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A

s salas do Liceu de Bixby estavam sempre hor-


rivelmente reluzentes no primeiro dia de aulas. O
ruído das lâmpadas fluorescentes no teto, com as
proteções plásticas brancas, recentemente limpas de inse-
tos mortos. O chão brilhante, acabado de polir, refletin-
do a luz do sol que entrava pelas portas da frente abertas
da escola.
Rex Greene caminhava lentamente, questionando-se
sobre a razão que levava os estudantes que entravam a
correrem para este sítio. Cada passo era para si penoso,
uma luta contra o brilho perturbador de Bixby e contra
o aprisionamento de mais um ano. Para Rex, as férias de
verão eram uma oportunidade de se esconder e todos os
anos este dia dava-lhe a sensação de frustração por ter sido
descoberto, apanhado, detetado por um holofote, como
se fosse um prisioneiro em fuga.
Rex franzia o sobrolho com a luminosidade e empur-
rava os óculos com um dedo, desejando poder usar lentes
escuras por cima da armação espessa. Mais um obstácu-
lo entre ele e o Liceu de Bixby.
Estavam lá todos os rostos habituais. Timmy Hudson,
que lhe tinha batido quase todos os dias no quinto ano,
passou, sem olhar duas vezes para Rex. A multidão que

* Excertos de páginas descontinuadas como assinalam as vinhetas.

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ia chegando estava repleta de antigos torturadores, cole-
gas de turma e amigos de infância, embora nenhum deles
parecesse reconhecê-lo. Rex aconchegou o seu casaco
preto comprido e encostou-se aos cacifos instalados ao
longo da parede, aguardando que a multidão dispersas-
se ao mesmo tempo que se questionava quanto ao mo-
mento exato em que se havia tornado invisível. E porquê?
Talvez porque o mundo à luz do dia significava agora
tão pouco para ele.
Baixou a cabeça e dirigiu-se para a sala de aula.
Depois, viu a rapariga nova.
Tinha a idade dele; talvez um ano mais nova. O cabelo
era ruivo-escuro e carregava ao ombro uma mochila verde
com livros. Rex nunca a tinha visto, o que, numa escola
tão pequena quanto aquela, só por si, já era pouco usu-
al. Porém, ser nova não era o mais estranho nela.
A sua imagem estava desfocada.
As mãos e o rosto estavam enevoados, como se esti-
vesse por detrás de um vidro espesso. Os restantes rostos
na entrada repleta de pessoas eram nítidos à luz do sol,
porém, o dela não ficava focado, por mais que ele se
esforçasse. Parecia que ela existia apenas fora do alcance
da focagem, tal como acontece com a música reprodu-
zida na cópia de outra cópia de uma cassete antiga.
Rex pestanejou, tentando melhorar a visão, mas a rapa-
riga continuava desfocada à medida que se ia aproximan-
do da multidão. Rex afastou-se da parede e seguiu-a.
Foi um erro. Agora, com 16 anos, estava muito mais
alto, com o cabelo pintado de preto, mais lustroso do que
nunca, e deixara de estar invisível enquanto se misturava
com a multidão.

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Sofreu um empurrão e desequilibrou-se. Quatro ou
cinco mãos ajudaram-no a manter-se de pé até chocar
fortemente com o ombro contra uma fileira de cacifos
alinhados junto à parede.
– Sai do caminho, estúpido! – Rex sentiu um estalo na
cara. Começou a pestanejar à medida que a visão ia fican-
do turva, com a imagem da entrada da escola a dissolver-
-se, numa combinação de cores e de vultos em movimento.
O ruído perturbador dos seus óculos a arrastarem-se pelo
chão chegou aos seus ouvidos.
– O Rex perdeu os óculos! – ouviu-se. Afinal, Timmy
Hudson lembrava-se do seu nome. Ouviram-se risos pelo
corredor.
Rex apercebeu-se de que tinha as mãos erguidas para
a frente, apalpando o ar como se fosse cego. Sem os ócu-
los, o mundo à sua volta era uma mistura de cores sem
significado.
A campainha tocou.
Rex saltou para junto dos cacifos e esperou até o cor-
redor ficar vazio. Agora já não conseguiria seguir a ra-
pariga nova. Talvez a tivesse imaginado.
– Aqui tens – disse uma voz.
Assim que levantou os olhos, Rex ficou boquiaberto.
Sem óculos, os seus olhos conseguiam vê-la perfeita-
mente. A parede por trás dela ainda era uma mistura de
contornos desfocados, porém, o seu rosto destacava-se,
focado e com detalhes. Agora conseguia ver os seus olhos
verdes, com reflexos dourados à luz do sol.
– Aqui tens os teus óculos – disse ela, entregando-lhos.
Mesmo assim tão perto, enquanto a armação se mantinha

