tinha ouvido a barulheira. Colocou o dedo nos lábios,
em sinal de silêncio, para que ele não perturbasse o espetáculo. Ficaram ali
assistindo e rindo por vários minutos.

De vez em quando o líder do grupo pedia silêncio e dava ordens para o


Pedro: "Meia-volta, volver!". "Descansar!". "Apresentar armas!". Todas essas ordens
eram obedecidas e quando o Pedro passava perto do líder, batia continência. Mas
não falava uma só palavra.

Após alguns minutos, residente e enfermeiro resolveram interromper a parada


militar, pois já estava incomodando as outras enfermarias. Apareceram de corpo
inteiro na porta e os pacientes notaram a presença. A bateria parou, o corneteiro
escondeu o seu canudo debaixo da cama e o Pedro tirou o capacete, guardou o
cabo de vassoura e se enfiou embaixo do lençol. Todos deitaram. Só os pacientes
semi-sedados continuaram batendo nas latas. Retiraram as latas e as baquetas das
suas mãos e pediram que fossem dormir porque já era muito tarde. O residente foi
para o quarto com os olhos cheios de lágrimas e a barriga doendo de tanto rir.
Custou a dormir nessa madrugada. Na cama ao lado roncava o outro residente que
acordou assustado com as gargalhadas do Roberto; perguntou o que estava
acontecendo e se ele estava passando bem. Quase não conseguia falar e contar o
que acabara de assistir na enfermaria. O outro estava com muito sono e deu apenas
um leve sorriso.

O tempo passava e Pedro não falava, só recebia ordens e marchava. Certo


dia o Roberto entrou pela porta do quarto ofegante e excitado. Mal conseguia falar.
Todos perguntaram o que estava acontecendo. Entre uma e outra respiração forte,
disse: "o Pedro falou!". Todo mundo ficou imóvel e alguém perguntou: "como foi...?".

Havia muitos meses que o residente não mais chamava o Pedro para
entrevistá-lo no consultório. Era uma pura perda de tempo. Preferia vê-lo na
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enfermaria, perto de sua cama. Comunicava-se com ele através de sinais e de


pequenos bilhetes escritos.

Naquele dia, ao entrar na enfermaria, todos os pacientes ficaram em silêncio


e só o Pedro falou: "bom-dia, doutor!". Esse sonoro "bom-dia" deixou o residente
boquiaberto e provocou uma salva de palmas entre os pacientes. Em seguida o
Pedro fez um breve discurso e foi novamente aplaudido pelos pacientes e também
pelo residente. Não parava de falar com todo mundo, num ritmo tão rápido que mais
parecia um locutor esportivo. Estava descontando o tempo em que permanecera
calado.

O Roberto o conduziu para o consultório e lá passou a ouvir as razões desse


milagre. Disse-lhe o Pedro que um dia estava em sua casa, trancado no quarto,
quando uma voz que vinha de dentro de sua cabeça deu-lhe uma ordem. Era uma
ordem que o proibia de falar durante um ano inteiro. Se conseguisse cumprir teria de
volta a namorada e poderia casar-se com ela. Anotou num pedaço de papel o dia e
a hora em que a voz imperativa o proibira de falar e decidiu fazer a promessa.
Ficaria um ano sem falar para poder reconquistar a namorada.

Dito efeito. O Pedro mostrou para o residente o papel onde anotara a data e a
hora da promessa. Estava tudo certo, não passou nem um minuto sequer do tempo
combinado. Fazia um ano certo que ele parara de falar e agora reconquistara a voz.
O acordo estava cumprido e o papel era o documento original desse acordo.

Pedro queria sair do hospital naquele dia para encontrar-se com a namorada
e mostrar a ela aquele comprovante do acordo cumprido. Ele era um rapaz ingênuo
e tímido. Nunca havia experimentado uma relação sexual com mulher. Só sabia
masturbar-se e contar piadas eróticas no tempo em que falava. Na verdade não
tinha namorada. Havia se apaixonado pela vizinha e não conseguia aproximar-se
dela para falar do seu amor e do seu desejo. Sua namorada era fruto da sua
imaginação e a "voz" que lhe dera a ordem era uma alucinação da sua própria
mente, uma defesa que ele poupava o sacrifício e a dificuldade que tinha em fazer
contato com as mulheres.

Introduzimos Pedro em um grupo de ajuda e o fomos auxiliando a conhecer o


mundo feminino. Descobrimos que sua família era evangélica e observava valores
ultramoralistas. Sua mãe era uma mulher fortemente castradora, parecia mais um
sargento-de-saias. Pedro crescera recebendo ordens e ameaças divinas,
acreditando no fogo do inferno e no juízo final.

Fomos ensinando a ele como escrever cartas românticas, fazer poesias e


aproximar-se com segurança das mulheres. Participavam do nosso grupo duas
assistentes sociais e algumas estudantes de medicina, todas muito bonitas. Sentiam
medo que Pedro se apaixonasse por elas e sofresse novas decepções. Nós, os
homens do grupo, estimulávamos para que ele falasse dos seus sentimentos e
desejos. Não era proibido falar de coisas tão bonitas, tão naturais. Ele não precisava
ter pressa, só precisava treinar. Acabaria encontrando uma verdadeira namorada
que gostasse dele.
49

Após algum tempo observamos que havia parado de marchar, não


empunhava mais o "fuzil" e nem colocava o "capacete" na cabeça. Os outros
pacientes insistiam, mas ele parecia mais interessado na arte de escrever cartas e
paquerar.

Havia no hospital três grupos que faziam o trabalho de acompanhamento


intensivo de pacientes. Mas, entre nós, as informações da evolução de cada caso
eram trocadas com muita facilidade. Todos ficavam sabendo como se desenvolvia
cada plano de trabalho e das suas dificuldades e êxitos. Escolhíamos os pacientes
mais carentes e, de preferência, os do grupo da "abandonoterapia". Sabíamos que
não era possível atingir toda a população hospitalar para acompanhamento
intensivo. O hospital era pobre e não possuía recursos para aumentar o número de
funcionários e residentes. Do grupo da "abandonoterapia" eram selecionados os
pacientes mais regredidos e complicados. Precisávamos aprender a lidar com esses
casos.

O grupo que ajudava Pedro atendia vários outros pacientes, mas, para cada
caso, mudava de nome; o grupo de Pedro chamava-se "Amor e Desejo". Nesse
plano de trabalho o objetivo era: “fazer com que a voz de Pedro, saindo da cabeça,
descesse para o coração, ganhasse impulso para cima e saísse pela boca”.
Queríamos que aprendesse a falar em alto e bom som sobre seus sentimentos, para
que sua amada o ouvisse e pudesse compreendê-lo. Se não conseguíssemos isso,
Pedro continuaria a ser um soldado raso, sem voz e sem vontade própria. Um
recruta que só saberia marchar pelas enfermarias da vida com um capacete de
papel na cabeça e um cabo de vassoura no ombro. Um ridículo soldadinho mudo
que só sabia cumprir ordens e bater continência para os outros.

Certa tarde, numa reunião do grupo Amor e Desejo, Pedro, timidamente, fez
uma comunicação. Estava gostando de uma jovem paciente da ala feminina. Ela
tinha dezoito anos, morena, cabelos longos e negros, muito calada e tímida como
ele. Já haviam conversado em duas oportunidades: a primeira vez foi dentro do
hospital, no salão de festas, onde havia ocorrido uma tarde-dançante. Era uma festa
que acontecia mensalmente para estimular a ressocialização entre pacientes da ala
masculina e feminina. A segunda vez foi durante um passeio ao zoológico da cidade.
O seu nome era Rita.

