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a.C., se revelou “na sua forma mais pura e mais grandiosa”2. Aí foram formulados os “tipos
professor, nos “filósofos arcaicos”4, o pensamento e a vida eram indissociáveis. Não existia
separação entre teoria e prática. Eles viviam como pensavam e pensavam como viviam. O
pensamento constituía “um apoio para a vida e não para o conhecimento erudito, apoio a
criatividade da época áurea dos gregos, quando a Grécia foi “uma civilização autêntica”7.
1
Nietzsche inicia sua vida filosófica com uma excelente bagagem adquirida em seus estudos de filologia.
Apaixonado pela civilização helênica, a partir de 1869, quando foi convidado a assumir a cátedra de filologia
clássica em Basiléia, Nietzsche passou a ministrar cursos e conferências sobre poetas e pensadores gregos.
Seus primeiros textos, tais como Homero e a filologia clássica (discurso proferido no dia em que, aos vinte
cinco anos, tomou posse da cátedra), O drama musical grego e Sócrates e a tragédia, continham algumas
idéias que reunidas viriam compor, em 1871, sua primeira grande obra filosófica: O Nascimento da Tragédia
2
NIETZSCHE, Les philosophes préplatoniciens (FP). Apresentação e notas: Paolo D’Iorio; trad. Nathalie
Fernand. Paris, Editions de Léclat, 1994.FP, p. 83.
3
NIETZSCHE. A filosofia na época trágica dos gregos (FE). Trad. Rubens Torres Filho, in Os Pensadores,
volume “Os Pré-socráticos”. São Paulo, Ed. Abril S.A, 1973, § I.
4
Este termo é freqüentemente utilizado por Nietzsche nos aforismos do outono-inverno de 1872 em O último
filósofo.
5
FE, § I.
6
Sócrates em certo sentido faz parte dessa seqüência, pois ele foi um filósofo “puro”, no entanto, como será
visto a seguir, ele também foi visto por Nietzsche como o símbolo do socratismo, por isso, ele não faz parte.
7
FE, § I.
12
Por isso, se alguém quiser saber o que é a filosofia e quem é o filósofo não deve buscar
pensadores gregos entre os quais a filosofia apareceu à altura que sempre deve ter8:
teóricos é perceber a personalidade de cada filósofo, é o modo de ser – ethos – que não
deve ser esquecido. O que Nietzsche quer é “extrair o fragmento de personalidade que
contém e que pertence ao elemento irrefutável que a história deve guardar (...) e que não
nos pode ser roubado por nenhum conhecimento posterior: o grande homem” 10. Os
8
“Quem prefere ocupar-se da filosofia egípcia ou persa em vez de se ocupar da grega porque aquelas talvez
sejam mais originais e, de qualquer modo, mais antigas, comporta-se de maneira tão imprudente como
aqueles que não descansam antes de terem remetido a mitologia grega, tão magnífica e tão profunda, para
trivialidades físicas, para o sol, o relâmpago, a tempestade e o nevoeiro, como seus começos primordiais”,
Ibidem.
9
Ibidem.
10
Ibidem, Prefácio.
11
Ibidem.
13
dispersas nos póstumos. Esta tese tem como finalidade dar unidade e nitidez à figura
cada pensador em particular, o objetivo desta pesquisa é descobrir quais são os traços que
Os escritos de Nietzsche utilizados nesta tese foram redigidos entre 1872 e 1875,
fase em que mais se dedicou a analisar (e inclusive dar aulas) os primeiros filósofos gregos.
Os principais escritos são: O último filósofo. Considerações sobre o conflito entre arte e
em que encontramos informações precisas acerca das fontes bibliográficas usadas pelo
tem uma participação fundamental neste trabalho, pois mostra a compreensão de Nietzsche
sobre a questão da verdade e sobre a formação da linguagem. Embora não se refira aos pré-
procura elucidar. Nesses escritos – ao lado de outros pequenos ensaios: Sobre o pathos da
12
Nos dois prefácios de A filosofia na época trágica dos gregos, um livro não publicado, Nietzsche avisa ao
leitor que seu interesse é mais pelas “personalidades” originais de cada um dos filósofos do que por seus
sistemas cosmológicos. Por este motivo, para apresentá-los, ele não aborda todo o conjunto de suas idéias.
Escolhe somente as teorias “em que ressoa com maior força a personalidade de cada filósofo”. “De cada
sistema quero apenas extrair o fragmento de personalidade que contém e que pertence ao elemento irrefutável
que a história deve guardar. (...) A tarefa consiste em trazer à luz o que devemos amar e venerar sempre e que
não nos pode ser roubada por nenhum conhecimento posterior: o grande homem”.
13
Desde 1969, Nietzsche pretendia ministrar um curso sobre os primeiros filósofos (incluindo Sócrates), que
só se realizou em 1873. Como base para suas aulas, começou a escrever as Lições sobre os filósofos pré-
platônicos e terminou em 1872. Este é um manuscrito denso que consta a referência das fontes bibliográficas
e extensos comentários sobre os fragmentos dos primeiros filósofos.
14
problemas gerais, tais como: o que é a filosofia; qual é a relação entre filosofia, arte, ciência
qual o valor da arte para a vida; qual o valor da ilusão etc. Mergulhar nesse oceano de
passagem do antigo mundo dos mitos para o novo mundo racional socrático. Nesse
misturam. Nietzsche gosta e valoriza essa mistura de elementos, pois dela nasce a filosofia
(e a arte trágica), a autêntica filosofia, que irá desaparecer a partir do socratismo, quando se
impõe um novo tipo de homem, o “homem teórico” e, por conseqüência, uma nova imagem
enquanto este quer iluminar e ordenar todas as coisas através da razão, o filósofo arcaico
preserva o lugar do escuro, do silêncio, do oculto, do sagrado, e enaltece o lugar da arte, das
cores, das imagens e das metáforas. Ele não é um adepto do “otimismo teórico” cuja
14
Vale dizer que a valorização dos gregos como modelo de civilização não é uma característica apenas de
Nietzsche. Ele, como outros escritores, filólogos e artistas – como Goethe, Schiller, Schelling, Hölderlin,
Schopenhauer, Wagner – fizeram parte de um movimento cultural na Alemanha que tinha os gregos –
sobretudo, os trágicos – como paradigma.
15
homem teórico significa o fim de uma época de “maturidade viril” e o início de um período
decadente.
novo modo de ver e dizer o que é o mundo, criaram uma nova linguagem racional: o
discurso filosófico. O nascimento da filosofia com Tales supõe a ruptura com o mito. O
filósofos arcaicos como aqueles para quem a atmosfera e os costumes gregos são uma
cadeia e uma prisão: por isso eles se emancipam (...) todos contra o mito”16. Quer dizer, faz
parte dos primeiros filósofos um juízo crítico em relação às antigas verdades da tradição.
Este senso crítico, que possibilitou ver a natureza – physis – não mais como uma máscara
dos deuses, para Nietzsche, é o aspecto científico do filósofo. Tales, diz ele, possuía um
“entendimento calculador”17 que via por todos os lados relações de causalidade. Sem essa
racionalidade científica que mede, calcula, classifica e conceitua, não teria nascido o
certa dose do espírito científico está presente na filosofia desde seu nascimento.
No entanto, é preciso salientar que: os mitos ficam para trás, mas os impulsos
místicos não. A primeira filosofia mantém um certo grau de misticismo visto que suas
verdades não surgiram por meio da razão. Não é o filósofo lúcido e consciente que,
conduzindo seu pensamento numa lógica linear, finalmente, chega à verdade. Ao contrário,
a verdade é que vem ao seu encontro. Ela aparece de repente, como uma “súbita
15
FP, p. 87
16
NIETZSCHE, A ciência e a sabedoria em conflito (CS). Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. In O livro do
filósofo. São Paulo, Centauro, § 194, p. 90.
17
FE, § III.
16
revela. Se essa visão imediata da verdade é designada como experiência mística é porque
independe do indivíduo. Nietzsche chama a atenção de que até mesmo o mais abstrato dos
racional, como o próprio Parmênides disse: as deusas lhe mostraram a “verdade bem
redonda”. É importante ressaltar que o filósofo arcaico não se caracteriza pelo desejo da
verdade, pela falta da verdade, mas por sua posse. Ele tem a sua verdade que foi recebida
como um presente divino. Como ela não vem pelo discurso, em vez de falar, o filósofo
arcaico se cala a fim de escutar o que diz a physis. A escuta (como em Heráclito), e não a
Uma vez tendo vislumbrado a verdade, o filósofo arcaico não sente necessidade de
prová-la logicamente, nem para si nem para os outros. Na época trágica, o que fundamenta
traduz em palavras, em conceitos, a sua experiência da verdade mesmo sabendo que a sua
fala não diz o que ela é. Trata-se de uma experiência singular, concreta, viva. Se ele
transforma a sua visão de mundo em um sistema lógico é por prazer, não por necessidade.
filosofar está ainda presente como obra de arte, mesmo que não se possa demonstrá-lo
como construção filosófica (...) o que decide não é o puro instinto de conhecimento, mas o
ser entendidos como aqueles que “dominam o instinto de conhecimento” 24, por isso é
A primeira hipótese, a mais geral, que norteia esta tese é que a imagem do filósofo
arcaico é constituída por três traços igualmente essenciais: científicos, místicos e estéticos.
O conceito de filósofo e seus tipos – O que é comum a todos? (...) É contemplativo como o
artista plástico, compassivo como o homem religioso, lógico como o cientista: pretende que
ressoem em seu interior todos os ritmos do universo e que tal sinfonia aflore através de conceitos.
Amplia-se num macrocosmo e distancia a observação que reflete – do mesmo modo que o ator ou o
poeta dramático, que se transforma e, contudo, permanece consciente de que se projeta no exterior.
O .+
No nível mais profundo, estão as “intuições” (die Intuition, die Anschauugen): uma
vivência corporal, neurológica, concreta, singular, não racional. Distinguem-se dois tipos
matéria prima para elaborar a linguagem - e as que são extraordinárias, que só acontecem
aos homens mais raros, os filósofos27, num momento excepcional, quando é tomado pelo
possibilita sentir a unidade de todas as coisas. Esta intuição mística vivida pelo filósofo
definida como um “poder estranho e ilógico”29 (fremde, unlogische Macht) capaz de duas
atividades: a de criar e a de associar imagens (Bildern) – “Existe uma dupla força artística:
a que gera as imagens e a que as escolhe” 30. Como o artista plástico, o filósofo transforma
lugar à magia apolínea que faz o filósofo voar sobre as “asas da imaginação” 31. Agora,
“Apolo se aproxima dele e o toca com seu laurel. O encantamento dionisíaco-musical lança
à sua volta como que centelhas de imagens”. Como será visto, Nietzsche enfatiza a
do discurso filosófico. Para ele, todo discurso, mais ou menos científico, é resultado de um
Por fim, no terceiro momento, a razão entra em cena e reflete sobre as imagens
“reflexão” (Reflexion) por ambos os filósofos, ela reflete sobre as imagens, sobre as
liqüefeitas”, a razão constrói um rígido sistema lógico conceitual. Se existe um motivo para
Nietzsche admirá-la é este: “consegue erigir sobre fundamentos móveis e como que sobre
grandiosas teorias que são como teias de aranha, tênues a ponto de serem carregadas pelas
ondas e firmes a ponto de não serem despedaçadas pelo sopro de cada vento34.
Apolo. O êxtase dionisíaco e as imagens apolíneas podem ser vistos através dos aspectos
místicos e artísticos do filósofo. Nesse sentido, diz Nietzsche: “reina nos filósofos arcaicos
um instinto análogo àquele que criou a tragédia”35. O processo do qual surge o discurso
Mas o filósofo arcaico criado por Nietzsche (e tratado aqui como personagem literário) é,
sobretudo, um filósofo artista. Aqui está a segunda hipótese: no filósofo arcaico, o elemento
mais semelhante à figura imaginada por Nietzsche, pois sua filosofia apresenta uma
É importante dizer que os primeiros filósofos gregos são, por Nietzsche, agrupados
exclui. No primeiro caso, Sócrates é visto como o último dos filósofos “puros”; no
segundo, como o primeiro filósofo do “otimismo teórico”. Consideramos que tal dualidade
não é contraditória porque as duas designações possuem sentidos diferentes que, vistos no
para os filósofos “puros”, originais, que precedem os filósofos “mistos”38. Para Nietzsche,
dos três filósofos mais puros que existiram, os outros dois seriam Pitágoras e Heráclito 39. O
termo “pré-socrático” remete para o período anterior ao otimismo teórico, inaugurado por
Sócrates. A partir dele, diz Nietzsche, começa uma nova e decadente fase na história da
ações por meio da razão e contra-razão”40, o filósofo socrático utiliza - somente e sempre -
o “método racionalista”41 que exige a demonstração lógica das verdades. Para Nietzsche,
38
Platão é apresentado como o primeiro filósofo “misto”, neste aspecto, ele inicia uma nova etapa da filosofia.
Cf, FE, § II.
39
FP, p. 144.
40
NT, § 14, p. 89.
41
Ibidem, § 2, p. 81.
21
não há dúvida de que o modo socrático de ser filósofo, que acredita em “conceitos e
manifestou sua força através de seus filósofos. Com Sócrates é interrompida esta
manifestação”43. Com ele “Dá-se então o corte de tesoura. É preciso permanecer na época
Outra observação a ser feita: ao mesmo tempo em que Nietzsche elabora a imagem
qual a razão faz a crítica de si mesma e reconhece os seus próprios limites. Em O último
filósofo, Nietzsche anuncia a chegada de uma nova espécie de filósofo. Diz ele: “posso
Mas, apesar de o filósofo arcaico não ser o “filósofo trágico”47, eles têm características
comuns. A começar pelo fato de não serem otimistas teóricos. Em ambos, a razão não é a
ao filósofo arcaico (sua personagem) um certo grau de “conhecimento trágico”, pois este
sabe que seu discurso racional é incapaz de dizer a sua verdade, visto que ela não é um
produto da razão. A grande diferença entre o filósofo arcaico e o “filósofo trágico” é que
aquele não crê na razão como caminho para a verdade, mas crê na verdade intuída,
enquanto este não acredita nem na razão nem na intuição como meios de chegar à verdade.
O filósofo trágico não acredita na ciência, acredita na arte, no poder de criar ilusões; neste
Mais velho, em Ecce homo, Nietzsche chega a dizer que procurou em vão por
indícios da sabedoria trágica nos primeiros filósofos gregos e declara que ele é o primeiro
“filósofo trágico”. Porém, junto dessa afirmação vem uma dúvida, diz ele: “Permanece-me
uma dúvida com relação a Heráclito, em cuja vizinhança sinto-me mais cálido e bem
disposto do que em qualquer outro lugar”48. Nessa fase de sua filosofia, o conceito
“trágico” está vinculado ao “eterno retorno” e o único pensador que, possivelmente, o tenha
intuído (antes de Nietzsche) tenha sido Heráclito. Se Nietzsche encontrou ou não o saber
trágico nos primeiros filósofos, se Heráclito enunciou, ou não, o eterno retorno, não
sempre foram vistos como os “grandes gregos da filosofia”, assim como, Heráclito sempre
foi admirado por Nietzsche como um filósofo movido por suas intuições: “a filosofia pouco
Aristóteles”49.
Desde já vale apontar para o fato de que nos escritos utilizados nesta tese, de 1872 a
1875, a atitude de Nietzsche frente à noção de verdade se modifica: ele não defende mais
uma verdade dionisíaca, como fez em O nascimento da tragédia, segundo a qual o Uno-
originário é a eterna realidade da qual emergem os indivíduos. Nesse momento, ele tem
48
NIETZSCHE, Ecce Homo. São Paulo, Companhia da Letras, 1995. “O Nascimento da tragédia”, § 3.
