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AO FIM DA PROPRIEDADE*
“A burguesia obriga todas as nações, sob pena de extinção, a adotar o modo burguês
de produção; obriga-as a introduzirem em seu meio o que ela chama de civilização, isto
é, a tornarem-se burguesas. Numa palavra, ela cria o mundo à sua própria
semelhança”
(Marx e Engels)
Este dia ficou, tristemente, para a história, conhecido como o Massacre de Eldorado
dos Carajás. Muito repercutido na mídia maior, o que se pode ver até hoje é o
completo descaso que esta mesma mídia tem para com o problema da reforma agrária
no Brasil, bem como com as variadas formas de violência que ocorrem no campo onde
se evidencia uma clara relação de submissão desta mídia aos proprietários,
fazendeiros e donos de propriedades privadas.
Assim, o Estado Soberano se torna o senhor de todos. Ele passa a exercer um poder
positivo sobre a vida de todos. Positivo porque o Estado Soberano tem que resguardar
a vida e a segurança de todos. Para isto a sociedade civil deve viver sob os direitos
civis, promulgados e garantidos pelo Estado Soberano, onde o direito à violência
contra crimes, o direito de castigar, de absolver, o direito a vida, a liberdade e as
regulamentações jurídicas que garantem a propriedade são atribuídos ao Estado
Soberano, uma vez que com a transferência do poder de todos para o Soberano o
Estado governa os governados.
Deste modo, a propriedade não se constitui como um direito natural. Ela não é
definida pelas pessoas, mas pelo poder do soberano absoluto que é o Estado:
“pertence a soberania todo o poder de prescrever as regras das quais todos os homens
podem saber quais as ações que pode praticar, sem ser molestado por nenhum de
seus concidadãos: é a isto que os homens chamam propriedade” (Hobbes).
Isto ocorre devido a constatação hobbesiana de que todos estariam em guerra contra
todos e por medo de permanecerem nesta condição, procurando preservar um estado
de paz, transferem seus poderes e liberdade ao homem artificial que é o Estado
Soberano. Em Rousseau, o representante da soberania popular, como detentor da
vontade geral, deve zelar pela propriedade para que, vivendo em sociedade, as
pessoas não façam a guerra entre eles por interesses individuais.
Era necessário tornar a propriedade um direito natural. Assim John Locke cria a teoria
de que Deus, ao expulsar homem e mulher do paraíso, não lhes tirou o domínio sobre
o mundo. Eles foram expulsos e agora o que tinham como dádivas, teriam que
trabalhar para conseguir. Logo, o trabalho se torna o meio pelo qual a propriedade
privada será possível, pois é através deste trabalho que se torna possível acumular
riquezas e adquirir uma propriedade.
Deve ser garantida a burguesia o direito da propriedade privada sem que o Estado
possa interferir. A responsabilidade do Estado é de preservar os direitos civis ao
público e não o de interferir nas ações individuais e nos bens privados da burguesia.
Assim, o liberalismo investe em uma arte de governar a qual as ações do estado para o
corpo social (a sociedade civil) devem estar de acordo com os interesses econômicos
da burguesia.
A questão passa a ser então de um governo policial que administra ao mesmo tempo
em que faz com que suas ações se integrem aos interesses privados da burguesia. Para
isto o Estado tem que garantir, moral e sociologicamente a integração de todos de um
modo não desagregador. Ora todos devem trabalhar, cumprir suas obrigações, viver
socialmente e apetecer a uma vida digna, sem concorrência generalizada, pois isto
ficou para aqueles que comandam o campo da economia de mercado.
Para isto é constituída uma regulação sobre a vida (Vitalpolitik). O liberalismo é uma
prática sobre a vida. Um regime de verdade, baseado e fundamentado em uma
reflexão contínua que não constitui nem uma ideologia nem uma consciência
reguladora, mas uma ação sobre o corpo da sociedade civil. O liberalismo pode ser
compreendido como uma razão de exercício de governo que obedece a ordem do
mercado cravado na economia máxima.
Este é o trabalho morto do qual nos fala Marx. Morto porque apenas tem por objetivo
o acumulo de riqueza e para isto garante a exploração do proletariado. Assim, toda a
força de produção dos trabalhadores desaparece quando o trabalho não é mais visto
como uma produção de corpos singulares, mas como uma divisão do trabalho que
torna as forças de produção abstratas, porque o que conta, dentro desta divisão
capitalista do trabalho, não é a força produtiva dos trabalhadores com suas
inteligências e toda sua fisiologia, mas o resultado final como acumulo para o
capitalista através da mais-valia.
No capitalismo o trabalhador não exerce sua força de trabalho para a produção livre,
mas é o poder que exerce sobre a força de trabalho um controle para se apropriar dela
própria e de seus resultados. É aí, acreditamos, onde o Estado liberal faz do trabalho,
não um erro moral ou uma falsidade sobre a existência, mas uma prática onde os
corpos são sujeitados ao controle de um saber e a intervenção de um poder.
Ironicamente, foi FHC que instituiu o dia 17 de abril como o Dia Nacional de Luta pela
Reforma Agrária. O irônico aí é o seguinte: como liberalista convicto, talvez, o ex-
presidente tenha se esquecido do sociólogo, e instituído este dia para nos lembrar que
em um Estado liberal o pobre não pode invadir aquilo que o Estado protege como
direito natural do burguês: sua propriedade privada. Talvez seja neste ponto que para
FHC Hegel é mais humanista do que Marx.
Stédile, em uma entrevista, diz que tanto no governo Lula quanto no governo FHC, não
houve desconcentração da propriedade de terra. Mas também diz que “Na forma de
tratamento dos movimentos sociais, não são iguais, não. FHC tentou cooptar, isolar e
criou condições para a repressão física, que resultou nos massacres de Corumbiara e
Carajás. Já no governo Lula há mais diálogo. Nunca houve repressão por parte do
governo federal”.
No governo lula, assim como em algumas partes da América Latina, torna-se cada vez
mais possíveis movimentos sociais que pressionam os governos a tomarem suas
decisões. Neste ponto a crítica ao Estado Moderno é radical. Ele já não se constitui
soberanamente. Existem as vozes imanentes, as ações que agem sobre as ações do
governo, os muitos, a legião, a multidão imanente que resiste ao transcendente uno
que é o Estado.
O próprio governo Lula reforçou isto quando, na ocasião da crise mais recente do
capitalismo, demonstrou que são as pessoas em suas relações no cotidiano,
consumindo, trabalhando que constituem as suas próprias seguranças e liberdades. A
ação do governo federal do Brasil, ao contrário de países desenvolvidos da Europa e
dos EUA, não usou a crise como uma forma de reforçar os laços entre o capital e a
propriedade privada.
O FIM DA PROPRIEDADE
Portanto, são nestes movimentos sociais, onde a propriedade desaparece, onde o seu
fim torna-se possível. Não se trata de se apropriar das terras e conservar um poder
transcendente que faz de uma pluralidade uma unidade. Em relação a divisão do
trabalho, mas muito próximo do que desejamos colocar aqui, André Gorz, escreve o
seguinte:
Não basta tomar e se apropriar dos modos de produção, é a força produtiva que tem
que escapar dos modelos burgueses que o Estado moderno soberano estipula. Não é
interessante apenas a transferência abstrata jurídica da propriedade.
Neste sentido a frase de Deleuze e Guattari a seguir é bastante significativa para nós:
“a propriedade é precisamente a relação desterritorializada do homem com a terra”.