Éramos muito criticados pelos conservadores do hospital por causa dessas


festas e passeios. Nos acusavam de estimular a libidinagem entre os pacientes.
Enquanto os namoros aumentavam e os pares já podiam abraçar-se e beijar-se
furtivamente, diminuíam os casos de homossexualismo masculino e feminino nas
alas, ao mesmo tempo em que baixava a freqüência das agressões. Tínhamos que
ter muito cuidado com esses encontros para evitar casos de gravidez dentro do
hospital e a possível disseminação de doenças de transmissão sexual. Os grupos de
homens e mulheres, não poderiam ter mais de trinta pessoas; um grupo maior seria
impossível de ser controlado. Nas primeiras festas havíamos encontrado alguns
casais escondidos no banheiro ou atrás de árvores, se preparando para terem
relações sexuais. Estávamos pisando num terreno perigoso e muito polêmico dentro
do hospital.
50

Convidamos Rita para participar do nosso grupo. O casal, muitas vezes de


mãos dadas, expressava seus sonhos e fantasias de amor. No início se mostravam
tímidos e desconfiados, mas, com o tempo, passaram a falar e a trocar olhares
significativos. Estavam aprendendo que amor e desejo também fazem parte da vida,
são bons e só necessitam de uma dose de bom senso para evitar o surgimento de
gravidez irresponsável. Quando amor e desejo ficam muito reprimidos podem
"adoecer" a cabeça das pessoas, transformando-as em “bonequinhas de pano” ou
“soldadinhos de chumbo”. Ambos já podiam abraçar-se e beijar-se à vontade nas
festas. Não precisavam ficar envergonhados, escondendo-se pelos cantos, para
manifestarem o seu amor.

Pedro conseguira ter a primeira namorada, de verdade, dentro do hospital e


ambos progrediam muito nas outras atividades individuais e de grupo. Trocavam
correspondências pelo "Correio Sentimental", órgão de comunicação entre pacientes
das alas masculina e feminina, coordenado pelas assistentes sociais.

Nos grupos de atividades artísticas de Práxiterapia (terapia ocupacional) o


número de cartões cheios de corações com flechas, mensagens românticas,
convites eróticos e frases poéticas, aumentou consideravelmente após o inicio das
festas e passeios conjuntos.

Numa tarde de terça-feira, o grupo Amor e Desejo teve a mais infeliz das
idéias. Convidou dois familiares de Pedro para participarem da reunião do grupo e
comunicou o plano de trabalho que estava sendo desenvolvido para sua
recuperação. Encerrada a reunião os dois parentes se dirigiram ao diretor do
hospital e nos acusaram de perverter os princípios morais e religiosos de Pedro; de
atentar contra a sua castidade e induzi-lo ao pecado. Éramos os demônios que
queriam destruir a pureza de Pedro e o estávamos impedindo de trilhar pelo caminho
da salvação de sua alma rumo ao Reino do Senhor.

No dia seguinte Pedro foi retirado do hospital pela família enfurecida.


Retornou ao mesmo quartel familiar onde aprendera a ter alucinações, receber
ordens de silêncio e obediência, marchar com cabos de vassoura e com capacetes
de jornal. Só Rita permaneceu no nosso grupo e com o tempo arranjou outro
namorado, para quem escrevia e mandava cartões toda semana.

Coitado do Pedro. Será que voltou a ser soldado raso? Ou se insurgiu contra
os seus superiores e mandou todo mundo a vassouradas para as profundezas do
inferno? Não tivemos mais notícias dele. A partir dessa fatídica terça-feira o nosso
grupo, a exemplo de Pedro, também fez uma promessa: "jamais voltaríamos a
convidar fanáticos religiosos para participar das nossas reuniões de
acompanhamento intensivo de casos".
51

O filósofo

Havia um paciente jovem na ala masculina. Tinha vinte e cinco anos, era
branco e possuía uma barba bem cuidada e cabelos longos. Vestia-se
modestamente e andava muito limpo, trazendo sempre alguns livros debaixo do
braço. Jean-Jacques Rousseau, Bertrand Russell, Michel Foucault e Eric Fromm
eram seus autores prediletos.

Era alto, pernas compridas, andar macio. Falava baixo, com palavras
cuidadosamente articuladas e com um português precioso, de fazer inveja a
qualquer mestre da língua pátria. Gostava de conversar com os residentes e
estudantes que visitavam o hospital. Havia passado no vestibular de Filosofia,
Ciências e Letras. Cursara até o primeiro semestre dessa faculdade.

Sua família era pobre e, por diferentes razões, resolveu abandonar o curso e
correr mundo, como costumava dizer. Veio parar no hospital por que agredia seus
familiares que o chamavam de "maluco". Na verdade era um neurótico comum como
qualquer um dos médicos, funcionários ou residentes. Ia ficando no hospital porque
não tinha para onde ir e sua família não o aceitava mais em casa.

Nunca se metia em brigas, pelo contrário, aconselhava outros pacientes,


separava os lutadores e ajudava a enfermagem em diferentes serviços. Era um
pacificador, um pensador. Vinha educadamente, após o almoço, perguntar se já
tínhamos lido os jornais da manhã; levava-os para ler e os devolvia no final da tarde,
dobrados e sem faltar uma folha sequer. Estava sempre bem informado.

Perguntamos se ele poderia transmitir as notícias que lia para outros


pacientes que não tinham acesso às informações. Assentiu imediatamente e passou
a fazê-lo. Era comum ver-se o filósofo rodeado de pacientes, explicando com calma
e interpretando o conteúdo das notícias. Era o orador e porta-voz dos pacientes nas
solenidades do hospital, ajudava os funcionários da terapia ocupacional e produzia
textos, poesias e discursos que eram lidos em voz alta por outro paciente que
treinava para se tornar um grande orador e político.

O filósofo tinha uma visão particular e realista da vida hospitalar, percebia as


mudanças que estavam em andamento no hospital e nos elogiava e estimulava
nesse sentido. Tomava conta da velha biblioteca do hospital e, vez por outra,
ganhava livros novos que eram comprados através da "caixinha" do serviço social.
Estava a par dos novos lançamentos literários e, através de empréstimos de
colegas, conseguia lê-los.

Com o passar do tempo fomos descobrindo outras habilidades dessa figura


humana impressionante. Na realidade conhecia o hospital melhor do que muitos
médicos e funcionários. Era um terapeuta inato, paciente, compreensivo, inteligente
e disponível para ajudar a quem precisasse. Nunca aceitou remédios do hospital por
que tinha a segura convicção de que "as substâncias químicas só tem efeito sobre o
52

corpo e não atuam nas emoções". Era o que falava sempre que lhe ofereciam
remédios.

Convidamos o Péricles - esse era o seu nome - para participar dos nossos
grupos de acompanhamento intensivo de pacientes. Ele ficou muito emocionado e
aceitou prontamente o convite. No dia seguinte produziu um texto belíssimo falando
sobre a natureza humana, o trabalho com doentes mentais e a futura extinção dos
hospícios. Ficamos tão impressionados com o texto que resolvemos deixá-lo em
exposição permanente, pendurado na parede do nosso quarto. Foi transcrito com
letras bem elaboradas em papel-linho e ganhou moldura com vidro e tudo.
Estudantes e visitas que iam ao nosso quarto não acreditavam que aquela produção
tivesse saído da cabeça de um paciente.

O Péricles assistia a todas as reuniões e sempre era uma peça de grande


valor no trabalho de ajuda a outros pacientes. Era nosso informante, que levava e
trazia discretamente notícias e fatos que ocorriam nas alas masculina e feminina.
Pelo fato de viver entre eles era natural que os conhecesse melhor do que nós, num
certo sentido da convivência em grupo. Suas sugestões eram sensatas por que se
baseavam na observação direta e próxima de quem sabia interpretar com clareza as
situações. Era um co-terapeuta atuante e responsável.

Descobrimos que Péricles tinha uma namorada na ala feminina. Ela possuía
belos olhos verdes, temperamento calmo e contemplativo como o dele. Queria ser
cantora quando saísse do hospital. Para ela o nosso colaborador compunha letras
de música, poesias, textos românticos e filosóficos. Conversavam sobre essas
produções quando se encontravam. Recebia dela relatórios escritos sobre fatos
importantes que ocorriam na ala feminina, através do "correio sentimental". Através
desses relatórios detalhados Péricles se mantinha informado do funcionamento
interno da ala feminina, das pacientes que melhoravam e pioravam e de outras
notícias mais. Por essa razão podia trazer informações tão precisas sem necessitar
quebrar o regulamento do hospital, que proibia a entrada de pacientes do sexo
masculino na ala feminina. Era um diplomata e um romântico espião com ares de
filósofo.

Um dia pediu uma sugestão. Havia lido nos jornais, na página de


classificados, uma oferta de emprego para vender livros. Sabia que um dia teria que
sair do hospital e resolver sua vida lá fora. Demos a maior força para o Péricles.
Emprestamos roupas, sapatos e dinheiro. Naquela manhã bem cedo ele apareceu
de cabelos cortados, barba feita e dentro de um bonito terno, emprestado por um
residente do quarto. Ajeitamos o nó da sua gravata e, numa olhada geral, vimos
diante de nós um perfeito e elegante vendedor de livros. Colocou sua autorização de
saída no bolso e foi para o ponto do ônibus, que ficava em frente ao portão do
hospital.