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desfocada, ele conseguia ver a mão estendida da rapariga
com grande clareza. Ela tinha Focus.
Quando finalmente se moveu, Rex fechou a boca e
pegou nos óculos. Quando os colocou, tudo o resto vol-
tou a estar nítido e a rapariga ficou de novo desfocada.
Tal como acontecia sempre com os outros.
– Obrigado – disse ele.
– Não tens de quê. – Ela sorriu, encolheu os ombros e
olhou à volta para a entrada quase vazia. – Acho que
agora estamos atrasados. Nem sequer sei para onde te-
nho de ir.
A pronúncia dela parecia ser do midwest1, mais acen-
tuada do que o sotaque arrastado de Rex, típico do es-
tado de Oklahoma.
– Não, aquele foi o toque das 08:15 – explicou ele. – O
último toque é às 08:20. Onde é a tua aula?
– Na sala T-29. – Numa mão segurava com firmeza
um papel com o horário.
Rex apontou para a porta.
– Fica nos pavilhões provisórios. Lá fora, à direita.
Naqueles pré-fabricados que viste à entrada.
Ela olhou lá para fora e franziu o sobrolho.
– OK – disse com hesitação, como se nunca tivesse tido
uma aula num pré-fabricado antes. – Bem, é melhor ir
andando.
Rex acenou com a cabeça. À medida que ela se afas-
tava, ele retirou de novo os óculos e, mais uma vez, ela
tornava-se nítida e o resto do mundo desfocado.

1
Centro oeste dos Estados Unidos. (N. da T.)

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Finalmente, resolveu acreditar no que via e sorriu.
Mais um, algures em Bixby, no Oklahoma.
Talvez este ano fosse diferente.

Rex viu a nova rapariga mais algumas vezes antes do


almoço.
Já estava a fazer amigos. Numa escola pequena como
Bixby, havia sempre algum entusiasmo em torno de uma
aluna nova; todos queriam saber mais acerca dela. Os mais
populares tentavam reclamar a sua atenção, fazendo co-
mentários sobre ela e tentando ganhar a sua amizade.
Rex sabia que as regras da popularidade não lhe per-
mitiriam aproximar-se dela novamente, mas manteve-se
por perto, a ouvir e a aproveitar-se da sua «invisibilida-
de». Claro que não estava verdadeiramente invisível, mas
o resultado era igual. Com a sua camisa preta e calças
de ganga e com o cabelo preto conseguia desaparecer nas
sombras e nas esquinas. Não havia muitos alunos como
Timmy Hudson no Liceu de Bixby. A maioria das pes-
soas limitava-se a ignorar Rex e os seus amigos.

Enquanto os livros eram distribuídos, entrou uma


aluna, atrasada. Parecia mais nova do que os outros.
Vestia-se de negro, usava óculos escuros e muitos colares
de metal brilhante. O professor Sanchez olhou para ela
e sorriu, genuinamente satisfeito.