49
UF, in LF, § 53, p. 16.
50
VM.
23
imaginativo, artístico. A relação que existe entre as palavras e as coisas é determinada pelo
homem. Como não existe adequação entre a linguagem e as coisas, nem o filósofo, nem o
são falsos silogismos. E é com eles que começa a razão” 51. Como afirma Mirko Wischke, a
diferença entre uma verdade que habita as profundezas dionisíacas e a ilusão que mora na
superfície apolínea.
lado, Nietzsche é um crítico da noção de verdade, pois já não mais acredita no acesso à
essência das coisas; por outro, ele não critica os filósofos arcaicos por acreditarem nas suas
verdades. Ao contrário, ele valoriza o forte sentimento, gerado pela experiência intuitiva
(que produz verdades personalizadas)53, que garante ao pensador a certeza de ter a verdade.
Como diz Conford, em seu livro Principium Sapientiae, os primeiros filósofos não se
51
UF, in LF, § 142, p. 46.
52
WISCHKE, Mirko. “O tecido quebradiço das ilusões. Nietzsche sobre a origem da arte e da linguagem”, in
Kriterion, Vol. XLVI, n. 111. Belo Horizonte, Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, janeiro a junho/2005.
53
Diz Nietzsche: “os sistemas filosóficos só são inteiramente verdadeiros para os seus criadores”, FE,
primeiro prefácio.
24
cenário que constitui a época trágica dos gregos, em que se encontram as características
gerais da filosofia arcaica: seu caráter livre e ousado; o primeiro problema filosófico (o que
é o devir); o segundo problema (o valor da existência); seu fim: marcado pelo início do
filósofo arcaico.
54
CONFORD, F.M. Principium Sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego.Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1989.
25
CAPÍTULO I
A filosofia não surgiu na Grécia na época trágica por acaso. Nesse período, o
trágicos anunciavam grandes mudanças. Diz Nietzsche: “Eles (os filósofos) e a arte ocupam
o lugar do mito que está desaparecendo” 55. Contestando os mitos e os valores do mundo
homérico, cada filósofo buscou descobrir por si mesmo qual é a lógica ordenadora do
Cosmo. Cada um apresentou uma nova imagem do universo, uma nova visão de mundo:
também criaram uma nova forma de dizer o que viram. Em suas Lições sobre os pré-
platônicos, Nietzsche define a filosofia com base nos próprios gregos: a filosofia é “a arte
de representar em conceitos a imagem de tudo o que existe. Tales foi o primeiro a satisfazer
essa definição”57, “pôs um princípio de onde ele tira suas conclusões: ele é o primeiro a
sistematizar”58. Ou seja, Tales foi o primeiro a elaborar uma visão “não-mítica” do mundo
em sua totalidade. O primeiro a ver que “tudo é um”, pois viu a multiplicidade e a
diversidade que constitui o real a partir do princípio comum a todas as coisas: arché.
nascimento da filosofia como inseparável de uma atitude crítica que contesta os mitos
cantados por Homero e Hesíodo. A nova geração de filósofos ousou pensar o mundo de um
coisas” – uma ousadia sem precedentes. Ela marca o início da filosofia grega por três
razões: “em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas;
em segundo lugar, porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque
assinalar que a expressão “tudo é um”61 marca o nascimento da filosofia, Nietzsche mostra
que o filósofo arcaico é um investigador da physis e, por isso, seu olhar ultrapassa o
De acordo com Nietzsche, Tales, que também era visto na antigüidade como um dos
Sete Sábios62, tem um mérito enorme pois ele foi um “criador e mestre que começou a
sistematizar”64.
59
UF, in LF § 194, p. 90.
60
FE, § III.
61
FE, § 3. Schopenhauer, em sua obra O mundo como vontade e representação, tão conhecida e admirada
pelo jovem filólogo, também salienta que o próprio da filosofia é perceber a unidade na diversidade e a
diversidade na unidade.
62
Nietzsche destaca como uma das qualidades mais significativas da cultura helênica o reconhecimento do
alto valor da “sabedoria”. Levando em consideração que “um povo é não só caracterizado por seus grandes
homens, mas, sobretudo, pela maneira de os reconhecer e de os honrar”, o povo grego pode ser conhecido
como aquele que mais valorizou a sabedoria, prova disso é a grande importância que davam aos Sete Sábios:
“A consagração dos Sete Sábios é um dos grandes traços característicos dos Gregos: outros povos têm santos,
os gregos têm sábios” (FP, p. 82). Estes eram tomados como modelos conforme os quais se deveria viver. É
tão grande o respeito em relação a eles que o sentimento de admiração chega a ser uma espécie de adoração
religiosa. Por isso, diz Nietzsche, a lista dos Sete Sábios era uma forma de “canonização dos sábios”, um
acontecimento similar à canonização dos santos feito pela Igreja católica.
63
FE, § III.
64
Ibidem.
28
sistematização estava a serviço dos mitos, dos cultos. Com Tales, o pensamento torna-se
livre dos mitos. No primeiro filósofo se vê liberdade e ousadia, diz Nietzsche: “Conceber
pela primeira vez o universo inteiro, tão heterogêneo, como a evolução de uma única
matéria original revela uma liberdade e ousadia incríveis. É um mérito que ninguém pode
o mundo que em sua linguagem é physis. Todos os fragmentos pré-socráticos são peri
plantas, pedras, etc. É, também, a natureza em sua totalidade e unidade. Ela não tem
princípio nem fim, ela é o princípio e o fim de todas as coisas, é arché. Na compreensão de
mas não se reduz às coisas que são. Physis “evoca o que sai ou brota de dentro de si mesmo
(por exemplo, o brotar de uma rosa), o desabrochar, que se abre, o que nesse despregar-se
se manifesta e nele se retém e permanece; em síntese, o vigor dominante daquilo que brota
65
Ibidem.
66
FP, p. 110.
29
e permanece”67. A physis é eterna, o devir é eterno, mas todas as coisas individuais – que
têm uma existência concreta e singular – surgem e desaparecem, têm princípio e fim.
ritos de purificação, por exemplo) e acabar com antigos hábitos (por exemplo, o de comer
carne). Apesar de não ter sido uma personalidade tão transformadora como Pitágoras e
homérica, “com ele, a liberdade do indivíduo está no seu ponto mais alto” 71. Nietzsche
ressalta o caráter inovador, solitário e orgulhoso dos filósofos arcaicos quando apresenta
Heráclito, o filósofo que não precisava do reconhecimento dos homens, os homens é que
67
Heidegger, M. Introdução à metafísica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1978, p. 45.
68
FE, § 1.
69
“Pitágoras ganha uma influência política considerável como o fundador de uma ordem independente, regida
por leis rituais Pitágoras se apresenta a nós como um reformador religioso”, FP, p. 133.
70
“O reformador malogrado é Empédocles”. CS, in LF, § 194, p. 90.
71
FE, § IX.
30
figura do sábio. Os antigos sábios eram de três tipos: “o príncipe patriarca rico de
o sacerdote possuíam algo em comum: acreditavam nos mitos. Crença não compartilhada
pelo filósofo, o pensador não-mítico. Diferente dos antigos sábios, o filósofo “não se limita
a uma filosofia esporádica, por sentenças isoladas; não se limita a uma grande descoberta
científica. Mas ele quer a totalidade, ele cria uma imagem do mundo” 74. Ele cria uma
sábios, pois o filósofo ousou criar uma nova linguagem para expressar uma nova visão do
mundo.
que é o devir e o que vale a existência. “O que deve fazer o filósofo? Em meio a este
eternos”75. Acima de tudo estão os problemas eternos porque o modo de ser do homem
72
Ibidem, § VIII.
73
FP, p. 102.
74
FP, p. 88. Segundo as Lições de Nietzsche, a filosofia surgiu ultrapassando “1- o estado mítico da filosofia;
2. A forma esporádica-sentenciosa da filosofia; (3. A ciência isolada). O primeiro por um pensamento
conceitual; o segundo pela sistematização, (o terceiro pela construção de uma imagem de mundo)”. FP, p. 88.
75
UF, in LF, § 27, p. 5.
31
devir.
Diferente do homem homérico, que via a natureza como um disfarce dos deuses e a
vida como um bem supremo (a ser celebrado continuamente), o filósofo vê a physis como
um enigma a ser decifrado. Porque desconhece o que ela é, ele se surpreende diante das
coisas mais simples. Seu sentimento é de “espanto”, de “admiração” 76. Nietzsche nos fala:
“eis aqui o verdadeiro sinal da aptidão filosófica: a surpresa diante do que se encontra sob
nossos olhos”77. Nesse ponto, o filósofo alemão estava de acordo com Platão, Aristóteles78 e
intelecto põe seu olhar sobre as coisas e, agora, pela primeira vez, o cotidiano lhe aparece
devir; com ele começa a filosofia jônica”81. Isto é, antes de tudo, o que o filósofo vê é o
ininterrupto vir-a-ser, e não o ser. Todos os sentidos lhe mostram a transformação constante
de todas as coisas. Por isso, o devir – essa realidade fundamental e cotidiana – é o primeiro
76
FP, p. 86. Gerd Bornheim, em seu livro Introdução ao filosofar (São Paulo, Globo, 1998), analisa a
“admiração” como um dos componentes da “atitude inicial do comportamento filosófico”, p. 23.
77
FP, p. 86.
78
Aristóteles na célebre passagem da Metafísica - Livro A - diz que o espanto é o que “leva e levou os
primeiros homens à especulação filosófica. No início, sua admiração voltava-se para as primeiras dificuldades
que se apresentavam ao espírito; depois progredindo pouco a pouco, estenderam sua investigação a problemas
mais importantes tais como os do fenômeno da lua, os do sol e das estrelas, e, enfim, à gênese do Universo.
Ora, perceber uma dificuldade e admirar-se é reconhecer a própria ignorância”. Este reconhecimento da
própria ignorância é o que move o filósofo em direção ao conhecimento.
79
Em O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer cita Platão: “É pelo esforço de se livrar de
qualquer dúvida que o homem se torna filósofo, verdade que Platão exprime dizendo que ‘o espanto -
taumatzein - é o sentimento filosófico por excelência’”; Livro 1, § 6, p. 47. FP, p 85
80
Nesse sentido, a filosofia se aproxima da ciência e das artes porque, em contraste com as religiões, se
interessam pelo simples cotidiano, FP, p 85.
81
FP, p 86.
32
enigma a ser decifrado pelo filósofo. O que é o devir? – esta é a primeira questão da
dois momentos: o primeiro, marcado pelo problema do devir, momento em que “o devir
qual o que é não está em devir) que “separa o pensamento pré-socrático em duas metades,
seu constante vir-a-ser é o ponto de partida de todos os pré-socráticos, inclusive dos Eleatas
que, apesar de negarem a existência real dele, não negavam o fato de os sentidos o
perceberem, o que eles negavam não era a visão efetiva do vir-a-ser, mas que essa visão
fosse verídica. Para Parmênides, o devir percebido pelos sentidos é pura ilusão, por isso, ele
“zangava-se com os seus olhos por verem o vir-a-ser e com seus ouvidos, por ouvi-lo. Seu
imperativo era: ‘Não siga os olhos estúpidos, não siga o ouvido ruidoso ou a língua, mas
examine tudo somente com a força do pensamento’”85. Nietzsche comenta que Parmênides
julgava que “restava para ele a tarefa de dar a resposta correta à pergunta: ‘o que é o vir-a-
ser?’ E este era o momento em que ele precisava saltar para não cair, ainda que, talvez, para
tais naturezas como a de Parmênides, todo salto equivalesse a uma queda”86. Ou seja, a
questão fundamental da filosofia não é o ser, é o devir, pois até mesmo Parmênides, que o
nega, o vê.
82
Em um fragmento póstumo de 1871-1872 (FP 14[29]). Cf. nota do tradutor dor, FP, p. 276.
83
“O problema foi colocado uma vez mais pelos Eleatas num nível infinitamente mais elevado. Eles
observaram que nosso intelecto não concebia absolutamente o devir e inferiram daí a existência de um mundo
metafísico.(...). Todos os filósofos posteriores lutaram contra o eleatismo”, FP, § 1, p. 86.
84
FE, § IX.
85
Ibidem, § IX.
86
Ibidem.
33
filosófica sobre o devir. Ele considera que tudo que está em devir, que tem uma existência
individual e temporal, possui uma determinação que a diferencia de todas as outras coisas.
E a característica principal de tudo que é determinado é o fato de que está próximo de seu
fim, está na iminência de perder a determinação que possui. Isto é, “tudo o que é
indivíduos que existem no devir são destinados à morte, toda a realidade submetida ao
tempo está fadada a envelhecer, degenerar e desaparecer. Ou seja, para Anaximandro devir
é um processo de decadência, que caminha para o fim, pois “tudo o que alguma vez veio a
ser também perece (outra vez), quer pensemos na vida humana, quer na água, quer no
quente e no frio”88.
Tudo o que está em devir morre, mas o devir, ele próprio, não morre. Entretanto,
para Anaximandro – Nietzsche mostra a sua lógica – é necessário que exista uma realidade
primordial que não esteja submetida ao devir e que seja seu fundamento. De acordo com
este raciocínio, é preciso que exista o ser antes do devir: “o vir-a-ser eterno só pode ter sua
origem no ser eterno”89. Anaximandro acredita que “o ser originário, assim denominado,
está acima do vir-a-ser e, justamente por isso, garante a eternidade e o curso ininterrupto do
vir-a-ser”90. Ou seja, para ele, o ser verdadeiro – originário, eterno e “atemporal”91 – não é o
devir, a verdadeira realidade é o eterno ápeiron, de onde tudo brota e para onde tudo
retorna, pois “de onde as coisas têm seu nascimento, ali também devem ir ao fundo,
segundo a necessidade”.
87
FP, p. 121.
88
FE, § IV.
89
FE, § IV.
90
Ibidem.
91
“(...) o tempo só existe para esse mundo individual, o ápeiron, ele é atemporal”, FP, p. 118.
34
uma realidade anterior e superior a ele. Nietzsche nos mostra que surge, aqui, pela primeira
metafísico em oposição ao mundo físico, do devir e do declínio” 92; sendo que o “mundo do
ser, do eterno”, só pode ser “por nós conhecido unicamente de modo negativo” 93, já que é
indeterminado. Essa dualidade criada por Anaximandro (do ápeiron e do devir) faz dele o
primeiro filósofo metafísico. A partir dele, a oposição entre os dois mundos e o privilégio
filosofia.
Existem dois mundos separados, por quê? Anaximandro também faz essa pergunta:
por que houve a separação do ser eterno? Como foi possível o determinado ter nascido, por
uma unidade eterna, como é possível a pluralidade? Segundo Nietzsche, para Anaximandro,
existem dois mundos separados, mas não deveria existir. O mundo da multiplicidade, do
que caracteriza o devir. Porque as coisas se separam da realidade primordial elas sofrem até
Essa visão dualista e pessimista sobre o devir marca os dois séculos trágicos da
problema do devir. Heráclito e Parmênides vieram logo a seguir. Para eles, “o ápeiron e o
92
FP, p. 123
93
Ibidem, p. 118.
94
De Anaximandro “foi dado o impulso em direção às doutrinas dos Eleatas assim como em direção a
Heráclito, a Empédocles etc”, FP, p. 118. “O primeiro e mais antigo período do próprio filosofar de
Parmênides ainda carrega a rubrica de Anaximandro; este período produziu um sistema físico-filosófico
efetivo como respostas às perguntas de Anaximandro”, FE, § IX. Parmênides, “evidentemente teve na teoria
de Anaximandro seu ponto de partida”, Ibidem.
35
mundo do devir estavam justapostos de maneira incompreensível, num dualismo brutal” 95.
