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A chegada e a chegada de Agripino milagroso

Fábula dos mil milagres


(Romance)

Marcelo Moraes Caetano


2004

1
Epa-epílogo1

Numa época distante do presente.


Antes que um gesto de bom dia se desse no meio da manhã
recém-nascida e ela mesma ainda curta para se estar sabendo dia, um
menino mal acordava de seu lençol revirado invicto e já sem abrir de
todo a visão aquele que pressupunha por saber quem era da jornada
ávida e confessa prestes a vir a ele como num sonho longo
simplesmente que virá-a-ser um bom dia arremessar todas as coisas
diante do próprio olfato e caminhar é interessante se revelará?
No café da manhã perguntou:
− Pão?
...à mãe se tinha pão?
Mãe sempre tem.
Pão. A própria passou e o meninote galanteia com os ratinhos
para dar-lhes bicada de miolo. Um se chamava Norico; outro, Pedroso;
outro... ai, é bem outra, a Carmelita. − Miolo e ratazaninhas. Deu-lho e
elas se combatiam como duas em criança (aos filhotes) e uma de
adultona, tudo meio hilariante, que era, fingindo-se de família
humanamente rata.
− Pára menino parece que eu hein nem sei aonde vai parar
mas pára menino assim mesmo parece que eu hein... − disse-lhe a
mãe cabelos presos e singular em sua arte para confecção de comida
como quem cozinha roupa mexendo o caldeirão de caldos, fumaças e
panos e tiras, sorrindo alegre.

1 Aliás, Prólogo.

2
Acabou o café e pôs o pé na estrada; sentia no umbigo uma
calamitosa (ou congênere) sensação de ir ir ir sem freios de vírgula.
Depois é ir, e depois é ir; e depois é depois.
Viu o moinho. Viu o riacho. Viu a pedra de moer (pelo barulho)
de moer. Viu o sol (pelo brilho-cor) de todas as florestas que terá de
administrar no conhecimento da memória no curto labirinto. Oh,
quantas!... Mil florestas resumíveis num só castelo. Deste tamaninho...
Oh, quantas!... Viu a vida (pelo cheiro) que teria de cheirar que nem
rato que cheira a vida de queijo. O que mais importa na vida é o cheiro.
Oh, quantos!... Mais que uma vida simples, a vida é cheiro.
Impressionado. Sonhador. Em casa. Foi à cozinha.
Decidiu que, de soslaio, começaria tudo na epopéia. Enfunou o
peito grimpante; poetizou a verdade na água turva; DÓI-CUROU;
decide que tudo começara na mentira do poema; coloriu a garganta, e
portanto, faria a sua. Como um leão rompante, inventou sua vida: seria
fábula. Fabulosamente falada por si mesmo, que a inventou sem freios
de racionalidade. Vida imaginada.
Foi um pouco assim concebido, vide, um poema:

Capítulo I
De quando Agripino vivia feliz em sua casa, a tal ponto que a
cozinha lhe causava agrado infindo

A palavra cozinha: Epopeia Caseira

3
Eu, Agripino Feliciano,
dedico este
poema à minha mãe,
doña Agripina Feliciana.

Começa:
É no melhor canto harmônico
de casa onde tacho enfurna
que cheiro vindo no longe
quase atochado de espuma
pergunta e não se responde
quanto menos se escarafuncha
(a menos que se lhe imponha
da pena que restitua
no prato fechado em concha
o caldo que a desapruma):
Cadê a solidez do homem
dito quem se pega a unha?
Pergunta – porque responde
e grunhe porque pergunta?
Aqui seu teto de lona
feito antes tarde que nunca?
Sua fragilidade remonta
aos idos do mar da lua?
Ou é nesse mar que se soma
a si e se torna duas
pessoas em vez da longa
e díspare eterna uma?
Cadê, francamente, a sonda
que sonda cada atitude,
achante, no fim das contas,
do quanto homem frágil atua?
(Se a alma assada o entonta,
é que ela ainda era crua;
mas sempre que estiver pronta,
caminha de impura a pura,
vestindo-se, atrás da ponta,
de dura espada, armadura.)

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Por que o homem vasculha
pergunta o cheiro de longe
sua mais santa sala suja,
se, quando entra no recôndito,
em vez da fala com cuja
sordície não encontra ponto,
descobre o vazio azul
fechado no seu recuo,
aberto no horizonte:
um ponto a um tempo soturno,
a outro solar, vil, bisonho,
um ponto tão imaturo
que o homem fala: EU ME EXPONHO!
Por que este homem se luta
se tudo o que são questões
um dia leva uma surra?
(Retorna em tons e sobretons.)

Descasca:
Tampouco falado encontra
vazio que o cheio acumula
crescente aumentando conto
errando porque sem cura:
errando porque sem onde,
o cheiro sai das escuras:
errando porque sem como:
e porque errando se esfuma.
Cheiro que só se remonte
quando se cala pergunta
num trilho sem trem nem bonde...
que leve, conduza, perdure
nessa resposta que esconde
a tal cripta oriunda
oh claro chegado aonde
sou eu mais família uma
da massa que nem um sonho
houvera que este um desuna;
é pouco farnel impondo
ao farto que se confunda.

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Espalha em vontade rasa
ficando para cada uma
da gente o quanto lhe caiba
sovada. A massa que ex-dura
religiosa, acalmada,
quinhão se no fim resuma,
renasce e vive a que mata:
um sempre descasca um nunca.

Põe de molho:
(Tal sempre, calejo à cata
de nascimentos, se lucra
fumaça briga e arremata
o verbo tornado açúcar.)
Mais tira é quanto mais cresce
fermento donde se avulta
como se o que sai viesse
do quanto sai que repunha
sozinho num sobe e desce
o nunca terminar murcha
massa de massa que arrefece
jantar crescendo rasura;
depois tece e entretece
com linhas de fio-à-puxa
e enrola o sal, se quisesse
− a fada virando bruxa... −
parava, porque já cresce.
Eis lá na sua fôrma assada
brilhando de mel que chucha
o leite como se a bruxa
mulher se quisesse fada.

Escurece:
No claro aberto de podre
cozinha de casa a casa
amalocado onde vaza
um caldo metal à cobre:
mascavo aberto envaranda
a tira puxa à garganta

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na beira dessa caçamba
em si dentro além por sobre.
Tal caldo caldo-de-cana
da casa é que se descobre
em vez de casa cabana
em vez de plebéia nobre;
em vez de irritada lhana,
em vez de nada, que pode
se ver, em vez da tirana,
tão rica, oh, em vez de ser pobre;
que em vez de fraca tem gana...
mas nasça por cada corte
no eterno dessa façanha
trocando pelo que rode
do ruim fazendo que arranha
boa cachaça que implode
(simplicidade é devida
à pouca palavra em riste)
da gente ali que vivida
se tem na conta de triste
quantia que seja tida
sabida como se alpiste:
pouquinho e assim!? é comida,
comida que vai, que insiste.
Não tem sons que dão cabida
ao forte final de um Liszt?
casa lhe encanta a dormida
acalenta acorde caminho
do que há de melhor na vida:
− Um: pão! − Dois: fermento! − E viiiiinho!...
Faz:
No mastigar da palavra
em tendo fôrma de língua
é que se pega ato descasca
na fúria a fala saliva
cada uma fatia de verbo
daquele tornado em sal
a que se desarme em berro
de pratos onde espalhavam.

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Ao movimento nas bocas
querendo grunho de letra
o belo é grotesco e soca
pilão feito o de vareta −
RECEITA:
1) funil de cada fonema
na ponta de som; 2) esgueira
movimentado algo ilícito
de garra; 3) depois adira
por uma atitude esquerda
no cérebro; 4) o gosto firma
com ato à fração direita
contudo; 5) e se desafina:
do garfo que lhe fomenta
ao cabo um grosso de língua
na extremidade o pesado
rasgado, desconcertante
do meio conectado
ao músculo grosso rompante.
O ato na língua é ímpar
como se quisesse arcar
com a gema em que se deslimpa
de tudo o que é grosso e par:
é clara, contorce um vento
de quem gemesse em si só
rápido, mas depois o lento
é rápido e passa e morre.
Refaz:
A cozinha se é pai do homem
para crer seu nunca existido
bastara apenas no sonho
dizer um nunca foi dito:
− Em parte sendo de casa
cozinha parte com homem,
como a semente da massa
porque lhe alimente o nome
do estômago a que não passa
mesmo se murcha abdome,
não murcha como uva-passa

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que é feia preta e quem come
(se faz para chupar-lhe a graça)
lambeu-lhe a doçura insone
com gesto em que se esfumaça
de beijo... E essa uva some...
pro lobo, que é antes caça,
da lebre (só uva consome
quem pensa que pode e amassa),
pro homem, o lobo do homem.

Vira:
Se almoço de palavreado
bem roda será legume
é (ou será) um grão pedaço
apenas que em si resume
em dois? mas neste dois ímpar
há o jeito de um par que um
ausente crescendo à vista
com o redondo um de um casulo
faz onde lagarta vinga
fartando um meio caturro
deixada de ser comprida,
passada a um (formato nulo).
(Lagarta, lagarta, inimiga
do rastejar inseguro
como se fosses formiga
subjugando no muro
a força que tem − o Leão!
venceras teu animal.
Lagarta, não deixes furo;
Lagarta, viver, que tal?
Lagarta, não se investiga
A paz pela boa briga?)
Cresce mais:
Voar rastejando baixo
como ação voa da farinha
é polvilho do abra-se tacho
em que há minha casa − cozinha.
E borboleteiam de bronze

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o som do desenho à faca
em papel dos ouvidos longe
na volta ao que nunca vaza.
Cumpre-se o que este profeta
de Novo diz sobre Cada:
“Havendo quem se arrependa
não deixa o Todo: resgata:
mas este, que é arrepender-se,
não sim da boca para fora
como se grito fizesse
mais santo o que nem assola!
precisa de coração
contrito dizer que embora
jure não fazer igual
fará!” e a fartura aflora.
Parece como se um bolo
chegado ao momento xis
de crescente em seu solo
necessitasse de mais
alguém que dissesse “Quis
crescido”... este bolo é Paz
tamanha, que se a tirassem
o seu fermento era assaz
forte para que dele assassem
mil bolos, dois mil ou mais...
E cresce e cresce e não deixa
tocarem no seu crescer
porque como enruga a ameixa
o bolo é feito pra ser...
É tudo questão de exemplo
seguido de hora em hora:
a lagarta que teve o tempo
de rastejar na sua flora
e fauna perdido o senso
de medo resolve, agora:
Cresce mais:

− Em vez de manter o imenso


chão que nutro e devoro,

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alço voo − onde fica o denso
infinito?− aonde hoje moro.
Naturalmente temia,
porque é animal humano,
mas não ter medo no dia
sem noite é catar o dano
como quem cataria feijão
com pinça de fisgar prego:
nem voa o negro do grão
nem prega do chão − é cego.
POUSA.
Pegou na pinça de ferro
embora esquecido o susto
a que chamaram de inferno
e céu amassou com músculo.
Você acha que pôr-se de asa
para essa lagarta obtusa
é fácil deixar e a casa
crescida na fôrma é funda?
isto é, feita de matéria
entre líquida, pastosa e dura,
você acha, aquilo entre etérea
e brancosa atiçante à gula;
que para essa lagarta e massa
deixar de ser o que é
(mas sendo-o) ainda fica fácil,
enfim, ter asas com pé?
Agora ela está no sobrevoo
que paira próximo à ruína;
tomara que sinta o enjoo
mostrando que estar em cima
é bom desde que se volte
para casa, uma disciplina,
e vento se vai ao norte
apenas sobe e declina.
A massa não dura pouco;
e a borboleta um só dia;
o homem dispõe do corpo
que traça por uma via

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que se chamarem de louca
é eterna, recresce e alia,
a exemplo de qualquer bolo.
E o crescer concomitante
com o cheiro que só o fogo
fará:
Largue o chão, levante!
Amor é amores, amores..

Assenta:
REPOUSA.
A gente já saciada
de verbo suco de letra
para leite jorrando fala
que brota de cada teta
do dicionário esta vaca
malhada de branca e preta
forte, verbo amar com nata
coado em sua canaleta
(este canudo de lata
escrito se diz caneta).
E se a baixela é de prata
se iguala com a de proveta:
o nascimento arremata
lugar onde for refeita
vida − que é esta santa ingrata
que fere, assopra e respeita.
Beber de refresco frio
o grosso do alfabeto
é ficar fartado de vício
virado em um, predileto,
Alimentar:

o de tornar quanto é risco


em risco final de zero
transpondo o relevo ao nicho,
e ao nicho final, o belo
que é lixo do arranca à força
de página fina ex-raquítica

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do livro sua gota a gota
se expunha: palavra física.
Expulsa:
Por sobremesa e agastado
o homem não dá por findo
banquete parco-nababo
com que até ali veio vindo:
tirando de entre sua branca
dentição em que letra sobra
palita com til a cãibra
letrando e se corrobora
na parede cheia de santa
ao estômago a fenda morta
faz úlcera que não sangra
− faz úlcera e letra nova
que corpo dele com sanha
faz que não quer mas implora
se finge desdém, distância...
é lágrima que dessora;
apenas tudo o que ganha
é pouco se olhado fora,
é muito visto com manha,
e é tudo se se devora!
Pequena como giganta
curta infinda é a memória
como curte o leite no cume
da primitiva montanha
materna, quando homem assume:
quanto mais tira mais ganha,
como a prova do chorume
no lixo farto que apanha
é prova que mesmo estrume,
que hoje infecciona e lanha,
um dia foi luz e lume
(largará sua gordura e banha).
Mas víscera é que não quis
para ele e expeliu em rogo
ao ver o com que expelir
rebarba do desafogo.

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Fazer do que fora bom
da afronta adubo suíno:
curar a sua moléstia não
é pouco pelo intestino.
Renova:
O homem vomita fora
ei-lo que se expurga às tripas
cada traçado de forma
desfeita em si se coliga
um maranhar sem bitola
à cozinha num chão sem viga;
mas bem sustentada em volta
nos fios que não desliga
por ser trama ele ignora
presença e ausência de vida;
com morte não se demora
se é seca ou se o que irriga.
O vômito como o fim
do texto que dicionário
não diz se é bom se ruim
é nem vê mediano ou raro.
Limpada a cozinha sai
pronto já para restaurar-
se, na próxima vez desfaz
o verbo do paladar
na música vista atrás
do ouvido em palavrear
comido no nada apraz
comer de não se fartar
a ele ouvir ser capaz
de arder tato pelo olhar
enquanto adoça com tais
visões relativas à
sangreira de mais a mais
na força que amargará
porque digerir com sais
da fruta mesma (paladar)
sal doce é como ter mais
ter logo de ver jantar

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com verbo e palavra. − E com as
sobras nunca terminar.
Feliz, estou crescendo mais...
− disse. E agora foi se deitar.
Ufff...

Capítulo II
Sem título

... o menino respira e apronta uma bagagem sonhada...

Capítulo III
De como tantos e tão formosos milagres sucedem nos idos
do equivalente ao século XIV

Que vos direi, pois? O donzel formoso, mui desazado embora


em assuntos de amor, de quem vos principio a falar doravante, o qual
tinha por nome, − ou dessa feita era conhecido, − formoso e rude
donzel, já vos digo?, não contava dele nem com uma estamenha
párvoa que lhe encobrisse, no pobre rosto belo, de definição Apolínea,
a vocação que Deus Nosso Senhor lhe dera de ser monge casto porém
santo. O rapaz nunca seguira antes, e nem agora fazia assim
tampouco, um caminho que não tomasse da oração por seu guia, a
levá-lo tão longe, rapaz religioso que era, quanto fosse a vontade do
próprio Deus determinadora.
De tal modo lhe pôs Nosso Senhor portanto a marca da vocação de
sacerdote Dele, que um dia o donzel Agripino principiou uma descida
para a cidade vizinha, a pé e sem nenhum excesso de carga, para

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meditar nos mistérios mui grandes da Escritura, e estudá-los por suas
letras. E a forma como se deu ele mais diante na conta de homem
tentado pelo demo, em forma de graciosa moça, que muito lhe causou
maravilha, é o que vos tenho doravante a dizer.
Também de que era ele o mais devotado rapaz de sua cidade e o
mais quieto, avesso às bufonerias de quantos de seus amigos
houvesse, pouco truão e pouco zombeteiro, e desprezando também as
moças de moral relaxada, e as soldadeiras de grão formosura que o
tentavam a miúdo conquistar, poderei falar, porque, como vos disse,
era ele mui esbelto rapaz, de bizarria invejável, de amenizar as
grosserias, sobre causar gosto a quem no visse.
Apeou um dia de seu rocim, o Novoneo, e principiou descida
caminho de outra cidade, com seu fardo, sem quem lho carregasse ou
dividisse a carga, longe a cidade vinda obra de duas jornadas e meia
da que o vira sair de si, em procissão contemplativa de graça a Deus.
A forma como nessa descida resistiu ele de herói à tentação
desgarrada de um demo, em moldes de formosa moça, é o que
preocupa não este, mas os episódios um tanto galantes que lhe
seguirão de perto o rastro como sombra, ou pegada.
E se já vos disse antanho que era aquele donzel um segundo São
Francisco em desapego e bondade, Um terceiro Sebastião de fé
rediviva, e creio já vo-lo ter feito sim, ainda ali, duma ou doutra forma,
podereis vislumbrá-lo agora deitado, de moral muito adormecido e
imbele, como um filhinho de Águia, por debaixo de uma figueira com
sombras assim aprazíveis como convidando mesmo qualquer um ao
descanso.

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O calor ele não temia, o moço; ademais porque era mui frio
naquela ocasião por causa da vizinhança do inverno; e, porque levara
consigo uma colcha de lã cosida pela mãe, tampouco não sentia frio
excessivo, que por ventura o dissuadisse de sua meta apetecida havia
tanto, ou que por ventura o desviasse na estrada indo, ou que tão
pouco o desviaria.
Trazia na escarcela duas moedas, que, se fora obrigado a parar, à
cata de hospedagem por causa de frio mui devastador, o qual não se
suporta, usá-las-ia como soldo pela hospedagem, além de agradecê-la
com desaire e louçania de modos, cristão perfeito que era, conforme
sabido. Sem nenhuma verve guerreira, o moço jovem não hesitara
consigo senão que entre partir à noite ou de manhã, no que o sol vai
calmo.
Quando disse à mãe da viagem, que ficou com isso mui aflita, e
teve o coração maltratado, dizendo-lho com esmero, porém, e que
sairia de casa por tempo até alcançar a cidade vizinha daquela, a sua,
a sua mãe quase não pôde suportar tamanha tristeza, de ver enredado
em venturas o único filho que possuíra vivo.
Mas como fosse mui digna senhora, também bastante cristã e
mui devotada à Virgem Maria, Mãe do Senhor, e não tendo em que
pegar conforto para tão tamanha agonia, olhou a Santa Virgem e pediu-
Lho, de joelhos no chão, e com muita lágrima no olho.
Isso que encantou o filho, bom que era, quase fez o rapaz mudar
de idéia e permanecer em casa ao lado da mãe. Mas ela deixou de
soluçar por um instante, mas continuou chorando; e, chorando, a
bênção deu-lhe, porque compreendera a vocação do filho, e sentiu

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mesmo mui grão prazer por ter sido contemplada com tal grandeza da
bondade por Nosso Senhor, com um filho jovem assim tão ao mesmo
tempo formoso e pio.
O rapaz comeu do pão que a mãe lhe preparou, com muito
afinco, rezando sempre, bebeu um gole do delicioso vinho que, por
sobre a mesa, a tinha tingido um dia antes, e com tão grande interesse
saboreou os acepipes de frutas colhidas da própria mãe, que ela, mãe,
lhe advertiu que poderia até vir a passar mal mais tarde, com tamanha
avidez por comida; repreendeu-o com muita doçura, porque nem bem
partira já sentiria ela saudade daquele moço seu filho que cá já não
assistia, sem ele.
Ele, como não fosse tirante à sandice, e ao pouco siso menos,
granjeou consigo três espigas de milho gordo, grossas e mui rotundas,
e feliz, além de com um bom pedaço de pão de farinha branca, ia
saindo. E tantas frutas quis pôr em sua escarcela, que não fosse a
visão de que ali mais nada havia de caber, rebentando a bolsa,
continuaria ele a assoberbá-la de iguarias, conquanto já estivesse
mesmo ele próprio, como a bolsa, no fastio.
A mãe mal pôde vê-lo, que não falasse:
− Ai, Deus, tem mercê! − com as mãos para o alto.
Ele, posto que mui tocado e mesmo comovido com a figura da
mãe ali sofrida, de semblante tristoso, machucado, respondeu-lhe, o
que a fez um pouco confortada:
− Mãe amiga, já me vou mas porque Deus me quer para filho.
− Se assim é, vai-te com Ele, que eu te abençôo e bendigo − e o rapaz
saiu.

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Capítulo IV
De como tantos e tão formosos milagres sucederão ainda

Já na porta da cidade, quase caminho de fora, viu um donzel mui


galhardo, quase tanto quanto si, a empunhar com sobranceria um
gavião de penas mui pretas, tão pretas, que não haveria quem no visse
que lhe não causasse aquilo um desabrido temor, e perguntou:
− Ó rapaz, acaso vais soltar essa ave rapineira, para depredar ela
e machucar um pombo no céu? não sabes ser ilícita a altanaria aos
olhos de Deus?
O donzel com a predadora no punho olhou Agripino mui
estarrecido, porque encontrou em suas palavras tamanha autoridade
vinda de Deus, que não teve mais que dizer, calando-se envergonhado.
Pelo que Agripino retrucou, vendo os pensamentos ao donzel, como
que lhos entendendo:
− Não te envergonhes − e o outro olhou mui apreensivo − , mas
deixa ir essa ave − continuou Agripino − porque, se acaso faça ela mal
a uma criatura doce de Deus, não serás tu por ventura o responsável
pelo mal sucedido.
E então houve de chofre um mui grande e formosíssimo milagre
por Agripino, o primeiro de muitos outros. Aconteceu que o gavião, o
qual, como vos disse ali, o que tinha de grande tinha-o de preto e felão,
foi embranquecendo aos olhos dos dois jovens. E tanto embranqueceu,
que se tornou mais alvo do que a neve é branca, foi ficando dócil, mais
do que um cordeiro, e se transformou em criatura meiga aos olhos do
Senhor, voando para longe a se perder ele de vista.