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– Muito prazer em ver-te, Desdemona.
– Ei, Sanchez. – A rapariga parecia estar tão cansada
quanto Jessica, mas com muito mais à-vontade. Olhou
para a sala de aula com um ar de aborrecimento. O pro-
fessor Sanchez ficou muito satisfeito com a sua presença,
como se ela fosse um matemático famoso que ele convi-
dara para falar acerca de como a trigonometria poderia
mudar a nossa vida.
O professor voltou a distribuir os livros e a rapariga
procurou um lugar para se sentar. Depois, algo estranho
aconteceu. Ela tirou os óculos escuros, olhou para Jessi-
ca e foi sentar-se propositadamente na mesa ao lado
dela.
– Ei – disse.
– Olá, sou a Jessica.
– Pois – respondeu a rapariga, como se isso fosse tre-
mendamente óbvio. Jessica pensou se já a teria visto nal-
guma outra aula.
– Sou a Dess.
– Olá. – OK, foram dois «olás», mas o que é que era
suposto ela dizer?
Dess estava a olhar para ela atentamente, tentando
descobrir algo. Fechou os olhos, como se a sala fosse
demasiado clara para ela. Os dedos pálidos brincavam com
os pendentes amarelados de um dos colares, deslizando-
-os para um lado e para o outro, fazendo padrões inde-
cifráveis e emitindo um som suave.
A chegada de um livro à mesa de Jessica quebrou o
feitiço que os dedos de Dess tinham lançado.
– Assim que receberem o vosso livro – anunciou o
professor Sanchez –, preencham com atenção o formu-

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lário que está no verso da capa. Com atenção, pessoal.
Qualquer dano no livro que não seja registado é da vos-
sa responsabilidade.
Jessica tinha passado por isto todo o dia. Aparente-
mente, os manuais escolares eram espécies ameaçadas
ali em Bixby, no Oklahoma. Os professores pediam que
os folheassem, página a página, detetando cada marca
ou risco. Supostamente, seria terrível alguém, no final
do ano, ficar conhecido por ser suficientemente crimino-
so a ponto de danificar os seus livros. Jessica tinha aju-
dado o seu pai a fazer o mesmo na casa que alugaram,
registando todos os buracos milimétricos nas paredes,
verificando todas as tomadas elétricas e indo ao detalhe
de medir os últimos 45 centímetros que o portão auto-
mático da garagem não subia totalmente.
Mudar de casa tinha sido uma chatice em todo o tipo
de aspetos inesperados.
Começou a folhear o livro, verificando todas as pági-
nas. Jessica suspirou. Tinha encontrado alguns danos.
«Palavras sublinhadas na página 7. Rabiscos no gráfico
da página 19...»
– Então, estás a gostar de Bixby até agora, Jess?
Jessica olhou para cima. Dess estava a folhear distraida-
mente o seu livro, aparentemente sem encontrar nada. Me-
tade da sua atenção estava ainda concentrada em Jessica.

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O relógio da cozinha marcava meia-noite em ponto.
Jessica parou à porta da entrada, sentindo-se, por mo-
mentos, ansiosa. Depois abriu-a.
Tinha de ser um sonho: milhões de diamantes flutua-
vam no ar sobre o asfalto molhado e brilhante. A apenas
alguns centímetros de distância uns dos outros, estendiam-
-se até onde a vista de Jessica conseguia alcançar, pela
rua abaixo e pelo céu. Eram pequenas pedras preciosas
azuis do tamanho de lágrimas.
Não se via a lua. As nuvens espessas ainda se manti-
nham sobre Bixby, mas agora pareciam tão firmes e
imóveis como pedras. A luz parecia vir dos diamantes,
como se uma invasão de pirilampos tivesse sido conge-
lada no ar.
Jessica arregalou os olhos. Era tão bonito, tão calmo
e espantoso, que toda a sua ansiedade se desvaneceu.
Levantou a mão para tocar numa das pedras preciosas
azuis. O pequeno diamante tremeu, rolou até ao dedo,
frio e molhado. E desapareceu, deixando apenas um pou-
co de água.
Só então Jessica percebeu o que era o diamante: uma
gota de água da chuva! Os diamantes que flutuavam
eram a chuva que, por alguma razão, se mantinha imóvel
no ar. Nada se movia na rua, nem no céu. O tempo tinha
parado à volta dela.
Confusa, deambulou pela chuva suspensa. As gotas
tocavam o seu rosto, transformando-se em água à medi-
da que colidia com elas. Derretiam-se instantaneamente,
manchando a sua camisola, enquanto ela caminhava e
molhava as suas mãos com água que não estava mais fria
do que a chuva de setembro. Conseguia sentir o cheiro