Ambos
No capítulo III, será esclarecido o contraste apontado por Nietzsche entre a visão
aquele o devir é criminoso e a vida é um castigo, para este, o devir é inocente e a vida
também é.
mundo?). Indo além de Tales – cuja façanha foi ter “compreendido a pluralidade das coisas
95
FP, p. 129.
96
FE, § IX.
97
Ibidem: “Parmênides (...) tinha as mesmas suspeitas em relação à perfeita separação entre um mundo que
apenas é e um mundo que apenas vem a ser, suspeita que também Heráclito empreendera e que o conduzira à
negação do ser”.
98
FE, § IX.
99
FP, p. 123.
100
FE, § IV.
36
Anaximandro perguntou pela origem deste mundo não apenas no seu aspecto físico101. Ele
abriu as “perspectivas aos mais profundos problemas éticos. Tales se encontrava assim
infinitamente superado”102.
(Anaximandro) foi o primeiro grego que ousou tomar nas mãos o novelo
do mais profundo dos problemas éticos. Como pode perecer o que tem
direito de ser! De onde vem aquele incansável vir-a-ser, de onde vem
aquela contorção de dor na face da natureza, de onde vem o infindável
lamento mortuário em todo reino do existir?103.
vida é devir e o devir é uma injustiça que expiamos com sofrimento e morte? O que vale a
debruça, Anaximandro lança a pergunta: “O que vale vosso existir? E, se nada vale, para
devir (todos os entes vivos e não vivos) também é resultado dessa mesma injustiça. Isto é,
101
Anaximandro é, para Nietzsche, expressão autêntica da época trágica em que os deuses do Olimpo
perderam a sua majestade e o saber pessimista ganhou os palcos. Ele “vivia como escrevia; falava tão
solenemente quanto se vestia; elevava a mão pousava o pé como se esse estar-aí fosse uma tragédia em que
ele teria nascido para tomar parte como herói”, Ibidem.
102
FP, p. 118.
103
FE, IV.
104
Ibidem, § IV. Agora “a questão posta não era mais puramente física, mas (...) abria perspectivas aos mais
profundos problemas éticos”; FP, p. 118.
105
Ibidem.
37
para Anaximandro, a vida traz consigo uma falta moral, por isso, tudo que vive paga pelo
crime de ter nascido. Seguindo essa lógica: a vida não é digna de ser vivida, pois ela traz
consigo o crime e o castigo. Nietzsche mostra que Anaximandro foi o primeiro a dar uma
como sendo “o primeiro problema filosófico”106, pois seu interesse, nesse momento, é
acorrentado, que apresenta e representa o problema do crime original, que explica porque o
homem traz consigo o sofrimento e a morte. Diz Nietzsche: “o primeiro problema filosófico
coloca como um bloco rochoso à porta de cada cultura”107. O bloco rochoso é uma metáfora
para falar de Prometeu que, para ele, é uma personagem mitológica de fundamental
importância para a civilização helênica. O mito de Prometeu se destaca porque aponta para
a penosa e insolúvel contradição que caracteriza o gênero humano. Ele explica porque os
homens sofrem e morrem: porque existe um crime na origem de sua história. A vida traz
Ao falar do “bloco rochoso que está na porta de todas as culturas”, o mito mostra a
dualidade que existe no homem: por um lado, ele é um ser vivo que traz em si a centelha
destinado à degeneração. E por que o homem traz em seu seio essa contradição, essa “dupla
106
NT, § 9, p.67.
107
Ibidem.
108
Segundo Nietzsche, a tragédia de Ésquilo mostra que “o melhor e o mais excelso do que é dado à
humanidade participar, ela o consegue graças a um sacrilégio, e precisa agora aceitar de novo as suas
conseqüências, isto é, a inundação total de sofrimentos e inquietações com que os ofendidos Celestes afligem
o nobre gênero humano que aspira para o alto”, Ibidem.
38
essência”109? Por que seu melhor bem – o fogo, o conhecimento – lhe gera o pior de todos
os males? A resposta do poeta trágico, como dito anteriormente, é: porque existe, na origem
da vida, um crime.
sofrimento e todo o mal que aflige o homem é resultado de uma transgressão original. Mas,
Nietzsche também aponta para a diferença. Entre os gregos, houve um delito: Prometeu
roubou o fogo sagrado dos deuses e o deu aos homens. Já entre os hebreus e cristãos, houve
um pecado que se realizou quando Eva, uma personagem negativa, maliciosa e enganadora,
persuadiu Adão a comer o único fruto proibido. A grande diferença é que o “pecado
ativo”110 de Prometeu tem a sua “glória”111, e uma enorme glória, enquanto o crime de Adão
não tem mérito algum, foi simplesmente uma transgressão passiva e inglória. Essa
diferença quanto à dignidade que conferem ao sacrilégio reflete o quanto os gregos são
diferentes dos judeus e cristãos. Deleuze, em sua obra Nietzsche e a filosofia, assinala que,
Nietzsche diferencia os gregos dos cristãos porque para os primeiros, na vida, existe
É importante notar que esse pessimismo fora e dentro do universo filosófico é uma
característica da época trágica dos gregos, que é uma “idade adulta, corajosa e vitoriosa”,
109
Diz Nietzsche: “sua natureza (é) a um só tempo dionisíaca e apolínea”; Ibidem, § 10, p. 69.
110
Ibidem, § 9, p. 67. Para os gregos, Prometeu, “o grande amigo dos homens”, é admirado e adorado. Seu
crime é considerado uma ação nobre, proveniente de uma atitude de força e audácia (e, além do mais, o
sacrilégio é necessário). Ao contrário, no mito da Árvore do conhecimento, Adão pecou por ter cedido aos
encantos de Eva, por isso, sua ação foi resultado de uma fraqueza. Seu pecado foi ter cedido.
111
NT, § 9, p. 65.
112
“(...) quando os gregos falam da existência como criminosa e ‘hybrica’, pensam que os deuses tornaram os
homens loucos; a existência é culpada, mas são os deuses que assumem a responsabilidade da falta”; “em
relação ao cristianismo os gregos são crianças. Sua maneira de depreciar a existência, seu ‘niilismo’, não tem
a perfeição cristã. Eles consideram a existência culpada, mas não inventaram ainda o refinamento que consiste
em julgá-la faltosa e responsável”. DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia.. Rio de Janeiro, Editora Rio, 1976,
p. 18.
39
mas também é uma fase de crise de valores. No período trágico, ressurge a figura do sábio
Sileno que tinha sido banido do mundo homérico. Companheiro de Dioniso, ele traz de
Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo
tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio Sileno, o companheiro de
Dioniso. Quando por fim ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei
qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem.
Obstinado e imóvel, o demônio calava-se; até que, forçado pelo rei,
prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras:-
“Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me
obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de
tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser.
Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”113.
pelos ares, quando os valores do fantástico mundo homérico perdem sua validade. Por isso,
Nietzsche considera essa época perigosa. A filosofia nasceu, diz ele, “entre os perigos
enormes e as tentações de uma vida secularizada”114. “É nas épocas de grande perigo que
aparecem os filósofos – no momento em que a roda gira com velocidade cada vez
maior”115.
Vale notar que Anaximandro e Ésquilo, frutos da época trágica, usando diferentes
essência da vida, um crime moral, viram “a desventura na essência das coisas (...), a
113
NT, § 3, p. 36.
114
FE, § I, p. 21.
115
UF, in LF, § 24, p. 3.
116
NT, § 9, p. 67.
40
Na época trágica, o mundo glorioso dos heróis homéricos chega ao fim: “o engano
genial para escapar do pessimismo – perde seu encanto. Quebrou-se o espelho que
insignificante aparece sob o sol do meio-dia. Os deuses foram embora e os homens ficaram
sós119. O filósofo surge exatamente nesse momento de desilusão e solidão. Ele veio – com
sua nova verdade – preencher o vazio que existia: “cada um dos filósofos gregos expressa
uma angústia: e nesta lacuna insere o seu sistema. Edifica o seu mundo sobre esta
lacuna”120.
vital e radiante, pois ele olha o mundo através de um “espelho transfigurador” (o véu de
Apolo) que o faz ver, em todos os lugares, a presença dos magníficos deuses123. No mundo
homérico, os homens são semelhantes aos deuses: vivem a mesma vida (com a diferença de
117
Ibidem, § 21, p. 129.
118
Ibidem, § 3, p. 36.
119
Entram em cena figuras trágicas: “Aquela Moira [Destino] a reinar impiedosa sobre todos os
conhecimentos, aquele abutre a roer o grande amigo dos homens que foi Prometeu, aquele horrível destino do
sagaz Édipo, aquela maldição sobre a estirpe dos Átridas, que obriga Orestes ao matricídio, em suma, toda
aquela filosofia do deus silvano, justamente com seus míticos exemplos”, NT, § 3, p. 37.
120
UF, in LF, § 27, p. 5.
121
NT, § 3, p. 35. “(...) o mesmo impulso que se materializou em Apolo, engendrou todo o mundo olímpico
e, nesse sentido, Apolo deve ser reputado por nós como um pai desse mundo”, NT, § 3, p. 37.
122
Ibidem, p. 36.
123
Ibidem. O “homem homérico” é extremamente vital, radiante: com um “filtro mágico no corpo puderam
tais homens exuberantes desfrutar da vida a ponto de se depararem, para onde quer que olhassem, com o riso
de Helena – a imagem ideal, ‘pairando em doce sensualidade’, da própria existência deles”. A imagem da
existência é, então, o sorriso de Helena “pairando em doce sensualidade”. Por isso, ele ama e celebra a
existência.
41
que estes morrem e aqueles são imortais), por isso, diz Nietzsche: “os deuses legitimam a
estivesse sonhando e, embalado por esse sonho, diz: “É um sonho! Quero continuar a
sonhá-lo”127. Nietzsche compara o efeito benéfico da “magia terapêutica” 128 de Apolo com
os sonhos e o sono: “o nosso ser mais íntimo, o fundo comum a todos nós, colhe no sonho
Apolo esconde nas profundezas todo o lado terrível, grotesco, titânico da existência,
deixa na superfície somente a “bela aparência”130. Nesse sentido, diz Nietzsche, Apolo é o
deus que legitima a existência individual. Oferecendo o sonho e a magnífica ilusão, ele
fortalece o indivíduo que passa a sentir-se forte como se fosse um deus. Envolvido por sua
124
Ibidem, p. 37.
125
Ibidem.
126
Ibidem.
127
Ibidem, § 1, p. 29.
128
Ibidem, § 21, p. 127.
129
Ibidem, § 1, p. 29. “Essa alegre necessidade da experiência onírica foi do mesmo modo expressa por
Apolo”; NT, § 1, p. 29.
130
Ibidem, § 1, p. 30.
42
cita Schopenhauer quando este descreve a imagem de um homem que vive sob os efeitos
véu de Maia. Mas, apesar das diferenças, o que está em questão é o mesmo poder de
enganar o indivíduo quanto a sua própria força. O homem iludido sente-se poderoso, sente-
se em terra firme até mesmo quando está em meio ao mar enfurecido. Sua segurança é
Schopenhauer - o barqueiro que, apesar das ondas gigantescas, mantém-se confiante em seu
minúsculo barco – é a escolhida por Nietzsche para descrever o homem apolíneo: ele vive
131
Ibidem, § 25, p. 143.
132
Ibidem, § 1, p. 30.
43
“apoiado e confiante no principium individuationis”133. Embora tal força seja fruto de uma
ilusão (já que o véu esconde do olhar ingênuo a verdade pessimista sobre a vida), a magia
uma reforma dos gregos, mas não como precursores de Sócrates” 134, pois a novidade que
trouxeram, e que não foi à frente, foi uma filosofia na qual a razão é essencial, mas não é a
pensamentos abstratos, em sua fala está presente a noite mística e o colorido das artes
que possuíam.
Nietzsche faz severas críticas a Sócrates. Mas, quem é Sócrates para Nietzsche 135? É
133
Ibidem.
134
UF, in LF, 194, p. 90.
135
Esta foi a questão principal da minha dissertação de Mestrado: O Sócrates de Nietzsche. Da certeza dos
instintos à incerteza da razão. Rio de Janeiro, UFRJ-IFCS, 1999.
136
NT, § 15, p. 92.
44
força, diz Nietzsche, “que só encontramos, para o nosso horrorizado espanto, nas maiores
“otimismo teórico”141 foi porque, em sua ótica, ninguém mais e melhor do que ele encarnou
essa nova maneira de ser “absurdamente racional”. Sócrates, o “dialético superior”, foi o
primeiro que não só dedicou sua vida à busca incessante do conhecimento verdadeiro como
foi o primeiro a morrer por ele. Fazendo do ato de morrer uma espécie de ritual filosófico,
esse plebeu saiu do anonimato e entrou para a história. Tornou-se o novo modelo de
homem e de filósofo que passou a encantar a juventude grega, a começar pelo belo e nobre
Platão. Portanto, devido ao caráter excepcional do homem Sócrates, Nietzsche faz dele o
socratismo em relação à arte. Eurípides, o poeta sóbrio que veio condenar e combater os
137
“Enquanto, em todas as pessoas, o instinto é justamente a força afirmativa e a consciência se conduz de
maneira crítica e dissuasiva, em Sócrates é o instinto que se converte em crítico, a consciência em criador –
uma verdadeira monstruosidade per defectum! E na verdade percebemos aí um monstruoso defectus de toda
disposição mística, de modo que se poderia considerar Sócrates como o específico não-místico, no qual a
natureza lógica se desenvolvesse tão excessiva quanto no místico a sabedoria instintiva”; NT, 13, p. 86.
138
Sócrates, diz Nietzsche, olhava a tragédia com “aquele olho em que nunca ardeu o gracioso delírio de
entusiasmo artístico”; Ibidem.
139
Ibidem.
140
Ibidem.
141
Ibidem, § 15.
142
Ibidem, § 12.
143
“Também o divino Platão fala, quase sempre com ironia, da faculdade criadora do poeta, na medida em
que ela não é discernimento consciente, e a equipara à aptidão do adivinho e do intérprete de sonhos; posto
que o poeta não é capaz de poetar enquanto não ficar inconsciente e nenhuma inteligência residir mais nele”;
Ibidem, § 12.
45
vêem na tragédia algo que não pode ser delimitado, medido; nela encontram o impreciso, o
causa uma má reação. Eles não gostam da tragédia porque não gostam do que não
compreendem. A relação de Eurípides com Ésquilo e Sófocles é análoga a que existe entre
trágica o otimismo teórico deu fim à filosofia arcaica. Assim aconteceu o fim de um “belo
a cultura de modo geral. O filósofo torna-se um otimista que acredita na razão como o
único caminho para a verdade. Agora, “a filosofia deixa escapar de suas mãos as rédeas da
144
Ibidem, § 11.
145
Ibidem, § 11.
146
Ibidem, § 13.
147
Ibidem, § 13.
148
UF, in LF §57, p. 18.
149
CS, in LF, § 193, p. 89.
46
deduções (...) como a atividade suprema e o admirável dom da natureza, superior a todas as
outras aptidões”152. Isso porque ele traz consigo uma nova crença de que a humana razão é
capaz de conhecer a verdade do mundo: “aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio
condutor da causalidade, atinge os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em
acreditar que tem as coisas imediatamente, como objetos puros diante de si”154. Esse erro é
realidade porque se esqueceu que suas representações abstratas só existem como reflexo
das imagens produzidas pela imaginação, que, por sua vez, só existe a partir das impressões
recebidas pela intuição. O filósofo otimista projeta seus sistemas lógicos sobre o mundo e
se esquece que seu conhecimento é projeção antropomórfica e que suas palavras são
metáforas.
mesa, é uma verdade em si, em síntese, só pelo fato que o homem esquece
de si enquanto sujeito e enquanto sujeito da criação artística, é que ele
vive com algum descanso, alguma segurança e alguma coerência: se
pudesse escapar por um único instante dos muros da prisão desta crença,
estaria imediatamente terminada a sua ‘consciência de si’155.
esquecidos de que suas verdades e mentiras, regras e leis, são apenas figuras de linguagem
criadas por eles próprios. Mas, continua Nietzsche, se os homens vivem iludidos é porque
precisam de ilusões para poder existir como indivíduo e como sociedade. A ilusão é útil e
coerência desejada.