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Foi esse o primeiro milagre de muitos os relatados, de que são
testemunhas muitas e muitas pessoas da cidade e cercanias, que se
as fosse arrolar havia de fazer-vos desistir de permanecer sentado na
escuta de tão desenrolada lista.
Pois já no caminho, passou duas noites mui tranquilas, que não
achasse perto de si nem suplício nem dano. Andava sempre em oração
e bendizendo sempre a bondade do Senhor pelo caminho, e tinha
sempre para tudo uma agradecença pronta que assim já não faltava
nunca.
Agradecia muito a paisagem renovada a cada minuto, e tinha o
Sol por companheiro no dia, e a Lua na noite.
Passou de certa feita por tão magnífica paisagem, como não soía
existir, e ficou por isso em tão grã maravilha, e tanto quis que fosse
grande a bendição a Deus e a oração, que não se contentou com orar-
Lhe só, senão que se pôs de pronto, logo pôde, com os joelhos na
terra, para bendizê-la muito.
E sucedeu daí o segundo milagre que dizem que aconteceu.
Imediatamente, nem bem tocou na terra com o outro joelho, começou
daí a brotar erva tal que muito espanto vos causaria, por causa da cor e
do cheiro fortes. Começou a planta a querer subir-lhe pelo corpo, mas
ele não no deixou por causa do susto causado, e levantando, pôs-se a
correr com mui grande espanto para uma árvore.
Dali, observou que a erva não era má, como supunha, antes era
obra mui bendita de Deus, porque tão logo veio à luz de caule já
esboçou uma flor miúda, que assim que viu o sol se acarminou. A
plantinha de seu joelho começou então a exalar cheiro mui agradável,

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tanto, que não passaria por ali ninguém que ficasse a ele indiferente,
ou desprezasse-o.
Tão grande foi a vontade de Deus que sua memória O
conservasse, que aquela plantinha tornou em árvore grande, e até hoje
está lá, dando flor o ano todo, para que ninguém não duvide da
existência desse grão formoso rapaz aos olhos de Deus, que sempre
Lhe quis muitíssimo, tendo-O por perto na conta de Pai.
E tudo isso fazia dele criatura amada e benquista.
Certa feita sentiu uma tristeza paciente, porque tinha saudades da
casa da mãe e sentiu mesmo que, sem muito jejum, talvez não
suportaria a falta que isso causava. Mas, como não quisesse ter na
saudade motivo de tropeço, clamou a Deus que lhe acalmasse o
espírito, arrefecendo-lhe o ânimo. E sucedeu daí que imediatamente o
rapaz esqueceu por três anos esticados que possuía mãe na Terra, e
de tão grande sinceridade foi o esquecimento, que houve na ocasião
muitos que lhe imputavam, sem saber o que diziam, a pecha de mau
filho, porque quando lhe queriam saber da mãe ele nem tinha o que
responder, visto que dela se esquecera profundamente por obra e
graça do Senhor, a fim de ter ele, já os disse, maturidade pronta para
segui-Lo.
Mas no seu caminho havia momento em que o negrume da noite
o fazia tropeçar daqui e dali, não podendo nem descansar, que não
tivesse muito medo e apreensão, por causa das bestas que por ali
rondavam sem filhote. Uma vez, ao encontrar uma terrível e
malcheirosa fera ladradora, tão malcheirosa e tão terrível era que
assemelhava a uma avantesma, visou-lhe sem nenhuma arma, sem

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mesmo possuir nenhuma frecha, os dois olhos, fazendo-a com isso
recuar tão longe e tão rápido, e com tão grande ladrido, que besta
nenhuma a alcançaria nem aqui nem em qualquer outro páramo
fabuloso. Foi este outro milagre da sucessão de milagres divinos.
Nosso Senhor, vendo no céu, achou nisso atitude pejada de tão
tamanha fé, que fez duas vergônteas de uma árvore de maçã tremerem
e em seguida irem ao chão, a fazerem, deste, repouso derradeiro. E
aconteceu, para maravilha e espanto de quantos ali houvesse, que não
havia, de se agarrarem as vergônteas, delas nascendo, depois de bem
cruzadas e atada uma à outra, um par de luzes mui luminosas, que dali
em diante não havia noite em que não acendessem. Desde então, com
aquele fanal precioso, não houve mais para ele diferença entre a luz do
sol e a da noite, que se igualaram numa só e grande luz.
Também tinha mérito ao Senhor o fato de que nunca Agripino
amara ninguém sem que lho dissesse quanto. Via o Senhor, nessa
sinceridade fraternal, muita piedade, considerando-as como que
aparentadas entre si, e por tão grande estima tinha essa atitude, que
fez do rapaz o mais perfeito orador que se já havia por noticiado, e era
capaz de embalar a mais feroz das feras e os mais bravos bichos da
floresta com sua fala mansa e recatada adormeciam. De certa feita,
uma raposa investiu-lhe as garras com desaforado ódio, a fim de
maltratá-lo bastante; com tudo isso, o donzel começou a cantar uma
das cantigas que aprendera na infância próxima em sua igrejinha e
souberam que a raposa tanto se enterneceu que tornou em coelho
manso e até hoje não se alimenta senão que de frutos silvestres
maduros e umas poucas de folhagem que a natura põe à luz do dia.

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Já nessa época não havia nada que dele viesse que não fosse
tão bom e puro de sentir, a deixar encantados os que o vissem e
maravilhados muitos.
Chegou afinal a um pouso mediano.
A estalagem custa três moedas a pernoite.
− Mas cada noite? − perguntou sem violência o rapaz ao dono da
estalagem.
− Porque é esta uma mui nobre estalagem, senhor − respondeu o
dono, pondo nisso muita mentira e falácia, e continuou −, tanto que não
hás de encontrar outra de igual condição, por muito que procures
errando.
− Só preciso uma noite − respondeu o rapaz −, pois que faz hoje tanto
frio, que se lá fora dormir, receio não estar acordado amanhã para ver
nascer o Sol, de congelado que hei.
O dono da estalagem descascava batatas nesse momento, e
descascando batatas continuou a ficar.
Muito cheio de paciência e cordura, Agripino viu que dali não
tiraria proveito, ainda que muito continuasse falando, e como não
tivesse mais do que duas moedas em sua bolsa, houve por bem pôr-se
caminho da rua, o que fez, abençoando e bendizendo a estalagem que
lhe negara abrigo e a família toda do homem, e disse “paz seja nesta
casa” e foi embora.
Quando chegou à rua, muitos coriscos principiaram a cortar o
céu, e o tempo foi ficando muito mau e muito feio, de tal sorte feio, que
Agripino, com toda a sua fé, quase duvidou de que sairia bem da
tempestade. Deus, vendo que talvez ele vacilasse, criou-lhe uma tão

23
perfeita ilusão, que Agripino logo desandou a achar que estava no leito
de um rio calmo e ameno, com uma lua protetora vestida com manto
de estrelas virgens, e dormiu sob uma árvore desfolhada, com violenta
e sombria tempestade cheia de gotas de água gigantes, e, com toda
essa circunstância, não houve gota nenhuma da tempestade violenta
que tivesse atrapalhado seus sonhos de anjos e santos, e ele acordou
seco de forma como nunca ninguém que dormira ao relento chuvoso
acordara seco, e a tempestade fora violenta a ponto de causar muita
avaria nas redondezas da vila, mas nenhuma a ele.
Agora vos passarei a narrar da vez em que Agripino se arrostou
com um demônio muito feito e deformado, tão feio e sem graça que o
rapaz teve ganas de ir-se embora, não tivera ele muito que esperar em
Nosso Senhor.

Capítulo V
A subida ao branco

Ele correu da fera braba que o seguia, e, à medida que ela se


aproximava mais, mais distante iam ficando um do outro. Até que
sumiu de um tal modo, a coisa, que desapareceu para sempre. E a
floresta aquietou seus galhos com água e neblina.
E também um formoso pântano, tanto quanto si, começou a
evolar gases verde-musgo e um enorme sapo iniciou o diálogo, muito
simples e contido e foi assim:
− Aonde.
− Oh.

24
Uma garça passou fazendo crééé.
− Aonde?
− Você, mas como assim?
− Falar?
− Estou chocado.
− Porque eu falo.
− Porque não sabe perguntar... infernizou Agripino. − Sempre
afirma?
Neste instante, o sapo, chamado Sapo, solta uma gargalhada
absurda, enchendo as papadas de escama até não poder mais, de
tanta escama, obviamente.
(Eram muito irritantes a este jovem tantas e tantas sempre
repetidas formas de se repetirem as mesmas coisas que se repetiam
sempre iguais ou idênticas não disse?!)
− O que foi agora? Soube Agripino.
O moço avaliava a impossibilidade física da manutenção
daquele diálogo, e ia seguindo. Sapo o interrompeu com um grito de
bigorna, pelo que se lhe revelou que se tratava de um sapo-martelo.
Baseado nisso, e equivocadamente, Agripino virou-se e chama Sapo, o
sapo, de Martelo.
− Martelo, você...
Sapo, ofendidíssimo com o epíteto “Martelo”, agora se presta
unicamente a dar as costas ao moço, empinar sua cauda cortada
(quando girino) ao rapaz, juntar as mãos e mergulhar cheio de desdém
porém peito, sumindo nas águas lamacentas sobre cujo esverdeado
acaba de fazer plof a terceira e última das bolhas que emergiram do

25
fundo à sua arremetida louca e sagaz entre os cipós cúmplices da
embriogênese batráquia.
Agripino deu de ombros, ombros fortes. Com atrocidade pensou
em seguir:
− Seguirei. − Oh, disse, reparando que ele próprio ficara
embriagado nos gases da repetição de uma ideia num ato. E, enquanto
atuava, dizia igualmente em quanto atuaria. Se é ideia precisava vir
repetida na ação?
Que besteira, rapaz, quanta asneira junta ahn?... A ideia apenas
se confirma na ação! É assim.
Não existe nenhuma repetição na vida! Oh, o rapaz repet...
confirmou!
− Que nada do que eu tenha dito seja considerado válido se não
vier a ser negado algum dia por mim mesmo!
Neste instante acorreu do firmamento um raio fundamental,
ouvindo-se nitidamente de seu coruscar um SIM divinal. Fora
assustador, se Agripino já não estivera acostumado às sobrancerias de
Deus Nosso Senhor quando milagreja.
Avistou ao largo um castelo todo branco; por não serem muito
comuns os castelos brancos (ainda mais um assim tão branco), ele
quis aproximar-se às pressas. Olhou para um lado, para o outro, não
havia ninguém, por perto; deixou a curiosidade com ele ir à sua frente
vasculhar.
Começou a subir o barranco tortuoso que levava ao poço do
castelo, como quem subisse a tortuosidade da brancura, fundíssimo,
subindo com muita calma a ribanceira, e a cantar.

26
Mais depois disso, um pouco além, ele passou a um assobio
desafinado, pois nem sei se já vos disse que ele cantava mal e
assobiava pior, com medo de que a cantoria pudesse fazer
despertação no gigante, o qual perigosamente deveria viver bem no
castelo branco. Ele, como assobiasse um pouco alto em “De-Masia”,
Ré Maior (que maneirismo inútil), pois, achou por bem foi subir mudo,
menor. Tinha até agonia se um pássaro chilrava mais alto que o vento
pode. E fazia instintivamente psssss... em pensamento.
Subiu, subiu, ia subindo e ficando mudo, subindo e não
dizendo ou cantando uma nota, uma palavra não lhe escapava da
garganta. À medida que subiu emudeceu. Até que, num dado instante,
nem pensamentos pensava. Apenas o que lhe ocorria era uma nuvem,
uma grande nuvem de.
E certa hora, quando já estava perto da chegada, lá quase no
cume da montanha, olhou para baixo e tremeu: ai, como era baixo o
chão!
Pensou: “Se voltar, posso cair do mesmo jeito; se ficar parado,
morro de fome (porque a sua comida era já quase no fim);... se subir
mais, posso até encontrar comida e repouso para esta noite.” E,
pensando isso, continuou a subir. Mas não sem medo. “Porque se subir
mais posso cair mais ainda”.
O caminho ia entortando mais e mais à medida que ia sendo
caminhado. Já que era um caminho branco.
No repente, duas garças no céu. Não faziam crééé, como toda
garça deveria ter aprendido a fazer.

27
Pareciam brigar uma com a outra. Se já não tivesse passado por
tantas experiências daquelas incríveis, Agripino poderia até jurar − por
tudo o que havia de Santo e Sagrado − que as garças vociferavam,
além de gritarem nomes horrorosos de se ouvir, que eu mesmo não
vos poderia recontar sem enrubescer um bocado, eu, e que
vociferavam mesmo.
Sentou sobre a bolsa que trouxera, e, juntos os dois pés com
medo da altura grande do barranco e recolhidos, olhou para cima e se
pôs calado e mudo a observar as garças que se bicavam infelizmente.
Foi quando achou ter ouvido − Cuidado! − e se virou para trás
e não viu ninguém, também não na frente, nos lados, embaixo; então
pensou  “Em cima!”  e olhou atemorizado para o alto.
− Cuidado! Quer me ver no chão, desengonçada? − uma voz
estridente, horrível.
A garça, agora ele estava certo, tinha falado; uma falara!
− Queria! Eu queria!
Também a outra. As garças tinham falado. Que espécie de
castelo era afinal aquele? Mágico? Bruxa. Em que garça conversava?!
Pensou em levantar e ir correndo para baixo. Poderia cair, se
corresse, e poderia morrer, se caísse, e poderia não gostar muito, se
morresse, e poderia se aborrecer, se não gostasse, e poderia detestar,
se se aborrecesse. E até reencontrar aquele sapo... esnobe e cheio de
si. Ficou assim por tanto tempo a pensar, tanto que quando se deu na
conta era anoitecida aquela tarde, ex-dia, que já vinha lua e toda
branca de castelo com estrela.

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Sem jeito, continuou subindo, muito contrariado de subir sem poder
nem pensar em descer. Porque o branco se tornara reto sem luz. O sol
entortara tanto a via, agora ele o via, que a lua era gentil, gentil...
Quando chegou à porta do castelo − e ela era tão alta e branca
quanto o próprio muro era baixo e preto −, a primeira vontade que teve
não foi outra senão gritar por alguém que o atendesse ali. Mas, com
receio de haver o tal gigante lá dentro, e de ser ele um sujeito meio
mal-encarado que sobretudo e acima das coisas detesta que o
acordem já tarde da madrugada, e como ainda era princípio de noite,
recém-começando, mas bem podia ser que o gigante fosse dormir
muito muito cedo, sendo já hora avançada em relação a ele, portanto,
sentou-se.
E decidiu que passaria ali o resto daquela noite estrelosa, linda,
ainda que sem muita comida, mas também sem o mau-humor de um
gigantezinho enfezado qualquer de poucos amigos. Sentou-se à porta
branca. Pegou do fanal e ele acendeu − pronto.
(Lembrais-vos do fanal?)
Não viu nenhum poço em volta ao castelo, nem jacarés dentro do
poço, nem escamas cortantes no jacaré cheio de dente, nem lâminas
tinindo em cada escama cortante que possuía jacaré por jacaré
dentuço do poço fundo e turvo, em volta das ameias angulosas do
castelo, porque não existia poço, já vos disse.
A porta − já vos disse outro sim − era muito, muito, muito (mas
talvez não com tantos detalhes como agora), muito pouco baixa
mesmo, que nem o maior gigante do mundo seria capaz de passar por
ela sem precisar se abaixar. Ahn?! Já estava ficando confuso daquela

29
altura, tonto, até: alto para cima alto para baixo alto para o lado alto
para o outro, uma distância enorme para qualquer distância que fosse
enorme. (Depois ele substituiu aquele “precisar” por “poder”; e ficou um
pouco mais satisfeito com o que conseguiu; ainda não de todo, pensou
que pudesse melhorar qualquer coisa.) Ele era um anãozinho, o muro 
já vos disse ; era pequenino e escurecidino, parecia pintado por duas
ou três crianças quase analfabetas, de tão bem feitas as florezinhas
rabiscadas miúdo, sabeis? O muro ele podia pular sem nem levantar
muito a perna do chão. Se desse um salto de nada chegava ao outro
lado.
Desconfiava dessas coisas fáceis e muito certas e muito assim
lógicas. Lá dentro havia de ter uma arapuca de vinte e oito metros para
prendê-lo, e levarem-no mais tarde, na emboscada, à presença do
gigante inolvidável. (Essa palavra para ele era sinônimo de alguma
coisa dura e sem poder quebrar, e que brilhava até mesmo no escuro,
de tão compacta, nunca a pronunciava com outra intenção que não
essa dele.)
Como fosse mesmo muito e muito baixo o muro, pôde olhar por
sobre e fincar sua vista bem no fundo e ao largo da horta que viu cercar
o castelo.
Horta!
Pulou com pressa o muro e nem se lembrou mais da ameaça
gigante lá dentro. Estava com fome (lembrais?).
!Horta! − Gritou.
E foi às cambalhotas rumo à primeira banana que avistara, tirando-
lhe a casca e devorando-a como um bicho tiraria. Achou ilógico uma

30
horta ser capaz de dar bananas, mas, como estivesse com fome,
deixou a lógica para planos secundários. Pegou outra banana, comeu
de um susto, e outra e outra, já ia para a quinta ou sexta ou duodécima
(com mais duas sobressalentes), e quis outra, depois mais e mais
sucessivamente; descascava e comia, comia e descascava, já não
sabia o que fazer primeiro mais. Havia ainda maçãs, peras, abacaxis,
uvas, frutas tropicais e frutas de neve, ameixas, nozes, figos, oliveiras...
Um olhar o observa estático de dentro do castelo. Agripino viu:
recua. O olhar também. Quando se viram, correm como podem.
Cada um para o seu lado.
Agripino pensou em repular o muro e descer ribanceira abaixo,
com escuro de noite e tudo, inclusive. Mas podia cair, e morreria, se
caísse, etc., etc. Fazer o quê? O quê? Ficava e enfrentava, igual Golias
enfrentou, o gigante. Sozinho! Sozinho... Sozinho? Mas Golias caiu.
Sim, o gigante perdeu a batalha nas Escrituras.
Esperança?... Olhou para o céu e pensou em outro milagre, e
pediu: “Eu queria ser agora uma águia e voar para longe daqui.” Sentou
no chão e se encolheu todo e se comprimiu todo com medo da
transformação em águia por que passaria.
Não passou. “Um morcego” (claro, era de noite; e uma águia não
enxerga no escuro).  Quero virar um morcego!
Encolheu-se e viu-se negro e capas de morcego.
Não.
Foi então que Agripino descobriu que Deus lhe tinha mandado, de
outro enorme, grande milagre, um presente: fizera-lhe um menino

31
normal, − é para que aprenda a reconhecer em si mesmo as salvações
de que virá a precisar.
E Agripino andava em direção à entrada do castelo, comendo
banana e jogando as cascas para marcar um caminho que lhe parecia
tão grande quanto inesperado.
O olhar de dentro do castelo o amedrontava, mas se via mais,
tamanha a escuridão lá dentro, com todo o fanal de luz que ele
carregava.
E depois se decidiu; nunca pense que pensar resolve. Ele foi
andando.
− Não penso, não penso, não penso...
Etc.
Capítulo VI
Da enorme salinha branca

Agora vos passarei a contar de dentro do castelo. E não haverá


sequer um traço de exagero na minha voz, acreditai, nem mesmo
quando eu disser, para vosso pasmo, que, de tão grande o tal do
castelo, cabia-lhe, no interior do salão, cheio de tranquilidade, uma
pedrinha mínima, um jogo de xadrez miúdo e um lago de oitenta metros
de fundura, e com diâmetros tão bem arredondados que quem o visse
havia de se interessar decerto.
Este episódio parecerá muito curto, na verdade, por causa da
diminuição infiltrada que sofrem os que se aproximam das coisas
gigantes. No fundo terá sido ele o maior episódio desta longa história,
e, ter acabado quando uma porta bater e Agripino entrar, isso terá sido

32
miragem; aliás, em relação à qual já vos deixo de sobreaviso. Se
quando uma porta bater tiver fim este episódio, repito-vos, terá sido
isso um caso fortuito, que, a fundo, nem bem sequer veio muito à luz,
crede-me.
Estais vendo estes dois candelabros que ornam o portal de entrada
branco do reflexo do castelo mais branco? São pequenos assim e vós
entendereis por quê. (É que na verdade eles não “ornam” o portal de
entrada branco, eles sim “tornam” o portal de entrada branco; mas isso
foi coisa que só Agripino e seu grande fanal puderam descobrir quando
entraram com a luz solar poderosa, iluminando a verdade, e vendo um
“t” na frente daquele “o”.)
Por sobre aquele negro lago profundo, repousava uma estreita
ponte, delgada.
De um lado, coisa alguma; de outro, também. E, no meio, bem
embaixo, nada, digo, o lago. Coisas será que há no interior do lago?
O interior do castelo era muito luminoso, nem parecia noite. Com o
fanal aceso de Agripino, então, a sala virava dia sem pensar. O ruído
tique-tique era do relógio de cabeça para baixo pendurado no teto da
escada (?). Agripino virou o relógio de cabeça para cima, e
imediatamente, como que agradecendo, o relógio deixou de fazer tique-
tique. Passou a fazer taque-taque.
Agripino, caprichoso que era, pôs o relógio deitado, em posição
de dormir, e o relógio, sorrindo-lhe, fez pela primeira vez na vida,
compreendido que fora finalmente por alguém, tique-taque... Radiante.
E no meio de tudo, eis o grande lago.

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Mas, afinal, como é mesmo que faz para descrever um grande
castelo branco de muros baixos, e fácil? Acho é que já está descrito o
bastante agora, de modo que, se há outros detalhes que me fogem,
peço-vos humildemente que me desculpeis, porque, na verdade, na
verdade já não me importa mais a mobília daquela sala, exatamente
agora, agora mesmo, que Agripino empurra a sua porta de entrada e
ela ilumina com o fanal, que ele traz consigo desde há dias.
Uma sombra sobe correndo a escada quando o vê. Não viu
nada.
Havia uma escada enorme no castelo. Milhares de degraus a
um segundo andar estratosférico. O vulto correu todos os degraus
como se fosse um fantasma que desliza pela parede.
Ele. Bate a porta.
Ou melhor: Quando uma porta bater, se bater, bateu-se.