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fresco da chuva, sentir a eletricidade da iluminação re-
cente e a vitalidade da tempestade imóvel à sua volta. Os
cabelos faziam-lhe cócegas, dando-lhe vontade de rir.
Mas apercebeu-se de que tinha os pés frios, dentro dos
sapatos ensopados. Jessica baixou-se para ver o chão.
Salpicos de água inertes cobriam o asfalto, e nele os pin-
gos de chuva tinham ficado imóveis ao cair. Toda a rua
brilhava com os contornos dos salpicos, como se fosse
um jardim de flores de gelo.
Uma gota de água flutuava bem à frente do seu nariz.
Jessica aproximou-se, fechando um olho e concentrando-se
na pequena esfera de água imóvel. As casas da rua, o céu
inerte, todo o mundo estava refletido lá dentro, de pernas
para o ar dentro de um círculo, como se estivesse a olhar
para uma bola de cristal. Depois aproximou-se demasiado
e a gota de chuva tremeu e começou a mover-se, caindo na
sua bochecha e descendo como uma lágrima fria.
– Oh – murmurou. Tudo estava parado até ela lhe
tocar. Era como se estivesse a quebrar um feitiço.
Jessica sorria enquanto procurava novas maravilhas.
Todas as casas da rua pareciam brilhar, com as janelas
iluminadas pela luz azul. Olhou para trás, para a sua
própria casa, e viu o telhado a brilhar com os pingos de
chuva e a água acumulada imóvel proveniente do cruza-
mento de duas caleiras numa das pontas. As janelas brilha-
vam, mas não havia luzes no interior. Talvez não fossem
apenas as gotas de chuva. As casas, as nuvens inertes no
céu, tudo parecia incandescente com luz azul.
De onde virá esta luz fria?, questionou-se. Havia mais
coisas neste sonho para além da paragem do tempo. Jes-

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sica viu que tinha deixado um rasto: um túnel feito atra-
vés da chuva suspensa. Tinha o contorno do seu corpo,
como um buraco feito por uma personagem de desenhos
animados que passa disparada através de uma parede.
Ela riu-se e começou a correr, tentando agarrar mãos
cheias de gotas de água no ar; estava sozinha num mun-
do de diamantes.

Na manhã seguinte, Jessica Day acordou a sorrir.


O sonho tinha sido tão lindo e tão perfeito quanto as
gotas de chuva suspensas no ar. Talvez isto significasse
que, afinal, Bixby não era um local tão repugnante.
O sol iluminou intensamente o seu quarto, acompanha-
do pelo som de água a pingar das árvores sobre o telhado
da casa. Apesar de apinhado de caixas, já sentia que este
era o seu quarto, finalmente. Jessica mantinha-se deitada
na cama, deliciada com a sensação de alívio. Após vários
meses a acostumar-se à ideia de mudar de casa, as sema-
nas de despedidas e os dias a empacotar e a desempaco-
tar, finalmente sentia que o furacão estava a abrandar.
Normalmente, os sonhos de Jessica não eram muito
profundos. Quando estava nervosa por causa de um tes-
te, costumava ter pesadelos relacionados com isso. Quan-
do a sua irmã mais nova quase a enlouquecia, a Beth dos
seus sonhos era um monstro que a perseguia. Porém,
desta vez, Jessica sabia que este sonho tinha um signifi-
cado mais profundo. O tempo tinha parado em Chicago
e toda a sua vida tinha ficado congelada enquanto ela
esperava pelo momento de abandonar os seus amigos e
tudo aquilo que lhe era familiar, mas isso, agora, chega-

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ra ao fim. O mundo poderia começar de novo, assim que
ela o permitisse.
Afinal, talvez ela e a sua família pudessem ser felizes
aqui.
E era sexta-feira.
O despertador tocou. Destapou-se e deslizou para fora
da cama.
No momento em que os pés tocaram no chão, sentiu
um arrepio pela espinha acima. Tinha-os pousado em
cima da sua camisola, caída no chão junto à cama, numa
pilha de roupa desarrumada.
Estava encharcada.