É importante salientar que o alvo das críticas de Nietzsche não é o fato de o homem
precisar de verdades, mas o de afirmá-las como verdades absolutas. Quer dizer, Nietzsche
faz críticas ao filósofo otimista porque, em nome de uma verdade teórica que não existe, ele
desqualifica o que não é racional. Por isso, é necessário impor limites à pretensiosa razão
socrática que se auto intitula a única a enunciar verdades legítimas. “Por que se necessita de
tal freio? Porque, considerando do ponto de vista científico, é uma ilusão, uma inverdade,
visto, Nietzsche faz questão de denunciar este esquecimento e lembrar que a linguagem
“As palavras são apenas símbolos das relações das coisas entre si e conosco, elas não
denigre moralmente os outros impulsos que não se submetem à sua lógica racional. O
filósofo socrático não admite confusão, gosta somente do que pode ser conhecido, ordenado
e controlado pela razão, por isso, tem aversão a embriaguez dionisíaca e só aceita as
o filósofo deve ser um homem teórico. Movido por um impulso excessivamente racional,
científico, o filósofo socrático renega seu parentesco com a arte e com a religião. O que é
158
VM.
159
UF, in LF, 25, p. 3.
49
CAPÍTULO II
Após analisar o amplo panorama que envolve o filósofo arcaico, neste capítulo, a
imagem do filósofo arcaico será decifrada, tornando nítido os traços que compõem essa
figura imaginária. Apresentar-se-á aqui o autêntico filósofo arcaico (criado por Nietzsche) a
partir das duas primeiras hipóteses: 1- ele é definido pela mistura dos três elementos
linguagem a partir de três momentos: primeiro, o corpo intui, recebe impressões do exterior
conceito que nada mais é do que uma entidade abstrata, uma imagem duplicada, metáfora
passa pela imaginação e chega à razão, para Nietzsche, são “transposições ilógicas” e
“artificiais” que não guardam nenhum vínculo natural com “o enigmático X da coisa em
si”161. Isto é, a constituição da linguagem não segue nenhum fio condutor capaz de
assegurar que o discurso diz a verdade das coisas. Segundo o professor de filologia, o que
sistemas teóricos. Para Nietzsche, não há dúvida de que a “formação artística das
atividade nervosa que opera por baixo”163. “A criação da forma; nela não há que se
pressupor um ser que intui?”164; “a imitação (a imaginação) supõe uma recepção, depois
160
Diz Nietzsche: “Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A
imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora. E a cada vez completa mudança de esfera,
passagem para uma esfera inteiramente outra e nova”, VM.
161
“Confunde-se o significado original das palavras, permanecendo sempre o fato de que o homem representa
o ser-aí das outras coisas segundo a analogia com seu próprio ser-aí, portanto, antropomorficamente, em todo
caso, através de uma transposição ilógica”, FE, § IX.
162
Ibidem.
163
Ibidem.
164
UF, in LF, § 108, p. 37.
51
superfície como arbitrário, como por nosso gosto”166; “ao pensar já se deve ter o que se
Vale esclarecer que: em Verdade e mentira e em outros aforismos que tratam sobre
a linguagem, Nietzsche fala a respeito das primeiras intuições, mas em nenhum momento
fala sobre a “intuição mística” porque, nesses escritos, o que está em questão são as
atividades corporais, neurológicas, que acontecem com todos os homens todos os dias,
O filósofo arcaico é uma figura plural. Por um lado, é contemplativo como o artista
plástico que cria e associa imagens, por outro, é semelhante ao cientista que transforma
sente em comunhão com a physis, que escuta a música do universo e a deixa ressoar em si.
Diz Nietzsche:
165
Ibidem, § 54, p. 16. “Sensação, movimentos reflexos, muito freqüentes e seguindo-se com rapidez de
relâmpago, animam-se progressivamente, produzindo a operação de raciocínio”, UF, in LF § 97, p. 33
166
Ibidem, § 64, p. 21.
167
Ibidem.
52
O filósofo arcaico será visto, em primeiro lugar, pela sua semelhança com o
cientista, isto é, por seu traço racional. Segundo Nietzsche, a filosofia surgiu quando houve
discurso científico: “não há filosofia separada da ciência: naquela como nesta, pensa-se da
mesma maneira”170. Quer dizer, a filosofia e a ciência pensam através de causas e efeitos;
É importante ressaltar que são encontrados nos aforismos do jovem professor tanto
críticas quanto elogios à razão e à ciência. As críticas são direcionadas não à razão, mas aos
seus excessos: a avidez pelo conhecimento, o desejo da verdade “a todo custo”. Para
Nietzsche, não se trata de aniquilar a ciência, mas de dominá-la; não se trata de negar a
razão, mas de impor-lhe limites. Eis a grande qualidade apontada e valorizada por ele: os
filósofos pré-socráticos eram racionais, mas não excessivamente racionais. Eles dominaram
168
FE, § III.
169
Paolo D’iorio - tradutor de Os Filósofos pré-platônicos para o francês –, destaca a importância do “espírito
científico” dos filósofo arcaicos e cita um aforismo de Nietzsche que diz: “O filósofo e o espírito científico
escolhem como problema e acham interessante precisamente o habitual e cotidiano, o irregular e o
excepcional ocupam aqueles que tem a imaginação de espíritos não científicos”, FP, p. 279. O cotidiano
tornou-se problemático para o filósofo quando ele se libertou dos mitos, quando “o intelecto tornou-se livre e
pôs seu olhar sobre as coisas, (aí) pela primeira vez, o cotidiano lhe apareceu digno de interesse,
problemático”. Nesse ponto, a ciência e a filosofia estão próximas da arte: “A ciência tem em comum com a
arte que as coisas as mais cotidianas lhes aparecem novas e atraentes: a vida é digna de ser vivida, diz a arte; o
mundo é digno de ser conhecido, diz a ciência”, FP, Notas, p. 279.
170
UF, in LF, § 61, p. 20.
171
UF, in LF, § 32, p. 6
53
Embora seja um crítico do otimismo teórico, Nietzsche reconhece que sem uma
certa dose de “Iluminismo”, de espírito científico, estaríamos ainda vivendo de acordo com
o pensamento mítico. Sem o uso da razão, a expressão “tudo é um” não teria surgido. A
razão refreia o ritmo intenso das sensações e sentimentos e permite refletir sobre o devir e
valoriza o poder da razão de parar a “roda do tempo”173 é porque esta paralisação permite a
construção do discurso filosófico. Nesse sentido, ele faz o elogio do aspecto científico da
filósofo: agarra-se a ele (ao conceito) para fixar o seu encantamento, para o petrificar” 175. A
quem apresentou a mais abstrata das teorias, a do ser, enquanto Demócrito apresentou a
mais científica, a teoria mecanicista. O que significa dizer que Parmênides é o modelo do
filósofo abstrato, mas não do filósofo científico, já que a ciência quer conhecer o mundo
172
“A filosofia é uma soma de juízos bastante universais, cujo fundamento de conhecimento é imediatamente
o mundo no seu conjunto, sem nada excluir”, SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e
representação (MC). Tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barbosa. São Paulo, Editora UNESP,
2005, § 16, p. 137.
173
UF, in LF, § 24, p. 3: “Pois a maneira de consideração filosófica consiste no desprezo pelo presente e pelo
instantâneo. Ele (o filósofo) tem a verdade; é possível que a roda do tempo role para onde quiser, ela nunca
poderá escapar da verdade”, PV, p. 25.
174
O filósofo como médico da civilização, in LF, § 169, p. 57.
175
FE, § III, p. 31.
176
FP, p. 278.
177
“Tales quer a ciência, bem como Anaxágoras, Demócrito, o organon de Parmênides”. “Domínio do
místico: reforço do sentido da verdade contra a ficção livre (...), reforço do conhecimento puro (Tales,
Demócrito, Parmênides)”, O filósofo como médico da civilização, in LF, § 175, p. 62.
54
fenômeno cai, forma-se um ódio em não poder livrar-se desta eterna fraude dos
sentidos”178.
Nietzsche a segue em vários aspectos, a começar pela afirmação de que: “o mundo inteiro
e exclusiva do homem”181, “o animal sente e intui; o homem, além disso, pensa e sabe”182;
2- A razão serve como “um meio para conservação do indivíduo e da espécie como
apenas UMA função, a formação dos conceitos. Desta única função explicitam-se bastante
facilmente por si mesmos todos aqueles fenômenos (...) que diferenciam a vida dos homens
178
FE, § X.
179
MC, § 14, p. 117.
180
MC, § 10, p. 99.
181
MC, § 16, p. 139. “a ação e o comportamento do homem se diferenciam bastante da ação e do
comportamento animal, semelhante diferença deve ser vista tão somente como conseqüência da presença de
conceitos abstratos na consciência. A influência destes sobre a nossa existência inteira é tão determinante e
significativa que, em certo sentido, pode-se dizer que estamos para os animais, assim como os animais estão
para os destituídos de olhos”. Ibidem.
182
Ibidem, § 8, p. 83.
183
Ibidem, § 27, p. 217. “O conhecimento em geral, quer simplesmente intuitivo quer racional, provém
originariamente da Vontade e pertence à essência dos graus mais elevados de sua objetivação, como mera
mekané’, um meio para conservação do indivíduo e da espécie como qualquer outro órgão do corpo”.
184
Ibidem, § 8, p. 83.
55
da dos animais”185. 4- A razão não existe por si mesma, mas como “reflexo”186 das
atividades corporais - não está vinculada a um espírito, a uma alma, não é uma entidade,
não é um eu, não é a psique (embora a consciência utilize, com freqüência, raciocínios
lógicos). Diz ele: “muito apropriadamente e com precisão infalível”187, a razão foi
conhecimento intuitivo”188.
Schopenhauer reconhece seu valor para a vida humana. Apesar de valorizar mais a arte e a
(pois este está limitado a conhecer as relações entre os fenômenos enquanto aquele pode ter
acesso às “Idéias”), ele conhece a importância do raciocínio lógico, abstrato, para fixar e
fixamos nos conceitos”189. “O que dá valor à ciência, ao conhecimento abstrato, é que ele é
O homem vive, diz Schopenhauer, “uma segunda vida in abstracto ao lado da sua
hostis, pode ponderar previamente e calcular suas ações. Porque possui a razão o homem se
diferencia dos animais e cria um mundo paralelo ao mundo do presente efetivo que é
frio diante dos mais terríveis acontecimentos, pois lhe é dado “recolher-se na reflexão”.
É interessante notar que, ao descrever o filósofo da época trágica, Nietzsche usa esta
mesma imagem, a do ator dramático que consegue manter-se sereno em sua atuação porque
usa a sua fria razão como um instrumento que lhe possibilita controlar suas emoções. O
controle sobre os próprios sentimentos permite o filósofo arcaico, como o poeta trágico,
transformar suas impressões em discursos que podem ser comunicados a várias gerações
futuras. Diz Nietzsche em sua definição de filósofo: “(este) amplia-se num macrocosmo e
distancia a observação que reflete – do mesmo modo que o ator ou o poeta dramático, que
verdade das coisas e as palavras dizem essa verdade. Para ele, a razão só existe no homem e
não no mundo. A linguagem é uma construção racional que só faz sentido para quem possui
a razão, isto é, para o próprio homem. As representações abstratas são um código inventado
192
Ibidem, § 16, p. 139.
193
Ibidem, § 16, p. 141.
194
UF, in LF, § 58, p. 18. Esta mesma definição se encontra em FE, III: “O filósofo busca ressoar em si
mesmo o clangor total do mundo e, de si mesmo, expô-lo em conceitos; enquanto é contemplativo como o
artista plástico, compassivo como o religioso, à espreita de fins e causalidades como o homem de ciência,
enquanto se sente dilatar-se até a dimensão do macrocosmo, conserva a lucidez para considerar-se friamente
como o reflexo do mundo”.
57
e decifrado pelo homem, pois “é a razão que fala para a razão, e o que ela comunica e
com Schopenhauer em vários sentidos. Para Nietzsche, a razão não existe por si mesma, ela
é um “reflexo”196 das atividades corporais, físicas, químicas, nervosas. É o corpo que está
em primeiro lugar, é ele quem dá vida à razão (idéia fundamental em todo o percurso da
fisiológica. Os conceitos são constituídos de modo arbitrário, só existem e têm sentido para
os homens. Assim como Schopenhauer, Nietzsche afirma que não existe uma
antropomórfico.
195
MC, § 9, p. 86.
196
“O pensamento consciente nada mais é do que uma escolha entre as representações. Há um longo caminho
até à abstração”. UF, in LF, § 63, p. 21. “As formas do intelecto nasceram da matéria, muito gradualmente”
Ibidem, § 106, p. 36. “Os raciocínios inconscientes provocam a minha reflexão (...). O pensamento
inconsciente deve completar-se sem conceitos: por intuições, portanto”, Ibidem, § 116, p. 38.
197
Ibidem, § 54, p. 16.
58
colocadas de lado e selecionadas apenas as que servem para compor o que seria a folha em
geral. Desse modo, as características próprias de cada folha são desconsideradas. Nietzsche
enfatiza a idéia de que o conceito surge desta desconsideração pelo singular, por isso, ele (o
identificação do não idêntico (...) do arbitrário abandono das diferenças individuais”198. Ora,
realidade. O conceito pretende dar conta do que é singular através do universal, mas, ao
omissão. Segundo Nietzsche: “Todo conhecimento que nos faz progredir é uma maneira de
palavras dizem o que são as coisas. Em todo homem existe a tendência natural à crença na
impulso à crença no conhecimento. O homem crê na verdade que ele próprio inventou. Sua
crença na verdade lhe permite viver em paz com os outros homens, que também comungam
filosofia. Sobre alguns aspectos relevantes, discorda de seu educador. Uma das principais
intuitivo tem acesso a uma “verdade absoluta”, que corresponde à contemplação da Idéia.
Diz ele: “a intuição é a fonte primeira de qualquer evidência, e tão somente a referência
imediato da Idéia é o único seguro, “já que toda intermediação por conceitos acarreta
não considera possível alcançar pela intuição a “verdade absoluta”. Para ele: “A verdade é
ainda, a razão) não leva à verdade. Nietzsche também não acredita na existência das Idéias,
como não acredita que é possível sair da dimensão humana e atravessar o abismo que nos
201
Ibidem, § 134, p. 43.
202
MC, § 15, p. 122.
203
Ibidem, § 15, p. 122.
204
VM.
60
filosofia de Schopenhauer e, por outro, discorda, assim também é sua relação com Kant.
Kátia Muricy aponta, em seu artigo A arte do estilo, as principais semelhanças e diferenças
Esta última frase esclarece a diferença entre Nietzsche e Kant quanto à linguagem.
que tiveram a sua origem nas necessidades da espécie e foram fruto da capacidade ficcional
intuitivo são decorrentes de um processo artístico que não é capaz de fundamentar nenhum
conhecimento como uma construção cujos pilares são metáforas. A esfera da razão só
coisas. A linguagem não é o lugar onde se encontram as verdades do mundo, é o lugar onde
205
MURICY, Kátia. “A arte do estilo”,. In Assim falou Nietzsche III. Rio de Janeiro, Sete Letras, 2001.p. 85–
86.