Capítulo VII
O diálogo

Depois, lá de dentro, o rapazinho de quem vos tenho de tempos


em tempos, muito tímido e receoso, falado (porque a aparência do
castelo ludibriara quando se fez passar por grande: na verdade, muito
grande), sentindo-se algo obtuso de que pudesse vir a sofrer outro

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engodo como aquele, pé ante pé, olho no lago, parado, andando, disse
algo assim, mais ou menos assim:
− Um lago?
Aconteceu uma coisa tão, tão, eu disse tão fantasmagórica, que
mesmo Agripino, com todo o seu poder de contenção, teria corrido, se
não se explicasse o caso logo de um tapa: o lago sumiu.
− Foi miragem? − perguntou (Agripino).
Talvez, não se saberá ao certo por-que sumiu, como vos disse.
Verdade é que lá não está, e ainda assim o rapazote preferiu chegar à
escada por intermédio da ponte, que esta não desapareceu junto com o
lago. Estranho, mas não. Não só não como deve estar sim até agora,
com ou sem lago, e se já ligava antes nada a lugar algum, estava ora
servindo para cobrir, também, coisa nenhuma que se visse. Eu vos
diria: é a ponte mais inútil que já teríeis visto, se a tivésseis percebido
com meus olhos.
A escada era tão grande, e os degraus tão alongados, que
Agripino, para subi-los, quase veio a precisar doutra escada. Ele riu:
− Precisar de uma escada para subir uma escada.
E olhai que − não sei bem se já vos disse − ele era lá um
rapazote com seus bons cento e oitenta e poucos centímetros, se
contássemos a partir de um batente de cinco centímetros, de altura. E
ainda assim se pendurava com os braços no alto de certo degrau,
subia bem de elástico uma perna, para a outra poder, só então,
emborrachada, alcançar o objetivo imediato − que era o degrau.
Cada vez, por tudo o que acontecia, vinha se convencendo da
existência do gigante, até supunha seu nome: Famalião. Era este, sem

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qualquer sombra ou penumbra de receio de dúvida? Se olhasse bem
de perto − o que era um pouco difícil, porque Famalião havia de ter
tantos metros de altura, que chegar-lhe à cara informe daria vertigem −
ver-se-ia que ele não tinha senão um − e um só − olho, um olhão grave
e sorumbático, verde, como um olho de ciclope arrependido ou furado
pelo sagaz e astuto Ulisses. Tecia a imagem de seu já quase amigo.
Ou inimigo? E por que misturar a Ilíada se o que ele mais gostava de
ler era a Bíblia Santa? Sentiu candura pelo monstro que não vira, e
pensou em várias formas de ajudá-lo a viver, melhor.
Se não ouviu um baque no segundo andar estava doido. Porque
ouvira.
Olhou para baixo do degrau número 15 da escada, aonde
chegara há pouco mais de dois ou 3 segundos. Outro baque, mais 1,
um pouco menos pequeno do que surdo, cavo, assustado. Se subisse
mais 10 ou onze degraus, talvez um pouco menos 2 ou três a menos,
chegava ao primeiro patamar da escada, e, dali, já se veria o andar-2
do castelo. Poderia haver então uma ameaça. Esta já havia desde que
lá entrou. Poderia, isto sim, era aumentar; e de tal forma, que se
espavorisse com a aparência em primeiro lugar gigante do gigante.
Pensou de novo no seu único olho verde e contrito, compungido e
bimbalhando as seis-horas-ângelus da Ave-Maria! Oh!
Subiu outro degrau. Outro.
(...) Tique-taque, tique-taque.
Enfim, alcançou o patamar da escada, de que eu vos falara ali,
e está agora pensando em sentar-se à luz de seu fanal. Abaixara a
cabeça para dormir ali mesmo, embalar-se à voz de si. E é quando

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surge, no alto da escada, uma figura que nos causaria medo, senhores,
se a víssemos tão de perto como a viu o Agripino.
− Ilusão.− Ele disse “ilusão”. Sabeis por quê?
Porque era bela como estrela, e radiante como sol, e branca
como o castelo com os olhos negros e baixos, como um muro.
Não se podia então falar uma bobagem? − (Como seria seu
nome?) − Pensou, sorrindo pelo nariz um cheiro de curioso.
Pensara apenas: (seu nominho, nomezinho, nomão). Mas ela
diz:
− Veremunda.
− Que lindo nome e doce, este, Ah! − disse Agripino.
− ?− Esta foi sua resposta dela, Veremunda, ao que lhe dissera
o rapaz.
− Como ? ?− Pergunta Agripino; e Veremunda, branca e besta,
faz a mesma expressão de ?
(Que figura estranha) − pensou de novo ele.
Ao que lhe diz ela:
− Por que “estranha”, eu?
− Porque não responde sempre.
− ?− Ela.
− Está vendo.− (Sabeis.)
−?
− (Eu vou é embora) − pensou, revoltoso.
− Por favor, não vá. − Veremunda diz com súplica no estômago.
Agripino então para o que estava fazendo (nada), e começa a
fazer em sua mente uma ideia, que imediatamente, como grego, põe

37
em prática, querendo-lhe, tão logo possa colher-lhe os frutos
primaciais, colher-lhos.
− Chegue mais perto − grita para ela, com sua voz bem bem alta.
− ?− Ela não ouvira nada.
Então ele pensa, apenas pensa, bem baixinho e mudo: −
(Chegue, mais, perto).
− Tenho medo ainda, não o conheço, não sei o que quer de mim
tão indefesa que sou.
− Ela só ouve o pensamento.− Diz alto Agripino.
− ?− Ela não escutou.
− (Você só me escuta se eu penso?) − Agripino pensante.
− Só, assim sou eu.
− Mas, como você − (falou ele)... (Desculpe, − agora só pensou −
como você consegue então falar?)
− Eu não estou falando, rapazinho tolo, é você que escuta meu
pensamento, repare (e Agripino reparou) que quando eu “falo” com
você meus lábios não se movem. E pode?
− (O que é o pensamento?) Pesou ele consigo, mas ela
naturalmente escutou.
− O que não é eu sei: não é só um amigo.
− (Além de ser amigo é outra coisa. Mas...)
− ... um grande aliado...
− (... um pérfido inimigo...)
− ... a maior das ilusões...
− (... a menor das incerteza...)
− ... a verdadeira vida onde ela existe...

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− (... a diferença...)
− ... a beleza...
− (... a tragédia...)
− ... e não sei mais.
− (Mas o que ele não é você o sabe.)
− Só amigo.
− E eu que pensara em não mais pensar, nunca mais.  Disse
Agripino aos berros, para que ela não o escutasse.
− ? − Ela não ouviu.
Passaram horas e horas neste como diálogo de emissões
oníricas, riram, divertiram-se com bobagens que, pensando, não
podiam evitar que viessem ao domínio alheio. Se conheceram bem um
ao outro? Certamente que não tanto quanto nem a si mesmos
conheciam.
Amanheceu redondo no castelo.

Capítulo VIII
Sobre um idílico passeio nas pedras

Provavelmente vos não falei ainda acerca da montanha mui


alta, e despencadoira, em torno do castelo− uma pirambeira e tanto,
um desconjuro. Não vo-lo disse? Ah sim, já vos falara, já vos falara!
Mas se falei da sua altura − algo de que estou quase certo − falei, aqui
estando, mas não falei, por outro lado, sobre a escarpa horrorosamente
rude e pedregosa e íngreme que vinha a ter seu fim no, por assim

39
dizer, seio rochoso de um bravio mar e ondulante, que é, pois, o outro
lado de que falei: não o fiz porque, por outro lado, sobre ele, por sua
escarpa horripilante, como estaria eu aqui vivo para continuar vo-lo
contando, este passeio idílico, de um lado e de outro ao mesmo
tempo? é impossível; exceto que tão belo era o grande rochedo e azul
quanto daqui de cima insidioso, esse mar. E esverdeado. À luz do
pântano.
Verde. Já o ruído que exasperavam as ondas era mais alto que
qualquer urro das garças por ali voando, em conversas berrantes a se
poderem, afinal, ouvir (dado que nem o mais grito entre os gritos se
faria, ali), escutar sem muito esforço e perseverança pinça de metal.
Minha curiosidade fora tão indevida quanto impossível,
absolutamente impossível de ser contida, fora ver o que eu via. Diria eu
que à medida que se tornava importuna, ia tornando-se igualmente
infinita. Até que numa hora foi infinita de vez, e aí pronto...
Nenhuma onda vinha bater sem outras intenções no rochedo
escalavrado que era monte penedo: pois que levavam invariavelmente
consigo os limos e musgos, e liquens e poucas algas, e vidas tais ao
redemoinho do mar que não se continha. Conchas e rocais pequenos
de espécies de grutas também. Cada mexilhão era uma esponjinha
assim assim, pegajosa e vomitando a escuma de sal que as ondas
davam de alimento, aquelas ingratas! Uma pluralidade com mortes
vivas que se esbatem, ao sondar. E uma gaivota atônita com medo.
Aquelas ingratas ondas! As gaivotas e as fragatas voavam emitindo
gritos de fábula. São umas contadoras de histórias, essas aves do
paraíso.

40
Um giro profundo e despenquei.
Estou a cair, cair, profundo vou ao mar.
Narrador ao mar!
Água de sal n´alma.
Peixes, muitos cardumes e boanas e manchas e mamíferos
imensos, dos maiores que há na terra, são, na verdade, da água. Uma
baleia é um bicho tão imenso, que só lhe tenho a dizer uma coisa: Oh!
Assim, como a cegos inundados de susto, dão-nos as criaturas
do mar a sua bênção rarefeita.
O mar é como de mel, porque é denso e invisível.
O mar é como uma porta entre o sonho e a loucura boa.
O mar só pode ser chamado de mar se enlouquecer, portanto.
Enquanto o mar não enlouquece o nome dele é fantasia,
sabeis?
No nada, exatamente na fonte casta de uma gruta amoníaca,
se movendo lento e passageiro, em vez de ar liberação de gás
choroso, dando ao efêmero sim a qualidade real de efêmero, uma
sereia se penteia e, com rimas em giro de anjo, desnorteia a claridade
das areias que alumiam o castelo e suas ameias, no nada no fundo das
águas. Há também a seu lado um tritão, de dentes de miçanga a
brotarem anêmonas e polvo.
Há todo um reino do Senhor Tritão em cujo redor criaturas
marítimas e medonhas se remexem, reviram, recarregam... Anêmonas
e polvo.
O poderoso polvo octópode pretíssimo e amedrontador.

41
Bicho pequeno (?) porém gigantesco. Quem, criança, não
imagina um polvo apenas de três metros, em cada tentáculo, somando
a cabeça, de um metro − de raio − ter-se-á, criança, por certo, oito, e
dentre os maiores oito metros que se viram? Que se viram em placidez
no fundo e mole das águas turvas, porém agora tão claras, o que há?
Que se viram por mim, por vós, por ninguém.
Uma borbulha grande e engraçada vem à tona. Salpica.
Ameaçava-nos?
Um polvão enorme sentado sobre o livro de contos que tendes
aberto aos olhos ri com despudor e soltando bolhas e muitas bolhas
que só param.
Onde estamos, estamos à toa, rebocados pela grossa corda
firme de uma nau. Naveguemos juntos, vós e eu, a que nos
surpreendam mais cedo que esperamos os golfinhos. Somos levados e
elevados por rebanhos de gaivotas que puxam nossa fragata marítima
com despudorada natureza.

..............................................................................................................

42
Um silêncio preciso invade as águas. O reino do nada se
dissimula em sal. O vagar de uma estrela na areia reflete convicto a
faísca de luz. Da lua, um só recado e taciturno: a doce música. Ela é a
que traz consigo a existência viva do silêncio. E este se esvai. O polvo
dorme. Boa noite.
Desculpe. O povo adormecia e solta uma bolha gigante, com oito
metros. Que vai subindo lenta pela mesma lentidão das águas onde
habita. A bolha vai subindo as águas. Eu olho. A bolha sobe. Voltei,
mas como a bolha quebrada de um polvo a roncar quando se.

Capítulo VIIII

...plof...

Capítulo X
Ingresso no reino do castelo

A bruxa Cunegunda sorriu com todas as janelas do cômodo


fechado. Bocarra aberta e me assustei. A cortina trepidou de frio de

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medo, um pouco, da sala branca rústica e até, por certo modo,
interessante, bela, harmoniosa, eu vos diria daqui onde estou, que nem
quero ver tudo muito nítido, viva a miopia!
Não, definitivamente eu mudo meu ponto de vista, aproximando-
me desta enjeitada figura cujo pé vislumbro, agora subo, o joelho, a
barriga dela é torta e disforme como de elefante, o pescoço não, não
acaba nunca, nunca, persigo seu fim, não, varro e varro até que, ah
finalmente, eis a cabeça (ou o que é isso?). Uma cabeça. Nariz. Olhos.
Boca. Orelhas.
Deus que me perdoe!
Esta é a bruxa Cunegunda e seus dois dentes.
Pois bem, passou. Não choreis, não não não. Aquilo que mexia
agora era decerto uma negra panela, grande caldeirão e de bronze,
ferrugem para os lados, de alças desapontadas, atando ponta a ponta
com dois imensos ganchos de ferro fundido e cheiro ruim. O aposento,
malcheiroso: teias, sapos, cascas desbotando, poções mirabolantes e,
no fim da sala, um quadro enorme, muito muito grande, natural, sem
moldura porque não há nem haverá, no centro do qual o marido (!) da
bruxa, horror tão enjoado.
Mas tão enjoado...
Um homem gigante com olho verde. Olho verde. 1. Só 1. 1 olho
só. Um homem com um só gigante e verde olho de ciclope
compungido. Um e só 1 olho contrito do gigante: é o Famalião.
O casamento fora há dez ou 12 anos-bruxuleantes (termo este
técnico para designar a contagem de tempo das bruxas e dos ciclopes 
criaturinhas que se apegam, aliás, com grande facilidade) em seu rumo

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estúpido mas grandioso. Em cotejo conosco, atendendo a que o
queiramos, cerca de uma hora, 1 hora só, equivale àquele 1 ano
bruxuleante. Entendestes? É por isso, senhores criança, que uma
bruxa aparenta ser tão sempre velha, quando, na verdade, oh que
doçura, só tem dela mesmo umas poucas de horas de vida. Coitada e
suplicante. Os ciclopes também: como borboletas aladas e com asas,
eles só vivem três ou dois dias, às vezes mais (mas não muito), menos
também não.
Certo, continuarei; por vós.
As fadas, inimigas naturais das bruxas, são-no porque
exatamente vivem a mais que suas rivais oitenta e quatro segundos.
Havendo as que alcançam dois minutos. Raríssimo. Contabilizo agora
de cabeça duas: Górbula, a bela fada aparentemente caolha, e
Sutâmpera, a magnificência do sem braços. Estas viveram dois
minutos e um segundo a mais que qualquer bruxa. Se bem que filhas,
ambas, de uma fada considerada um quase valha-me-Senhor de tão
seis dedos que tinha. No fundo mesmo  se é que vos interessa esse
breve apanhado assim formoso da história oficial do Castelo Branco ,
no fundo existiu foi um poço que de tão fundo é melhor parar. Existe
uma grande vantagem, na vida, em se viver isolado naquele reino do
castelo; mas dela não sei nem nunca soube e com licença. Um ano-
famélico (o termo para designar o das fadas) é maior que 1-
bruxuleante.
E, inimigas que sejam, convivem.

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Solta um estribilho decorado e arrepiante, a bruxa Cunegunda,
algo que, se escutei bem, apesar das mãos nas orelhas de pavor, é
assim:

Arrá, sará, sou má sou eu sou não


Uma bruxa qualquer sem estribeira:
Sou bruxa Cunegunda, a Feiticeira
Maiúscula, mulher de Famalião.

E duas gralhas emplumadas no armário, vivendo, retrucavam:

Grave, bruxa, grave, bruxo,


Remexendo o caldeirão:
Jogando lixo, eis o sujo
Banquete pro Famalião!?

Eu, num canto miserável atormentado, escutei:

Ai, chave do meu armário


Negro e podre, branco e doce,
Meu armário, ah se não fosse
O segredo de teu sumário
O conhecer segredo vário:
Mais prudente que tu fosses,
Arrombava-te com coices.

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Algo assim, olhem:

Cunegunda, vesga e banguela,


De cabelo puro sebo,
Um metro e meio, e no olho, remela:
Meu amor, meu aconchego.

TUM, TUM, TUM, TUM.

As gralhas ficam mui espavoridas e retornam à morte letárgica e ao


armário: o gigante Famalião veio jantar.

TUM, TUM, TUM:

 Quero sentar.
E se sentou.


 Querido  disse a bruxa Cunegunda , o jantar já vai se fazer.
 Espero não atrapalhar, meu figadozinho... (E os dois se
acariciaram mutuamente os narizes de um jeito tal que eu quase me
nauseei, quase.)
Eles se deram as mãos e começaram, com a outra que sobrou, a
se sopapear e sorrir. Até que a gigante mão do gigante deu um
estampido tão certeiro na orelha da bruxa, que ela deu um sorriso

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profano, e, do teto, chutou a consciência do marido, que também sorriu.
Eram os carinhos do casal. Um amor amortecido, a morbidez, a morto
defunto endereçado, amorfo e amoral, lindo, a seu jeito biliar, em todas
essas formas de amor que não concebêramos...
Oh!
Diz que se fada o vir, desmaia, e, dependendo do tempo de
exposição dessas delicadas coisinhas à sujidade deste amor, 
desculpai-me , diz que morrem até. Para quem já viu fada morrer, estar
chorando agora com a mera menção deste processo é natural.
Definham devagar e sorrindo, o brilho esvanece um pouco e se
desloca, delas, para o centro comburente do Grande Mundo Feérico; as
mãos se crispam, como que voltadas para baixo, e os olhos, sempre a
sorrir, se dissimulam da vida e se esgueiram, com vagar, até o escuro
onde se esvaem, com delicadeza, para tudo. Aí, o corpinho se curva
calmamente e as fadas expiram (liberando hálito de rosa-lépida, uma
espécie lá só delas), expiram, sorriem, contraem-se e, sem brilho,
desfalecem, isto é, não-falecem, porque suas essências, como vos
disse, está no centro comburente, a que alimentam. Lá do Centro
Feérico, são esculpidas pelas Fadas E
scultoras em outros corpinhos de fadas, e, mais cheirosas e brilhantes
do que eram suas almas anteriormente, voltam em criaturas cada vez
mais lépidas. Essa é a evolução da espécie das fadas. Sempre voltam
melhores. Só posso dizer oh!
Já, em compensação, o nascimento de uma bruxa é uma coisa
de medonha. Sentai-vos aí que vos conto:

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A parteira chega: é, geralmente, uma ciclopina  a fêmea rara
dos ciclopes , porque as ciclopinas em geral morrem antes de nascer e
suas mãos de oito dedos agarram melhor a bruxa nascitura que nunca
quer sair da barriga da mãe, aí se agarrando sempre com os dez
dentes com que costuma nascer. A ciclopina, antes de dar início ao
parto, sapeca na cabeça da futura-mãe uma paulada, porque adora.
Então, anestesiada, sem poder sentir a própria fisgada de nenê, a
bruxa-mãe deita num chão bem imundo e do umbigo brota, em primeiro
lugar, uma cabeça pueril, depois da qual o corpo amarelo de seu
rebento, para, enfim, vir ele à luz  e nasceu. As plantas que estiverem
ao redor morrem na hora.

Mexe o caldeirão a bruxa Cunegunda. E enquanto mexe canta:

Meu segredo, minha mágica,


Meu ponto de açúcar,
Que embolota e eu desfaço
Com colher de pau e garfo,
É: Sem fel nos dedos? Nunca!

Minha mágica e segredo,


Meu ponto de fazer “doce”,
Que se amarga e mete medo
Com café de leite negro,
É:Sem veneno que fosse,

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Meu quinhão de mel de rícino,
Seria denso e líquido:
Porque nesta cozinha, falte pá,
Falte colher, que falte mais,
Até que falte poeira, vá!
Não falta nunca o que faz
Meu ingrediente capaz
De reverter em podre as
Doces doçuras de um “céu”,
De reverter besteira em fel.

Dançava, dançava horrores!

Era de luz que se irradia


Na cozinha desta bruxa,
Cantadora, cantoria
Na cozinha desta bruxa,
Animada, com folia
Na cozinha desta bruxa,
Mal-casada, que agonia
Na cozinha desta bruxa,
Mexedoira, de alegria,
Na cozinha desta bruxa,
Está tão pronta: comeria

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Na cozinha desta bruxa?

O gigante Famalião, aos sonoros acordes da esposa, dançava


com o um olho fechado, numa lubricidade hedionda e mal-feita, de
embrulhar estômago. As gralhas emplumadas se encolhem no interior
do armário fechado. E um cheiro, enfim, de janta podre sobe aos ares,
em caracol: fadas não ousam pensar em chegar.
A bruxa Cunegunda agrilhoa o marido no pé da mesa e lhe dá,
com sorriso e raiva, um prato cheio de substância preparada para a
janta, cujo cheiro não toleraríeis, sequer na descrição da forma.
Jantam.
Uma lacraia luxuosíssima se esgueira no sótão e desaparece.
Duas aranhas se amam como gatos. Um cão lá fora causa sombras no
poste. Nenhum gato lembra aranha? Quatro gatas remexem o lixo e
procuram ratas. Uma delas foge ao encontrar-se. Dúzias de morcegos
flamejam as asas abertas, que, na verdade, são dedos imensos,
sabíeis? Um pingo de barata pequenina cai do teto ao lado de uma
lagartixa branca. Emaranhado de pêlo de bichos corre ao som do vento
e vai à brisa, lá fora. A lagartixa branca se assustara com a barata, e
corre com seu corpo marrom até sumir, cascuda, rumo à casa.
Jantaram. Recompus a minha fala?
Acho que talvez.
Aos borbotões, caem no aposento de jantar Agripino donzel e
Veremunda, a nacarada.

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A bruxa Cunegunda para de ruminar a comida; o gigante Famalião
mal crê no que seu olho enxerga. Dois intrusos??