Os terrenos desertos.
Assim que se aproximaram do deserto, os seus olhos
observaram nervosamente o chão à procura de qualquer
movimento, imaginando as sombras quietas de darklings
debaixo de cada árvore. Mas tudo lá em baixo parecia
imóvel, pequeno e insignificante, enquanto planavam por
cima. Jessica pensou que estavam a mover-se muito mais
rapidamente do que a pantera alguma vez conseguiria,
mesmo na sua velocidade máxima, dando passos cem
vezes maiores do que os do felino gigante.

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Jonathan era mesmo mais rápido do que os tais «ru-
fias» no recreio.
Ele levou-a a uma das grandes torres de depósito de
água fora da cidade. Aterraram sobre ela, com a cidade
de um lado e os terrenos negros desertos do outro. Era
achatada no topo e tinha um gradeamento baixo à volta.
– OK, hora de descansar a mão – disse ele.
Largaram-se e, desta vez, Jessica estava preparada,
fletindo ligeiramente os joelhos assim que voltou a sentir
o peso normal.
– Uau – disse, esfregando os dedos. Sentiu que cada
músculo na sua mão estava dormente. Jonathan esticou
a sua própria mão com uma expressão de dor. – Oops,
desculpa. Não queria apertar tanto.
E riu-se.
– É melhor apertar do que largar.
– Sim, definitivamente. – Jessica aproximou-se caute-
losamente da borda da torre, mantendo uma mão presa
no gradeamento. Quando olhou para baixo, o seu estô-
mago deu uma volta. – OK, o medo das alturas continua
a funcionar.
– Ótimo – disse Jonathan. – Tenho receio de um dia
me esquecer que não é meia-noite e saltar de um telhado,
ou algo do género. Ou de me esquecer das horas e ainda
estar a voar por aí quando a gravidade chegar.
Jessica virou-se para ele, colocou uma mão sobre o seu
ombro e a leveza regressou.
– Por favor, não o faças!
Corou e tirou a mão. A voz dela tinha um timbre sério.
Ele sorriu.
– Não o farei, Jessica. A sério.

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– Trata-me por Jess.
– Claro, Jess. – O seu sorriso aumentou ainda mais.
– Obrigada por me teres levado a voar.
– Não tens de quê.
Jessica virou-se timidamente.
Ouviu um som. Jonathan estava a comer uma maçã.
– Queres uma?
– Hã? OK.
– Tenho quatro.
Ela pestanejou.
– Nunca paras de comer?
Jonathan encolheu os ombros.
– Como te tinha dito, preciso de comer o equivalente
ao peso do meu corpo todos os dias – respondeu.
– A sério?
– Não, mas voar abre-me o apetite.
Jessica sorriu e olhou por cima da torre, sentindo-se
em segurança pela primeira vez desde que tudo tinha
corrido mal no «sonho» da noite anterior.
Os seus olhos vislumbraram um pássaro a voar no
horizonte, tendo como pano de fundo a lua, que tinha
começado a pôr-se. Ela estava tão feliz, sentindo-se ain-
da leve no seu interior, que demorou algum tempo até
sentir um nó no estômago.
O pássaro estava a mover-se.