61
confundem as palavras com as coisas. Como nos fala Nietzsche: “o conceito ‘lápis’ é
confundido com a coisa ‘lápis’”207. Normalmente, o homem acredita que o mundo é tal
como ele o vê, que as coisas são como as percebe. Na contramão desta crença metafísica,
Nietzsche defende a idéia de que todo conhecimento começa com o conceito e este surge da
criação de metáforas que é um processo artístico, ilógico e arbitrário; “com ele (o conceito)
começa o nosso conhecimento: pela denominação, pelos gêneros que estabelecemos. Mas a
falar do mundo. “Tempo, espaço e causalidade não são mais que metáforas do
conhecimento” o homem se sente o senhor da realidade, pois ele lhe impõe ordem. Ele cria
um mundo onde todas as coisas têm sentido: uma vez designadas, tornam-se familiares. Dar
206
FE, § IX.
207
UF, in LF, § 152, p. 51.
208
Ibidem, § 150, p. 50.
209
Ibidem, § 140, p. 45.
62
Não podemos deixar de falar aqui sobre a obra de Michel Foucault, As palavras e as
coisas. Vale salientar que Foucault escreveu esse livro motivado por um texto do poeta
Jorge Luis Borges. Ou melhor, como ele próprio diz no prefácio, As palavras e as coisas
nasceu de um riso ao ler uma citação feita por Borges de uma “uma certa enciclopédia
Foucault achou engraçada essa classificação, pois ela mostra o quanto é arbitrário os
princípios adotados para pensar a realidade. Essa taxinomia chinesa “sacode todas as
que tornam sensata para nós a população dos seres, fazendo vacilar e inquietando por longo
tempo a nossa prática milenar do Mesmo e do Outro”. Ora, é exatamente isto o que faz
familiaridades do pensamento”.
universo e mostra que durante todo o tempo em que a humanidade existiu sobre o planeta
210
Ibidem, § 141, p. 46.
63
terra foi um tempo irrisório diante da eternidade da natureza. Diante do cosmo infinito é
tempos em que não existia nem o homem nem a ciência e ainda haverá outros sem a
existência deles. Nietzsche compara o homem à mosca que também percebe o mundo a
através de conceitos, juízos e deduções pode “abarcar em círculos, cada vez mais largos, o
quando “naufraga o otimismo oculto da ciência”, quando “o homem nobre e dotado (...)
tropeça nas fronteiras do pensamento lógico e vê, assustado, que a lógica não tem outro
Quando divisa aí, para seu susto, como, nesses limites, a lógica passa a
girar ao redor de si mesma e acaba por morder a própria cauda – então
irrompe a nova forma de conhecimento trágico, que mesmo para ser
apenas suportado, precisa da arte como meio de proteção e remédio214.
Nietzsche utiliza, nessa passagem, o conceito “trágico” para falar dos limites do
individuationis está a “vida eterna da vontade”, “a mãe primordial eternamente criativa” 215.
211
VM.
212
NT, § 15, p. 95
213
Ibidem.
214
Ibidem.
215
Ibidem, § 17, p. 103. A tragédia ensina que o aniquilamento do indivíduo não afeta a verdadeira e eterna
realidade do Uno-primordial. Daí é possível o “consolo metafísico”, pois sabe-se, não através de conceitos,
mas de modo imediato, intuitivo, que “a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mutação dos fenômenos, é
indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria”, “(...) a tragédia, com o seu consolo metafísico, aponta para a
vida perene daquele cerne da existência, apesar da incessante destruição das aparências”, Ibidem, p. 55.
64
Ele se refere aos limites da razão, ele vai contra as filosofias dogmáticas. Isto é, o
conhecimento trágico aponta para Kant e Schopenhauer. Estes são vistos por Nietzsche
como seus precursores no combate ao otimismo teórico. Com eles foi reconhecida como
possível sondar “o ser mais íntimo das coisas. A enorme bravura e sabedoria de Kant e
que reconhece seus limites, remete ao modo como a razão se relaciona com ela própria: ela
chega às suas fronteiras, por isso não pretende “apreender o absoluto com a consciência”.
da razão – e seus limites - já não pode mais ser aceita. Desde então, a filosofia otimista é
uma “ignorância atrevida”. Se Parmênides, como será visto, é ingênuo em relação aos
poderes da razão, depois de Kant não há mais como se iludir com a possibilidade de, por
meios racionais, chegar a uma verdade em si. Por conseguinte, a tarefa da filosofia pós-
Ainda em O nascimento da tragédia, Nietzsche, como ele próprio diz, “se atreve” a
denominar trágica uma cultura que se apoia no conhecimento trágico. Quer dizer, Kant e
Schopenhauer são apresentados como “matadores de dragões”218 que fundam uma cultura
trágica, “cuja característica mais importante é que, para o lugar da ciência como alvo
216
Ibidem, § 18, p. 110
217
FE, § IX.
218
NT, § 18, p. 111.
65
supremo, se empurra uma sabedoria que não está iludida pelos sedutores desvios das
ciências”219.
este “é conduzido a uma ciência cega, ao saber a todo custo”220, o “filósofo trágico” faz a
sentido, ele é igual ao filósofo arcaico, é o oposto do otimista teórico. Não acredita que a
não crê na revelação mística da verdade. O filósofo trágico não é metafísico. “Não
estabelece nenhuma crença nova”. Está aqui o que o diferencia do filósofo arcaico: ele
Quer dizer, ele não acredita que é possível chegar a coisa-em-si nem pela razão nem pela
intuição mística. O filósofo trágico vive consciente dos limites do conhecimento. Ele sente
Não é Kant, porque o filósofo trágico não se satisfaz com as ciências particulares, “o
turbilhão enovelado das ciências não pode satisfazê-lo”. Vale notar que Kant aceitou a
afirma que é preciso querer a ilusão e Schopenhauer não quis a ilusão, quis a verdade
absoluta das Idéias que são conhecidas pela intuição. Ele criticou o conhecimento dos
Ora, o filósofo trágico não é Kant porque não crê no conhecimento dos fenômenos e
não é Schopenhauer porque não crê em nenhuma metafísica. O filósofo trágico é o próprio
222
VM, in LF, § 177, p. 81. Este aforismo não aparece na Coleção Os pensadores, pois aqui a tradução é
incompleta.
67
Nietzsche é, de certo modo, cético na medida em que, como ele diz, o ceticismo
“destrói tudo o que é abençoado pela fé”. Nietzsche não tem fé na verdade, nele existe a
“aceitação cética de que talvez todos nós estejamos em erro”223. É interessante notar que
Nietzsche fala “talvez estejamos em erro” porque, a rigor, não é possível saber se nossa
percepção do mundo é, ou não, exata. “Contra Kant é possível contrapor sempre que, para
admitir todas as suas teses, subsiste a possibilidade plena de que o mundo seja tal qual se
nos mostra”224. Ou seja, talvez o mundo seja como o percebemos, talvez não. Não há como
incondicional, por isso, ele assume a incerteza como sendo própria do homem, já que não
idéia de que nós estamos fadados a viver na dimensão humana das imagens. Nascemos,
trabalhar com as metáforas mais aceitas, então é uma maneira de imitar não mais sentida
como imitação. Naturalmente não se pode, pois, penetrar no domínio da verdade”225. Quer
poético das “verdades e mentiras” criadas pelo homem. Isto é, para ele, o conhecimento
humano vale como arte, vale como metáfora. A metáfora tem valor, não um valor moral,
mas um valor extra-moral. O saber de que não é possível ir além das metáforas não é
223
Ibidem, p. 79.
224
UF, in LF, § 84, p. 29.
225
Ibidem, § 149, p. 49.
68
reino da imaginação a existência humana não seria possível, pois o homem não pode viver
sem as ilusões.
acontece, pois reconhece a necessidade de criar conceitos mesmo sabendo que são
da arte, da ilusão, para a vida. Diz ele: “o conhecimento a serviço da vida torna-a melhor. É
preciso querer até a ilusão – nisto consiste o trágico”. O filósofo trágico, que é o próprio
Nietzsche, restabelece os direitos da arte, não porque a arte mostre alguma verdade, mas
porque a arte aceita a ilusão como ilusão: nisto consiste o trágico. Ou seja, o conceito de
encontra-se muito mais nas ilusões”227. O filósofo trágico é aquele que perdeu a verdade
metafísica (da coisa-em-si), perdeu a verdade das ciências (do fenômeno), mas fez da arte a
sua verdade. “Tudo o que é bom e tudo o que é belo depende da ilusão: a verdade mata – e
mais ainda, ela própria se mata (à medida que reconhece que seu fundamento está no
É importante dizer que a expressão “filósofo trágico” também aparece nos escritos
trágico, o contemporâneo de Ésquilo”. Mas, nessa passagem, o termo “trágico” não tem o
mesmo sentido que no aforismo acima. Como veremos a seguir, Empédocles é trágico na
medida em que, para Nietzsche, sua filosofia, semelhante aos ensinamentos da tragédia que
226
Ibidem, § 37, p. 8.
227
VM, in LF, § 177, p. 79. Este aforismo não aparece na Coleção Os pensadores, pois aqui a tradução é
incompleta.
228
Ibidem, § 176, p. 79.
229
“A veracidade como fundamento de todos os contratos e como pressuposto da subsistência da espécie
humana é uma exigência eudemonista”, Ibidem, § 177, p. 79.
69
porque possui um conhecimento que “volta contra si próprio” e se assume como ilusório. O
este acredita que a sua verdade intuída é a verdade do mundo e aquele não crê na
arte para a vida. Vale salientar que, há momentos em que essas duas imagens se aproximam
e se confundem. Sob um certo prisma, a figura do filósofo arcaico nos faz ver o filósofo
que chamamos de realidade e sonho. A fronteira é imprecisa, para não dizer inexistente.
Quer dizer, há momentos em que o sonho é tão real quanto a realidade e a realidade tão
fantástica como um sonho. Será que morrer é acordar de um sonho cheio de sonhos? Sobre
Pascal tem razão quando afirma que, se todas as noites nos viesse o
mesmo sonho, ficaríamos tão ocupados com ele como com as coisas que
vemos cada dia: “Se um trabalhador manual tivesse certeza de sonhar
cada noite, doze horas a fio, que é rei, acredito”, diz Pascal, “que seria tão
feliz quanto um rei que todas as noites durante doze horas sonhasse que é
um trabalhador manual”.
A confusão entre um personagem criado e seu autor é algo que acontece com
Miguel de Cervantes e seu Dom Quixote, essa confusão entre o criador e criatura, entre o
mundo fantástico e o mundo real aparece de forma primorosa. O poeta Jorge Luis Borges
abstratos traduzem uma “intuição filosófica profunda”231. Os primeiros filósofos gregos não
chegavam às suas verdades através de raciocínios lógicos. A verdade é que lhes chegava, e
não de um modo lógico. A verdade surge de repente, sem a mediação da razão, sem
claro que o que levou o primeiro filósofo a enunciar a sua teoria, a sua “monstruosa
230
BORGES, Jorge Luis. “Sonha Alonso Quijano”. In Obras Completas III. São Paulo, Ed. Globo, 1999.
231
FE, § III..
71
postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que
Ou seja, o que está na base das teorias filosóficas não é um impulso racional. Se o
filósofo pré-socrático teve uma determinada visão de mundo é porque a natureza a ele
assim se mostrou. Cada verdade é apreendida como algo que vem de fora para dentro,
como um presente divino. Por isso, outro termo utilizado por Nietzsche ao falar sobre a
pathos, surge da dimensão profunda dos sentimentos. Os filósofos da época trágica, diz
sentimento é possível usar o adjetivo “imenso” à noção de verdade. Se fosse uma verdade
lógica, o termo “imenso” seria inadequado, já que não existe uma variação de intensidade
nas demonstrações lógicas, estas só podem ser ou não logicamente verdadeiras, não
havendo gradações.
Pathos é um termo grego - utilizado por Platão – que, segundo Édouard Des Places,
arcaico por meio de um pathos, de um intenso sentimento que o domina. Essa espécie de
divino toma posse do intelecto humano. Platão, em seu belo diálogo Fedro, fala sobre os
232
Ibidem.
233
UF, in LF, § 72, p. 24.
234
PLACES, Édouard des, S.J. Platon. Ouvres coomplètes Tome XV, Lexique. Paris, Les belles Tettres, 1989.
235
Segundo Giovanni Reale: mania significa “possessão, que implica estar fora de si, não mais em posse da
própria razão, na medida em que esta é possuída pelo Divino”, REALE, G. História da filosofia antiga. Vol.
V. Léxico, Índices, Bibliografia. São Paulo, Loyola, 1995, p. 158.
72
tipos de manias que existem: da arte poética, da adivinhação, da iniciação nos Mistérios (e
do amor. Quando o homem perde o domínio de si e é inspirado pelos deuses - o poeta pelas
Musas, o vidente por Apolo, o místico por Dioniso, o apaixonado (o filósofo) por Eros e
Afrodite –, ele ganha um saber divino, que não tem explicações racionais. Nesse diálogo,
racional. Diz ele: “os maiores bens nos vêm do delírio, que é, sem a menor dúvida, uma
prestaram inestimáveis serviços à Hélade, tanto nos negócios públicos como nos
Mas, apesar de, aqui, Platão considerar o saber que surge da inspiração divina
superior ao saber conquistado pelo próprio homem, sua filosofia valoriza mais o estado de
sobriedade do que o estado de delírio já que a própria filosofia é definida como uma
racional. É através do exercício dialético que o filósofo vai, aos poucos, subindo os degraus
do conhecimento.
Vale destacar que, no próprio Fedro, Platão afirma que essa elevação do filósofo
236
PLATÃO, Fedro. 244 b. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, UFPA, 1980. Cf. CONFORD, F.M.
Principium Sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1989.
73
Idéias) é o controle das paixões. Ou seja, de todo modo, o erotismo aqui presente deve ser
Não se pretende aqui adentrar no pensamento de Platão, mas, sim, mostrar que,
otimismo teórico recém inaugurado por Sócrates, de acordo com o qual, o estado próprio do
verdade não está no começo do seu percurso e nem surge de um modo místico e abrupto.
Ele acredita que, mantendo-se sóbrio e sereno, um dia, ele poderá alcançar a tão desejada
verdade.
entre duas fórmulas”240. Com a frase “sentimos que os sofismas não eram raciocínios
corretos, todavia não pudemos descobrir o erro”241, Schopenhauer mostra a diferença entre
vergonha, o sentimento corporal, das cores, dos sons, o sentimento estético, o sentimento de
força, fraqueza, amor, ódio, amizade etc. O que há em comum a todos os diferentes
237
De acordo com Reale: “Normalmente Platão considera o senso, a sabedoria e o conhecimento superiores à
mania divina, a qual é nitidamente desvalorizada do ponto de vista teorético”. História da filosofia antiga.
Vol. V. Léxico, Índices, Bibliografia. São Paulo, Loyola, 1995, p. 158.
238
MC, § 11, p. 101.
239
Ibidem, § 11, p. 101.
240
Ibidem.
241
Ibidem.
242
Ibidem.
74
homem e é percebido pela consciência, mas não é produzido pela razão. Conforme
conteúdo meramente negativo, noutros termos, designa algo (...) que não é conceito, não é
representação, isto é, que não é conceito abstrato”244. O sentimento está para a razão assim
como o conhecimento intuitivo está para o conhecimento abstrato, o que significa dizer que
indicam que a verdade do filósofo arcaico emerge da dimensão mais primitiva, pré-
língua abstrata. Nietzsche descreve esse momento ímpar na vida do pensador como um
experiência mais rara e mais gloriosa que só os homens mais raros, os filósofos, vivem;
“são os momentos das iluminações súbitas, quando o homem estica seu braço
espelhando-a em torno”246.