Capítulo XI
Entra-se no reino belo

Eu já vos teria falado, acaso, que Agripino, quanto mais incapaz e


limitado se reconhecia, menos limitado e incapaz ficava? Pois não é
que, agora, coitado do moço, lá está ele defronte da bruxa Cunegunda
e de seu marido caolho, por nome Famalião...
E numa agrura besta de dar dó.
Os pensamentos de Veremunda eram piores que a tormenta
avivando as ondas lá embaixo do mar dela. A menina quase melou de
tão aguada e cheia de susto, de tão querendo correr e não podendo
que ficou. Pareceu, eu diria assim, um pote com violetas
excessivamente lavadas, no caule das quais se observava o deletério
efeito dos excessos. Por uns segundos, dir-se-ia que nada se mexeu,
nem o tempo, nem a vida, que nada se mexeu.
Foi quando Agripino, sentado no mesmo chão que duramente o
recebera, se comunica com Veremunda, por pensamento, aflito:
 (Quem são eles?)

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 A bruxa Cunegunda e seu marido, o gigante Famalião.
Agripino se sentiu incapaz:
 (O que eles fazem)  pensou  (, se ficamos aqui?)
 Ou nos devoram, ou...
 (?)
 Está vendo aquele vácuo na parede?  Abriu-se-o:
Era um buraco de um metro quadrado (porém redondo), pois
bem, era assim mesmo  por isso ser um vácuo , de cujo centro vinha
luz.
 (Não só sim, como também, que luz é aquela?)
 Aquilo é o Centro Comburente.
 (?)  Nem pensar pensou.
 A eterna ameaça das bruxas e ciclopes: o reino das fadas.
 (Sinto-me)  pensou ele  (tão incapaz)  depois disse, chorando e
aos gritos: Sinto-me tão incapaz! Tão! Tão!
A bruxa levantou-se, e o gigante Famalião, tentando fazer o
mesmo, arrastou consigo a mesa cheia daqueles olores putrefatos,
quebrando a louça de barro e fazendo as gralhas do armário libertarem-
se daí. Veremunda, já de pé, olhou Agripino, e, sem nem ao menos
precisar de um pensamento sequer, fê-lo correr agachado e
levantando-se até ao buraco, aonde entrou sem sua amiga.
Olhou para fora e viu-a sendo agarrada pela bruxa. Tentou sair,
mas o buraco foi fechando, foi fechando, fechando-se, e, fechado,
Agripino quis chorar muito em seu abrigo, porque de que adianta estar
acobertado e sem companhia, protegido, sem amigos, mas sem
fidelidade?

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Veremunda ficara aprisionada pelo casal medonho. Agripino
conseguira escapar pelo Centro Comburente Feérico, mas, sem sua
amiga, se sentia um intruso nojento. Faria de tudo para voltar e pegar
de volta sua amiga, salvando-a da bruxa e do ciclope.
Que fazer?

Capítulo XII
O som do pescoço

O violino é furiosamente agredido por quintas dissonantes. Depois,


com escalas maiores sem intervalo nenhum, que cerram seu pescoço
como o guindaste engancha piedoso na matéria sacra. Uma fina mão e
óssea dilacera docemente as cravelhas magras do instrumento, e este,
que dourava, é com fidelidade invadido por um agudo de ópera que se
desprendeu em linha cromática, desfazendo e refazendo e vice-versa.
Enfim, sobe um vapor de metal e retine o ofuscamento da madeira. A
abrir, a abrir. Os olhos fechados, condoídos, enfiando com o arco a
ponta do minimalismo adentro. E como o serrote uiva de dor! Silencia
doze diferentes silêncios. E retomam calmos a rudeza de um angelical
arpejo e desarmônico. Então o fogo nasce em princípio maduro, e
regride, túrgido como tangerina-dágua amamentou quem lhe pedira
acalanto. Aumenta, acirra, agrava, aumenta: incendeia a corda e as
vísceras do homem dissolvido. Serram a agressividade subaquática de
um desespero feito sino. Seu corpo são notas e curvas, são si-bemol,
suas formas, ardor de lago à noite sem ninguém. Gemendo alto como o

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arrancar da carne de quem ama. Lá embaixo a vida no mar, sombras
de amarelo e vermelho se acovardeiam ante o fogo ora consumido, é já
mais um tudo em arco e fricção de escalas e arpejos e quintas subindo
igual a canto, e, se rendendo como a cascata, pede a quem a vê que a
não agrida. O homem é brasa.
E a sagração do negro se completa, quando luz.
O gigante Famalião levanta e aplaude o solo cínico de violino de
sua esposa, Cunegunda. Ela agradece. “Obrigada”, diz. E Veremunda
se encaixota num grilhão em que fora presa, com comida.
“Obrigada, muito mesmo.”  diz a violinista Cunegunda.

Capítulo XIII
De como escolher errado

No interior do Centro Feérico, está Agripino e houve uma


explosão muda; e após um ruído silenciosamente incômodo, um ruído
e mais alguma coisa que vos contaria, se soubesse. No fundo daquele
Centro, Agripino cansado, respirando com dor por causa da ausência
da amiga, chorou.
É.
Sinto-me tão fraco, oh sinto-me tão fraco, sou tão só, tão eu,
tão só eu  pensou, talvez  eu só!  dissesse, pensando que lá estaria
Veremunda a responder-lhe.
Que não estava. Então soluçou, mas não se lhe emitiu da
garganta um ruído assim que fosse, nada! porque mudo ao menos se

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entendia e escutava melhor. Sem sua amiga, encolheu-se na concha
como o sol se arma até os olhares quando surge? Inseguro, e receoso.
Mas uma clarineta verteria em júbilo a dor. Sim, verteria em
folguedo a transição. Seria ela um potro arredio desgarrado, sem rédea
e femininamente selvagem descerrando os prados verdes  de si
mesma.
É. Os ouvidos abriram como é certa aquela refração da luz
quando reflete no mar. A propósito, já vos tendo narrado acerca da
revolta que há nas pedras ali embaixo, completo agora que se
esbatiam com tanta calma, que parecia quererem sumir-se, evaporar-
se como foram testemunhas de tantos corpos com que tal sucesso
ocorrera. Reticências.
E só, por testemunhas, elas. Ao estorvo analítico dos corpos
sem estrutura, algum ar.
É.
Senta-se por dois momentos íngremes no chão e se recosta,
na parede. Se sua amiga estivesse ali a chamaria, e lhe mostrava
convicto o quão de certa forma pitoresco eram os murais pintados à
mão, talvez, na parede pétrea da caverna. Mas uma caverna iluminada,
luzente, é possível? Haveria sentimento de cordialidade e dolência no
abscôndito sereno de uma gruta? Que espécie de energia, aquela, que,
desapegando-se breve de corpos, nem bailava, antes de pousar no
néctar de uma grande dança e lúdica? O reino das fadas era a um só
tempo subterrâneo e iluminado.
Uns corpos pequeninos se moveram com certeza por entre as
paredes douradas da gruta: seres!

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Mas, afinal mesmo, de que espécie ou tipo, ou mesmo de
onde é que vieram afinal hein? Onde, ai que nervoso, é que, Santo
Deus!, de onde mesmo, finalmente é onde?
Seres dançarinos e dolentes. Pequenos e róseos. Seres em
pares carregando flor como quem come pólen. Limpos e pequenos.
Bailarinos de uma canção tão ao longe, que onde?
AQUI! Pulou para trás e recuou a cabeça de susto.
 Desculpe?  perguntam-lhe  Não!  responde-lhes.
Era o representante menor dos Folgazões do Reino Feérico,
uns como que anõezinhos salientes que não resistiam em mostrar o
traseiro a quem os visse. Fizeram-no a Agripino, que, antes assustado
e depois morrendo de rir daquela cena absurda e dividida ao meio,  e
brancarrona como as duas metades murchadas da lua,  rola no chão
que lhe mostrara ao próprio traseiro, de que se lembra, o quão de
pedra era (afinal, seria?) feito.
 O que é isso?  perguntou um Folgazão debochado a outro,
menos indecente um nátimo.
 Está é rindo, e é de nós, se queres tu sabê-lo; queres?  uma
órbita eletrônica os envolve.
E estes dois começaram uma peleja de pequenos braços e
traseiros expostos. Foram separados por outros tantos de cada lado,
que os reconduziram, os brigões aos briguentos, cada um para um lado
oposto, recompondo-lhes as calças baixadas e jurando-lhes que os
levariam ao trono.
O exército de Folgazões olhava Agripino com seus, ali, vinte
metros de altura.  Mas eu sou tão baixo em comparação a isso! 

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Esperneava inutilmente Agripino.  Para nós, disse-lhe com um par de
óculos na cara um Folgazão, você não passa é de um gigante infernal.
 PRENDAM-NO!  Gritou alguém lá de trás. Ao que todos se lhe
viraram ao encalço e encararam muito graves e sem sorrir. Prendam-
no!  repetiram.
Mas nenhuma peça de roupa foi baixada com a “ordem”, o que
muito teria sido de esperar naquela circunstância. Agripino não se
mexe.
Não se mexe. O que foi muito de estranhar.
O exército fica parado e cercando Agripino. No ar se movimenta
um espectro de medo mútuo e ambivalente: quem venceria? Do lado
de cá, a supremacia do tamanho; do de lá, a do conhecimento de cada
ruela das que compunham aquele dédalo subterrâneo e horrendo,
conquanto redundantemente iluminado. Os Folgazões não empunham
nenhuma arma: são pela astúcia. E Agripino pela vitória a todo o custo!
Mas cadê as fadas, se este é (tgeoricamente) o Reino delas?
 As fadas ficam protegidas de gigantes infernais como você!
Nós, a linhagem milenar dos Folgazões, as defendemos de criaturas
assim tão... tão...  o soldadinhozão ficou procurando uma palavra bem
feia  tão bobocas!
Num golpe sem palavra, Agripino levanta e soergue seus vinte e
dois metros sobre o exército de Folgazões, que, traseiros à luz, correm
lá como podem sem deixar de lado gritos instintivos.  Matar-nos-á! 
gritam, e enquanto correm gritam mais. Daqui de baixo Agripino é
mesmo algo terrível, mas terrível mesmo: imaginai aquela
superdesagradável cena infantil que durante anos vos rondou a alma

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atormentada, ver um adulto gigante brigando convosco e pondo-vos em
riste o dedo na cara espavorida: Agripino seria, em poucas palavras,
isto.
E só se viam traseiros e só se viam Folgazões achatados a correr
de medo de que caísse o gigante (agora é de Agripino que falo, já
sabeis), e que, caindo, fosse em cima deles coitados que caísse; e,
pior, de que, ocorrendo tal desastre, fosse é mesmo sobre eles
inocentes que ocorresse. O que  sinceramente  era uma tragédia!
Agripino correria como um gigante com melado correria. Seu riso
era irônico, suas mãos ameaçadoras e ensaiadas. Folgazão corria sem
destino. “Corre”, às vezes gritava um.
Escuro e de repente oitenta corredores distintos, no centro dos
quais  Agripino.
E solitário.
Ah bem, e não mais havia um Folgazão que fosse, um que
tivesse ali ficado a dizer algo?
Não.
FFFFssss! Somem; e por onde?
No meio de um círculo com oitenta passagens e uma só saída,
Agripino novamente se senta. E, porque rodara quando ali chegou,
nem voltar poderia pelo mesmo acesso que ali o levara, pois que
estava tonto, estava ele tão tonto, que, repito, senta-se.
Os Folgazões sumiram. E Veremunda, onde estará?

Capítulo XIIII

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A fúria do pólen

Uma bela pincelada e poética redefine uma pétala de flor, que


se esbroa em amarelo pálido e corando e vivo, de delicadeza, timidez.
Pontinho, ponto, pontinho. Aquarela com tintas de vida, tão aguadas e
realistas o sendo (muito embora vida mesmo o não seja), arregimenta
veleidade e leveza. Círculo marrom, mas doce, estofado de pontos de
pincel mergulhado sem nenhuma força na aquarela. Um grande
polegar a sustém como a um filho, para que pincel o toque, ao filho,
digo, e leve dele um olho fechadinho e um suspiro de cócegas
adoráveis. Inocentemente amizade. Um morro azul se reconstrói à
frente das nuvens amarrotadas de propósito pelo branco. Que dia
lindo!, não? Que dia! Um tracejado mais firme do que vacilante
escasseia devagar e termina em uma onda de água mexendo e
parando, agora. Parada. Sorriso de satisfação da obra que se fará
plena e por si só ela própria. Sobe e desce, desce mais e sobe um
pouco, vai ao lado  o pincel , e finalmente se pousa calado sobre a
mesma pétala que o abrira  mariposa. Agora Sol, espaço  espaço 
espaço  maior  nada. De longe o que é isso? de perto não sei. À
distância  você, uma delicada e jovem donzela nua no jardim, com
guarda-sol aberto sem pudor. Pálida e jovem donzela nua no jardim
com sol e com paisagem: figura que se olha e se deseja. O toque final,
uma ínfima pontiaguda pena de pincel que encosta na aquarela e daí
transpõe o marrom acre à mansidão atemporal da tela como um pólen.
Este pólen é furioso porque é fim.

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Aqui está Veremunda, comendo a papa amarelenta que o
gigante lhe deu de bom-grado. Quando terminou de pintar sua
paisagem (ao fundo da qual sua esposa nua), Cunegunda a bela,
donzela e jovem de mil rugas, Famalião foi ver se sua hóspeda,
sentada num vermelho sofá de veludo e amigável, comera já toda a
panacéia que gentilmente ela, a Bruxa, preparara. Sim, comera tudo. E
pedira mais: era excelente!
Deu-se-lhe outro quinhão, e, se quisera mais mais tivera, que
não quis.

Capítulo XV
Intermezzo

Duas Ratóperas tentavam a ferro e fogo ensurdecê-lo, que assim


era o ataque desses bichos!
Agripino desenfreado corre por entre as difíceis e pegajosas vias
a que pelos Folgazões fora enviado: sentiu-se tão sem saída que não
fazia nada exceto correr e com as mãos nas orelhas para que não
ensurdecesse.
Atrás dele, com um corpo rotundo e uma máscara do século
XVI, ou próximo, Marguerite de Valois, a Ratópera mais elegante que
Agripino  confesso  já vira. A seu lado, fazendo com ela um dueto
impossível, Don Carlo, o Ratópera magro e provavelmente barítono. De
repente, surge Pamina, e, com ela, Tamino, o arauto da Rainha da
Noite.

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São ratos!  pensou  Não passam de ratos!  disse. Mas sem tirar
as mãos das orelhas, porque se o fizesse ensurdecia. Como são ratos
que cantam ópera, não passam de Ratóperas  concluiu.
Tentou dialogar, deu um grito, o grito mais alto que já dera? Sim.
Nada.
Dançou, se rebolou como bem uma perfeita cobra com dor de
dente. E nada.
E se...
... naturalmente cantasse?

(...)

Senhores, convosco, Agripino vestido a rigor, para sua soirée


dourada no Theatro Municipal do Centro Comburente do Reino Feérico,
tendo por público o inumerável Exército dos Folgazões, e por crítica 
acerba  a multidão das Ratóperas:
Um belo silêncio daqueles que acometem os palcos de um
teatro:
Programa:
I PARTE:
Don Giovanni
Norma

II PARTE
Péleas et Mélisande
Fidelio

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BIS
La Bohème

O espetáculo começará impreterivelmente às 21 horas. Pede-se aos


senhores circunstantes que nem se atrasem nem falem durante a
performance, nem vão ao banheiro, podendo deixar para fazê-lo nos
intervalos previstos para tal. Somos muito gratos e desejamos
sinceramente uma boa noite.

As Ratóperas emudeceram e começaram a sentar sobre tonéis


de aguardente improvisada. Os Folgazões ficavam de pé para que se
lhes vissem os traseiros.
Ao fim da ária escolhida para o Don Giovani, a crítica até que
se empolgou, e cochichos elegíacos começaram a timbrar felicidade
nos olhares. Norma foi bem. Que perfeito aquele Debussy que fez o
cantor, não? E Fidelio?, excelente! Para não deixar Leonora nenhuma
constrangida ou preterida. Não! Nem é preciso contar da necessidade
do bis  La Bohème , e que foi aplaudidíssimo, íssimo mesmo.
Agora Agripino era amigo das Ratóperas, e elas o levaram
sem-cerimônia à sala maior onde, num trono, eis a Rainha da Noite, à
espera entediada de que alguém a felicite, por seus eternos agudos de
apito mavioso.

63
“Parabéns”, disse. Ela se moveu no trono e perguntou o que ele
queria dela. Ele disse que nada, mas que lhe seria grato se ela lhe
mostrasse a saída daquele reino.
As Ratóperas ficaram em rebuliço e disseram, em coral:
 Eis-me aqui, fiel a ti até a morte.
Esta não é a última frase da ópera O navio fantasma?  pensou
Agripino, pensando que ouviria a resposta de sua amiga Veremunda,
que lá não estava. Como ela não respondesse, respondeu-se ele
mesmo: é sim, é sim. Depois dessa frase, Senta se joga no mar
proceloso para viver (aliás, morrer) eternamente com seu amado
Holandês, desfazendo a maldição de séculos de uma vida estúpida e
errante. Agripino ficou comovido e chorou.
A Rainha da Noite, que ali não amaldiçoava ninguém, repetiu
maviosa:
 Eis-me aqui, fiel a ti até a morte.
E o Navio Fantasma apareceu.
Dentro dele, um homem azul de tão branco falava em holandês.
 Venha comigo!  deve ter sido o que disse.
A Rainha da Noite se acomodou enfastiada no trono e fez com a
mão cheia de anéis de estrelas e um manto de luar que fosse mesmo,
que pelo menos saía dali e veria coisas que ela própria nem supunha
existirem.
Ele disse adeus e que gostara das Ratóperas. Estas, em
homenagem a Agripino, cantaram, mas não tão alto, um Nabuco de
fazer chorar pedra. Um coral de anjos! Os Folgazões rebolaram,
bumbuns à mostra.

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Agripino partiu com o Holandês.
No caminho, se aprendesse o idioma do viking, contar-lhe-ia
que estava à procura desesperada de sua amiga, que fora aprisionada
por uma bruxa e seu marido, um ciclope maus.

Capítulo XVI
A jornada roxa

Os cabelos ficaram assustadíssimos com a primeira paisagem


neblinada que Agripino e Holandês viram. Mas depois se
recompuseram a pouco e pouco, e foram deixando de lado o temor que
os fizera crer estarem mortos: não estavam. Agripino e Holandês. Uma
névoa parda começou a envolver a popa da embarcação que,
errabunda, navegava de velas baixadas à mercê da natureza. O Reino
Feérico era tão tão grande, que lá dentro havia um oceano, por onde a
nau de Holandês errava. Muito, muito pálido e já sem medo de
achaques maiores (é do Holandês que falo), voltou o rosto a Agripino e
parou. Não morreriam, enfim. O que serão as donzelas abrigadas à
frente numa espécie de caverna? O que não se faz por curiosidade...
hein!?
Agripino, imaginai só, não sabia. E, no entanto, quis sabê-lo tão
pouco quanto é a lua um puro e depurado reflexo do sol que verte nela.
Sim.
Sobre as pedras calejantes e ríspidas, e quebradiças; que
traziam à superfície do “mar” a carapaça; damas de seus poucos anos

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de vida (quem sabe, ali, minutos ou hora) e bem vivida, dir-se-ia,
damas que se erguiam periculosamente sobre uma ponta de pé em
cuja proteção real  sapatilhas. As águas daquele “mar”, violetas e
domadas, rebramiam mas sem furor por causa da quietude exalando.
Eram as agrestes águas do Sapártano, mar do Centro Comburente,
numa nudez sem classificação alguma.
E aquelas ninfas, as Desílias, damas de honra superada por
desejo obedecido, Mulheres-moça que se compunham de lindas e
encaracolantes mechas de devaneio, num repertório pífio de
subterfúgios lacustres com cujo escopo alcançavam perdição e prazer 
que se dizem as Desílias , essas dançam.
De longe, Agripino e Holandês, ressabiados, olhavam-nas, à
espera de um canto, pode ser, que os arremessa-... (ou que os fizesse
meio...-rem-se) ...-sse, ah perdão, loucos, à bravia costa e amena do
Sapártano. Elas, porém, mudas que eram,  porque haviam predito
milênios atrás uma verdade que se degringolou, antes do mais, pois de
feita veio a lume e trouxe consigo as consequências de qualquer
verdade realizada (o quê),  de suas bocas não saía uma sílaba além de
rosto de gozo. As Desílias, nem lembro se vos contei, são (e não
passam de) criaturas do prazer, de que vivem simplesmente.
Água se esbate violeta e calmamente no Sapártano, que flui e
derrama como  Desílias se jogam nele  um púcaro de vinhos de água. 
De onde ressurgem esvanecidas e gázeas.
Tudo dará certo. O bico da nau é pouco agressivo demais para
a tal aclamação das águas, que, vicejantes, espumavam uma branca
espuma, e saborosa, muito saborosa, porque as Desílias se

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regozijavam no meio daquele mar de roxo amortecendo e dando cheiro
de alegria. Riu-se, na embarcação, da cara rosa e engraçada de uma
dama que afundou, mas retornava de quando em vez para afundar
novamente.
Inofensivas e belas, como o contrário de um furacão.
Na linha do horizonte, vertical, esboçou-se um furacão que
parecia aproximar-se velozmente. Chegaria? As Desílias começaram a
mergulhar e não mais voltar à superfície violeta e grande e bela do
Sapártano, que também pareceu querer recolher-se de receio da fúria
do redemoinho fora dágua. O furacão é furioso: ventava cinza e
descompunha em suas linhas retorcendo uma tonelada de ar e de
pânico, decerto que os trazendo à força até eles em sua nau, que, a
propósito, chamava-se Cafanatárium, e trazia de soldo no convés uma
estátua viva de cimento e morango.
Agripino, inteligente, deduziu  Esta água é violeta... Violeta! Ó
Deus! De violeta para violenta basta um passinho de nada! E ficou
assustadíssimo, tentando disfarçar seu susto do amigo, Holandês.
Violeta, violenta... Não lhe saía da cabeça.
A Cafanatárium, sem velas, desandou a navegar ríspida e
corajosamente na mesma direção e no mesmo sentido que traçava o
furacão, porque queria fugir dele às avessas, fugir e rápido, indo-se-lhe
ao encontro todavia. Aquele era o Reino dos Contrários? Será? O
furacão furioso era mais rápido, e, na mesma linha e apontando o
mesmo rumo, alcançou a nau do Holandês, e a rodou como deixa uma
peneira passar de si por clemência o ouro e a ganga, para que o
homem escolha o que lhe apraz já fora dela.