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O local onde eles tinham estado na noite anterior era
muito antigo, bem longe, nas terras desertas. As slithers
seguiram-nos desde o início, pelo ar e por terra. Parecia
que cresciam em número sempre que Dess olhava para
cima. Tinham surgido todos os tipos de darklings voado-
res, com as suas silhuetas pouco familiares contra a luz
da lua. Dois darklings tinham mesmo tentado atacá-los,
o que colocou à prova a eficácia das defesas que Dess
tinha disposto em torno do local onde se encontravam.
A situação poder-se-ia ter complicado, porém, 15 minutos
antes de a lua desaparecer, afastaram-se todos, como se,
subitamente, se tivessem lembrado de um compromisso.
Tinha sido tudo muito estranho e desconcertante.
– Vamos andando – disse a Rex. Dess não gostava da
ideia de Jessica ficar sozinha. Os pioneses poderiam não
ser suficientes esta noite.
Claro que ela poderia não estar sozinha, pensou Dess
com um leve sorriso. Não seria isso uma pequena agra-
dável surpresa para Rex?
Rex olhou cuidadosamente à sua volta antes de mon-
tar na bicicleta.
– Só espero que tudo se mantenha tranquilo. De onde
terão vindo todos aqueles darklings? Não tinha ideia de
que existiam tantos dos grandes.
Dess concordou.
– Tenho estado a pensar acerca disso. Queres ouvir
uma teoria?
– Claro.
– OK. Os darklings parecem panteras, ou tigres, certo?
Exceto quando ficam todos nervosos, como estavam na
noite passada.

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– Sim. A doutrina diz que eles estão relacionados com
os grandes felinos – leões e tigres –, da mesma forma que
nós estamos relacionados com os macacos.
– OK – continuou Dess. – Bem, a minha fonte, que é
o Discovery Channel, diz que os felinos passam uma
grande parte do tempo a dormir. Vê o exemplo dos leões.
Dormem 22 horas por dia, a bocejarem por todo o lado,
com as caudas a abanar para afastarem as moscas, dan-
do, talvez, um rugido ocasional para marcar o território,
mas estão, basicamente, semiconscientes.
– Bem, 22 horas de sono por dia? Parece o gato do meu
pai.
– Isso deixa-lhes apenas duas horas por dia para esta-
rem acordados, certo? Numa dessas horas, fazem as ati-
vidades básicas: lambem-se, brincam às lutas com os
outros membros do grupo, o que seja. Só caçam duran-
te uma hora, em 24 horas.
Rex deu um ligeiro assobio.
– Isso é que é vida. Uma semana de trabalho de cinco
horas.
– Sete – corrigiu Dess. – Eles não têm fins de sema-
na.
– Bolas.
– Ora, se os darklings forem como os grandes felinos,
então, provavelmente, caçam apenas uma hora por dia.
– Claro – concordou Rex.
– Mas o que é um dia para um darkling?
Rex pensou, enquanto pedalava, lembrando-se dos
seus conhecimentos preciosos.
– Bem, os darklings só vivem uma hora em 25, a hora
secreta. Estão imóveis no resto do tempo, tal como acon-

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tece às pessoas normais durante o tempo azul. Por isso,
são necessárias 25 horas dos nossos dias para eles viverem
um único dia das suas vidas. Em parte, isso explica por-
que vivem tanto tempo.
– Certo – disse Dess. – Portanto, um darkling dorme,
provavelmente, 23 dias dos nossos de seguida.
Rex abrandou a velocidade da bicicleta. Dess via que
ele nunca tinha pensado nisto antes e abanou a cabeça. As
vidas das pessoas seriam tão mais simples se, de vez em
quando, se dessem ao trabalho de fazer as contas.
– E isso significa – disse ele lentamente – que eles só
caçam cerca de uma vez por mês. Tal como o lobisomem
na mitologia.
– Exatamente. E é daí que vem aquela história toda sobre
a lua cheia. À exceção de que os darklings caçam uma vez
em cada 3 571 429 semanas, não em cada quatro. Mas quem
é que faz essas contas? Em todo o caso, isto significa que
existem muito mais darklings do que julgávamos, porque
a maior parte deles está a dormir em grande parte do tem-
po. O que vimos foi apenas uma ponta do icebergue. Para
cada um deles que caça, estão outros 23 a dormir.
Dess deixou Rex processar esta informação durante
algum tempo.
Finalmente, ele disse:
– Então, a questão não é: «De onde vieram todos?».
– Certo – respondeu ela. – A questão é: «Porque é que
acordaram todos?».

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