243
Ibidem.
244
Ibidem, § 12, p. 101.
245
Ibidem, § 11, p. 100-101.
246
PV, p. 25.
75
produto da razão, mas, da intuição, pois o pathos da verdade “nada tem a ver com a
que somente ele vislumbrou a verdade absoluta do mundo249. Sua certeza não se apóia na
força das argumentações dedutivas, mas na convicção gerada pelo intenso sentimento de
possuir a verdade. Diz Nietzsche: “Análise da crença na verdade: porque toda posse da
verdade no fundo nada mais é que uma convicção de possuir a verdade. O pathos (...) vem
época homérica, no entanto, o espírito religioso, místico, não foi extinto. Assim como na
deuses homéricos, mas não questionou a existência do “divino”. Aliás, ele busca encontrá-
na medida em que é eterno, além de não ter fim, não teve origem, ele é a origem. Como a
verdade intuída de modo místico pelo filósofo remete ao princípio de todas as coisas e o
princípio é imanente à natureza (physis) podemos dizer que nesse misticismo pré-socrático
247
UF, in LF, § 143, p. 46.
248
Ibidem, in LF, § 187, p. 84.
249
Nietzsche sempre salienta o grande orgulho dos antigos mestres e chega, até mesmo, chamar esse
exagerado sentimento de autoconfiança tirania: seriam todos “tiranos do espírito”, já que eram igualmente e
absolutamente convictos de seus princípios, de suas verdades, o que lhes proporcionava uma tendência para
criar novas leis, novos costumes.
250
VM, in LF, § 177, p. 80.
76
2.2.2 Duas verdades distintas: uma mística e singular, a outra racional e moral
intuída, presente nos pré-socráticos, de uma verdade racional, característica dos filósofos
otimistas. São duas verdades distintas: a primeira chega ao filósofo por meio da intuição,
surge de uma experiência mística, misteriosa, fora do seu controle. A outra verdade é
construída pelo encadeamento dos raciocínios lógicos. Para Nietzsche, esta crença em uma
verdade alcançada através da razão, por meio de raciocínios “dialéticos”, é algo que só
passou a ser exigido na filosofia depois de Sócrates. A época trágica é marcada pela arte e
pelos Mistérios. Por isso, o Parmênides é visto como uma exceção entre os filósofos. Ele
foi o primeiro a separar o “mundo dos conceitos” do “mundo dos sentidos” e a acreditar
que só o pensamento racional conduz à verdade. Nesse sentido, como veremos, Parmênides
é apresentado como o filósofo mais próximo do socratismo. Sua teoria do ser é fruto da
mais pura abstração, é o momento “não-grego como nenhum outro nos dois séculos da
comenta Nietzsche, aconteceu “em um daqueles estados de visão dignos de seu século, tem
em comum com a visão do ser de Parmênides apenas a expressão e a palavra mas não
certamente a origem. Foi antes em um estado de espírito oposto que Parmênides encontrou
as teorias do ser”253.
251
FE, § IX.
252
Ibidem.
253
Ibidem.
77
Embora Parmênides anuncie o filósofo otimista, nele ainda existe um certo grau de
misticismo que o diferencia do filósofo socrático, um “homem teórico”. Até mesmo a sua
considera que o poder da razão tornou-se dominante somente numa “época tardia”255 não só
Os primeiros filósofos viveram num período em que a razão ainda não possuía um
poder hegemônico e por isso a mentira ainda justificava-se por ser prazerosa. Na época
trágica dos gregos, período em que a intuição predomina sobre a razão, “o filósofo está
cheio do mais elevado pathos da verdade”259. A partir de Sócrates, não é mais o pathos o
que move o filósofo. É um excessivo impulso lógico. O filósofo otimista inaugura um novo
estatuto da verdade. Nessa nova política, a lógica racional elimina todas as outras verdades
254
Ibidem.
255
CS, in LF, § 193, p. 89.
256
UF, in LF, § 142, p. 46.
257
Ibidem, § 70, p. 24.
258
Ibidem, § 70, p. 24.
259
Ibidem, § 61, p. 20.
78
com os homens; é nisto que se fundamenta toda a vida em comum”261. Isto é, a vida em
estabelece o que é verdade e o que é mentira, o que é legítimo e o que não é, o certo e o
errado. Dessa forma, a noção de verdade está vinculada a princípios morais: “O homem
exige a verdade e a realiza no intercâmbio moral com os homens; é nisto que se fundamenta
então, a se impor e a calar tudo o que não segue seus parâmetros. “A verdade surge como
uma necessidade social: por uma metástase em seguida passa a ser aplicada a tudo, mesmo
altura não havia nenhuma classe de filósofos e de sábios. Todos eles são, numa solidão
260
VM.
261
UF, in LF, § 70, p. 24.
262
Ibidem, § 70, p. 24.
263
Ibidem, § 91, p. 32.
264
FE, § I.
79
Sua vocação é a mais rara. (...) Ele não saberia ficar se não fosse sobre as
asas vastamente abertas de todos os tempos.265
Nietzsche. Sua crítica se dirige a uma verdade sem pathos, sem sentimento, (supostamente)
orientadora única conduz à mentira, pois ela não é a única orientadora. O outro sentimento
verdade produzida pelo método racionalista da verdade que é proveniente do “amor que
está ligado a um desejo de unidade”267. O amor, a religião e a arte “são os três poderes
ilógicos que se reconhecem como tais”268, por isso, são “o que há de mais verdadeiro neste
Como o homem religioso, o filósofo arcaico vive uma experiência mágica, mística. Seu
professor, pois ela é o “imenso pathos” que faz o filósofo perder suas fronteiras individuais
filósofo da época trágica corresponde ao estado dionisíaco de “embriaguez” vivido por seus
265
PV, p.28.
266
UF, in LF, § 72, p. 25.
267
Ibidem, § 72, p. 25.
268
VM, in LF, § 177, p. 82.
80
corresponde à “piedade”. Na religião cristã, sentir compaixão é sentir junto com o outro a
arcaico. Enquanto a compaixão cristã diz respeito apenas à dimensão humana e está
de unidade: “uma simpatia profunda com toda a natureza e uma compaixão transbordante
aliam-se a ele”270. Seu sentimento de compaixão, tão intenso que transbordou, o levou a
formular uma filosofia e uma prática de vida que enaltece o “amor”, a amizade, a phília, a
unidade de todas as coisas. Para ele, o amor é a força fundamental que une todas as coisas e
repousa sobre este ponto que tudo o que vive é um, deuses, homens e animais estão unidos
269
NT, § 7, p. 55.
270
FE, p. 200.
271
FP, p. 203.
81
Mas, na physis, além do amor, existe o ódio. O amor e o ódio são as duas forças
Enquanto o amor une e gera prazer, o ódio separa e gera a dor. Por isso, a rigor, a união só
é possível quando a força do amor está presente. O semelhante ama seu semelhante e
rechaça o que lhe é díspar. Por esse motivo, Nietzsche ressalta: “o verdadeiro pensamento
de Empédocles é a unidade de tudo aquilo que se ama”272, pois é o amor que faz a unidade
de tudo que vive. Sentindo uma “nostalgia pelo semelhante” 273, os corpos que se amam
querem se unir. De acordo com Nietzsche, o desejo sexual tem um lugar de honra na
filosofia de Empédocles, na medida em que ele é a intensificação desse desejo de união que
luta contra o impulso de separação: “A vida sexual lhe parece o que há de melhor e de mais
nobre, a mais forte resistência ao instinto da discórdia. É nesta que aparece com a maior
evidência a tendência das partes separadas a se reunirem para engendrar outro ser”274.
contradição; só pode explicar sua presença nele pelo efeito de uma culpa”275. Se no mundo
existe o ódio é porque deve ter ocorrido um crime, uma falta na sua origem. Ele considera
que “é um castigo terrível estar sujeito ao ódio”276. Assim como Anaximandro julga a
falta moral. Para Empédocles, a existência é fruto de um crime, prova disso é que tudo que
nasce está condenado à morte. Para ele, “a terra é uma caverna sombria, a pradaria da
272
FE.
273
Ibidem.
274
Ibidem.
275
Ibidem.
276
Ibidem.
82
podridão”277.
Anaximandro, que ficou refugiado em seu abrigo metafísico. Ele não fugiu do mundo. Ele
acreditava que a sua missão era “restaurar o que o neikos (discórdia) deteriorou, de
promoveu mudanças, novos ritos de purificação, tentou implementar uma reforma social
que defendia a abolição da propriedade privada. Para ele, “a união dos díspares engendra a
uma “sociedade de amigos”. Dessa forma, “para fundar o reino exclusivo do amor fraternal,
escolheu a vida de profeta errante, depois de ter fracassado em Agrigento” 280. Segundo
277
Ibidem.
278
Ibidem.
279
Ibidem.
280
Ibidem.
281
Ibidem,.
83
pitagórico e órfico”282, que são expressões de um novo misticismo, ligado aos Mistérios,
lembra de ter sido pássaro, arbusto, peixe, rapaz e moça. Ele usa em tais casos, a expressão
o que existe, a consideração da individuação como causa primeira do mal” 284. De acordo
com Nietzsche285, Empédocles acredita que a missão de sua existência é de restaurar o que a
do ódio. Sua filosofia pretende o mesmo que a arte trágica: promover a fusão do indivíduo
da individuação e fica franqueado o caminho para as Mães do Ser, para o cerne mais íntimo
sua vida, exalta o sentimento místico de unidade tal como faz a arte trágica. Por isso,
282
Ibidem.
283
Ibidem.
284
NT, p. 70.
285
Ibidem, § 7, p. 55.
286
Ibidem, § 17, p. 103.
287
Ibidem, § 16, p. 97.
288
Ibidem, § 17, p. 103.
289
FE.
84
é movido pelo impulso dionisíaco que leva ao Uno-originário. Sua morte é a passagem para
Note-se que, como já foi dito, o conceito “trágico” vinculado a Empédocles está
ligado ao saber da arte trágica que é diferente do “trágico” usado em relação ao filósofo
trágico. Neste caso, o “conhecimento trágico” não aponta para o “coração da natureza”.
Existem dois modos de pensar: por imagens e por conceitos, através da imaginação
e da razão. Imaginar é ver semelhanças entre as imagens, como fazem os poetas. Raciocinar
é ver relações de causalidade entre os conceitos, como fazem os cientistas. Não há uma
distinção radical entre imaginar e raciocinar, visto que todo pensamento nasce das imagens,
290
NT, § 25, p. 143.
291
VM.
292
Ibidem.
293
UF, in LF, § 54, p. 16
85
Quer dizer, para Nietzsche, pensar é, antes de tudo, imaginar, a razão “vem a
seguir”, se vier. A imaginação (Phantasia) é definida, por ele, como um “poder estranho e
ilógico”296, uma “dupla força artística” que cria e associa imagens: “existe uma dupla força
artística: a que gera as imagens e a que as escolhe”297. Vale dizer que em alemão existem
Vorstellung), mas o termo freqüentemente usado por Nietzsche é Phantasia que é o mesmo
usado pelos antigos gregos. De modo geral, significa faculdade de produzir imagens298.
Imaginar é tornar visível, é fazer aparecer, é estabelecer contornos, sendo que essa
294
Ibidem, § 60, p. 19.
295
Ibidem, § 64, p. 21
296
FE, § III.
297
UF, in LF, § 63, p. 20.
298
Conforme Édouard des Places, em Platão, Phantasie tem o sentido de: “a) ‘imaginação, representação’, b)
‘aparência, ilusão’ (dos sentidos)”. PLACES, Platon. Ouvres coomplètes Tome XV, Lexique. Paris, Les belles
Tettres, 1989, p. 531.
299
Ibidem, § 63, p. 20.
300
Ibidem, § 67, p. 23.
86
linguagem, pois ela é a força artística que cria os “pensamentos originais”. É a matriz a
matemático, que pretende ser exato. Para Nietzsche, as palavras mais simples, mãe, por
exemplo, como as mais complexas teorias, Bing-bang, são igualmente metáforas criadas
pela imaginação. Isto é, todo pensamento, por mais lógico e racional que seja, é, mesmo
sem querer, resultado de um processo artístico: “há algo de artista nesta produção de formas
por meio das quais alguma coisa entra na memória”301; “o pensamento contém grandezas
artísticas”302. Kátia Muricy assinala o fato de que, aos olhos de Nietzsche, a relação entre o
Para Nietzsche, as imagens e os conceitos são igualmente metáforas que não falam
da essência das coisas. As imagens são “metáforas intuitivas” que falam do que é individual
e sem igual e os conceitos são metáforas que falam do que é abstrato e universal. Embora
não exista uma linguagem mais verdadeira do que a outra, Nietzsche valoriza mais a
linguagem poética do que o discurso científico, valoriza mais o pensamento por imagens do
que o pensamento por conceitos. Por quê? Por que Nietzsche desqualifica a produção
301
Ibidem, § 64, p. 21
302
Ibidem, § 55, p. 17
303
MURICY, Kátia. “A arte do estilo”, in Assim falou Nietzsche III. Rio de Janeiro, Sete Letras, 2001.p. 86–
87.
87
conceitual em nome da produção poética? Por que (freqüentemente) ele denigre o conceito
e o define como uma metáfora gasta, descolorida, fria, “sepulcro das intuições”? Em outras
contrastes entre as coisas; raciocinar é pensar de acordo com princípios lógicos, de modo
científica já que ela não se fundamenta em si própria. Seu fundamento está na dimensão das
imagens, que, por sua vez, são metáforas dos estímulos nervosos. Como todo discurso é
uma “tradução balbuciante”, por conseqüência, não existe distinção entre um discurso
verdadeiro e um falso, assim como não existe diferença conhecimento (epistéme) e opinião
(dóxa). A natureza da linguagem não é, portanto, dizer a verdade das coisas. Segundo o
que não se pode deixar de levar em conta nem por um instante, porque com isso o homem
mesmo não seria levado em conta”305. Quer dizer, o homem não tem por natureza, como
direção à aparência, à ilusão. O homem é um ser poético, cuja natureza é criar imagens,
deixar claro que Nietzsche não vê nenhum problema no caráter criativo da linguagem e do
mesmo - como a aranha tira de si mesma a sua teia – metáforas e metonímias que,
associadas, formam redes de pensamento, teias de significados. Ele cria “uma construção
como que de fios de aranha, tão tênue a ponto de ser carregada pelas ondas, tão firmes a
ponto de não ser despedaçada pelo sopro de cada vento”306. Nietzsche reconhece a
importância das grandiosas construções do homem, pois nestes edifícios conceituais ele
pode se abrigar e se proteger. No entanto, Nietzsche faz questão de salientar que estas
construções teóricas que estruturam e organizam a vida humana, são criações poéticas, são
304
NIETZSCHE, Curso sobre a retórica, in Da retórica. Trad. de Tito Cardoso e Cunha, Coleção Passagens.
Lisboa, editora Veja, 1995.
305
VM.
306
Ibidem.
89
pensamento por imagens. O que implica dizer que a filosofia é “uma forma de poesia”309. E,
conceitual.
final de um processo complexo que é intuitivo, imaginativo e, por fim, racional. A fim de
filósofos usam a imaginação para pensar, mas o que os diferencia é o valor que atribuem ao
307
UF, in LF, § 48, p. 40.
308
Ibidem, § 116, p. 38.
309
Ibidem, § 53, p. 15
310
Ibidem, § 53, p. 15.
90
Se a filosofia é uma forma de poesia e a poesia fala por metáforas, então a filosofia
não tem valor como conhecimento verdadeiro, como ciência311. O sistema filosófico é uma
inadequação das palavras pode criar um conflito no filósofo: por que comunicar algo que
por natureza é incomunicável? Por que produzir a escrita filosófica se o conceito é uma
linguagem”?