Chegou no fim da tarde pulando de alegria e abraçando todos os que


encontrasse pela frente. Entrou no nosso quarto com um catálogo grosso debaixo do
braço. Falava, entre sorrisos, que tinha sido admitido como vendedor e assinara um
contrato de trinta dias para se submeter a um teste de vendas. Teria que cumprir
uma cota mínima de vendas para poder ser admitido como vendedor permanente da
53

empresa. Não era uma tarefa difícil, havia muitos livros interessantes e de fácil
comercialização, pelo que podíamos observar no catálogo.

Montamos um "posto de vendas" na portaria do hospital e dentro do nosso


quarto. Transformamos o Péricles em paciente externo, isto é, tinha autorização
durante um mês para entrar e sair livremente do hospital; só precisava voltar para
dormir. Ajudamos comprando e vendendo livros para o nosso filósofo, mas esse
esforço não teve muito valor, pois, na rua, o novo vendedor conseguiu cobrir a cota
mínima em apenas treze dias. Estava muito alegre e trabalhava como um louco.
Teria de apresentar uma carta de referência para a empresa no final do mês,
documento necessário para poder ser admitido como funcionário do quadro de
pessoal. Estava preocupado.

Conseguimos com o diretor e com mais dois médicos do hospital uma


solução para o problema. Referências elogiosas sobre a conduta do "auxiliar de
enfermagem" Péricles, que havia trabalhado em suas clínicas particulares durante
vários anos e sobre sua conduta ilibada e desempenho, dedicado ao trabalho, etc.,
etc. O nosso colaborador estava empregado e nós perdemos um valioso informante
e conselheiro dentro do hospital.

No final do mês fez questão que recebêssemos o dinheiro que lhe foi
emprestado. Abriu crédito numa loja onde comprou roupas e sapatos para ele e para
a namorada. Trouxe de presente vários pares de meias e os distribuiu entre os que o
ajudaram a conseguir o emprego. Estava feliz. Ficou durante oito meses trabalhando
fora e dormindo no hospital. Levava seu almoço numa marmita e só voltava para
jantar e dormir.

Numa tarde de sábado entrou no quarto triste e cabisbaixo, estava passando


por uma grande decepção. Havia voltado da rua trazendo uma caixa de bombons de
chocolate embrulhada em papel de presente. No domingo daria os bombons à
namorada, pois nesse dia ela faria aniversário. Voltou com o presente nas mãos e foi
ao quarto desabafar conosco. Ela havia arranjado outro namorado e não quis
receber o presente. Comemos os bombons junto com Péricles enquanto
filosofávamos a respeito das surpresas que o amor nos oferece a cada instante. Ele,
de certa forma, compreendia que a havia trocado pelo trabalho e não podia se
queixar muito. Tentaria esquecê-la e procuraria encontrar outra namorada.

Certa vez anunciou que tinha restabelecido as relações com sua família.
Tinha conta bancária, talão de cheques e, além do salário, ganhava boas comissões
vendendo livros e revistas para hospitais, clínicas e escolas. Pediu que
providenciássemos sua alta para antes do Natal. Iria passá-lo junto com a família e
com sua nova namorada, uma colega de trabalho.

No dia em que Péricles saiu, o hospital ficou menos culto e com um


colaborador a menos. Voltava de vez em quando para nos visitar e trazer novidades
que saiam quentinhas do prelo da "sua" Editora.
54

CAPÍTULO V

O orador

Para nós era comum entrar na ala masculina e encontrar uma figura
barulhenta, vestida com um paletó surrado e um fiapo de gravatas pendurado no
pescoço. Gritava em altos brados e deitava uma falação interminável de cima de um
caixote de madeira. Era Raul, discípulo de Péricles, um brilhante orador e destemido
político. Raul era um contestador, vibrante e agressivo orador que queria mudar o
mundo. Sua tribuna era um velho caixote de cerveja ainda bastante forte para
manter no alto os seus longos e inflamados discursos.

Havia sempre uma meia dúzia de pacientes dispostos a escutá-lo. Ficava


horas discursando e não parava enquanto houvesse, pelo menos, um espectador a
lhe prestar atenção. Quando todos se retiravam ele encerrava a oratória, sempre
com a expressão: "Deus salve o Brasil!". Guardava o caixote embaixo de uma
escada do pátio onde ninguém mexia. Não suportava interrupções durante sua fala e
quando alguém insistia, ficava nervoso e gritava: "Não dou apartes! Não dou
apartes!".

Os únicos detalhes que destoavam um pouco no seu traje de grande político


e orador emérito, estavam nas suas calças. Eram muito apertadas, acabavam um
palmo acima dos tornozelos e não possuíam botões na braguilha. Algumas vezes,
quando gesticulava muito, ou fazia movimentos bruscos, tinha que se recompor para
evitar risadas da platéia. Mesmo assim não pedia o fio da idéia e prosseguia
imperturbável. Em certos momentos o caixote balançava perigosamente, porém
nunca foi visto despencar da sua tribuna.

Não gostava de críticas ou sugestões de quem quer que fosse. Apenas


Péricles, o filósofo, tinha influência sobre ele, escrevia seus discursos e o
aconselhava sobre temas importantes e técnicas de impostação da voz. Tinha
melhorado muito a sua oratória desde que se dispôs a receber conselhos e
supervisão do seu professor e amigo. Seus temas eram muito variados. Podia falar
sobre política, economia, música, animais domésticos, pássaros e borboletas.
Quando falava sobre Política ou sobre as Forças Armadas, o tom da sua voz se
tornava mais forte e agressivo e o seu pescoço avermelhava e se enchia de grossas
veias.

Alguns pacientes o avisaram, talvez para inflamar mais seu ânimo, que ele
poderia ser preso a qualquer momento por causa do teor subversivo das suas idéias.
Deveria falar baixo para não ser ouvido por algum militar ou policial que por ventura
passasse nas imediações do hospital. Estávamos no ano de 1968, em plena
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vigência da ditadura militar, mas, mesmo assim, o Raul, baluarte da democracia, não
baixava a sua voz. Mesmo que fosse preso e torturado - dizia - levaria sua tribuna
para dentro da prisão e, de lá, continuaria a sua luta pela liberdade do povo e pela
salvação do Brasil!

O Raul sofria de uma gagueira perturbadora. Evitava falar fora dos discursos
porque, freqüentemente, era alvo da zombaria dos outros pacientes. Não conseguia
falar uma palavra sem se engasgar com a segunda. Senti muita vergonha e
costumava andar com lápis e papel no bolso para, através de bilhetes, resolver
algumas questões de comunicação. De resto, preferia permanecer calado. Não
gaguejava durante os discursos, sua voz era forte e suas palavras fluíam com
incrível facilidade.

Levamos o orador para submeter-se a diversos exames especializados e


chegamos à conclusão de que ele era portador de uma gagueira puramente
emocional. Durante um ano de buscas não conseguimos qualquer pista que nos
levasse aos familiares de Raul. A única informação, dada pelo próprio Raúl, era a de
que ele havia sido internado aos 15 anos de idade, num reformatório para menores,
na ilha de Cotijuba. Não conheceu sua família. Lembrava de uma creche onde havia
pessoas que cuidavam dele quando era criança.

Fomos orientados por uma fonoaudióloga para ensinar o Raul a cantar.


Assim ele não precisava forçar suas cordas vocais e aprenderia uma nova forma de
expressão fônica mais suave e tranqüilizadora.
O maior desejo de Raul era o de ter um discurso gravado em fita cassete.
Fizemos com ele uma negociação: aprenderia primeiro a cantar e, após gravar
algumas músicas, poderíamos gravar seus discursos. Ele aceitou. Apresentamos o
Raul para um paciente que tocava sanfona e, em seguida, para outro que batia
bumbo. Formado o trio, iniciaram -se os ensaios que aconteciam três vezes por
semana e eram coordenados por um enfermeiro que entendia de música. Após um
longo e estafante trabalho o enfermeiro comunicou que o trio já estava em condições
de gravar. Nesse período de treinamento o orador quase não fazia discursos, pois
era aconselhado pelo enfermeiro para não cansar sua garganta.