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Agripino estava agarrado num mastro bambo e convicto, de onde
perdeu o chapéu que o acompanhara até ali.
No cerne do furacão, tudo é roxo e confortável, até músicas se
ouvem. A nau, embora, roda e roda e roda e vê tudo enevoado e
calmo, e uma placidez sugere existir por causa da tormenta em que se
vive decomposto. São esparzidas leves gotas de água vinhática e de
um odor...
... de comida caseira. Dentro da fúria do furacão era tudo tão
calmo e doce.
(A nau Cafanatárium, do Holandês, entraria de soslaio no Sub-
Mundo Breve das Cozinhas, cujo imperador, Remanso III, o
desagradável, reinava soberano sobre uma panela e duas colheres, a
colher, ele próprio, suas poções.)
Estariam ainda com medo? Acho que não. (Pausa)

***

Tac, talac, tac. Tac, tatac. Ta-ta-ta, tactactac, talac, tac, tac.
Tatac, tac, talac, tatatac  tac talac tatac tac. Tac. Tactac-tatac.        
Perdida de amorr 
Tac, tatac. Perdido.
Com o amor prdido 
Com o amor perdido e com minha  minh’alma 
Com o perdido amor e com minhalma

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Escrevo desvirtuado nesta  numa  nesta  ou numa?  lousa
Tac. Talac, tac, tatac.
nesta lousa:
“Querida, venha cá e me acalma
Trrrrrrrr.
“Querida, vem aqui, vê se me acalma
O coração guerreiro, O coração cansado como esposa
lousa / esposa? Arghhh!
O coração cansado que não ousa

Olhar-te mais que o tempo de um segundo
A desejar-te menos que uma vida.”
E, ao encarar sem medo a mesma lida
A separar-nos, venço, e, com triunfo,
triunfo / segundo  ?  !.

Entrego-te o farnel da minha vitória!!!
Tac. Tac. Hmmmm...
da minha vitória.
E tu, sentada à beira da lareira  bEIRA, larEIRA?
Pois tu, sentada à margem da lareira  margem?!!
à margem da lareira,
Remete-me ao ocaso deste amor,

Deste igual amor que,  oh dias de glória!, 
Hei de ilustrar com a

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Hei de ilustrar coa  sede derradeira (...ao ocaso deste amor)
Hei de aumentar coa fome derradeira
De ver-te eternamente sem pudor.

Capítulo XVII
Soneto para Cunegunda, fagueira, esposa, companheira
por seu Famalião, in love

Capítulo XVIII
“Homens usam chapéu; sua mulher usa chapéu: portanto sua
mulher é um homem”

Esta a divisa que ornamentava desdenhosa o pórtico sagrado a que


fora conduzida a Cafanatárium e seus dois tripulantes: Agripino, e
Holandês. Havia uma espécie de pedras grandes em sucessão que
faziam o desenho ainda de uma abóbada pontuda, mosaico de cujo
cimo brotavam ininterrupto algumas fitas policromáticas  brancas. Um
vento que as despenteava era mais comportado se soprando, e
arruaceiro por demais para se encarquilhar nas ogivas góticas por que
passava. Uma Catedral Submersa  aí foram parar.
Dois gracejos avoaram por cima de suas impressionadas
expressões de susto. Seus semblantes, uma vela acabada, figurariam
com certeza uma questão: o que é isso?

70
E andavam, andavam, enquanto lho permitisse as pernas, andariam,
andariam.
Longemente, uma figura que vos peço vos acomodeis para que a
percebais melhor: uma só cabeça, dois olhos, sim; mas de tamanha
magreza e hediondez, de tão curvada e indecente e lasciva e erótica
postura, portando na face nua certa máscara mínima e também íntima
de veludo negro e androginia  um algo efêmero , que nem era tanto a
escama de lagarta o que chamava mais a atenção, mesmo. Quanta
indecência! oh!... que rosto (nu). Punha-se de pé ante a entrada
número 1 da Catedral Submersa, passagem para o Sub-Mundo Breve
das Cozinhas. Agripino entendeu que precisaria interpelá-la para
passar adiante, o que fez da seguinte monta, horrorizada, perplexa e
engolidamente gargalhando, mas por e para dentro, da movimentação
elétrica embora contida e limitada à não da figura magra magra:
 Como se chama?  perguntando (e ri).
 Pureza  aponta para fora uma língua tripartida como nem de cobra
tão.
 Onde é isto?  o Holandês quer saber; mas foi Agripino quem
perguntou.
 Quando é que uma mesma exata atitude numa mesma exata
situação, tomada por uma mesma exata pessoa, é ora audaciosa, ora
ridícula? han?
Agripino se volta para Holandês, como que querendo saber (e era
isso mesmo o que acontecia) se ele porventura estava prestes a dar a
resposta.

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Que não estava mesmo, porque: 1) não sabia; 2) não queria; e 3)
esqueci.
 Quando, quando, han?  perguntou agastada Pureza impaciente.
 A mesma atitude na mesma situação...?  disse Agripino  ... e
tomada pela mesma pessoa...? (completou Holandês)  numa mesma
situação não pode ser ora audaciosa, ora ridícula não.
 Pode  debochou inquieta Pureza, sobrancelhas em riste e olhar
mordaz.
 Quando?  Holandês ao mesmo tempo que fala se atormenta.
 Se responderdes, passareis. Se não, não  Pureza endurece.
Neste momento surge do nada uma figura de vestes talares
aboboradas e brancosas  dir-se-á: “Encardidas”? , encardidas, eu diria.
Do chão à alta cabeça, um metro e qualquer coisa, olhos  dois mesmo,
não vos assusteis  lilases, uma graça que eram! Sobre o cabeça, um
penacho amareloso expunha cuidadosamente ousadia. Essa figura,
que ainda agora vim de vos descrever acurada e perigosamente, é o
Xamã Crisol, da Catedral Submersa, um homem tão sábio, senhores,
mas tão sábio, que ri de tudo.
A propósito, viera mesmo rindo; e, enquanto ria, trinando um
punhado de guizos de prata como os de um bobo imperial (que era o
que não era de Remanso III).
Pureza se encrespa com o Xamã, mostrando-lhe os dentes e
dizendo:
 Saia, saia, Crisol!

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O Xamã olhou para Pureza com olhos de receio; e mediante isto,
para baixo de si próprio. Pureza repetiu sorrindo sem pudicícia e com
argúcia:
 Saia!
O Xamã dessa vez só olhou para baixo e muito envergonhado:
estava sem sua saia, de fato.
 Quando é que uma mesma exata atitude numa mesma exata
situação tomada por uma mesma exata pessoa é ora audaciosa ora
ridícula?  Perguntou como num eco o Xamã, querendo ir-se logo
embora, com vergonha de estar sem sua saia.
 Han?  Perguntam, a um tempo, Agripino e Holandês.
 Quando esta mesma atitude é repetida por aquela pessoa naquela
situação após um espaço de vinte anos.
 NÃÃÃÃOOO!!!  Se descontrola Pureza, que some e se esvai.
Duas pedras inamovíveis se movem da entrada da Catedral
Submersa, mostrando, aos guerreiros Agripino e Holandês, que se lhes
revelará uma grande aventura e fantástica lá dentro, ao som do que
serão os Rapineiros, seres novos; depois a Grande e Cara Cozinha
Tronal, onde senta imperioso o Trono de Remanso III, pomposo e
augusto.

Capítulo XVIIII
O crepúsculo das vozes

Cunegunda costurava como ninguém. Suas roupas, a par de


limpas, eram tratadas com todo o esmero que de suas mãos tortas e

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unhudas era despejado de modo generoso, e sempre com muita
abundância. E, porque tinha agora a seu lado uma grande amiga 
Veremunda , passou a costurar, além de para si mesma e para o
marido, Famalião, o gigante, também para sua própria nova amiga e
para tantos quantos fossem (o que era raro) os que à sua porta
batessem à cata de vestimenta para o frio que não era raro. Sua
máquina de costura, tão firme, se tratava, na verdade, afirmo, de uma
(sim) máquina-de-costura. Sua agulha vinha e depois ia, sempre a
coser mais urdiduras malhadas úteis e confortáveis.
Veremunda, querendo sorrir, sentava-se em cima do dedal de
Famalião, apoiando os pés em lugar nenhum: balouçavam ao leú.
Observava cuidadoso os movimentos de Cunegunda, a quem já
considerava por ora uma real mestra.
 É assim que se faz, queridinha  lecionava a bruxa.
A menina olhava sem nenhum desdém, dou-vos minha palavra, a
tentar aprender como é que se faz para costurar tão maviosamente
dessa forma, como pode?
E, enquanto isso, um bolo assava para o café dos três.
 Está pronto  dirá a bruxa quando o estiver, indo buscá-lo com o
bule de café fresquérrimo coado naquele agora em que acabar de sair.
Desde o princípio de toda esta fábula, que aconteceu, não sei se
vos já destes conta, lente querido, (de que) se passaram não além de
poucos minutos. Dir-vos-ia, na verdade, nem um inteiro sequer, senão
que parcos segundos: é que neste Reino o tempo é diluído, a difusão
não em água, mas em gás, ou em caos. Quem veio antes? caos ou
gás? Tão parecidos, não?

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Sim: três segundo desses nossos, acreditai-me (caso contrário,
pouco se me dá!).
Veremunda estava sendo feliz, embora não cresse no contrário,
ao lado de Famalião e de sua esposa, Cunegunda, a bruxa nutridora.
 Venha comer, Verê, venha loguinho.
E a menina arrastava suas pernas presas a um insofismável
grilhão de algodão.  Posso tirar isto de minhas pernas?  ela pergunta.
Cunegunda olha o marido, eles se olham de novo  depois de
terem encarado a menina  e dizem que sim, pois já até confiam nela,
têm crença de que de fato não fuja dali. Ela se abaixa e sopra o pé,
fazendo a corrente soltar-se e voar longe, demorando horas (das
bruxuleantes, é natural) para cair no chão de novo, tão levinha.
Mas caem os elos. E quando caem fazem ZZzz!, nem um a mais.
Para desaparecerem.
Uma mesa muito farta é posta para os três, que nem bem se
sentam a ela já têm saliva na boca bastante a encher de cuspe um
açude. Broas, bolos, fofas bolachas e leite, um pouco de leite, café,
como eu disse, fresquérrimo, pano broslado à mão, lindo, pratos
pintados pelo marido, cada um dos quais com seus motivos distintos 
fontes, vielas iluminadas, filigranas, rococós, folhas, flores, perfumes
pintados , outros doces, mais outros salgados. Etc.
Já satisfeitos, os três se levantam e vão para a sala do piano,
onde Cunegunda, surpreendendo sempre, revelaria outro pendor: o
canto piânico e o lírico, ambos crepuscularmente homiziados que
haviam sido e estado  por ela e dela própria  até então.

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Capítulo XX
A pequena antessala

Duas portas se abriram concomitantes à passagem de


Holandês e de Agripino, que, pois, passaram. Depois de uma estreita
sala, houve um como living esnobe com uma pequena mesinha
redonda, com toalha de seda ao chão, duas xícaras e dois pires sobre
tudo. Uma sala de espera com lugar para, esperando-se, comer.
Agripino adormece imediato e sonha com Pureza:

Capítulo XXI
O sonho com Pureza:

 Oh... (todo sonho começa com ohs...)... oh...


 Pureza, quanto prazer revê- (Agripino simplesmente não sabia: revê-
lo? Ou revê-la? aproveita...) rever sua pessoa ilustre às pampas.
 O que, meu caro (aproxima-se bipartindo a língua) é?
 O quê?
 Quando um vaso de quebrar deixa de ser de quebrar?

76
 Mas essa é muito fácil, Pureza, você está perdendo a forma, hein...
 Quando, quando?
 Quando quebra...
Pureza oniricamente se afasta do rapaz, dá-lhe uma expressão
horrenda, e grita:
 NÃO!!

Capítulo XXII
A pequena antessala

Holandês catuca Agripino. Agripino acorda do sono.


 Isto aqui é desnecessário  disse Agripino, livrando-se de seu
casaco amarelo, que, até ali, não se havia separado de seu corpo
friorento por nada. Inútil, pois. Pegou do casaco, e jogou-o, longe, tanto
que não pôde vê-lo cair. E foi sentar-se à mesa posta, como se a ele.
Achava prudente fazê-lo? Prudência não importava.
Sentados, Agripino e Holandês ouviram passadas mui leves, tão
leves eram as passadas que ouviram, que se vos contasse o som que
faziam juraríeis estar surdos, ou que eu emudecera, ou que não
existiam e que Agripino continuava a dormir.
 Ai! Que fazeis?  disse um Rapineiro (os Rapineiros eram figuras
longilíneas e dobradas ao meio de tão aduncas, que traziam o
medalhão do Sub-Mundo de ouro quase a tocar o solo, pois era-lhes
mui, mui pesado, cujo pescoço entortava. Diz uma velha e recontada e
antiga lenda local que essas criaturas serviram, há anos  feéricos 
atrás, de isca a ciclopes, para capturá-los e aprisioná-los, enfim, tendo-

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se, por este miserável ofício, tornado o que eram visivelmente agora:
estranhos. Existe, contudo, uma variante desse mito comburente que
narra terem sido eles amantes das bruxas, pelo que teriam recebido de
castigo a forma acicular com que se suportavam. O mais provável  se
quereis minha opinião  é que ambas as coisas tenham ocorrido: foram
amantes das bruxas para servirem de isca aos ciclopes; e, por isso, até
hoje vêm servindo fielmente ao Imperador Remanso III, o
desagradável, de escravidão porém regaço).
 Ai! Que fazeis?
 Desculpe, desculpe, não podemos comer?  Levanta-se
Holandês, mais covarde.
 Podeis, mas não aqui.
 Por quê?
 Porque isto é só um living  e sorriu  perdeis vosso tempo
esperando daqui iguarias. Vinde comigo.
O Rapineiro os levou à outra porta, passando por ela.
De onde se viu a mais bela paisagem até ali: uma cozinha gigante
e vestida de árvores e campos, e vertendo luzes com aurora, um
amplexo de cozinha, que maravilha e bela não era! Um estupor de
beleza, muito de fato.
 Quereis ver o que impera?
Nem sabiam direito que o havia  SIM  disseram em uníssono.
 Como se chama você?  Agripino, educado que fora, sente desejo
de perguntar ao Rapineiro.
 Gastrino.

78
 Podemos comer alguma coisa, Gastrino? (Seu nome era
sempre pronunciado em letras itálicas.)
 Sim, claro...
 Então vamos logo  Holandês se antecipa a um pequeno forno
aberto de onde pulava um bolo confeitado.
 ... mas não agora  Gastrino o segura com palavras.
Decrepitude.
Os três caminham coligados pelo cheiro ativo de caruru. Agora de
canard au pomme de terre, de repente, pizza de abóbora, Sauerkraut (a
eterna maiusculeza inútil dos alemães), pudding etc. etc.
E a fome avivava neles a raiva de Remanso. Como seria nem
importava mais, mas o que lhes daria de galardão lhes era um grito no
estômago, já cansado e III.
Gastrino os colocou numa barcaça de casca de sorvete, no Rio
Termólico, advertindo-lhes:
 Se o comerdes, afundareis  e, o dizendo, partiu.
 Adeus (apeguei-me a essa criatura simpática), meu caro
Gastrino.
Os dois remanescentes entram na barcaça e vão embora. Talvez
Gastrino apareça de novo, se eu tiver a paciência de dar delonga à
história dele até ali, um vilipêndio, ó vós.
 Já sei! grita Agripino. JÁ SEI, PUREZA!?... e dorme.

Capítulo XXIII
O ressonho com Pureza:

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 Fala, ui...
 Um vaso de quebrar, mesmo quebrado, continua sendo de quebrar.
 NÃO!!...

(Interessante que o NÃO!! de Pureza dizia, ao mesmo tempo, sim e


não? Talvez...)

Capítulo XXIIII
O Bolo do Perdão

Quando Veremunda pediu que não mais pusessem comida em


seu prato, porque estava repleta e ainda havia muita comida na boca 
desculpai o cacófato (agora desfeito mesmo)  dela, e, portanto,
chegava já de iguarias, que assim acabava morrendo, quando isso
ocorreu, Cunegunda se sentiu tão magoada, que se retirou da sala aos
prantos, jurando que se vingaria com sanha da ingratitude.
Famalião foi atrás da esposa ver se estava ela de fato magoada.
Estava: arremessou os três doces que fizera para a sobremesa da
hóspeda no lixo (que era o de que sobreviviam os Funfunões,
pequeninas criaturas, todas masculinas, em cuja esperança de vida só
residem as bruxas, pois que sempre muito nutridoras: em porcaria
deliciosamente banqueteiam-se), chorando, chorando.

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A garota nacarada, Veremunda, quis pedir-lhe muitas desculpas
por tê-la magoado assim, e o fez tão logo o gigante deixou de sopapear
a esposa, como prova de aconchego, carinho e conforto a esta.
Roxa, Cunegunda viu que Veremunda se aproximava dela com
outras intenções  as de fazer as pazes, reconciliar-se, enfim , e,
deixando-lhe aproximar-se o sorriso empertigado e submisso, muito
umedecida de lágrimas ainda, e a dar pequenos tremeliques daquelas
reminiscências de choro acabando, abraçada no marido, que mal
deixara de lhe dar um pescoção, a bruxa sorriu-lhe e perdoou-lhe, e
evapora-se da sala um denso de madeira e terra, que, ao ter alcançado
os ares, se desfez em brumosa pedra.
E se abraçaram com fraternidade. Cunegunda foi imediatamente
à gaveta de talheres e catou de uma grande colher de pau, com que
iniciou o Bolo do Perdão, juntando-lhe ingredientes cheios de
mulheridade.
O Bolo era uma bruxa: de nervos e de pele mulher.

Assar o Bolo é não viver


com olho só no eterno umbigo,
e nem se achar tão à mercê
de humores-vento sem abrigo.

Recitava cantando Famalião e seu um olho.


Pronto, uma vez assado, nunca teríeis vós sentido igual olor; o de
um Bolo feito às pressas, para assim mesmo se comportar o ato que
trouxera consigo em si: Perdão.

81
Comeram-no rindo. Foram dormir-se da mesma forma:
perdoados.

Capítulo XXV
Dum pedido

Agassiz, o monge alucinado e ébrio, que desdizia nos oitocentos


anos de idade que carregava a gravidade dessa circunstância, viu
Agripino e Holandês de uma margem do rio Termólico, onde ele
mesmo estava, rio o qual ligava as duas básicas pontas do Sub-Mundo,
menor apenas que o Mar Violeta, e os gritou, recitando a oração do
ancianato, algo assim, composta por cinco pequenas cobras (digo,
estâncias; estrofes, não sei, feixes) de quatro versos cada uma, com
esquema rímico cientificamente doido e desconexo, cuja análise não
revela senão improváveis ecos longes, sem escol, vitrificação:
AGASSIZ, o monge alucinado e ébrio:

Mas ser chamado senhor


é ter vantagem só que idade
teime em pôr em sombra
de sol doendo que lhe invade

as vértebras de cal feita gesso


fazendo-a mais que tudo vergado
para fazê-la antes é começo

82
não de fim  ora desapagado.

Ser humano que entenda


a virtude senil e sua essa fase
antes de dizer um que enfrenta
mundo avisa que mal reparte 

cedendo uma face metal


de que se faz mais dura e sem ferrugem 
não-incorrupção
com que se enfeita este homem-refúgio

refúgio que seja (antes couro e gente


porque fora dele próprio um ele
não qualquer mas o ele que enfrente
a si próprio) em si próprio se espelhe.

(Névoas azulando, um clima com caimento de quatro, de tão


perfeito.)

AGRIPINO (enquanto fala, começa a comer pontas da barcaça de


casca de sorvete, deliciosa e irresistível):

Sub-Mundo, rarefeito desnudado,


eis-me aqui, a teu mesmo encalço,
do mesmo modo se feito rastro,

83
agora realidade, sem pouco disfarce.

No Sub-Mundo, quem este ente


em margem oposta, que lá chegar nem eu quis,
senão que muito agora, lá o vendo presente,
dele me aproximando, quem é...?

 ...eu sou Agassiz  responde este.

Imediatamente a barcaça, enfraquecida pelo descumprimento da


ordem por parte de Agripino guloso e famélico, como que se ancora
forçadamente num recife de pontas de garfo perigosas.

HOLANDÊS (agarra-se):

Viste o que fizeste, rapaz Agripino?


comeste o chão que te sustinha,
botando no estômago o que te devia
servir como base, menino.

Ao chão, o que é chão;


à cabeça, cabeça;
ao estômago, não tenhas pressa,
coração é coração.

Não vês, ó tonto rapaz,

84
o quão meio errado será
tentar enfiar o redondo a mais
em quadrado retangular?

Nunca dá certo, isto é lei,


ajeitar um pedaço de pedra
para fazer de sua beira, eu sei,
pano de almofada que senta.

Ou bem é pedra, ou bem é mole,


ou bem de comer, ou bem de navegar;
jamais tentes comer num único gole
amontoado de barco e de águas a remar.

A barcaça enfim, mas felizmente próximo à margem, inicia seu


último e longínquo rumo ao fundo lacustre, de que não sairá jamais,
borbulhando, borbulhando. O furo que a mordida de Agripino lhe
impingira a fizera descer fluidicamente. Agripino, este, sabia  e mui
bem  nadar, pelo que se pôs a fazê-lo em direção à margem, onde, em
pé, Agassiz; Holandês, com mais dificuldade, fê-lo também, ao mesmo
lugar chegando.
Chegados ali, num empapar de excesso de água, onde se levantam
e querem saber detalhes daquela figura a seus lados, foi assim que
sucedeu:
 Como se chama mesmo o senhor?
 Agassiz, me chamo.