Surge, assim, a questão: para que serve a filosofia se não é um caminho à verdade?
Qual o seu valor? A resposta do filósofo arcaico (e de Nietzsche) é clara: a filosofia serve
como obra de arte. Segundo Nietzsche, nos pré-socráticos “o filosofar está ainda presente
como obra de arte, mesmo que não se possa demonstrá-lo como construção filosófica (...) o
ensinar que o discurso filosófico vale como arte e não como conhecimento. No período
arcaico da filosofia, não se pensava sem usar imagens. Ainda não existia o pensamento
puramente abstrato como ainda não existia o homem puramente teórico. Por isso, até
mesmo Parmênides, que separou o mundo dos conceitos do mundo dos sentidos, escreveu
em versos e usou imagens para se expressar. Nietzsche incorpora este ensinamento – de que
311
Diz Nietzsche: “ser absolutamente verdadeiro – prazer esplêndido para o homem em uma natureza
mentirosa! Mas isto é apenas muito relativamente possível! É trágico!”. Ibidem, § 73, p. 25-26.
312
Ibidem, § 72, p. 25
313
Ibidem, § 61, p. 19-20.
91
o valor da filosofia é estético – e o utiliza para avaliar os filósofos. Conforme suas análises,
Ele nos fala: “Heráclito não envelhecerá nunca. É a poesia além dos limites da experiência,
matemática não faz parte da essência da filosofia”314. Quer dizer, Nietzsche adota a mesma
avaliação que aprendeu com os primeiros filósofos: por mais lógicos e matemáticos que
imaginação”317. São elas que o fazem seu pensamento voar rapidamente e “saltar de uma
Prometeu, Édipo, Antígona, o filósofo arcaico (de Nietzsche) é, também, uma espécie de
314
Ibidem, § 53, p. 16
315
Ibidem, § 49, p. 14
316
Ibidem, 49, p. 14
317
Ibidem, § 60, p. 19. A mesma passagem se encontra também em FE, § III.
318
Ibidem.
319
Ibidem
92
poeta, já que sua filosofia é uma forma de poesia, uma vez que sua relação com a
linguagem é estética. Suas argumentações lógicas, sua dialética e sua reflexão científica,
são apresentadas como metáforas poéticas, como poesia conceitual. Seus conceitos
filósofo e o poeta: possuem a mesma vocação para criar e associar metáforas. Os dois são
imagens e, a partir delas, a vida. Neste aspecto, o filósofo está em continuidade com os
antigos sábios (os poetas, os profetas, os videntes), uma vez que eles também se dedicavam
poeta e o adivinho. No Fedro, como já dito, Platão define a poesia como um tipo de mania,
320
FE, § III.
321
O homem de propensão filosófica tem a premonição de que sob essa realidade - na qual vivemos e somos -
se encontra uma outra, diversa, mas que também é uma aparência; Schopenhauer considera característica da
aptidão filosófica o dom de, em certas ocasiões, definir os homens e todas coisas como puros fantasmas ou
imagens oníricas. Assim como o filósofo procede com a realidade da existência (Dasein), do mesmo modo se
comporta a pessoa suscetível ao artístico em face da realidade do sonho; observa-o precisa e prazerosamente,
pois a partir dessas imagens interpreta a vida, e com base nessas ocorrências exercita-se para a vida. NT, § 1,
p. 28
93
Mas, apesar dos elogios de Platão aos poetas, Nietzsche o considera irônico. Platão,
estado preliminar, é opinião (dóxa) que pode ser verdadeira ou falsa. Porque “se refere ao
devir, que é ambíguo, também a opinião acaba tendo um caráter ambíguo (permanece no
meio entre a ciência e a ignorância), isto é, permanece como algo teoreticamente não
positivo. (...) somente ‘ligando-a com o raciocínio causal’ é possível eliminar sua
instabilidade”324.
Para Platão, o discurso poético, guiado pela imaginação, não é capaz de demonstrar
conhecimento, pode ser prejudicial em termos morais, pois intensifica as emoções. Por isso,
na cidade ideal, a poesia precisa ser controlada, subordinada, pelo rei filósofo. Para Platão,
a imaginação é própria dos poetas e não dos filósofos. Estes precisam seguir a razão, pois
322
PLATÃO, Fedro. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, UFPA, 1980, 245 a.
323
NT, § 12, p. 83
324
REALE, G. História da filosofia antiga. Vol. V. Léxico, Índices. São Paulo, Loyola, 1995, p. 78.
94
ela é o caminho que leva à verdade enquanto que a imaginação é pode desviar deste bom
oposição a Platão, Nietzsche não acredita que o discurso racional, dedutivo, seja capaz de
Nietzsche tem restrições à ciência e desconfia do poder da razão. É evidente que Nietzsche
com os pré-socráticos. A admiração por Nietzsche ao filósofo arcaico é devido a sua forma
serem um “meio miserável” de expressar a sua verdade, elas são reconhecidas por seu valor
estético. Nele, a imaginação – sempre aliada à intuição - predomina sobre a razão. Eis aqui
a segunda hipótese: para responder quem é o filósofo arcaico é preciso dizer que ele é uma
mistura de vários elementos, mas seu talento artístico predomina sobre seu lado místico e
científico. Seu pensamento filosófico não está a serviço da ciência, está a serviço da arte.
As forças da arte o levam a escrever. Por isso, sua filosofia não pretende explicar, calcular,
Enquanto o valor de uma obra de arte está em ser bela, o valor de um discurso
científico está em seu “grau de certeza”326. No mundo artístico o que se procura não é a
325
UF, in LF, § 155, p. 52.
326
Ibidem, § 40, p. 9.
95
verdade, mas a beleza. O que interessa não é dizer, conhecer, o que alguma coisa é, mas
criar alguma coisa. Se Nietzsche eleva a arte e rebaixa a ciência é porque, diferente desta, a
arte se apresenta como pura criação estética, ela é sincera ao mostrar a aparência como
aparência, sem nenhuma nostalgia da verdade absoluta. Para ele, a arte é mais digna do que
a ciência porque mostra a ilusão como ilusão, enquanto a ciência mostra a ilusão como
verdade. Diz ele: “A arte recebe agora uma dignidade totalmente nova. As ciências, em
pensamento científico. “Se (Tales) tivesse dito: ‘Da água provém a terra’, teríamos apenas
uma hipótese científica, falsa, mas dificilmente refutável. Mas ele foi além do científico” 329.
experiência vital do filósofo - o sentimento de que “tudo é Um” – o leva a refletir sobre o
327
Ibidem, § 73, p. 26.
328
FE, § III.
329
Ibidem.
330
“As parcas e desordenadas observações da natureza empírica que Tales havia feito sobre a presença e as
transformações da água ou, mais exatamente, do úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo
aconselharia tão monstruosa generalização”, Ibidem.
96
invisível, o “insólito, assombroso, difícil, divino e inútil”. Neste ponto, Nietzsche concorda
Aristóteles diz com razão: “Aquilo que Tales e Anaxágoras sabem será
chamado de insólito, assombroso, difícil, divino, mas inútil, porque eles
não se preocupavam minimamente com os bens terrenos”. Ao escolher e
discriminar assim o insólito, assombroso, difícil e divino, a filosofia
marca o limite que a separa da ciência, do mesmo modo que, ao preferir o
inútil, marca o limite que a separa da prudência331.
importante. Quando diz “isto é grande”, ela “eleva o homem acima da avidez cega,
desenfreada, de seu impulso ao conhecimento. Pelo conceito de grandeza, ela refreia esse
impulso”332. Quer dizer, para Nietzsche, a “grandeza” é sinal de talento artístico. Talento
que está presente na época trágica dos gregos, por isso, nesse período, os impulsos estéticos
O filósofo arcaico possui um gosto refinado que o leva em direção às coisas dignas,
grandiosas, e o distancia das pequenas coisas. Ele olha o mundo como um artista, “o
filósofo e o artista falam dos segredos da atividade da natureza”333. Diferente deste, o olhar
irrelevante. Tudo lhe interessa. Por isso, precipita-se sobre todas as coisas com uma avidez
insaciável.
331
Ibidem.
332
Ibidem.
333
UF, in LF, § 24, p. 3.
334
FE, § III.
97
última das coisas e vence, com esse pressentimento, o acanhamento dos graus inferiores do
conhecimento”335, Nietzsche atribui a ela uma importante missão: “A filosofia deve manter
firme a corrente espiritual através dos séculos: pela eterna fertilidade de tudo o que é
grande. Para a ciência não existe grande nem pequeno – mas para a filosofia, sim!” 336. Ou
seja, a filosofia deve controlar a ciência e este domínio se realiza, sobretudo, através das
“forças da arte”.
época trágica dos gregos, Nietzsche nos oferece uma imagem que ilustra bem a diferença
entre os dois tipos de filósofos. Ele nos descreve dois viajantes diante de uma forte torrente
de água. O primeiro é o filósofo – embora não esteja explícito, trata-se do filósofo arcaico -,
filósofo salta rapidamente sobre apoios frágeis, sobre as pedras que logo depois serão
arrastas pelas águas agitadas. O cientista não salta, para sair do lugar precisa ter a certeza de
que seus passos “pesados e prudentes” encontrarão um chão estável e sólido para pisar.
Julga-se ver dois viajantes à beira de uma torrente agitada que arrasta
pedras consigo: um deles salta com leveza por cima dela, servindo-se das
pedras para se lançar à frente, mesmo que estas se afundem bruscamente
atrás dele. O outro se encontra desamparado a cada momento, deve
primeiro construir fundamentos que possam sustentar seu passo pesado e
prudente; às vezes, não consegue, e então nenhum deus o ajuda a transpor
a torrente. O que leva, pois, o pensamento filosófico tão rapidamente ao
seu fim? Distingue-se ele do pensamento calculador mensurante só por
335
Ibidem.
336
Ibidem.
98
Essa descrição dos dois viajantes à beira de uma torrente ilustra bem a diferença
diferença é clara. O primeiro é tão leve que voa, sente-se confiante e forte, por isto se
arrisca sem pensar no futuro, é inconseqüente. Não precisa de um chão firme, ele é firme.
Vive no vasto reino das possibilidades e das incertezas. O outro é pesado, sente-se
intuitivo” e o “homem racional”. Embora Nietzsche não faça a correlação destes homens
com os dois viajantes ela existe. Se na descrição dos viajantes a imaginação do filósofo se
contrapõe à razão científica, aqui, o contraste é entre a intuição e a razão. Neste caso, a
intuição é o que move o artista. Consideramos que a intuição e a imaginação estão sempre
associadas, entrelaçadas. São impulsos que levam o homem em direção ao vasto reino das
regular e rígido”, foge da “praça forte” e busca refúgio em um outro leito do rio, na arte e
no mito. Aí, ele pode exercer livremente o ofício da criação, pois seu intelecto “está livre e
dispensado de seu serviço de escravo”. Quer dizer, está livre das exigências da razão. O
homem intuitivo é o artista, isto é, não precisa, como o cientista, demonstrar racionalmente
337
Ibidem.
99
suas obras. A arte não precisa provar o que produz. Ele brinca com a lógica. Usa os
raciocínios dedutivos e silogísticos, não para construir fundamentos sólidos, mas como um
andaime para construir novas possibilidades. “O homem intuitivo, (...) desfruta, a partir de
O artista vive num estado de “sublime felicidade e uma olímpica ausência de nuvens”339.
Ele traz a fantasia, satisfaz de tal modo suas necessidades que estas nem parecem
necessárias. Ele vive como o viajante que brinca de saltar sobre pedras escorregadias: “com
Em oposição ao artista, que é movido por suas intuições, o homem racional é guiado
por conceitos e esquemas abstratos. Ele é um homem “razoável”, isto é, ele controla seus
impulsos não-racionais. Procura nunca se abalar “ao ser arrebatado por impressões súbitas,
por intuições; ele generaliza todas estas impressões em conceitos descoloridos e mais frios
a fim de submeter-lhes a condução de sua vida e de sua ação”. Seus impulsos lógicos o
levam para o mundo rígido e regular da ciência, pois a ciência é para ele o que a arte é para
o homem intuitivo. O homem racional é um homem sério, responsável, que age de acordo
com as leis e códigos morais, sociais, jurídicos. Ele possui uma “tendência moral ‘a
338
VM.
339
Ibidem.
340
Ibidem.
100
verdade’”341. Não aceita a mentira porque ela é prejudicial para a manutenção da ordem
pública. Ele desqualifica a arte porque ela não tem compromisso com a verdade. A fácil e
livre proliferação de imagens poéticas pode desviar do caminho árduo que leva à verdade.
Outra característica do homem racional é a preocupação com o futuro que lhe parece
muito trabalho, ele não alcança a satisfação desejada. A sua carência é tão evidente quanto
é o entusiasmo do artista.
O contraste entre os dois viajantes, como o que existe entre o homem intuitivo e o
homem racional, é semelhante ao que existe entre o filósofo arcaico e o filósofo socrático.
Embora o filósofo arcaico não seja idêntico ao artista, pois tem seu lado científico e seu
lado místico, ele é, sobretudo, artista já que a sua filosofia é conduzida por suas intuições e
sua imaginação. Nele, a razão “vem a seguir”. Ele é livre no seu ofício de pensador. Ele não
pretende demonstrar logicamente seu discurso filosófico. Seu pensamento é livre para criar
novas possibilidades. Sua filosofia está a serviço da arte e a arte está a serviço da vida. Para
o filósofo arcaico (para Nietzsche): “O valor da filosofia (...) não corresponde à esfera do
conhecimento, mas à esfera da vida, a vontade de existência usa a filosofia tendo por fim
filosófico: o primeiro, levado pelas “asas da imaginação”, sem medo das alturas e se
Mas, nos mostra Nietzsche, no fundo, estes diferentes companheiros de viagem querem a
mesma coisa: se firmar por um minuto na existência: “ambos desejam dominar a vida; este
neste momento, para Nietzsche? Corresponde à “arte trágica” que é composta pelo apolíneo
“atividade metafísica”? A resposta é: não. Nos escritos de 1872 a 1875, o sentido de arte
não é mais o da “arte trágica”. Em desacordo com a sua própria tese apresentada em O
nascimento da tragédia, Nietzsche passa a pensar a arte como “ilusão” e não mais como
conhecimento trágico do mundo e promovia o consolo metafísico, agora, a arte não leva
343
VM.
344
UF, in LF, § 68, 23.
102
Agora, quando Nietzsche fala “arte” está se referindo às artes plásticas e à poesia,
plástico diante de uma queda d’água”, diz ele, vê “nas formas que saltam ao seu encontro,
plantas, falésias, ninfas, grifos e, em geral, com todos os protótipos possíveis” 345. Quer
dizer, agora, arte tem um sentido semelhante ao que antes era denominada arte apolínea já
multiplicidade. No entanto, é preciso notar que Nietzsche não pensa mais a aparência em
oposição à verdade dionisíaca. O que existe é o mundo das metáforas e não há como dele
sair e nem para onde ir. O universo humano é o mundo das imagens e a arte mostra esta
verdade, a verdade da ilusão. Agora, a arte não leva mais, como arte trágica, ao coração do
mundo. Por isto, Nietzsche não apresenta mais a arte como “atividade metafísica”, também
não diferencia mais a arte apolínea da dionisíaca, fala simplesmente “arte”, uma atividade
A arte mostra a metáfora como metáfora, mostra a ilusão como ilusão, ela declara a
sua mentira. Nesse sentido, ela diz a verdade, a verdade de ser mentirosa. Conforme
Nietzsche, a “alegria de mentir é estética. (...) O prazer estético é o maior, uma vez que, sob
a forma de mentira, diz a verdade de uma maneira bastante geral” 346. Quer dizer,
apresentando ilusões, a arte nos faz lembrar que nossas verdades cotidianas são tão ilusórias
como as verdades poéticas. “A arte detém a alegria de nos despertar das crenças por meio
das superfícies: mas não somos enganados! Pois então a arte cessaria. (...) A arte acolhe,
345
FE, § III.