O trio não era exatamente um grupo artístico de renome internacional, mas,


quando se apresentava nos eventos festivos, atraía um razoável número fãs que, ao
término de cada número musical, batia palmas e pedia "bis". Foram gravadas cinco
músicas e três discursos na fita. Raul foi diversas vezes orientado para não gritar no
microfone e evitar que a gravação saísse ruim.

Enquanto cantava ele não gaguejava e, mesmo fazendo os discursos em voz


baixa e pausada, estava conseguindo se sair bem. A sua gagueira estava
diminuindo a proporção em que sua fama de cantor aumentava. Seus colegas de trio
estavam recebendo muitos bilhetes elogiosos, vindos da ala feminina, que o deixava
bastante preocupado. Mas agora era orador e cantor, já não se interessava muito
pela política. Disse que quando conseguisse juntar dinheiro iria comprar um
gravador e várias fitas, e aí poderia gravar qualquer coisa que quisesse.

Há semanas que essa idéia não lhe saía da cabeça. Andava de um lado para
outro cantarolando músicas sertanejas, talvez se preparando para algum projeto
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artístico no futuro. Certo dia o Raul fugiu do hospital e nunca mais foi visto.
Soubemos de notícias suas quase um ano depois. Escreveu uma carta com
endereço do hospital e dirigida para o enfermeiro que o havia iniciado na arte da
música. Dizia que era vaqueiro e vivia numa fazenda no interior. Possuía um
gravador e algumas fitas cassetes. Cantava e gravava nos fins-de-semana com o
pessoal da fazenda. Nada informava sobre a sua gagueira.
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A experiência com drogas

Naquela época a droga da moda era a maconha. Estava presente em todos


os lugares e percorria todas as classes sociais. Na universidade, na rua, nas boates,
enfim, em quase toda parte era consumida com razoável freqüência. No hospital ela
transitava sob o olhar moralista dos conservadores e com aquele gostinho de
proibição tão tentador, que despertava maior interesse nos jovens.

Apenas um, entre os cinco residentes, usava eventualmente a droga nos fins-
de-semana e, quase sempre, fora do hospital. Entre os pacientes havia cerca de
trinta pessoas, cujo principal motivo da internação estava relacionado com o uso
excessivo e habitual da maconha. O contato com eles se tornava bastante difícil pelo
fato de usarem uma linguagem própria, uma gíria específica e grupal, um verdadeiro
código secreto, particular aos entendidos em drogas.

Sendo jovens, nos sentíamos um pouco "caretas" e "por fora" desse mundo e
dessa terminologia, que expressava estados mentais esquisitos, provocados pela
ação da droga. Resolvemos um dia experimentá-la e organizamos uma série de
sessões para observar como cada um agiria sob os efeitos da maconha. Decidimos
que seriam escolhidos os domingos como os dias de testes, já que era raro
recebermos visita nesse dia. Como éramos cinco, decidimos que o plantonista do dia
ficaria observando e anotando a reação dos que estivessem experimentando a
droga. Fizemos o rodízio e após cinco domingos todos fizeram uso da droga.

Era curiosa a forma pela qual a maconha atuava sobre o comportamento de


cada um de nós: a fome desenfreada, os risos sem motivo aparente, o gestual e
estranho e os neologismos utilizados, eram algumas das reações observadas. A
maconha liberava, dos porões e do sótão do psiquismo, os conteúdos mais
estranhos e desconhecidos da consciência e, através dos comportamentos, os
deixava visivelmente a mostra.

Era interessante ver o residente, normalmente sóbrio e sério, só de cuecas e


com o estetoscópio no ouvido, enfiar sua extremidade num canudo de cartolina e
aproximá-lo do alto-falante da caixa de som para, assim, aproveitar melhor as
deliciosas notas musicais. Ele dizia que via as notas musicais pairando no ar e podia
pegá-las; elas tinham um intenso colorido e bailavam animadamente dentro do ritmo.
Só os que estavam sob ação da droga conseguiram "ver" essas coisas e ainda sentir
outras sensações diferentes.

Outro colega viu um "garfo fugindo" e saiu correndo atrás dele, morrendo de
rir. Um outro viu sua cama transformada em um barco e, com duas vassouras,
punha-se a remar desesperadamente para vencer a "correnteza". Pedia a ajuda de
todos, pois se encontrava em grande perigo. Suava muito e só parou de remar
quando chegou em "terra firme". A fome despertada pela maconha era tão forte que
os quatro residentes, antes tão solidários e educados, brigavam agora por um
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pedaço de pão, como se fossem quatro crianças pequenas. Devoraram tudo o que
havia na cozinha.

Outro residente, que há poucos dias tinha brigado com a namorada, agora
chorava, cantava e fazia versos de amor para sua amada; olhava seu rosto e a
beijava sem parar. Quando soltava o travesseiro, este estava úmido e todo babado
de tanto amor.

Era assim no quarto dos residentes, tudo era possível. Não era à-toa que
estávamos internados num hospital psiquiátrico. Só faltava um pequeno estímulo,
como a maconha, para que nossas loucuras se mostrassem ao mundo. Os outros
loucos estavam nas alas, e nós, concentrados naquele quarto, vivenciávamos
nossas loucuras estimulados pela droga.

O residente-observador, sóbrio, anotava as reações e ria bastante; não


compreendia nada, mas mantinha a porta do quarto bem trancada e a chave no
bolso. Seria o nosso fim se alguém fugisse do quarto e saísse, desse jeito, pelo
hospital. Provavelmente seria levado para a ala masculina e contido por algum
enfermeiro dedicado e atento. Ficaria entre os seus colegas loucos e se tornaria um
paciente durante algumas horas, até que o efeito da droga passasse. Poderia
também ser expulso do hospital, pelo que constava no Regulamento Disciplinar
Interno.

Talvez o maior efeito que essa experiência nos proporcionou foi a obtenção
de um maior respeito e compreensão em relação aos dependentes de drogas do
hospital. Essa experiência não mais foi repetida e cada um que cuidasse de si em
relação às drogas e as alterações do comportamento que ela proporciona.
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A namorada do residente

Um dos colegas do quarto tinha uma linda namorada. Uma loura insinuante e
esbelta. Visitava o hospital com freqüência nos sábados e ficava horas conversando
conosco. Era simpática, mas um pouco ingênua e orgulhosa de sua beleza. Sentia
um ciúme doentio pelo nosso colega residente. Às vezes, em voz baixa, perguntava
se alguma garota vinha conversar com ele no hospital. Sempre negávamos:
"Jamais! Ele é muito dedicado ao trabalho. Ele te adora!".

Resolvemos um dia fazer uma sacanagem com o colega. Havia um grupo de


pacientes jovens na ala feminina que estava sob tratamento pelo uso de drogas.
Tinham um comportamento espalhafatoso e viviam paquerando os residentes.
Mandavam bilhetes amorosos e eróticos, convites para transas sexuais regadas à
maconha e anfetaminas; era o que mais se encontrava nas cartas e bilhetes
endereçados ao quarto. Guardamos os bilhetes e uma carta que tinha sido enviada
para o residente que namorava a garota loura. Pegamos um jaleco branco, pintamos
os lábios com batom, carimbamos o jaleco com vários beijos e o guardamos.

Quando a princesa chegou naquele sábado, o seu namorado era o


plantonista do dia. De vez em quando era chamado para atender lá dentro.
Aproveitando sua ausência, colocamos nosso plano em ação. Tudo já havia sido
previamente combinado. Ficamos bastante reticentes e estranhamente calados com
ela. Depois de algum tempo ela, que conhecia nosso jeito alegre e comunicativo,
falou: "O que está acontecendo com vocês hoje, estão tão calados”.Olhava perplexa
e interrogativa para cada um de nós com seus bonitos olhos azuis.

Um colega falou: "Será que devemos contar o que aconteceu?". Olhava para
nós, esperando a nossa reação. Todos, de cabeça baixa, olhavam para o chão com
um misterioso ar de embaraço e dúvida. O clima estava ficando pesado quando
ouvimos um barulho na porta. Ela foi aberta calmamente pelo namorado plantonista
que, com um sorriso no rosto, aproximou-se da princesa e demorou-se num
prolongado beijo. Em seguida pediu licença e dirigiu-se ao banheiro. Pedimos, entre
sussurros, que ela não demonstrasse nada na frente dele; quando ele saísse
iríamos continuar a conversa.