85
 Agassiz? então o senhor é o monge Agassiz?
 Você o conhece?
 Todos aqui me conhecem.
 Eu não o conhecia.
 Porque você, rapaz, não pertence a este reino, está tão-só
perdido.
 Então temos direito a um pedido?
 Temos?
 Têm.
 Podemos fazer?
 Mas, como sabem, segundo a regra: havendo mais de uma
pessoa, só vale um e único desejo; e que seja o mesmo, que seja
comum a todas as pessoas presentes.
 Um minuto.
Holandês volta-se para Agripino e começam a decidir sobre um
desejo ótimo, e que seja ótimo igualmente para os dois. Para
Holandês, o ideal é deixar de ser um ser errabundo e voltar à
tranquilidade do seu recanto  o Grande Palco. Para Agripino, ser levado
ao local onde Veremunda corria perigos infindos.
E então? O que decidir?
 Vocês só têm direito a um pedido, e mais nada.  Disparou inquieto
Agassiz.

Capítulo XXVI
Na quinta de Cunegunda

86
Tudo está azul.
No meio do milharal louro, uma boa surpresa e deleitosa: a
existência futura de um fubá que se torna ainda em bolo mais café.
(Onde fumaça recende a pretidão saborosa, como de um tacho de
enorme água fervendo para receber nela caldeira um pó a mais: e fazia
café, ali há certidão de bonança. Adiante, vapores cheiram a frescor,
fumaça final sabe a melado quente puxa-puxa.) O que não se deve 
pelo amor de Deus  é andar correndo por entre a sabugada
amadurando; porque, na plantação, se se cai, de tão fértil e vincada
que é a terra e mui valente, com toda ou qualquer valentura do
universo, dela não se poderá levantar, sugado e feito, com beleza, pé
de outro milho, este eterno, como não os outros são. E eles  visto que
eriçados de nascença como o matagal vertiginoso que nasce indefeso 
é que encherão na safra plena de beleza e odor o couro da terra.
A bruxa advertiu Veremunda a esse respeito, que, portanto, assim
de tão receosa que fica esta garota, se encolhe nas próprias ancas,
lançando invectivas de um sem-número de contumélias mesmo a um
ventinho fortíssimo que houvesse e jeitoso, agora se dispersando e
dissipa, e, ainda, se abaixara cuidadosamente às furtadelas quando
isso lá ocorria, ventilando promessas de fecundidade, andava a olhar
tudo e para tudo e todos, como um bom ex-vento que fora, e, maravilha
de garota notável, estou perplexando neles dois, vento-menina que
serão. Já foram.
E estava azul, disse. Mas cortado por uma tal amareleza das
ressecaduras de milho, sabeis como é? já vistes semelhante coisa tal

87
assim? é belo. Insetinhos zinzinavam de cá para lá como que a
procurarem, pobres eles, como se procurassem o com que se nutrir.
Asas que houvesse  ou será ilusório?  estridulavam cuidadosas por
medo de um varejado com outros insetos em choque. O milharal era de
Cunegunda, só a ela pertence e diz respeito, só a ela o sendo,
esverdeando de amarelo o seu quintal, à sua quinta florada cujo
princípio se ataviava tão-somente com umas poucas de árvore sem
nada que prestasse a enfeite.
Do alto, a semeadura florida fazia riscas na terra como o cabelo
na cabeça com pente, traçando listras quase-retas. Por onde passavam
com risada Cunegunda e sua amiga de nácar, mui airosa. Esse
milharal só se despenteava nunca. Ora cá  uma abelha; ora ali  um
pardalzinho: e andavam satisfeitas de mãos dadas. Viam-se também
marrecos catando no chão das espiguinhas caídas que beijavam e
comiam como quem beberica pó. Periquito amestrado chilra. Na
verdade, o alimpamento feito na safra aberta era por parte das
alimárias e das récuas que ali se aventuravam, também, porque a terra
sulcava de tão repleta de pé de futuro-bolo que se empanzina grosso
modo. Viam-se namoricos de papagaios que palravam desconcertados
de fartura e dó.
Também outros bichos vinham aqui aliviar as espigas quase
rebentando de amarelidão úmida, tirando-lhes (após a casca de palha,
a paralela separação rústica secando) o sumo impado de aguazeira
internalizada e plena, feita o grão, porque muito essencial e substantiva
em si só, como pipoca. Com os bicos entortando na ponta, esses
pássaros  que se vo-los fosse descrever e enumerar cansar-vos-ia 

88
faziam tiritar os altos eretos de cada milheiro, trincando, tremendo-os
como se de prazer escondidinho, depois do qual lhes iam arrancar
humildemente cada novo peso a ponto de bala, os renascendo de
chuva. Quando tiravam gota amarelenta e fofa, o milheiro voltava à
retidão inicial, pronto para (e convidando) outros pássaros, insetos,
quadrúpedes.
Veremunda e a bruxa se aproximam do espantalho, que se
espanta com tudo e, naturalmente, contudo.
Um zimbro sem vento acinzenta por instante a paisagem, a ponto
de fazê-la verter em motejo o que era amor: chove de peneira. O
espantalho, o próprio, se desconecta de seu cabo-mor de vassoura e
tenta a ferro dialogar com Veremunda, que aprendera a falar, não só
pensar, dizendo-lhe que muito lhe causaria gozo o conhecer-lhe assim
o nome como origem:
 Veremunda, vim do Castelo Branco, por nome desconhecido.
 És, formosa criança, amiga da bruxa?  o espantalho questiona e
franziu a cabeça de... de... travesseiro?
Cunegunda, rosando, olha a amiga e se vexa:
 És minha amiga, Verê?
Raio forte cerra o assunto como um serrote serraria o tronco de
vassoura do espantalho, e dão cabo, ambos serrote e raio, serrando e
cerrando. Fogo no milharal?

Não-Capítulo
O futuro-affair de Agripino, milagroso[2]

89
Serenante-Reinol é uma espécie discreta como três freiras
redentoristas a trialogarem, sentadas, numa sala ampla como de
fazenda, acerca do que assa melhor para o ensolarado almoço e
necessário da segunda-feira próxima vindoura, que seria, na verdade,
amanhã, oh, rizinhando,  cuja única desvantagem é inventar nomes por
amor. Às vezes são apenas chamadas Serenantes, sem o Reinol,
porque até hoje se debate se são reinóis com serenância, ou se são
serenantes que habitam (ou provêm de) um reino de fadas, o que
causa desgosto e tresgosto à beça a quem discute (se três pessoas na
quezília: a quem triscute), e causa por que se considerou o Serenante a
substância real, talvez equívoco, dessa combinação que compõe seus
nomes, numa prótaseapódose indecifrável, quiçá nem. Assim, diversos
entre assuntos (se um, universo, mas se três, são triversos) o são
debatidos (ou trebatidos) naquela sala de três lados. São, como o
disse, triscretas. Há sempre demanda (ou tremanda) a seus acepipes
de mel e feijão, que se dissolvem (trissolvem às vezes; contudo é mais
raro um pouco isso) em gavelas enormes deselegantes (treselegantes,
não raro um alguidar de barro para macumba, despautério), porque a
cozinha um primor! Deslocadas e tresloucadas criaturas que se
desadaptam por tresadaptar-se ao mundo de que trependem, como
das videiras pende, depende e trepende a uva que faz vinho,
multipendendo em pimparosas e finfilhudas uvinhas-bolota, um
sofrimento de ver.
Dizem, e trizem, amiúde, amiúde, que nenhuma Serenante há de
ter visto jamais homens à sua frente, sem terem olhado fundamente

90
sua mais insopitável desesperação e seu pasmo atormentoso, também,
que não tivessem vindo a desfalecer ou tresfalecer. Costumam andar
de três, e, muito de vagar, para não caírem, por não quatro, em três,
caminham ali elas.
Não quatro, disse-o, mas três. Porque dois, improvável.
Um  dia houve (EXPLOSÃO) uma calamidade, um desastre
(mesmo apenas com duas delas, por isso não um tresastre não foi),
uma vez (não mais), em que, andando unidas como andavam,
apaixonam-se pelo mesmo exato varão; pelo que se digladiam (e
trigladiam quase) a morrerem duas das três, ficando, a remanescente,
pejada de um tão violento e denso (trenso) poder, densidade de três
num denso e só  Trenso Poder , que pôde se dar à desfaçatez (isto é,
as duas faces, das que haviam morrido, e tesas, nela só = desfaçatez:
genealogia filológica: do serenânico antigo-médio, talvez do arcaico
lidínico-serenânico: 1. duas faces tesas > lexicalização metaforizante
hifenizada: 2. duas-faces-tesas > dissimilação e progressiva síncope do
-u- de duas e apócope do -s- [final] de tesas  3. das-face-tesa >
metátese entre o -e- de face e o -a- de das, ficando, em vez de das-
face-..., des-faça-... 4. des-faça-tesa (aliás, é esta a forma eleita até
hoje por muitos súditos do Centro Comburente; só não saberia dizer-
vos se com o tesa escrito com -s- mesmo ou se com -z-, por
aproximação com o -eza de dur-eza, que é o que uma coisa tesa é;
assim, teza  com -z-  seria, a um tempo, tesa e dureza, tudo,
sinonimamente, numa só coisa dissoluta) > apócope do -a- de tesa  5.
des-faça-tes > e, finalmente, por paretimologia de tes, originariamente
tesas, como visto, com seu homônimo homófono tez = “pele, cútis” etc. 

91
6. des-faça-tez. Este último, como se vê, um caso interessante em que
o grafema  -z-, no caso e de novo  vem a serviço do evidenciar
claramente a analogia do povo, ou o apanágio inconcusso da
etimologia popular, na medida em que verte um vocábulo em outro
completamente “distinto”? Donde, exaurido: desfaçatez = duas faces
tesas, remontando-se ao étimo, e às origens, fincadas originariamente
no raio que as parta) de lançar sobre as demais (e tremais) Serenantes,
ou Trinas (um epíteto), maldizença de seguinte teor: não conhecereis
mais homens que não venham a morrer.
Assim se faz.
Elas (as Serenantes) têm por exemplo a seguinte mania: falam
em sua língua, e obrigam os alienígenas a entenderem-nas, coitados.
São, dentre as entidades humildes, as mais, e mal se podem conter na
tirania.
De certa feita, conta-se mui verossímil que se fez um como
tribunal (nunca dibunal) de ajuste a confirmar o quão sabido e
consabido era um senhor excelentíssimo Oráculo Almorrágio, dando-
se-lhe, de chofre, uma celeuma a desvendar e tresvendar assim:

A Canção das Serenantes

Lancenete pria socas


paneroso, com vizite,
renasquia sem que lite
Algorrágio das nadocas!

92
A primeira reação de Algorrágio, o juiz-oráculo, posto que
oracularmente tomada e conferida, foi o pânico; e, depois, desesperar-
se.
Começaram-se-lhe a surgir os alentos donde sabe lá Deus que
isso existe (mas existe) vindos de dois, em primeiro:
 Serenantes? ele pergunta as invocando, o Lancenete que pria
socas se refere ao verbo priar ou ao verbo prer?
Olharam-se:
 Prer.
 Então é pretérito  ele diz  sim (respondem elas).  E imperfeito.  Oh!
(exclamam as interjectivas Serenantes).
 E  continuou ele  Quanto a “renasquia”... É “renasquer”,
“renasquir” ou “renasquiar”?
Entreolhos: “Renasquiar”.
Deu-se-lhe a solução:
 O verso é alusivo a coisa alguma, pois “renasquia” é presente do
indicativo, o que não combina com o pretérito imperfeito pria...
Riu-se-lhe. Porque era mentira, paralógico, ele blefara...
Pois este alienígena de que falo enfrentou sim a questão proposta
indecentemente, agravando ainda mais a anátema em que Serenante e
homem? jamais!
Assim, até hoje essas Serenante não passam de esfinges
deslocadas do Centro Comburente Feérico. Esperam devorar, mas são
fáceis de decifrar.

93
Capítulo XXVII
A pré-metamorfose

Um belo belíssimo dia, de manhã clara como a claridade


insiste em ser clara como a manhã, após o segundo café preto-e-
branco, desjejuada (porque duas vezes em jejuamento às avessas),
Cunegunda se retira. Pede aos presentes licença e sai de modo
herbóreo, não levando consigo mesma, crapulosa, nem a louça que
alimenta.
 Foi hidratar a ameba, diz Famalião, com sua carantonha oblonga,
lendo jornal, à Veremunda que sorri. O casal possuía uma ameba por
nome Benquerença, de doces modos e comportamento morigerado,
que não se alimentava senão que de açúcar e podridões, hidratando-se
com água malsã.
Passaram todo aquele dia sem a presença de Cunegunda, o que
muito tristemente fez a menina de nácar e pérola, Veremunda, já
demasiado e sobremaneira habituada com a bruxa malévola que a
sustivera até o momento.
Mas, do abscôndito secreto de uma gruta, eis, surge a bruxa
numa biga de dois alazões de fogo e bronze, o semblante fantástico
fulgurando raios de ouro pelas narinas em brasa escarlatina e gázea, e
a locomover nuvens e mais nuvens furta-cor que se fecham de repente.
Para se abrirem em dois segundos à claridade altigritante por mil
e oitocentos raios ígneos e vaporosos, em feixes de ouro aquilatado
bom... Uma quadriga de rodas de aço e com iluminuras da mais pura

94
gema adamantina de reflexos do raio do sol aprisionados, e refratando,
sem porquês, uma girândola de um milhão de faíscas estelares com
uma só e triplicada Aurora-Boreal, em dispersos muitos diamantes
difusos das entranhas úmidas da terra, enfurece. Afogando-se, isto é,
morrendo de água no meio do fogo, que por sinal se libera e
desprende, eis que se a-fogoam os raios do colar de faísca envergado
altivo por Cunegunda em seu pescoço, que, sobremaneira rude na
formatura comprida, sorri pétreo, e ela mesma, de seu sorriso altaneiro,
como um vulcão sorri.
A propósito, ao fundo tão extenso que sem-fundo dessa
paisagem sulfurina, de enxofre e pinguinhos de lava-ácido-trinitoluênico
legados e esparzidos às multidões com uma generosidade franciscana,
ali existe um vulcão furiosamente inofensivo, incontrolável em sua
sanha assassina de não eclodir e nem esputar sua tripa fogosa de
praticamente nada de mais, crede-me? Uma sensibilidade assim,
digamos, dominicana em ser o réprobo vulto ameaçador de uma proto-
história de, deixai ver-me, uma e definitiva morte, não havida nenhures.
Mas ei-lo ali, adormecendo e roncando, bufando ar de respeito que se
fordes vê-lo bem de perto vereis o quão manso ele está, parece um
archote esmorecido. Chega à rizibilidade.
Cunegunda mesma ri  Quiri-Qui-Qui  faz ela quando empolga a
natureza a seu redor.
E a atmosfera cunegundal se estiola em toneladas de espectros
potencialmente infindos por cores inenarráveis e por incontáveis
luzentes. A própria poeira que gera é purpurina, porque nada passa
pela destilação do fogo sem se afogar, é naturalíssima essa

95
circunstância. Tão natural é, que lá está ela a acontecer e
acontecendo.
Finalmente solta um ganido de glória, Bruxa Cunegunda,
exinanindo aos poucos a boca de seus dois dentes donde jorra
abundantemente fogo, jorrando, como fontes de cascata e terra,
fertilizando os lugares por onde se espraia amigável, mais água e mais
fogo aos poucos adormecendo. Mais adiante, fecha a boca, o fogo
cessa, não verte em cântaros.
E tudo isso desafoga num gemido aguado que antanho fora urro
de fogo.
Um Funfunão, agora, em roupas douradas e azul-metal, entra em
cena e sobe sobre a mesa da cozinha da bruxa. Olhando Veremunda e
Famalião, com Cunegunda em apoteose e êxtase simultâneas sobre
seus cavalos de fogo, estufa o peito para recitar a poesia épica
inesperada, antes evocando a Musa Calíope a inspirá-lo, para que ele
seja um grande Rapsodo a narrar a sagrada e nobre estirpe dos
Ciclopes.

Capítulo XXVIII
Cancioneiro da prosápia Gigante. A saga da mui grave
ascendência de Famalião: os Ciclopes

Dum pesadelo iluminado, a força recorrente da fraqueza revigorava


assim:

Cantochão I

96
Pelos páramos verdejantes,
A cortar infindos quadrantes
Onde se veem vicejantes
Príncipes, Condes, Infantes,
Enfim, nobreza, estirpe  galantes
Da mais fina flor dos Gigantes,
Amancebando, possantes,
Furavam os percalços vibrantes
Surgidos. Poucos e distantes.
 Ciclopado, região dos Amantes,
Vergonha e estupor lancinantes,
Fazendo-nos crer, muito antes
De tudo, na fúria aos semblantes
Pesando a seus entes ma-çan-tes,
Pesados, conquanto barbantes
Pudesse arribá-los (meliantes
De músculo férreo; elegantes
À espera de fêmeas tateantes
Querendo, em suas formas marcantes,
Gozo, aconchego...)... de vazantes
De rios de águas remendantes
Por tão macilento  e que cante
Ao pingar. Quando, enfim, coruscante,
Se abrindo, se rindo, amargante,
Desanda em cascatas arfantes.

97
Porque o farfalhar ramalhante
Dessas criaturas lactantes
Não serve, exceto a que se plante
Semente por onde agigante,
Taludas, vitualhas volantes
Vogando no rio ondulante
Ao modelo das que, flutuantes,
Avoaram no céu-amarante
Nublado, um pouquinho, adiante.
Em amanhos de um verde afogante,
Lavoura do céu degradante
É refúgio  onde dorme  o Gigante.

IIIIIRRA! (Interjeição desmesurada)

Cantochão II

Dali, descansado e canoro,


E também com broquel radiante,
O Ciclope desperta o sonoro
Trumpete, em clangor fascinante,
Que lhe dá certidão de integrante
Do Reino a que não desarvoro
Lançar-me ou narrá-lo no instante:
A intentona tornou em marmóreo
Altivo o esgar intemperante.

98
E de alterosa criança, e plebeia,
Sai nobreza, da vil patuleia.

Ah, mas que história infinita


Houvera de vos eu contar,
Deixada no tempo, a coalhar,
Posta em crescer, fermentiva;
Que eu, se não fossem os fatos
E o real que, de linhas cambiantes,
Evocam uma gama de latos,
Genéricos sons apelantes,
Evocara, eu ainda, abstratos
Sons outros, a darem a tudo
O variegado algo assim espectral,
Sem nem me dar conta que o tal
Adjetivo se torna maçudo
A quem seja velho, a quem não
Admita um verso perdudo
Sem rima, sem nada, solipso.
Pois dali, sim, nascer vira vício.

De um verso perdudo aparente,


Sem pouca vontade, com sanha,

99
De ver, dentre eles, quem ganha
A corrida em busca fremente,

O Dianteiro, Ciclope armado


Coas duas espadas, vestido
De túnica, em ambos os lados,
Enverga uma capa, inibido
Por não ter, embaixo, a sirgada
Correia a lhe dar, no corpete,
Escondido, uma forma achatada,
Este cuida causar interesse
Às Bruxas, por quem (se garante)
Faria de um tudo: matava
Coa lança mais de um elefante
(Pra dar-lhos de brinde), e limpava
Do sangue, portando um turbante
Branquíssimo e alvo, a gabar-se
Por ter tido com que agradar-se.

Cantochão III

Do poente até ao levante,


Solar, com ímpeto tirante
Às batalhas, às lutas, diante
Das tropas de sede arrogante
Por quanto cadáver viandante

100
A não acabar celebrante
Dos ritos houvesse, pedante,
Solar, esse deus ciclopante,
Galopa e trota alternante,
Trotando, se, ao estridulante
Sombreado se arrosta, engolfante,
Galopa, sem, quando se encante
Serpente, perder a constante
Mania de, sendo brilhante,
Julgar-se imbatível mutante
Cantochão IV
Pois bem, esse deus de quem narro
Aventuras como quem narrava
A uma insigne posta de barro

Peripécias de que se gabava


Essa posta incrustada no cuspe
Infectado torrão de onde agrava

A mentira, a falácia, o embuste,


Travestidos de um mui galardão
Como a nobre, escudeiro ou ilustre

Que se apega da espada sem não


Apegar-se igualmente, se possa
(Ou bem quando), à firmeza da mão

101
Da Virgem, da Santa, de Nossa
Senhora dos Sentenciados
Em trincheiras cavadas na fossa

Ao redor do castelo, agoniados,


Por não ter perdido esta fé,
Nem por feito assim celebrados

Os cultos à Virgem de Pé,


Que manteve, com olho assaz fito
No filho morrendo, até

O momento final, em que grito


Não houve, bom-ânimo, apenas
Recidiva do tão infinito
Remoinho de imagem, de cenas,
De vivências da eterna esperança:
Esses feitos que narro são penas

Por que passa quem quer que se avança


Muito além dos limites da mente
À procura do nada. O que cansa

É o não ir a esta inconsequente


Batalha que a nada remete,
Senão que, retido o que sente

102
Um guerreiro, o perigo se inverte:
Muito em vez de matar o inimigo,
Este homem de arroubo e topete

Nos crava sem dó nem abrigo


Seu sabre de gume apontando
De um lado, aliás o amigo,

Sem corte, a enfiar, entretanto,


Ao pescoço comprido, o que corta 
Ou curto, desde que jorrando

Àquele que, hoje não importa,


Lhe fora o amigo fiel,
A quem, ora, lhe manda pros céus
Sem lhe dar o segredo da porta,
Ou dizer-lhe: “ Vai, mas vai com Deus”.

Cantochão V

Já canta uma arcaica narragem


Que, daí, desse encontro improvável,
É que nasce a ascendência de fato
Epopeica, sem grande aparato,

103
Com que hoje se mede e avalia
A existência dos seres de um olho:
Os Ciclopes, verdugos da cria
Das Bruxas: emprenham-nas ( tolos!)

(Aquele meu ser Dianteiro,


De quem vos falara há mui pouco,
Foi sim ele um grã-pioneiro
No ofício que tacho de louco.
E qual seja, fazer de uma Bruxa 
Um ser até então hediondo,
Que, ancho de quão podre argúcia
Houver, camuflara um redondo
E sonoro desejo de morte 
Um pequeno algo doce e benquisto,
Uma estátua de fina matéria,
Se bem que, tão clara e forte,
E tão leve, apesar de  eu insisto 
Resistente à mais ruda intempérie,
Ainda é fraca, na tenacidade,
Rochosa, um trom inabalável,
Em meio à mais vã, intratável,
E sensível, porém, tempestade:
Eu diria, atalhando a história,
Que os Ciclopes fizeram de Bruxas
Algo tão faiscante, que imploram
A seus pares que as façam mais lúdicas.