O colega voltou do banheiro, sentou-se na cama, ao lado da namorada,


abraçou-a e ficou passando a mão carinhosamente nos seus cabelos enquanto
conversava e nos dizia que teria de voltar novamente à enfermaria. Havia um
paciente passando mal e ele acabara de prescrever um soro com antibióticos, o
prognóstico não era dos melhores. Notou a frieza da namorada e, dirigindo-lhe um
olhar carinhoso, falou: "Você está bem?". Ela só balançou a cabeça e esboçou um
sorriso artificial. Ele levantou-se, deu outro beijo nos cabelos da loura e falou que iria
demorar um pouco e depois voltaria.

A porta voltou a fechar-se e nós voltamos à carga. Tudo dava certo. Ouvimos
os passos do colega desaparecendo no corredor. Ela interrompeu o silêncio cheia
de curiosidade e falou: "E daí...?"; o residente que havia falado por último continuou:
60

"Eu não sei se a gente deveria estar te falando sobre isso, mas o teu namorado
precisa de ajuda. Parece não estar batendo bem da bola".

Falamos que ele não aceitava nossas ponderações sobre seus casos com as
garotas da ala feminina. Do seu envolvimento íntimo com elas. Era um grupo de
jovens desmioladas e, embora muito atraentes, apresentavam precedentes criminais
graves. Mostramos os bilhetes e a carta. Apresentamos como prova o jaleco todo
sujo de batom e arrematamos, dizendo que ele passava a maior parte do tempo na
ala feminina. Poderia haver risco de gravidez, expulsão do hospital,
comprometimento da sua futura vida profissional e complicações com os familiares
das jovens pacientes.

A nossa beldade estava com rosto pálido e olhos arregalados, lendo a carta e
os bilhetes. Suas mãos tremiam e as primeiras lágrimas começaram a cair. Apertou
os olhos e ficou muda por alguns instantes e, logo em seguida, explodiu num choro
convulsivo. O seu corpo desabou na cama como o de um animal abatido por um tiro.
Afundou o rosto num travesseiro que estava próximo e que abafava suas lágrimas e
sua voz.

Ficamos olhando, uns para os outros, e chegamos à mesma conclusão: a


brincadeira tinha ido longe demais. Mas era assim mesmo. Nossas sacanagens
eram proporcionais à loucura de cada um de nós e do hospital. Estávamos
habituados a fortes emoções, grandes gargalhados e trágicos acontecimentos, que
se misturavam no nosso dia-a-dia. Com movimentos de cabeça decidimos levar em
frente a gozação. Deixamo-la desabafar um pouco e a confortamos com palavras de
apoio, para que ela se recuperasse mais rápido. Estávamos preocupados com a
volta do colega ou com a entrada de alguma visita no quarto.

Já quase refeita do choque inicial começamos a falar para ela não se


preocupar, porque também estávamos fazendo tudo para ajudá-lo e tínhamos
certeza que ele acabaria compreendendo e que aquela fase passaria. Era uma
questão de tempo. Só temíamos que ele se contagiasse com alguma doença
venérea grave. Talvez sífilis, gonorréia ou cancro. Pedimos a Deus que o protegesse
com doenças mais leves como: micose ou "chato". Falava-se sério.

Fomos interrompidos por um grunhido profundo e súbito: "Cachorro! Vou


matá-lo!". Era um brado guerreiro, cheio de ódio, que saía pelos olhos, pela boca e
pelos poros da pele. A doce princesa havia se transformado numa guerreira feroz,
numa amazona que clamava por uma lança e um cavalo, para estraçalhar o inimigo.
Esmigalhar sua cabeça a machadadas e humilhá-lo sob as patas do seu cavalo.
Arrancar-lhe o coração. Levantou-se de repente e queria ir até a enfermaria onde ele
estava. Poderia estar com uma das garotas, naquele momento.

Acalmamos a jovem guerreira. Falamos bastante. Perguntamos se ela


gostava dele; que essa não era a melhor forma de ajudá-lo, etc, etc. Não adiantava,
ela estava possuída pelo capeta, gritava e esmurrava o ar. Pegou repentinamente
sua bolsa e, num gesto violento, levantou-se e falou: "Eu vou embora! Digam para
aquele cretino nunca mais aparecer na minha frente!". Saiu resfolegando, bateu
violentamente a porta do quarto e sumiu.
61

Ficamos ouvindo, silenciosos, o som dos seus sapatos altos que, como
cascos de um cavalo, pisoteavam com força o chão de cerâmica do corredor. Um
colega correu para a porta e ainda a viu descer a escada de entrada do hospital.
Quando ele retornou ao quarto, explodindo em gargalhadas, apertamos nossas
mãos em conjunto e demos do nosso grito de guerra. "Urra! Urra!". Tínhamos
cumprido mais uma missão. Rimos bastante e, logo depois, chegou o nosso
plantonista. Estava cansado e preocupado com seu paciente. Logo notou a ausência
da namorada.

Nosso colega baixinho, com seu cinismo natural, explicou que ele havia
demorado muito, mas que ela deixara um recado. Deveria ligar para ela, logo mais à
noite e não poderia esquecer, pois ela tinha novidades para contar. O plantonista
assentiu com a cabeça, mas estava com o rosto triste e o olhar vago. Sua
preocupação estava com seu paciente na enfermaria.

O relógio do quarto bateu as seis badaladas do fim da tarde. Impulsionados


por nossos sentimentos de culpa, vestimos nossos roupas e fomos, em junta
médica, ver o paciente do colega. Cercamos a cama do enfermo, avaliamos o caso
em conjunto e encorajamos o colega. Estava tudo certo. Ele iria melhorar e ficaria
curado. Era uma questão de tempo. O plantonista ficou mais aliviado e conversou
animadamente conosco. Mais tarde ele ligou para a namorada. Entrou no quarto e
comentou que ela não quis atender ao telefone. Não estava entendendo aquela
atitude, ela não era uma pessoa temperamental.

A nossa brincadeira não durou uma semana. O plantonista descobriu a


sacanagem e explicou para a namorada como era a nossa vida naquele pequeno,
mas animado quarto de hospital. No sábado seguinte ela voltou. Estávamos todos
conversando preguiçosamente sobre as camas. O plantonista também. Ela entrou
com um grande pacote nas mãos, era uma caixa onde havia um bonito e gostoso
bolo de chocolate. O nosso plantonista estava trocando de idade naquele dia. Seu
doente já estava andando normalmente e ele estava satisfeito com a sua
recuperação.

A guerreira loura colocou a caixa em cima de uma cama, tirou o cinto da sua
delgada cintura e saiu correndo atrás dos residentes. Todos pulavam de uma cama
para outra, tentando livrar-se do ataque inesperado. Quase pisaram em cima do
bolo. Conseguiu acertar várias chicotadas que, quando acertava nas costas, doía
bastante. Ofegante, recolocou o cinto e falou: "Vocês são uns filhos da puta!".
Xingou bastante. Daí a alguns minutos estávamos todos cantando os parabéns para
o plantonista, bebendo refrigerantes e cervejas e saboreando o delicioso bolo de
chocolate.
62

CAPÍTULO VI

A saída do hospital

Era o último ano de hospital. O sexto ano da faculdade era muito corrido. Os
estágios, nas diversas clínicas, nos deixavam mais fora que dentro do hospital e do
quarto dos residentes. Muitas vezes éramos apenas informados da evolução dos
casos nos grupos de acompanhamento pelos outros colegas e de forma resumida.

No ano anterior havíamos feito, durante as férias de julho, um estágio


intensivo de trinta dias, numa clínica do Rio Grande do Sul. Estávamos pensando
em voltar após a conclusão do curso médico e ficar mais três anos nessa clínica
para fazer uma residência complementar. Havia a possibilidade de conseguir uma
bolsa de estudos para ir a Holanda fazer um curso de pós-graduação em
psicoterapia.

De vez em quando parávamos em frente ao quadro pendurado na parede e


líamos o texto de Péricles, o filósofo. Ele estava certo. Aquele e outros hospitais
psiquiátricos teriam que acabar um dia. Estávamos no ano de 1970. Não era
possível que os hospícios ainda fossem durar tanto.

Já no final do mês de outubro sentíamos coisas estranhas por dentro. Uma


espécie de saudade antecipada do hospital, misturada com idéias novas, projetos
ousados e a sensação de caminhar para formatura e se transformar em médico. Que
metamorfose maluca era aquela, de um simples es tudante virar médico do dia para
noite?

O discurso oficial da nossa equipe era o de humanizar o hospital, organizá-lo


para facilitar a ajuda e a aprendizagem, para depois destruí-lo como instituição
segregadora de loucos. Já tínhamos percebido que o mito da loucura era um artifício
falso. Não havia loucos naquele hospital, havia pessoas pobres, destituídas de
poder, de cidadania e de família. Pessoas que reagiam desesperadamente para
readquirir os seus direitos normais; de se considerarem e de serem considerados
iguais a todo mundo.

Havia uma expropriação de poder. Os internados cediam seus poderes


individuais para todos nós, em troca do nosso "direito" de considerá-los pacientes.
Suas sanidades, embora existissem dentro de cada um, deveriam ser escondidas
por nós, por detrás dos diagnósticos, dos remédios e dos eletrochoques. Suas
sensações de desproteção e de abandono abalavam suas certezas de homens e
mulheres livres. Nós éramos os loucos visionários que, através de nossa cegueira
intelectual, transferíamos nossa doença mental para eles. Sem eles não
conseguiríamos ter certeza sobre a nossa sabedoria, o nosso prestígio e o nosso
63

poder. Tínhamos necessidade de "matéria-prima" suficiente para a manutenção do


poder da cura, estatuto sem qual não pode existir psiquiatras, remédios e hospícios.

Como poderíamos estar sentindo saudades de um hospital que, nós


mesmos, queríamos destruir; será que estávamos ficando loucos? Não sei se
poderíamos estar ou não em crise. Às vezes tínhamos a impressão que, após a
formatura, iríamos entrar para a ala masculina e ganhar a condição de pacientes
com o direito à "tratamento adequado".

Nestes tempos de crise interna, um dos residentes teve um sonho: Eram dois
hospitais que, ligados entre si, possuíam um só portal de entrada e saída ao mesmo
tempo. Os que saíssem de um, ingressariam fatalmente no outro. Um era cheio de
pobres, de médicos, de remédios, de estudantes e de enfermarias. O outro não tinha
nada disso. Por ser maior, nele se viam carros, avenidas, hotéis, restaurantes e
pessoas bonitas e poderosas. Eram loucos disfarçados de pessoas normais.
Disputavam entre si seus poderes e riquezas. Viviam correndo de um lado para
outro e não podiam perder tempo algum. Seus delírios de riqueza, prestígio e poder
os deixavam tão ocupados e, porisso, nunca conseguiam parar nas esquinas das
suas consciências para descansar seus espíritos. Eram loucos varridos estes do
outro hospital! Nós também corríamos um grande risco. Deveríamos passar para o
outro lado do portão e solicitar internação do lado de lá.

No exato momento em que ia transpondo aquele portão único, o residente


acordou assustado e percebeu que estava deitado em sua cama. Ficou pensando
no sonho e concluiu que não existem loucos, existem sim muitos mitos que mantém
a idéia alucinada de civilização. Uma alucinação coletiva dos que, para se sentirem
menos ameaçados, tiveram que delirar para criarem as idéias de segregação,
desigualdade e doença mental. Nós também poderíamos estar delirando ao desejar
passar mais três anos em outra clínica e viajar para o exterior em busca de mais
doenças mentais. Só maluco pode trocar sua sanidade por sentimentos e desejos
tão mórbidos.

Levantou e abriu o guarda-roupa. Tirou de lá todos os documentos e papéis


que garantiam seu ingresso na clínica em Porto Alegre e a viagem para a Holanda e
os foi rasgando um por um. Já não poderia se arrepender depois, se o seu delírio de
viajar retornasse a sua cabeça. Uma semana antes ele havia conversado com um
velho e experiente professor da faculdade. Ele era o catedrático da cadeira de
clínica médica. Um homem sensato, ótimo profissional e excelente cidadão. Havia
feito estágios no exterior e era simples no vestir, no falar e bastante atencioso com
todos. Havia falado que no sexto ano era comum os estudantes apresentarem a
"Síndrome do Delírio Profissional". Sonhavam alto, muito alto. Desejavam tornar-se,
num passe de mágica, ilustres e famosos profissionais reconhecidos nacional e
internacionalmente; mas que isso iria passando com o tempo, santo remédio para os
grandes sonhos. Falou que quando alguém sai da universidade, encontra-se
completamente preparado para começar a aprender.

A conclusão do curso universitário não é outra coisa senão um novo exame


vestibular e permite ao recém-formado a oportunidade de estudar e aprender cada
vez mais. A ilusão do "grande doutor" é mais um "trote" que os veteranos só
descobrem depois da festa da formatura. Depois, curados do orgulho e da
64

embriaguez da posse do diploma, descobrem que aquilo é um simples pedaço de


papel, um contrato que obriga, o novo e famoso operário, a procurar humilde mente
o seu primeiro emprego.

Falou que todo recém-formado deveria submeter-se a um longo trabalho


prático no interior para poder consolidar os conhecimentos adquiridos na
universidade. Disse que, enquanto os estudantes alimentam grandes projetos, uma
legião de pobres, na Amazônia e no resto do país, padece das endemias mais
corriqueiras como: malária, tuberculose, verminoses, lepra e das doenças da fome e
da desnutrição. Todo recém -formado, antes de alçar seu grande vôo, deveria pagar
seu tributo aqui mesmo, na terra onde nasceu, pelo privilégio de ter podido estudar e
se formar em uma universidade federal gratuita. Porque contraiu uma dívida para
com os pobres do país, aqueles que foram sua "matéria-prima" e os provedores do
seu conhecimento. Não se deve investir em sonhos, é preciso que se ande com os
pés grudados a terra nos primeiros anos da vida profissional - finalizou.

O residente voltou para o hospital, naquele dia, com a cabeça completamente


desorganizada. Sonhos, certezas, realidades e dúvidas estavam todas misturadas e
circulavam velozes como camisetas e bermudas no interior de uma máquina de lavar
roupas. Depois que sonhou e rasgou os papéis dos estágios a cabeça melhorou. Já
era novembro e dentro de poucos dias o mês iria acabar. Havia decidido não sair da
Amazônia. Trabalharia por lá mesmo e pagaria sua dívida até que suas asas
crescessem mais; ele ainda era um filhote, com poucas penas nas asas, tinha que
aprender muito.

Os vários estágios do hospital-escola estavam no final e o clima da turma do


sexto ano era de preparativos para o dia da colação de grau. No hospital Juliano
Moreira o quarto dos residentes, os corredores e as enfermarias continuavam no
ritmo de sempre. Ele deveria retirar seus pertences do guarda-roupa e ceder sua
cama para o próximo ocupante. Era assim que tinha que ser. Na verdade eram três
vagas que iriam abrir naquele ano. Ele e mais dois colegas do sexto ano, residentes
do hospital iriam sair e provocariam com isso uma verdadeira renovação na
população do quarto. Apenas dois colegas do quinto ano iriam ficar para orientar os
novos candidatos a residente.

Chegou o mês de dezembro. Era um mês que prometia grandes emoções. A


proximidade da conclusão do curso, a saída do hospital e o clima do Natal próximo
estavam entrelaçados com a idéia de conseguir o primeiro emprego. Era como
interromper bruscamente a adolescência e se tornar adulto, sem trocar a calça
"jeans". Era como receber alta do hospital sem estar completamente curado,
sentindo as pernas fracas e a cabeça tonta. Ele, que tinha visto tanto paciente deixar
o hospital, se sentia agora como se pertencesse ao grupo da "abandonoterapia",
sem diagnóstico e sem remédio algum.

Na última semana de hospital relembrou muito dos pacientes que ficaram


gravados na sua memória. O homem dos sacos, o filósofo, o homem-árvore e de
tantos outros que, na verdade, se constituíam em pedaços dele mesmo, fragmentos
da vida e da insanidade de um residente interno. Muitas das solidões que
acompanhou e ajudou a atenuar, estavam agora somadas dentro de si. Sentia-se
muito só e não havia equipe para lhe socorrer na sua solidão. Ele era como o
65

homem dos sacos que, agarrado aos seus sonhos, teria que abandonar sua família,
catar papéis e documentos para se sentir seguro e perambular pela vida. Era um
homem-árvore que, plantado dentro de si mesmo, não queria caminhar. Teria que
fazer como Péricles: abrir a página de classificados e descobrir uma oportunidade
qualquer. Estava perdido no presente, agarrado ao passado e com medo do futuro.