104
Mas não por sentirem desejo
Não mais  que bobagem!  no mal
Das crianças: no Reino sobejam,
Pululando qual ave, afinal.)

Finis

Capítulo XXVIIII
A sacabuxa

Quando da segunda doação de Baco à luz, no momento em que


se lha deu (não me repreendais nem imiteis: saí), portanto, já quando
nem era Zagreu nem Iaco nem outra coisa nenhuma (nem Brômio),
senão que só Dioniso, ali na terra neste mesmo instante, o da segunda
vez, deram à luz pela primeira Remanso, que viria a ser, na sucessão
genealógica, terceiro; em romanos, o III, Imperador do Reino da
Cozinha, aonde iam Agripino e Holandês. Ao ir nascendo, já frango-
assadou de sopetão as pernas algo lívidas e parrudinhas da obstetra. É
que o destino sobrepunha à razão o sentimento víscero, deveras
víscero, sotopondo este contudo ao que podemos chamar mesmo de
instinto, na coiné da podridez.
Claro, nesta ocasião andava ali pela Géia um dito Júpiter, falado e
não-cândido (interessa-vo-lo?), sujeito, falam que deus, um tanto ou
quanto sobremaneira labrego de modos, assim rude no esgar

105
cansadamente altivo, como edulcorado às lides e afeito às pequenas
rusgas interdivinas, aleivosias sacras, era apelidado aos cruentos
combates havidos entre homemdeus, homemhomem, homembesta
etc., etc., etc., desde que agonia. Esse sujeito,  de quem se vos fosse
principiar narrativa acerca dos casos, não muito amoroso vos pediria
saísseis logo, e vós a mim que me calasse,  presumo ser melhor
esquecermo-lo, antes que um seu raio intimide, e na verdade do que
falava eu mesmo?
Sim, porque é correto afirmar que, mesmo na paixão, seu
incêndio sequioso afogou de sem-ar sua amante, princesa Sêmele  de
quem veio à luz, por intermédio talvez da coxa paterna, Dioniso.
Imaginai o que não faria essa entidade, avatar da hipóstase jupiterina
(ou zêuzlica), conosco, mortais que somos se analisados num patamar
cutâneo. Pensastes? Enfim.
A tal ponto se associa o nascimento de Remanso III ao de Dioniso,
que se lhe deu, também, o epíteto, não obstante a ele um equívoco, de
“renato” (já se viram versões, mais expressivamente grafadas ou
grafemadas, com hífen: “re”-“nato”). A ele um equívoco, andava eu
dizendo, porque não “re”, mas “ ” , compreendeis? “RE” (= duas
vezes), “NATO” (=nascido).
Eu sim, naturalmente. Pois bem, assim ficou afamado
“Remanso” (o duas vezes manso). O epíteto “desagradável” só lhe
chegou após intermináveis comezainas em que se indispunha amiúde
com todos, incluindo seu estômago abarrotado. Trata-se decerto
dessas entidades cujos nomes significariam exatamente o OPOSTO
daquilo que significam, conheceis? Pois se o mais temível deus no

106
Olimpo era chamado de “O Riquíssimo”!... Enfim, Remanso, o
duplamente manso (!) blaterava, dizem como um porco infernal,
semelhantemente a um leitãozinho, cuinchava como camelos
esgaravetando de fome a lavagem porca das pocilgas dromedárias,
chafurdando enfim no próprio fio de baba, como em chiqueiro, e
sublimimente engasgando-se-lhe a garganta sonorosa com ela, baba,
cujo sabor aprecia. Daí, “desagradável”. Eis origem e trajetória do
Senhor Imperador Remanso III, a quem Agripino já em já virá a
conhecer com seu companheiro Holandês.

Capítulo XXX
A bruxa e os anjos

 O que estais fazendo aqui, tão alto?


 Passeio, não vê?
 Ohhh!
 Um simples passeiozinho, que há de errado?
 Mas aqui é nosso reino, é nosso reino!
 Ahn?
 Aqui vós não podeis ficar, andai, saí.

107
Imediatamente este anjo que falara, muito alto e extremamente
serafinesco, se altera, sobremaneira, e troa uma corneta comprida,
comprida, nem parecia ter fim, com duas fitas vermelhas finas
pendurando e esvoaçadas como... como fitas vermelhas.
Tá Rá Tá Tá! Rá Tá Tá! Tá Tá! Rá!...

Vem uma girândola de anjos, é anjo como água, anjo a varejo e a


granel, para gostos o mais possível diversos. Sendo que um deles − a
se destacar mesmo pelo porte esguio e rígido − solta-se dos outros e
vem rumo ao trombeteiro.
Este trombeteiro se chamava Hataliel, e era tão grande tão
grande, que suas mãos tapariam o sol, querendo. Veio em sua direção
o outro anjo, um pouco menor, querubínico, pode-se dizer:
− Hataliel, Hataliel, soaste a trombeta de guarda?
− Sim, Mahatarah, soei sim.
Outro anjo com potestade − Jerosebah − se aproxima dos dois
amigos dialogando e lhes pergunta em língua, obviamente, angelical:
− O que houve?
(A frase no original, senhor amigo, era mais ou menos assim: −
Aoéi, eouâeo uae, waoyô óée â? − que saibam que anjos só falam
vogais, nenhuma consoante lhes fere a língua.)
− O que houve?
Houve que as intrusas causavam medo à Comunidade Celeste dos
Grandes Mensageiros − a C.C.G.M.2 − e, ele, por isso, ele Hataliel,

2 A sigla, em língua angelical, é A.A.I.E.

108
como Presidente eleito de tal fraternidade, via-se na obrigação de
defendê-la.
Soou, portanto, o alarme de invasão.
Vêm-se acumulando plêiades de anjos distintíssimos, alguns de
quatro cabeças, outros de vinte pernas, há os de quarenta braços e,
ainda − mas sobretudo − os com juba de Leão Auriíssimo.
− Que vamos fazer? Questiona duvidoso Nassariel, dois touros
negros (olhos de rubi) aos pés. Que vamos fazer?
− Que vamos fazer? não sei...
− Que quereis que vos façamos? − Sesseriah indagava
complacente e com a águia arreganhando as asas atrás das suas
próprias, uma águia de puro titânio radioativo com músculos de lítio e
ouro, pele de luz).
Mas as duas moçoilas nem bem respirar direito respiravam,
afligidas pelo pegapracapá que, inocentes, causaram.
Mentoriel tem uma ideia:
− Vamos aprisioná-las na Constelação de Calisto, depois
decidimos, num Grande Concílio, se são benfazejas ou não...
− Ou, em vez disso, por que não as pomos como Vigias Eternas?
idealiza Hatariah, cheio de revoadas de pombas de topázio por sobre e
sob e em torno etc. de si.
− Amas-secas de nossos Microanjos.
− Cozinheiras do Inenarrável, do Onividente...
Uma nuvem preta − retintamente preta − se decompõe em
acinzentada, e vai indo vai indo, que fica branca e rubicunda, e de
todas as cores do universo (não seríeis capazes de compreendê-las)

109
absolutamente compacta, como flocos espessos de um algodão macio
e tão denso...
Nela um vozeirão de gruta abrindo-se troveja imperioso:
− Que acontece?
− Vistes? − Hataliel dirige-se à bruxa e à menina − Conseguistes
acordar O Grande, O Infinito e Indizível... O...
Os anjos das mais variadas milícias − Principados, Potestades,
Querubins, Serafins, Arcanjos, Tronos − esbatem com ruído as longas
(algumas nem tanto) asas e, entre assustados e apreensivos,
arregalam os olhos (note-se que alguns deles possuem mais de mil,
imaginai arregalá-los todos), calando-se de estupor em face da
Magnanimidade da presença do ser de tão apurado jaez:
Esse estupor fora causado pela presença daquele gigante:
vários metros celestiais, oito mil olhos, que se espalhavam (e
espelhavam) por todo o corpo, concentrando-se todavia nas mãos, as
pestanas e os cílios e as sobrancelhas, faíscas de luz, de prata
incandescente, chispas elétricas, fluoresciam, simplesmente
fluoresciam. Quando ruflava as asas − ruflava de propósito para
apavorar, já que nunca as usava para o voo − estando erguido por dez
mensageiros menores (cinco de cada lado), num andor de ouro e prata,
acrisolados por fogo inesgotável e almofada de veludo vinho, numa
fonte que se idiorrevigora, a ventania que causava impunha
momentaneamente aos anjos e demais presentes que se
precaviessem, e seguravam chapéus, óculos, brincos, dentaduras e até
alguns solidéus, kippás e armins (certos broquéis também), aljavas
flancando e morriam para alívio extremo. A bocarra era aberta como

110
cone de tuba e potente como fole de oboé, assim sendo, doce e
penetrante e cheia de sonorosidade. Quando sete mil olhos, divididos
entre as sete mãos, piscavam, simultâneos e rapidamente, ao mesmo
tempo e em gradação, os mil que iluminavam a cabeça permaneciam
abertos e vigilosos. Para se movimentar, um pouco que fosse, o Anjo
contava com a ajuda dos dez mensageiros menores. Só não precisava
deles para falar, porque o fogo da língua subia como sangue e descia
como água puríssima, limpando pelo frio e pelo calor as indigências,
todas as misérias. O Anjo, benévolo, abriu toda a sua túnica formando
uma imensa tenda na verdade além do branco, de tão clara e limpa e
verdadeira.
− O Indizível − continua Hataliel − o Armipotente, o Rubicundo,
o Longânime...
Um ensurdecedor Coro de Anjos propaga:
− ... SABAOTH !

Capítulo XXXI
Audiência com o Imperador Remanso III
− Sabe, Holandês − falou Agripino − deve estar havendo
alguma coisa errada por aqui...
− Por que, Agripino?
− Porque antes de entrar neste lugar maluco, tudo o que eu
pedia se realizava como milagre... foram tantos... Agora, aqui dentro,
parece que tudo dá errado − E deu um grito olhando para cima − Cadê
meus milagres?!

111
Com seu grito, o anão Fincapé imediatamente apareceu
diante dos dois amigos. Estes se entreolharam, como que a se indagar
se aquilo seria o solicitado milagre ou, em vez disso, o que era muito
mais provável, pela feiura do anãozinho, mais um sobressalto do qual
eles teriam que correr à beça.
Fincapé olhou os dois novamente de baixo a cima, até onde
seu curto olhar alcançasse, e lhes disse:
− Curvai-vos, enormes e disformes criaturas, para receberdes
Sua Imperiosa Majestade Remanso III.
Ouviu-se uma música imperial (?) vinda de algum lugar, e um
tapete amarelo-ouro foi desenrolado no chão por minúsculas
criaturinhas feminis que em muito se assemelhavam a libélulas,
excetuando o fato de terem pernas, além das 8 (será que eram oito
mesmo) asinhas. Muito muito grande e mais e mais gordo que grande
vinha pisando o tapete Sua Majestade.
Quando ele entrou na sala, vieram atrás dele quatro ogros
verdes carregando seu trono (que devia ser pesadíssimo) e, tão logo o
imperador parou no meio da sala, ali mesmo os ogros horrendos
pousaram o trono pesado, sentando-se vagarosamente Sua Majestade
sobre ele.
Atrás dele, veio uma criatura estranha ao extremo: corpo de
peixe, pernas de sapo (quatro), cabeça de javali e cabelos compridos e
ruivos de donzela. Agripino e Holandês ainda tinham repertório para se
horrorizar, e foi o que fizeram.
O Imperador dirigiu-se à criatura e falou com ela num idioma
que era incompreensível aos dois amigos. A criatura, por sua vez, no

112
que parecia ser outro idioma, mas igualmente incompreensível, dirigiu-
se a Fincapé. Este, por fim, olhou os amigos Holandês e Agripino e
falou-lhes:
− O Imperador quer saber o que vocês querem com ele.
Neste instante, as criaturas que pareciam libélulas com
pernas, que mais tarde eles vieram a saber que eram meninos que
haviam obedecido demais aos seus pais e por isso foram
transformados em criancélulas, crianças-libélulas, começaram a trazer
comidas diversas para o imperador, que as comia sem nem olhá-las.
− Queremos sair deste Reino, e ir para o Castelo Branco, e de
lá, eu quero voltar para a minha terra, o Grande Palco − disse
Holandês.
Fincapé traduziu tudo para a criatura peixe-sapo-javali-
donzela, que, por sua vez, traduziu para o Imperador. Este falou ao seu
intérprete uma frase (incompreensível), que o intérprete passou a
Fincapé, e ele aos dois amigos:
− Impossível, disse Sua Majestade.
− Como assim? − perguntou Agripino.− Impossível é nós
ficarmos aqui para sempre.
Fincapé disse isso à criatura do Imperador, que disse ao
próprio Imperador o que lhe fora passado. O Imperador pareceu ficar
zangado, pois levantou-se do trono no meio de uma mordida num
enorme leitão assado. As criancélulas ficaram espavoridas,
assustadiças, o bicho peixe-sapo-etc. quase caiu para trás. Então o
Imperador falou numa língua que tanto Agripino quanto Holandês
entenderam muitíssimo bem:

113
− Está certo, se vocês querem ir embora, terão de passar pela
minha esfinge particular.
Todos na sala − exceto Holandês e Agripino − emitiram ohs!
de estranhamento e susto. Era impossível passar pela esfinge
particular de Remanso III. Só Algorrágio conseguira. E Algorrágio era o
homem mais sábio do universo.
Sem saber disso, com um sorriso de felicidade plena no
rosto, Agripino se adiantou e disse:
− Nós aceitamos.
Naturalmente Holandês estava bastante desconfiado daquela
prova. Coisa boa não havia de ser...
Fincapé deu um sorriso. A criatura peixe-sapo-javali-donzela
pareceu, apesar de ser difícil afirmar ao certo, esboçar um misto de
sorriso de deboche e piedade dos dois ali presentes. As criancélulas
não faziam outra coisa senão trazer comida e mais comida, que
Remanso III comia como glutão-mor que era.
O Imperador perguntou:
− Onde está Serenante? Trazei-ma imediatamente! − E o sapo
com corpo de peixe saiu às pressas, ao que tudo indica, para cumprir
as ordens imperiais.
Fincapé saiu por uma porta de sua altura.

Capítulo XXXII
Anjos novamente

114
Alaroso pela primeira vez se intromete na quezília que os anjos
arruaceiros perpetraram no céu:
− Mas que história é essa de não podermos cavalgar até aqui? −
Perguntou Alaroso.
Um mensageiro do Mensageiro Sabaoth, que não falava, disse:
− É proibida a cavalgada nesta paragens celestiais...
− ... território dos Arautos... continuou Assoriah, discricionário.
− ... da Comunidade Celeste dos Grandes Mensageiros − arrematou
contundente Veroniel, tudo em linguagem angelical, isto é, só com
vogais, mas que incompreensivelmente podia ser compreendida por
Alaroso, Cunegunda e Veremunda.
− Como...− Alaroso interpõe a fala − como é que nós íamos saber
que aqui era território de Vossas Mensageirades? Por que não
pusestes uma plaquinha para avisar então, ahn?
Os anjos todos se escandalizaram: não podiam lidar com ironia.
− Retirai de perto de nós semelhante animal...
− “Animal”!?
Alaroso não conseguia consentir ou suportar que alguém,
mesmo que fosse uma criatura celestial, o chamasse de “animal”. Aí
ele realmente quase virava um.
Trinca, cava, vacila, larga, gagueja jaculatória:
− Como é? “A - Ni - Mal”!? Alaroso enfurece as ventas e
arremessa na “Comunidade Celeste etc.” uma ventania amarela, que
só voou foi túnica de anjo para direções incríveis, a bem dizer todas. −
É que Alaroso simplesmente não era um animal, como já se sabe, e,
por isso, não podia admitir que o chamassem de animal, por muito

115
óbvio que isto seja, e muito embora a obviedade não seja o forte desta
história...
− Corramos, corramos, andai... Matosiel admoesta.
 Fazei o que vos declaramos... Exorta agastado Artariah.
O anim... Ééé... o Alaroso então se vira calmamente sobre o
pasmo passado de todos aquele anjos e, embicando para baixo, desce
numa parábola tão perfeita que era quase equação de segundo grau.
Sabaoth faz um sinal com três mãos, imediatamente após o
qual os dez mensageiros o conduzem para dentro...
Das nuvens então se ajuntam água e ventania; forma-se,
doravante, uma placa humilde que se achou por bem ali postar.
Nela nada se lê, nada se encontra.
Mas quem não sabe que céu é para − céu? − para anjos?!

Capítulo XXXIII
A chegada de Serenante

Toda a etimologia provável do nome “Serenante” foi levantada


capítulos atrás, num Não-Capítulo autêntico. Também, ao leitor mais
atento, foi deixado bem claro que aquela única Serenante que restara
era a condensação da fúria proveniente da morte das suas outras duas
irmãs gêmeas, numa luta aguerrida em prol de um cavaleiro lindo e mui
garboso que, no entanto, fugiu da cena daquele duelo fratricida,
abdicando de tal amor nascido em sangue familiar. Se o leitor é bom de
memória, há ainda de recordar-se que ficou um anátema pesado e

116
infalível sobre aquela derradeira irmã Serenante que assassinou suas
outras duas: qualquer homem que se aproximasse dela teria de
decifrar-lhe uma charada; se não o fizesse, morreria.
Coisa que não foi dito, penso eu, é que a Serenante em
questão era uma das mulheres mais belas do universo inteiro, e, tão
logo entrou na sala, Agripino maravilhou-se por suas curvas perfeitas e
seu rosto de porcelana da China...
Seus olhos resplandeceram. Ou melhor: resplenderam. E
Holandês percebeu, e, como já estivesse desconfiado de que coisa boa
aquilo não era, mais receoso ainda ficou com a perplexidade inflamada
de seu amigo. Mas, como soubesse também que para a cegueira do
amor não há nenhuma cura proveniente da razão, só pôde lamentar-se
e esperar para ver no que se desenrolaria o palco da ópera vindoura.
− Quem sois, ó linda donzela? − Perguntou Agripino para
Serenante.
Esta deu um sorrisinho muito breve e fagueiro, e respondeu-lhe
entrepalavras:
− Ó, ó! Começaste muito mal, jovem rapaz... Quem fará as
perguntas por aqui serei sempre eu. − E passou a mão sobre o queixo
de Agripino, em um gesto sensual e ameaçador ao mesmo tempo.
A essa altura, Holandês já estava gelado por dentro, sem saber
nada que fazer. O Imperador Remanso III, em seu trono, comia e
gargalhava, engasgando-se vez por outra com a façanha. As
criancélulas correndo de um lado para o outro com bandejas cheias e
vazias...

117
− Que quereis? − perguntou a Serenante, não a Agripino, mas a
Holandês.
− Queremos sair daqui, e voltar para o Castelo Branco.
− Mas só isso? − indagou a Serenante aos dois.
Dir-se-ia que Holandês pareceu ter certo alívio, que duraria
pouco...
− Só.
− Para isso, eu precisarei de uma única coisa.
− O quê? − perguntou Agripino.
− Vocês terão que ir até a Torre de Esmeralda e trazer o papiro
da Fênix.
Remanso III que, até ali, comia e ria, e ria e comia, e
engasgava-se, ficou subitamente mudo, com um pedaço de cozido de
avestruz no meio da garganta e olhos esbugalhados.
− Onde é essa torre?
− Eu vou levar vocês até ela, e esperar que me tragam o papiro
da Fênix. − Quando a Serenante acabou de dizer isso, deu um assobio
e um dragão vermelho imediatamente se aproximou dela, voando.
Pousou ao seu lado. Ela falou algo no ouvido do dragão, e este
pareceu sorrir, inclinando-se no chão para que Agripino e Holandês lhe
subissem no dorso.
Os dois obedeceram. Subiram no dragão. O dragão levantou
voo e, atrás dele, numa vassoura voadora, Serenante também alçou
voo, indo-lhe no encalço. Sobrevoaram o Mar Violeta, o Rio Termólico,
passaram por montanhas e montanhas agudas e muito altas, por
florestas densas como cabeleiras através das quais não se podia ver

118
nada senão árvores e árvores e árvores... e, enfim, no meio de um
deserto que surgia de repente, como se aquela terra fosse tão ácida ou
tão inóspita que onde ela estivesse nada brotava, como uma ilha de
secura no meio de um manancial de águas brancas e azuis, erguia-se
uma imponente torre de esmeralda que não tinha menos de cem
metros de altura.
O dragão vermelho onde estavam Holandês e Agripino chegou
ao meio do deserto em redor da torre mas não pousou, embora
estivesse bem perto do chão, e ficou voejando, como um beija-flor faz
quando está à beira de uma flor apetitosa. Quando os amigo iam
saltando, entretanto, já que estavam bem próximos do chão,
Serenante, que vinha atrás em sua vassoura, e que não pousara, gritou
do ar para eles:
− Não desçam aí, seus estúpidos! Esta terra os engoliria. Eu
quero o papiro da Fênix, e para isso vocês têm que estar vivos; vocês
têm que escalar a torre de cima para baixo, para não serem engolidos
pela terra.
Realmente, quando eles olharam a torre de cem metros,
perceberam que ela só tinha uma porta, e que esta ficava a poucos
metros do chão. Agripino tirou do bolso um pedaço de crucifixo que
havia trazido de casa e o arremessou no chão, próximo àquela porta.
Imediatamente, quando tocou o chão, uma horda de criaturas
que pareciam vermes com dentes subiu à superfície e se debateram
num duelo horrendo para comer o crucifixo. Em segundos, o pobre
crucifixo não passava de madeira de crucifixo, de madeira, de madei,

119
de mad, de ma, de m.... de nada. Os vermes (ou sabe-se lá o que é
aquilo) o estraçalharam.
O dragão vermelho olhou os dois amigos, abraçados um ao
outro, e em seguida olhou para Serenante. Ela lhe deu a seguinte
ordem:
− Deixe os dois no alto da torre. − O dragão cumpriu a ordem
imediatamente. Deu um voo rápido e, no alto da torre, fez com que os
dois amigos ali saltassem. Em seguida, foi embora. Atrás dele,
Serenante veio voando em sua vassoura e deixou cair no chão do cimo
da torre uma corda enorme, dizendo-lhes:
− Com esta corda, desça um de vocês até a porta que fica
próxima ao chão, retire o papiro da Fênix, e volte para o alto da torre.
Quando chegar no alto de novo, meu dragão vermelho virá buscá-los e
eu abrirei o Portal para o Castelo Branco, para que vocês dois
finalmente possam passar...
Dito isso, Serenante zarpou como uma flecha em sua vassoura
mágica.