Chovia muito naquela manhã de dezembro. Era quinta-feira, dia da festa de


fim de ano no hospital. Naquele dia haveria uma confraternização entre funcionários
e pacientes do hospital. Haveria também a despedida dos estudantes que
encerravam o período de residência. A sala de reuniões estava cheia de gente. Seus
olhos, molhados de emoção, viam funcionários, colegas, médicos e pacientes, todos
embaçados. Abraços, cumprimentos, despedidas e brincadeiras não foram
suficientes para distrair a sua saudade. Foram três anos morando e vivendo ali. Ele
não queria mais desinternar-se. Andou, pela última vez, por todas as dependências
do hospital. Aqui e ali recebia e dava braços e cumprimentos, desejando feliz Natal e
Ano Próspero para os que encontrava pelo caminho. Agora era um médico. A
sensação que experimentava naquela última caminhada era diferente; como se
pudesse ser, ao mesmo tempo, um médico, um paciente e um residente-plantonista
estrangeiro, que caminhava pelos corredores e enfermarias, tendo a impressão que
já conhecia tudo aquilo antes. Ele mesmo teria que cuidar da sua doença e do seu
último plantão.

A festa terminou, os cumprimentos e despedidas se esgotaram e ele sentia


suas pernas descendo, lentamente e a contragosto, a escadaria na frente do
hospital. Pela janela do carro seu coração apertado olhava com tristeza a fachada
do prédio hospitalar, enquanto o motorista do táxi, impaciente, perguntava pela
terceira vez: "Para onde, doutor?". Apenas sinalizou com o dedo apontado para
frente, porque, como o Pedro, não podia mais falar naquele momento. Se pudesse,
teria dito: "Para a Vida, companheiro!".
66

Profecia, ruínas e missão cumprida

O residente já estava cinco anos mais velho e tinha trabalhado em diferentes


lugares, quando resolveu voltar à sua cidade e visitar o hospital. Sentia-se como
aqueles pacientes que, de vez em quando, vinham visitar o quarto dos residentes.
Já era casado e possuía um carro próprio.

Parou em frente ao hospital e viu um enorme vazio. Ele já não existia mais.
Havia sido demolido há algum tempo. Apenas pedaços de tijolos e restos de
alicerce, sobraram naquele lugar deserto. Parecia mais um cemitério abandonado.
Ali estava sepultada, para sempre, a sua memória de estudante.

Lembrou do filósofo Péricles e da sua profecia escrita no quadro pendurado


na parede do quarto. Poderia muito bem servir de epitáfio para aquele monte de
túmulos destruídos. O sentimento de perda ainda existia, mas já era menor do que o
de alegria. Havíamos realizado nossa última missão. Aquela destruição representava
o nosso sonho de vitória. E os "loucos" onde estariam agora?
67

Discurso civilizado e idéia de reconstrução

Todos os fenômenos que ocorrem sobre a face da Terra poderiam ser


classificados, com simplicidade, em dois grandes grupos:

1. Os que se relacionam com o comportamento humano.

2. Os que não se relacionam com o comportamento humano (fenômenos da


natureza).

O comportamento humano é moldado segundo a cultura dos povos. Desse


ponto de vista podemos classificá-lo em mais dois grupos:

1. O comportamento dos povos civilizados.

2. O comportamento dos povos primitivos.

Sabe-se que, atualmente, existem reduzidas populações do que se


convencionou chamar de "povos primitivos" (sociedade humanas naturais) e que o
planeta foi ocupado, em quase sua totalidade, pelo que se conhece como "culturas
civilizadas".

Na realidade não existe uma autêntica cultura civilizada. O conceito de


cultura, embora amplo, poderia ser traduzido como o resultado total de
conhecimentos, crenças, artes, moral, leis, costumes e quaisquer outras aptidões e
hábitos adquiridos pelos homens, como membros de uma sociedade ou grupo. Na
verdade um "modelo cultural" relativamente estável deve seguir regras
harmoniosas na sua evolução, para ser reconhecido e respeitado pelos membros
desse modelo. Essas características próprias de cada modelo ancoram-se no que
se costuma chamar de "tradição do modelo cultural". A síntese de um modelo
cultural está representada por suas "características de tradição". Esse conjunto de
características exerce forte influência sobre os membros pertencentes a cada
modelo cultural e se reflete na base informativa e formativa do comportamento
individual. Sendo assim, cada indivíduo é levado a se comportar segundo as
características (sentimentos, princípios e valores) do modelo ao qual se encontra
ligado. Como cada indivíduo possui seu próprio mundo psíquico, esse psiquismo
está sujeito às normas, variações e organizações (ou desorganizações) do modelo
cultural em que se situa e com o qual interage.

Foi a partir de 1972 que, seguindo essa linha de pensamento, iniciamos uma
observação mais minuciosas do comportamento humano, através dos conceitos de
Comportamento Ativo e Comportamento Reativo, ambos relacionados ao meio
sócio-familiar-cultural, onde se situam os indivíduos. Percebemos que as pessoas
agem e reagem frente a situações do meio ambiente externo (família, sociedade,
cultura) e interno (psiquismo individual). Que as formas de agir ou reagir, são
tentativas de readaptar-se ou protestar; que geralmente estão ligadas a
sobrevivência física e emocional; que o intercâmbio entre esses meios é a única e
68

singular forma de existência e convivência individual com o social. A vida de cada


um de nós, circula entre esses dois pontos em busca de equilíbrio. A base que
sustenta a nossa atuação no teatro da Vida é a Biosfera (meio ecológico), onde
várias outras formas de vida e de meio físico também existem para garantir nossa
existência.

A proposta do conceito de Comportamento Ativo serve apenas para


representar a conduta humana harmoniosa e equilibrada que permite a convivência
construtiva e ativa entre indivíduos e, destes, com o meio social e ecológico. O
Comportamento Reativo, nos seus diferentes graus de intensidade, representam a
conduta humana reativa, isto é, inadaptada, insatisfeita e não-equilibrada em
relação ao meio interno (psiquismo), ao externo (família, sociedade, cultura) e a
base que os sustentam (meio ecológico).

O comportamento humano não deve ser considerado só do ponto de vista


estático, ou seja, com base apenas nos fenômenos intrapsíquicos, genéticos,
enfim, de natureza estritamente individual.

A idéia de tentar conceber um mundo perfeito, absoluto, acabado e centrado


no individual é a própria negação da evolução vital; é negar a convivência das
pessoas a partir de suas próprias diferenças individuais. É a loucura do isolamento
e da solidão, que não é desejada por ninguém. Um homem não vive só, uma
família não existe só. Ninguém suporta ficar só, por que a vida é gerada de duas
pessoas e se espraia inevitavelmente nos grupos sociais, com seus modelos
próprios.

Por que as pessoas, muitas vezes, se sentem solitárias dentro de suas


famílias e no meio da multidão? Estar rodeado de outros indivíduos e sentir-se
solitário não seria um fenômeno relacionado ao mundo interno (psiquismo) e ao
mundo externo (família, sociedade, cultura)? Como lidar com esse aparente
paradoxo?

O homem civilizado aprendeu a ser classificatório e individualista. Aprendeu


a rotular e separar seus rótulos em diferentes gavetas; e essas gavetas precisam
permanecer isoladas. Desaprendeu as lições da vida em comum e aprendeu a
organizar seu psiquismo através de processos intelectuais com base na razão. Sua
emoção, solidariedade e intuição foram engavetadas numa outra estante do
inconsciente e pouco valorizadas, por não possuírem utilidade prática e imediata no
mundo civilizado.

Agora é possível compreender por que foram criados os diagnósticos


psiquiátricos, os remédios e as instituições, projetadas para guardar e prender a
loucura humana e isolá-la do mundo produtivo. O homem atual não consegue
conviver com suas fraquezas e erros, próprios da sua natureza. Ele tenta projetar-
se de forma megalômana, numa imagem de perfeição narcisista, auto-suficiente,
sapiente e onipotente. Ele tenta negar sua natural animalidade e pequenez diante
de si próprio e de outras formas de vida existente na Terra. Ele se esforça para
esquecer que, um dia, há pouco tempo atrás, pertenceu a uma sociedade que
atualmente chama de primitiva. O homem moderno empresta ao termo "primitivo"
uma conotação pejorativa e inferior, mas não consegue organizar-se e construir um
69

modelo cultural equilibrado e sem problemas, que já possuiu, quando ainda era um
"ser" naturalmente primitivo.