Capítulo XXXIIII
Voltando daquele inesquecível passeio com Alaroso

Na casa de Cunegunda, Famalião fizera o jantar, para as duas


moças que retornariam em breve do passeio.
As duas chegaram, acomodaram-se felizes, comeram com
muito apetite, pois o passeio fora ótimo, mas muito demorado.

120
Convidaram Alaroso para o jantar. Veremunda adorara o Alazão.
Perguntou à sua amiga Cunegunda quando repetiriam o passeio.
− Em breve, querida, em breve.− Sentaram-se à mesa para o
banquete, mais e mais.

Capítulo XXXV
A PRIMEIRA AGRURA DE Agripino na Torre de Esmeralda

− Como desceremos, Holandês? − Perguntou Agripino.


Holandês respondeu:
− Há um ditado em minha terra que diz que aquele que pergunta
é sempre aquele que fará aquilo que perguntou..− e talvez tenha dado
um risinho de humor viking, aquele tipo de humor que ri das maiores
intempéries e desgraças alheias.
− Quer dizer que eu descerei até lá? − Perguntou Agripino.
− É tu que estás perguntando, isto quer dizer que...
− Sim, eu descerei, certo? − Perguntou Agripino de novo.
− Perguntaste de novo, e, por isso, confirmaste. Tu descerás.
− Precisamos ver um modo de que a corda fique firme aqui em
cima, e que não se rompa.
− Isso é muito fácil − disse Holandês − pois existe uma pedra
enorme aqui em cima, onde poderemos amarrar a corda.
De fato, havia uma saliência de esmeralda que saía da torre,
como que a formar-lhe uma chaminé, e não foi nada nada difícil
amarrar a corda em torno dela com firmeza, de modo a que um homem

121
conseguisse descer até os cem metros lá embaixo e entrar pela porta
próxima ao chão.
Agripino rezou, depois que os dois amarraram a corda, e
começou a descida. A torre era escorregadia, porque era de esmeralda
lapidada, e não se conseguia colocar os pés nela com muita firmeza.
Lá de longe, no meio de uma floresta próxima, sobre o cume de
uma árvore, Serenante observava tudo. Ao seu lado, pousado sobre
um imenso carvalho milenar, o dragão vermelho também observava a
façanha dos dois amigos.
− Será que eles vão conseguir pegar o papiro da Fênix? −
perguntou o dragão vermelho a Serenante.
− Acho muito difícil..− Serenante respondeu e olhou o dragão.
Riram.

Capítulo XXXVI
Uma lembrança dorida

Quando foi dormir, depois de dar boa noite a Famalião,


Cunegunda e sua boneca Espantalho, Veremunda de repente se
lembrou: meu Deus! Onde está Agripino!?
Ela esquecera-se de que se separara de seu amigo, e neste
momento não fazia a menor ideia de onde ele estava. Então foi até sua
amiga Cunegunda e perguntou a ela o que exatamente era aquele
vácuo que se abriu na sala da bruxa e por onde seu amigo se jogara.

122
A bruxa olhou o marido, e os dois, muito corados, disseram que
não sabiam ao certo. Mas seu tom de voz não convenceu Veremunda.
− Como não sabem? Vocês sabem tudo! Vocês estão mentindo
para mim?
− Verê − disse Famalião −, nós nunca estivemos naquele reino,
porque ele pertence às fadas, e as fadas naturalmente odeiam as
bruxas e os ciclopes.
− Mas elas são más? São criaturas malvadas? − Perguntou
Veremunda.
− Não sabemos também. Sabemos apenas que elas nos
odeiam...− Disse Cunegunda.
− Minha querida, vamos dormir, nós não temos como entrar no
reino das fadas.
− Mas não há ninguém lá com quem se possa falar para trazer
meu amigo de volta? Oh Cunegunda, oh Famalião − Veremunda disse
com os olhos cheios de candura − eu encontrei em vocês dois
verdadeiros bálsamos para minha solidão. Vocês são mais que dois
amigos, são como pai e mãe para mim. Eu nem sabia falar quando
aqui cheguei, só conseguia pensar... e isso era tão pouco para mim.
Lembram-se, meus amados, como eu era branca e desbotada como
uma pérola? Vejam agora o rubor em minha face, o verde em meus
olhos... Isso significa muito mais do que alegria ou felicidade, meus
amados: isso significa plenitude... Mas, como eu queria ser fiel a meu
breve porém profundo amiguinho Agripino e salvar-lhe a vida de
alguma agrura... Por favor, por mim, façamos algo por ele.

123
Cunegunda olhou Famalião. Famalião pegou um machado de
ouro que ficava pendurado na parede.

Capítulo XXXVII
Agripino começa a descida

Agripino começou a descer lentamente pela corda. Os dez


primeiros metros foram indescritivelmente assustadores.
− Nunca olhe para baixo − gritava Holandês do alto da torre.
− Se eu não olhar para baixo, como vou saber a hora de chegar?
− Eu aviso − anunciou Holandês, aflito.
Agripino ia descendo muito lentamente, pois se escorregasse,
provavelmente largaria a corda e iria direto àquelas areias infestadas
de vermes ou sabe-se lá que criaturas horrendas eram aquelas ávidas
por um banquete. Para sorte (?) dos dois, não havia vento nenhum.
Agripino venceu sessenta metros com relativa segurança. Ao
ver de longe que ele estava quase − de longe parecia quase − na porta,
Serenante ordenou ao dragão vermelho que ruflasse as asas com toda
a sua força. Quando ele o fez, começou uma ventania extraordinária.
Holandês imediatamente se agarrou na saliência de esmeralda da
torre, mas Agripino estava pendurado como uma aranha em sua teia, e
o vento começou a balançá-lo como se ele fosse o pêndulo de um
relógio.

124
Ele não conseguiria segurar a corda por muito tempo, e lá nas
areias, os vermes já estavam em polvorosa, ao que tudo indicava
esperando uma ou duas refeições carnudas.
Agripino, então, enrolou com muita sagacidade a corda em
torno dos punhos, de modo que não precisasse segurá-las, mas
fazendo com que, ao contrário, elas sim o segurassem. Afinal, a corda
era muito mais forte do que ele.
Será?
Depois de estar já há alguns segundos balançando como galho
morto pela torre, a corda deu sinal de arrebentar-se. O dragão
vermelho batia as asas com mais força e Holandês, do alto da torre, viu
que a corda ia arrebentar, e, agarrado na esmeralda saliente, gritou a
Agripino que tentasse voltar. Mas eles sabiam que era impossível, pois
o rapaz não tinha sequer onde se apoiar.
Passados dois minutos, a corda finalmente arrebentou. Parece
que os milagres de Agripino realmente chegaram para sempre ao fim.

Capítulo XXXVIII
Famalião vai resolver a angústia de Veremunda

Na casa de Cunegunda, Famalião abriu a porta empunhando


um machado de ouro. Saiu.
Cunegunda explicou à amiga o que o marido ia fazer:
− Somente com esse machado, pode-se cortar o tronco da
sequoia imperial, e só com o seu tronco se pode fazer uma ponte até o

125
Reino Feérico. Mas, Veremunda, isso é mais arriscado que qualquer
coisa... Não se tem notícias, neste ou em outro castelo qualquer, de
ciclope ou bruxa que tenha voltado com vida do Reino Comburente das
Fadas...

Capítulo XXXVIIII
Desespero e esperança de Agripino

Holandês viu que a corda arrebentou quando o que sobrou dela


passou por cima de sua cabeça como um chicote. Ele sequer poderia
soltar a pedra para ver como seu amigo estava, pois ventava muito.
Serenante, no entanto, quando viu que conseguira arrebentar a
corda, deu ordem ao dragão vermelho que parasse, que sua missão já
estava cumprida. O dragão parou de bater as asas. Estancou de
ventar.
Agripino ia caindo e ainda fez um rogo a Deus:
− Salvai-me! − Gritou.
Imediatamente, de dentro da torre, pela portinhola que quase
tocava o chão infestado de vermes com os dentes à mostra, saiu uma
águia prateada, que nem bem ganhou os ares abriu asas que de ponta
a ponta contavam doze metros, e, ao ver o jovem caindo, foi certeira ao
seu encontro, pegando-o com o bico pelas costas da camisa. Holandês
ficou desesperado, achando que seu amigo agora, em vez e morrer
devorado por vermes, como um cadáver, morreria devorado por uma
águia gigante, como um rato.

126
Gritou de pé (não ventava mais) de cima da torre:
− NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOOO!!!!!!!
Mas a águia, aliás, Fênix, não tinha intenção nenhuma de se
alimentar do rapaz, já que ela, na verdade, só se alimentava de luz e
energia, e quando viu o desespero de Holandês, no alto da torre, foi
rapidamente com Agripino no bico deixá-lo ao lado do companheiro.
Os dois rapazes estavam boquiabertos. Abraçaram-se
estupefatos. A águia, ou melhor, Fênix pousou ao lado deles, revelando
uma compleição assustadoramente enorme, e lhes perguntou:
− O que vocês estão fazendo aqui? Como chegaram até aqui?
Holandês e Agripino, sentindo gratidão mas medo, gaguejaram:
− Papiro, Fênix, dragão, Serenante, Castelo, Veremunda...
Fênix compreendeu e deu ordem à pré-sintaxe:
− Serenante ordenou que vocês pegassem o meu papiro para
que vocês possam voltar ao castelo e encontrar alguma amiga
chamada Veremunda e um dragão os trouxe até aqui?
Os amigos apenas sorriram.
− Essa Serenante não tem mesmo jeito. − E dizendo isso, Fênix
olhou com seus olhos de águia imortal para a floresta, avistando
imediatamente Serenante e o dragão vermelho pousados em copas de
árvores. Abriu suas asas; Serenante e o dragão vermelho estariam
com medo?

Capítulo XL
Famalião volta com a pré-ponte

127
Famalião encontrou no meio da noite uma sequoia imperial e
com um único golpe do machado de ouro ela foi ao chão. Era
suficientemente grande para fazer a ponte pretendida. Carregou nas
costas até em casa e mostrou-a à mulher e a Veremunda. Veremunda
comemorou, mas Cunegunda, nem tanto: estava preocupada com a
empreitada que fariam.

Capítulo XLI
Fênix resolve se vingar

No Reino Feérico, o dragão vermelho fez menção de abrir as


asas e voar, mas Serenante o impediu:
− Não seja estúpido, você pensa que poderia voar mais rápido
que a Fênix?
− Então o que devemos fazer? − Perguntou o dragão a
Serenante.
− Fique aqui e veja.
Um segundo depois, Fênix estava lá, frente a frente com eles,
gigante e com olhar tonitruante.
Serenante se antecipou e disse:
− Aqueles dois queriam roubar seu ovo... Fênix.
− Sei − respondeu Fênix − e chegaram até o alto da torre
voando?

128
− Não, eles me ameaçaram e ordenaram que meu dragão os
pusesse lá − disse Serenante.
− Sei − respondeu Fênix − e ameaçaram vocês com o quê?
Disseram que se vocês não lhes obedecessem eles iriam beliscar
vocês duas? (O dragão era uma fêmea.)
− Er...
Nisso o dragão vermelho abriu as asas e saiu voando o mais
rápido que pôde. Mas Fênix foi atrás dela, voando mais rápido que um
raio, e a pegou pelo rabo, rodando-a e arremessando-a muito além das
montanhas, no meio do Mar Violeta, onde, segundo consta, as Desílias
a resgataram e domesticaram, transformando-a numa excelente babá
para filhas de Desílias (as Desílias têm filhas mulheres exclusivamente,
e não precisam de parceiros para gerar as novas gerações).
Depois de ter feito isso, Fênix voltou correndo para dar um jeito
em Serenante, mas esta já havia voado e raptado Holandês e Agripino
do alto da torre, e desaparecera.

Capítulo XLII
Preparando a ponte mágica

Em casa, com o tronco da sequoia trazido pelo marido,


Cunegunda já remexia seu caldeirão e cantava para a poção ficar
pronta. Com seu feitiço sobre aquele tronco, a ponte se construía
invicta, e a passagem, finalmente, e perigosamente, se abria aos três.
Veremunda estava muito apreensiva, mas confiava em seus dois

129
amigos. O tronco era grande, mas não enorme, e Veremunda não
compreendia como uma simples árvore como aquela seria capaz de
atravessar duas dimensões.
Mas não questionou: confiava nos amigos.

Capítulo XLIII
O rapto dos dois amigos

Serenante, com Holandês e Agripino presos em sua vassoura,


e furiosa, aterrissou no meio da floresta de mármore. Com os olhos
inflamados de fúria, perguntou a Agripino:
− Eu não lhe mandei me trazer o papiro da Fênix?!
Holandês tremia como início de terremoto. Mas Agripino,
calmamente, respondeu:
− Mandou.
Serenante deu uma gargalhada altíssima, que fez duas ou três
copas de árvores de mármore ruírem, afugentando os pássaros de
bronze.
Então ela perguntou calmamente, numa calma de calculada
frieza, daquelas que o predador esboça diante do banquete da presa
garantido:
− E... onde... está...?
Agripino pôs uma mão nas costas, exatamente onde Fênix o
havia salvo da queda, e, de dentro da camisa, retirou um rolo azulado
preso com uma fita vermelha, dando-o a Serenante:

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− Está aqui − respondeu-lhe ele.
Serenante pegou o rolo, abriu o lacre da fita e o abriu. Soltou
um grito quando viu que, realmente, aquele era o papiro da Fênix, e
que, portanto, os dois amigos haviam cumprido a promessa. Ela teve
vontade de fulminá-los, mas não tinha poder para descumprir uma
promessa. Acima dela − muito acima dela − no Reino Feérico, havia o
Rei e a Rainha das Fadas, Oberom e Titânia, e se ela Serenante,
ousasse pensar em descumprir o que prometera a quem quer que
fosse, ela seria transformada para sempre em uma estátua de lápis-
lázuli, assim como suas duas irmãs.
O ódio escorreu por seus olhos, mas o papiro a vencera, e ela
nada poderia fazer com os dois, Agripino e Holandês, a não ser abrir-
lhes um portal para o Castelo Branco.

Capítulo XLIIII
Famalião, Cunegunda e Veremunda entram no Reino das Fadas

Quando Cunegunda acabou de mexer sua poção, Famalião


trouxe o tronco até mais próximo do caldeirão, e a bruxa, dizendo
palavras mágicas, começou a espargir a panacéia sobre a árvore
morta. Imediatamente, daquele tronco ressecado pelo inverno lá de
fora, começaram a brotar flores frescas, miúdas, amarelas, lilases,
verdes, azuis, vermelhas, rosas... crisântemos, amores-perfeitos,
margaridas, violetas, tulipas...

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− Ahuayaskarekuaska! − Disse Cunegunda, e o tronco florido
começou a tomar forma de ponte. Neste instante, imediatamente
começou a abrir-se da parede, do mesmo local onde antes abrira-se o
vácuo para Agripino, um buraco muito semlhenate àquele que levara o
amigo de Veremunda. Pequenino de início, mas já furta-cor, ou como o
espectro da luz solar que atravessa o diamante, o buraco foi ficando
maior, maior, maior, e sugou para dentro dele o tronco florido já em
forma de ponte. O gigante gritou:
− Vamos, com a ponte aí nós poderemos ir e voltar. Ela impede
que o buraco se feche conosco lá dentro.− E dizendo isso, foi o
primeiro a entrar no buraco.
A bruxa foi em seguida e Veremunda, com muito medo, mas
sempre confiante no casal, foi por último.
Entraram no Centro Comburente Feérico.

Capítulo XLV
Serenante tenta sem êxito abrir o Portal para o Castelo

Lá dentro, na floresta de mámore, Serenante elevou sua


varinha e disse palavras incompreensíveis. Estava tentando abrir o
vácuo que levaria os dois amigos para o Castelo Branco.
No entanto, algo estava dando errado: ela não conseguia abrir o
vácuo sagrado. Ela ficou muito preocupada, não por causa dos
rapazes, mas porque sabia que, se não cumprisse sua promessa, não
interessando por qual motivo, seria severamente punida por Oberom e

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Titânia. Começou a ficar muito preocupada: aquilo nunca tinha
acontecido antes.
Tentou de novo, aterrorizada. Por que o vácuo mágico não
queria abrir-se?
Serenante não sabia que ela não estava conseguindo abrir o
vácuo sagrado por uma razão muito simples: Famalião e Cunegunda já
o haviam aberto. E só havia um vácuo sagrado entre o Castelo e o
Reino Feérico. Era impossível que, estando o vácuo aberto, não
importa por quem, outra pessoa o conseguisse abrir.

Capítulo XLVI
Oberom e Titânia, Reis das Fadas, vêm castigar Serenante

De repente, o céu do Reino Feérico enegreceu, e tornou-se cor de ônix.


De seu âmago estreloso, uma voz de duas majestades em uníssono
tonitruou: eram o Rei e a Rainha das Fadas, Oberom e Titânia,
perguntando a Serenante:
− Por que o Portal não foi aberto como tu prometeras?
Serenante entrou em pânico:
− Ó Majestades, não sei por que não consigo abri-lo...
− Se tu não o abrires − retrucaram as Majestades − virarás pó...

Capítulo XLVII
De como Oberom e Titânia, resolvem, pessoalmente, levar
Agripino e Holandês de volta para o Castelo

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Desesperada, tentando abrir o Portal (que jamais se abriria duas
vezes, e, estando aberto, por obra de Cunegunda e Famalião,
permaneceria inacessível para Serenante ou para quem quer que
fosse), Serenante pôs toda a sua força de magia e deu todos os seus
gritos mágicos, sem que nem uma brechazinha de nada fosse aberta
para Holandês e Agripino. O céu foi ficando cada vez mais escuro, e,
entre fogos e trovões, aparecem Oberom e Titânia, conduzidos por cem
cavalos brancos com asas nas quatro patas cada um.
A cena era assustadora. Holandês se arrepiou, mas Agripino
sorriu.
A uma leve ordem a seu báculo sagrado Titânia enviou um raio
que transformou Serenante numa Serpente, o que era um passo para
ela. Serpente saiu rastejando pela floresta de mármore. Oberom, por
sua vez, ergueu seu próprio caduceu e uma brecha cor de rubi se abriu
de ponta a ponta no horizonte, formando um Portal mágico.
− Ide, cavaleiros, podeis passar de volta a vosso Castelo −
disseram as Majestades.
Quando os amigos iam atravessar o Portal, eis que, subitamente,
passa através deles Veremunda, Cunegunda e Famalião, por uma
ponte florida de sequoia imperial.
Todos, sem exceção, entreolharam-se espavoridos. O que
significava aquilo?
Agripino correu e abraçou sua amiga Veremunda, que agora
podia falar. Perguntou-lhe mentalmente:
− (Você está bem?)

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Mas Veremunda respondeu em alto e bom som:
− Pode falar alto comigo agora, meu amigo, pois meus dois pais
adotivos me deram o dom da expressão...
Veremunda e Agripino abraçaram-se fraternalmente.
Famalião teve muito medo, pois estava diante do Rei e da Rainha
das Fadas, e por todas as gerações pregressas de sua família, ele
ouvira que fadas odeiam ciclopes, bruxas e gigantes. Portanto, eles
dois, Cunegunda e Famalião, deviam ser odiados por Oberom e
Titânia.
Agripino perguntou se a bruxa e o ciclope lhe haviam feito algum
mal.
− Oh, muito pelo contrário: de hoje em diante, eles são meus
pais. São muito mais que amigos. Eu os amo exatamente como eles
são.
Lá do alto Oberom e Titânia se olharam ao ver a atitude e os
gestos de Veremunda para com a bruxa e seu marido, o ciclope
gigante.
Titânia perguntou:
− Então eles te trataram bem, mocinha?
− Como se eu fosse sua filha única, como uma rosa preciosa...
O Portal continuava aberto, com a ponte feita por Famalião e
Cunegunda ligando os dois mundos.
− Pois sendo assim − ordenou Oberom, o Rei das Fadas −
decreto que, de hoje em diante, as dimensões das Fadas e das Bruxas
permanecerão em constante comunicação.

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− Decreto ainda − continuou Titânia − que seja fundada a
Universidade das Bruxas e Fadas, um campo de saberes múltiplos
entre essas duas categorias de magas e magos que, por tantos
séculos, têm permanecido separadas.
− Podeis passar todos para o Castelo, e este Portal nunca mais
se fechará, selando a amizade eterna entre bruxas e fadas − falaram
em uníssono Oberom e Titânia.
Veremunda foi a primeira a voltar para o Castelo, de mãos dadas
com Agripino. Depois deles, entraram, juntos, Cunegunda e Famalião,
seguidos por Holandês.

Capítulo XLVIII
Pax Aeterna

Foi desse modo que até hoje existe salutar intercâmbio entre
bruxas, fadas, ciclopes, gigantes, ogros, criancélulas, funfunões e todas
as outras criaturas dos dois reinos, ora amicíssimos.
Holandês tornou-se tenor titular do Theatro Municipal das
Ratóperas, no Reino Feérico, e encena todas as óperas que o deliciam.
Vive passando férias na casa de Cunegunda e Famalião.
Estes dois, por sua vez, tornaram-se Professores Titulares da
Universidade Inter-Imperial Bruxuleante e Feérica. São
respeitadíssimos tanto pelas fadas, quanto pelas bruxas, ciclopes etc.
Veremunda, com o consentimento de Cunegunda e Famalião,
transformou o Castelo Branco num imenso hotel, que recebe seres de
todas as dimensões e de todas as galáxias paralelas. Ela o administra

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pessoalmente, com Agripino, cuja única viagem, depois de todo o
ocorrido, foi na vassoura de uma bruxa amiga para trazer sua mãe,
dona Agripina Feliciana, até o Castelo Branco, para morar com eles e
ensinar a Cunegunda o que sabia fazer muito bem: pães e bolos.
Todos os reinos vivem em paz eterna.

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