Quando conversamos com pessoas fisicamente saudáveis, com razoável


formação intelectual, boas condições materiais, e que se queixam de solidão dentro
de suas famílias e na sociedade, podemos pensar: Será que essa pessoa está
sentindo saudade de alguma coisa importante para ela? Depois de ter adquirido e
acumulado todas as materialidades necessárias à sua existência, o que ela deseja
obter mais, para não se sentir tão solitária?

Enquanto não possuirmos provas concretas em contrário, podemos


continuar acreditando que a aquisição de bens materiais, prestígio e poder não são
suficientes para aplacar os sonhos, desejos e ânsias do espírito humano. Talvez
seja melhor acreditar que a existência de um "modelo cultural" relativamente
estável e equilibrado seja uma necessidade básica, fundamental para a convivência
em "estado de riqueza", onde competição e ganância possam estar substituídas
pelo amor e pela crença na solidariedade dos grupos e das sociedades humanas.
Não acreditar nisso é descobrir - o que atualmente vemos - o segredo da existência
da miséria, da fome e da loucura entre nós, os civilizados. O grande objetivo, a
síntese e o foco que iluminam o sentido da Vida reside na forma pela qual os
homens se organizam e organizam seus sentimentos, princípios e valores, para
viverem e conviverem e grupos.

A "perda cultural" significa para o homem civilizado o que a


"despersonalização" significa para o esquizofrênico - a desorganização e o estado
de confusão. O esquizofrênico não é o um "doente mental", uma pessoa que
nasceu com "defeito de fábrica"; ele apenas expressa, com seu comportamento,
uma denúncia pessoal, um protesto contra a desorganização do modelo cultural e
familiar, no qual não mais deseja conviver sem reagir. Ele apenas corta contato
provisoriamente com o grupo familiar e social que provocou a desestruturação da
sua personalidade. Seu "comportamento reativo" cobra da sociedade e da família
mudanças adequadas à sua reinserção na vida sóciofamiliar. Ele é o ponto
sensível, a linha que se rompe primeiro para mostrar o caos da convivência.

As fobias são comportamentos reativos simbólicos, que se projetam para o


exterior e deslocam seu verdadeiro significado, identificando em insetos, objetos e
situações, causas que possam justificar os medos e temores pessoais. Estão
sempre camuflando as verdadeiras crises reativas do psiquismo. Essas reações
podem estar denunciando, através desses códigos simbólicos, as insatisfações, o
medo e a insegurança pela própria vida. que seus portadores experimentam. Não
ouvimos falar de fobias entre as sociedades naturais. Seus medos são claros e
organizados ritualmente. São identificados nos fenômenos naturais, situações reais
de perigo e abstrações de caráter religioso, perfeitamente compreensíveis. Não
vemos, entre eles, moléstias nervosas ou mentais. Não é freqüente possuírem
homicidas, suicidas, prostitutas, drogados, assaltantes e mendigos. Eles sabem,
por intuição, que um modelo cultural bem organizado pode evitar tudo isso.

O Comportamento Ativo é sinônimo de: sintonia, adequação e integração


estável entre indivíduo e grupo social. A ação individual se comporta dentro do
modelo para colaborar com seu equilíbrio e aprende a conviver bem com ele. O
70

oposto disso resultaria no Comportamento Reativo As alterações do psiquismo e,


por conseqüência, do comportamento humano, se movimentam dinamicamente na
direção dos desvios e das anomalias do meio circundante, onde os indivíduos
nascem, crescem, convivem aprendendo, e morrem.

Compreendemos bem o porquê das tentativas e das buscas incessantes do


homem civilizado para manter o Estado e suas instituições em equilíbrio. O dilema
do civilizado está encravado no "desejo de parasitar" o modelo em que vive sem
matá-lo completamente. Enfraquecendo-o apenas. Seu desejo de depender do
Estado e dos outros indivíduos, para deles retirar vantagens, o aprisiona na
condição de parasita e o faz perder sua autonomia e dignidade. Essa angústia
reside no fato de perceber que ninguém vive sem modelo grupal. Ninguém vive só.

Produzir sempre muitas leis, muitas religiões, muitas tecnologias e muitos


códigos morais dá para desconfiar. Alguma coisa não vai bem conosco. É preciso
repensar nosso modelo e nossas regras de convivência. Ninguém deve se orgulhar
de pertencer a essa "civilização", mas deve preocupar-se com seu futuro, pois,
nela, vivemos e convivemos com nossa família, amigos, conhecidos e
desconhecidos. Não devemos reagir contra ela. Devemos agir, colaborando
sempre, para uma mudança na base qualitativa do convívio humano. Todos amam
a Vida, pois é nela que circula o maravilhoso fenômeno da relação social.

Por causa da "perda cultural", situação complexa sobre a qual o homem


moderno não tem acesso e tampouco parece interessar-se, ousamos, certa vez,
pensar. Talvez uma idéia inovadora, talvez uma utopia. Sonhando, fomos
construindo o mito da integração de um novo mundo. Um mundo onde se
conseguisse compor e juntar as partes boas e sábias dos povos primitivos e as
partes boas e sábias do mundo civilizado. Daí poderia surgir a base de um "novo
modelo cultural" que permitisse resgatar os desvios provocados pelo processo
civilizatório e emprestar novas ferramentas para a convivência pacífica entre
indivíduos.

É possível falar da idéia - mas não dos projetos - para essa reconstrução,
pois eles ainda circulam nas cabeças cheias de esperanças de muitos homens,
sem soluções definitivas. Sonho do presente ou realidade do futuro? Não sabemos.
Mas podemos acreditar em coisas, como: a evolução cíclica do universo e a
capacidade criadora do homem. Pensando bem, estamos a tão pouco tempo na
Terra, que acabamos não tendo certeza em que fase do desenvolvimento nos
encontramos. Se for preciso recomeçar tudo de novo, aqui estamos para oferecer
voluntariamente nossa ajuda nesse mutirão.

A Civilização não pode continuar esmagando o homem. O Estado Moderno,


com suas instituições, não pode manter a cidadania humana amordaçada e
transformada em simples figura de contribuinte passivo. Não somos peças
mecânicas de u'a máquina produtora de bens materiais e nem consumidores
dependentes de seus bens. Temos consciência e bom-senso para retomar nossa
identidade e reter o poder, que cabe a cada cidadão, de decidir qual o melhor
caminho para o futuro.
71

A instituição familiar não deve reprimir o comportamento reativo dos seus


membros, mas refletir sobre suas verdadeiras causas. Deve aprender a lidar com a
loucura, absorve-la e compreendê-la, para conseguir libertar sua voz. A família é
uma instituição natural e indestrutível. Precisa juntar-se em grupos maiores e
organizados, para exigir o poder e o respeito que merece e a que tem direito.

Nenhum Estado Moderno resgatará para o indivíduo os direitos da cidadania


e da liberdade individual, porque o seu papel essencial é o de restringi-los. O
Estado os deseja, os controla e sempre seu oporá a essa devolução. Os homens
que representam o Estado Nacional, na sua maioria, nunca desejarão transferir o
poder, para não perderem seus privilégios. Nenhuma ideologia política deverá ser
seguida porque seus discípulos, sempre as utilizam como forma de controle do
poder político centralizado. Nenhuma ideologia política, econômica ou religiosa
contém dentro de si a essência da liberdade, pois, a liberdade não é feita de
palavras ou de idéias, ela existe dentro de cada cidadão que queira falar, pensar e
agir livremente. Todas as ideologias e formas de governos experimentadas até hoje
pelo homem civilizado não conseguiram mudar o panorama do mundo atual.

Haverá de chegar o dia em que assistiremos à morte do Estado Moderno. A


partir desse dia se iniciará um processo de reconstrução social, onde cada cidadão
se tornará responsável, com direitos e deveres, para conviver em um novo modelo
cultural. Veremos então o desaparecimento gradual das desigualdades, da
violência, da fome, da solidão e da loucura. Quando esse dia chegar seria bom que
ainda vivêssemos para assistir, de pé, o início dessa nova era para a humanidade.

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