346
VM, in LF, § 183, p. 83.
347
UF, in LF, § 184, p. 83
103
A arte se apresenta como uma brincadeira de falsear a realidade. Não tem nenhuma
outra finalidade senão criar a ilusão. Para que servem as ilusões criadas pela arte? Servem à
vida. A arte está a serviço da vida porque ela cria ilusões e a vida precisa das ilusões, do
fantástico, para lhe dar sentido. A vida precisa da beleza, da “alegria da criação artística a
desafiar todo e qualquer infortúnio”348. Não existiria homem nem civilização se não
existissem as ilusões. Nietzsche chega a dizer que, no futuro, ainda se reconhecerá que as
forças artísticas são necessárias também nos animais e até mesmo no mundo orgânico349.
Toda forma de civilização começa pelo fato de que uma certa quantidade
de coisas está velada. O progresso do homem depende deste véu. (...) Se
somos melhores e mais nobres, devemos isto às ilusões que isolam os
fatos. A ciência da natureza, no entanto, opõe a isto a verdade natural
absoluta: certamente a fisiologia superior compreenderá as forças
artísticas em nosso devir e não somente no devir do homem, mas também
no do animal; dirá que o artístico já se inicia no orgânico350.
campo da ilusão. No fundo, dois tipos de ilusão: a ilusão socrática, ilusão metafísica, que
348
NT, § 9, p. 66.
349
UF, in LF, § 50, p. 14.
350
Ibidem, § 52, p. 15.
351
MACHADO, Nietzsche e a verdade. São Paulo, Paz e Terra, 1999, p. 39.
104
que sabe que tudo é ilusão”352. Desse modo, apesar da mudança em relação à definição do
que é arte, apesar das diferenças conceituais, Nietzsche manteve-se crítico à racionalidade
científica e próximo da arte. Quer dizer, para Nietzsche, a arte perdeu seu caráter
“metafísico”, mas não perdeu sua preciosidade. Continua sendo a forma por excelência de
afirmar a existência. Por isso, mesmo sem defender uma “metafísica de artista”, Nietzsche
continua a fazer apologia da arte pois ela continua tendo o poder de encantar, enfeitiçar e
criar sentido para a vida. A arte faz o pensamento voar. O artista multiplica as
O reconhecimento da importância da arte para a vida é algo que Nietzsche diz ter
aprendido com os antigos gregos, que eram “homens intuitivos”. Eles o ensinaram que a
arte é capaz de tornar a vida bela, exuberante, intensa, extraordinária. Os gregos mostraram
Onde alguma vez o homem intuitivo, digamos como na Grécia antiga, conduz
suas armas mais poderosamente e mais vitoriosamente do que seu adversário
pode formar-se, em caso favorável, uma civilização e fundar-se o domínio da arte
sobre a vida: aquele disfarce, aquela recusa da indigência, aquele esplendor das
intuições metafóricas e em geral aquela imediatez da ilusão acompanham todas as
manifestações de tal vida. Nem a casa, nem o andar, nem a indumentária, nem o
cântaro de barro denunciam que a necessidade os inventou353.
Vale notar que estes antigos gregos – que reconhecem o valor da arte para a vida –
são tanto os da época homérica quanto os da época trágica. Nesses dois períodos (pré-
socráticos), os impulsos estéticos são predominantes, seja como arte apolínea ou arte
trágica. Para Nietzsche, tanto a tragédia e a filosofia pré-socrática quanto a poesia épica
revelam que os antigos gregos eram afirmativos em relação à vida. De modos diferentes,
352
Ibidem, p. 45.
353
VM.
105
disseram sim à arte porque disseram sim à existência. A grande diferença é que os gregos
homéricos escondiam as coisas terríveis sob o véu apolíneo e os trágicos não escondem o
desprazer, confiando em suas poderosas artes mágicas, “justificam com tal jogo a própria
existência do ‘pior dos mundos’”. Como será abordado, de acordo com a interpretação
nietzschiana, Heráclito é o filósofo que foi capaz de transformar a terrível visão do devir
criada por Anaximandro em um espetáculo sublime justamente porque viu a vida como um
homéricos. Eles têm consciência de que a vida humana é efêmera e insignificante, que traz
a morte e o sofrimento, mas eles sabem lidar com esta consciência, pois não permitem que
ela seja uma consciência pesada. Através das forças da arte, eles transformam o maior dos
pesos em algo leve e, desse modo, tornam a vida digna de ser vivida.
106
CAPÍTULO III
VISÕES DE MUNDO
Mileto marca profundamente o primeiro período da filosofia arcaica grega que vai até
Parmênides. Anaximandro, “o grande sucessor”354 de Tales, que “nos fala muito mais
filósofos. Para Nietzsche: “a influência deste primeiro escrito deve ter sido considerável,
pois daí foi dado o impulso em direção à doutrina dos Eleatas, assim como em direção à
(...) em inscrições sobre pedra, estilo grandioso, frase por frase, cada uma
testemunha de uma nova iluminação e expressão do demorar-se em
contemplações sublimes. O pensamento e sua forma são marcos de milha
na senda que conduz àquela sabedoria altíssima. Nessa concisão lapidar,
diz Anaximandro uma vez: “De onde as coisas têm seu nascimento, ali
354
FE, § IV.
355
Ibidem.
356
FP, p. 118.
107
primeiro pensador que apresenta em linguagem filosófica uma visão pessimista do mundo e
absolutamente não deveria existir”, mas, já que existe, sofre porque paga pelo erro de
Anaximandro. Para este, o mundo inteiro - visto como multiplicidade de seres individuais -
não deveria existir, mas, uma vez que existe, paga por sua “injustiça”.
devém perece e não pode ser o princípio. Todo ser que possui qualidades determinadas é
submetido ao devir. É por isso que o ser verdadeiro não deve possuir qualidades
porque não possui nenhuma determinação. Criticando outras interpretações que traduzem
ápeiron como ilimitado ou infinito, Nietzsche está seguro de que o ápeiron deve ser
357
FE, § IV.
358
FE, § IV.
359
FP, p. 121
108
compreendido e traduzido como indeterminado, pois “se o ser originário fosse determinado
ele seria engendrado: mas, por esta razão, seria condenado à morte”360. Diz ele:
primeira vez uma visão dualista do mundo: de um lado, o ápeiron, eterno, uno e
noções formuladas por Kant de coisa-em-si e fenômeno. Diz ele: a “matriz de todas as
coisas, por certo só pode ser designada negativamente pelo homem, como algo a que não
pode ser dado nenhum predicado do mundo do vir-a-ser que aí está, e poderia, por isso, ser
como a coisa-em-si, não pode ser conhecido a não ser de modo negativo.
Como existem dois mundos separados, surge a questão: que tipo de relação existe
problema do devir, pois “o devir é uma injustiça que deve ser expiada pela
decomposição”364. Para ele, o processo que gera o devir é um processo criminoso, é algo
360
Ibidem.
361
FE, § IV. Fisicamente, Anaximandro discorda de Tales, já que a água, por ser uma substância determinada,
não pode ser a arché.
362
FE, § IV.
363
“Tudo o que devém e declina expia uma falta deve expiar as conseqüências de sua injustiça”, FP, p. 118.
364
FP, p. 150.
109
que não deveria acontecer, mas como acontece, merece punição. Ou seja, porque há
injustiça, há expiação. Porque existe crime, existe castigo. Anaximandro encontra assim
uma explicação para o sofrimento e a morte de tudo o que existe no devir: o mundo da
originário”, sendo que esta expiação nunca termina, já que o devir é uma realidade
eternamente amaldiçoada e condenada a pagar por suas injustiças. Nada, ninguém, pode
salvar os seres que estão no mundo do devir: “sempre, de novo, voltará a edificar-se um tal
humana se realiza no âmbito do devir, ela traz consigo a mesma injustiça que existe no
ininterrupto vir-a-ser. Por este motivo, a vida é um mal, um crime que primeiro é expiado
indivíduos como seres que expiam pela injustiça de existir: “a pluralidade das coisas
nascidas é uma soma de injustiças a ser expiadas”366. De acordo com essa lógica, viver é
pagar pelo crime de existir. Desse modo, a existência individual, determinada, não se
justifica. É próprio desse mundo da pluralidade uma contradição, pois ele “consome e nega
a si mesmo. Sua existência se torna para ele um fenômeno moral, que não se legitima, mas
entendeu que este não poderia ser o princípio de tudo, então a noção de ser não é a
primeira, a mais fundamental, tal como parece. A noção de ser surgiu depois, por uma
dedução abstrata da realidade primeira, que é o devir. Isto é, para Nietzsche, o mundo do
365
FE, § IV.
366
Ibidem.
367
Ibidem.
110
ser é uma criação para escapar do devir. Anaximandro, diz ele, “saltou no indeterminado”
e, através desse salto, “escapou de uma vez por todas do reino do vir-a-ser e de suas
pois para ambos existe um único mundo, uma única realidade. Só que a identificação acaba
aqui, já que, para Heráclito, o único mundo que existe é o do devir e, para Parmênides, é o
A primeira: o devir é a única realidade que existe, “não existe nada que se possa dizer ‘isto
368
FE, § IX.
369
FP, p. 129
370
Ibidem.
371
Ibidem, p. 150. Enquanto que, para Heráclito, a multiplicidade é o modo de ser do mundo, por isso, o Um
não é outra coisa senão o múltiplo, para Parmênides, a multiplicidade não é real, é apenas uma ilusão que os
sentidos apresentam, a única verdadeira realidade é a do ser.
372
“Dois prodigiosos modos de contemplação cativaram seu olhar: o movimento eterno, quer dizer, a negação
da permanência no mundo, e a regularidade interna e unitária do movimento. Essas são duas prodigiosas
intuições”; Ibidem, p. 146
111
é’”373, ou seja, não há ser fora do devir, a permanência se apresenta como uma perfeita
ilusão. A segunda intuição, que não deve ser considerada menos importante que a primeira:
o devir se realiza de acordo com uma “regularidade interna e unitária”374, o devir se realiza
de acordo com a justiça (díke), lógos, medida, lei eterna e divina que tudo governa375.
Nietzsche o diferencia dos outros pré-socráticos pela sua “fé na unidade e regularidade do
aponta para o fato de que “Heráclito, com a díke, deu uma resposta ao problema da adikia
posto por Anaximandro”378. Assim, ele torna evidente a oposição entre os dois filósofos:
373
Desta primeira intuição, diz Nietzsche, ele tirou duas “negações entre si solidárias (...), negou a dualidade
de mundos totalmente diferentes, que Anaximandro se vira obrigado a admitir (...). Após este primeiro passo,
(...) negou o ser em geral. (...) Heráclito exclamou mais alto do que Anaximandro: ‘só vejo o devir. Não vos
deixeis enganar! É a vossa vista curta e não à essência das coisas que se deve o fato de julgardes encontrar
terra firme no mar do devir e da evanescência. Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duração fixa;
mas, até o próprio rio, no qual entrais pela segunda vez, já não é o mesmo que era da primeira vez”, FE, § V.
e FP, p. 150. Esta idéia está vinculada ao célebre fragmento 91DK: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo
rio”.
374
FP, p. 146.
375
Conforme diz o fragmento 102DK: “Para o Deus, tudo é belo e bom e justo. Os homens, porém, tomam
umas coisas por injustas, outras por justas”. (Fr.92. DK). Utilizamos a tradução feita por Emmanuel Carneiro
Leão, Os pensadores originários. Petrópolis, RJ, Vozes, 1991. Nietzsche salienta que o devir e a lei seguida
por ele, no fundo é uma coisa só: “O que devém está em eterna transformação, e a lei dessa eterna
transformação – o lógos nas coisas - é precisamente o Um, o fogo. Pois o Um que está em devir é a sua
própria lei. Seu devir e o como do seu devir constituem sua obra. o Um que está em devir é para ele mesmo a
sua própria lei.”, FP, p. 150.
376
Ibidem.
377
Ibidem. Em suas Lições, a respeito da noção de justiça, Nietzsche cita os seguintes fragmentos: “Não
houvesse isto (a injustiça) ignorariam o próprio nome de justiça”: “O Sol não ultrapassará os seus limites; se
isto acontecer, as Eríneas, auxiliares da Justiça, saberão descobri-lo”. Podemos acrescentar o fragmento: “Para
deus, tudo é belo e bom e justo, os homens, contudo, julgam umas coisas injustas e outras justas”, (Fr.102
DK).
378
Ibidem, p. 154.
112
Das duas intuições de Heráclito - (só existe o devir e este se realiza de acordo com a
díke) - surgiram os dois conceitos apresentados, por Nietzsche, como fundamentais: “ao
Heráclito teve “um pressentimento ainda mais alto”381. Viu que “o próprio conflito do seres
conflito-justiça. Este é o conceito mais trabalhado por Nietzsche, já que engloba os dois
O que diz esse terceiro conceito é: todo o devir nasce do conflito entre os contrários;
momentânea de um dos lutadores, e esse conflito se realiza de acordo com a justiça que é
comum a todos. O fragmento (80DK) é, aqui, em sua Lições, citado: “É necessário saber
que a guerra é universal, e que a díke é conflito, e que tudo se produz conforme o
conflito”385. Ou seja, sem a guerra, a eterna luta entre o dia e a noite, o inverno e o verão, a
vida e a morte – pólemos - não haveria justiça, nem devir e, portanto, não existiria mundo.
Para Heráclito, existe uma lei divina que regula os conflitos, impedindo que um dos
contrários seja o único vitorioso. Idéia que remete a vários fragmentos, por exemplo, o Fr.
harmonia”. Diz Nietzsche, “tem aqui uma harmonia, mas uma harmonia que se funda sobre
uma discordância”386. Como dizia Plutarco, citado por Nietzsche, a díke em Heráclito
conforme a justiça que é indissociável da luta entre os contrários, implica a idéia de que os
contrários estão sempre juntos - juntos e em guerra. De modo que a presença de um deles
não exclui a presença do outro; ao contrário, um aponta para o outro. Nietzsche comenta
que: “na realidade, em cada instante a luz e a sombra, o doce e o amargo, estão juntos e
ligados um ao outro como dois lutadores, dos quais, ora a um, ora a outro cabe a
supremacia”388. Assim, para Heráclito, os contrários são iguais na medida em que são
para cima, para baixo, um e o mesmo”; o Fr.49aDK: “No mesmo rio entramos e não
entramos, somos e não somos”. A idéia de que os contrários são o mesmo, observa
Nietzsche, irritou Aristóteles, que acusou Heráclito de “crime supremo diante do tribunal da
De acordo com o jovem professor de filologia, a idéia de que não há justiça sem
386
Ibidem, p. 162
387
Ibidem, p. 151
388
FE, § V. Sobre esta questão específica, em suas Lições, Nietzsche cita Simplício, que cita Teofrasto: “O
surgimento da vida e da morte é somente a vantagem tornada visível que uma das forças ganhou sobre seu
próprio contrário e que, no mesmo instante, perde em benefício do outro. Agitadas, as duas forças são sempre
simultaneamente, de modo que seu conflito eterno não permite nem a vitória nem a opressão por muito
tempo”, FP, p. 152.
389
Outros exemplos, fragmento 61DK: “O mar, água, a mais pura e a mais impura. Para os peixes, potável e
vivificante, para os homens, não potável e mortal”; Fr.62DK: “Imortais mortais, Mortais imortais, vivendo a
morte dos outros, morrendo a vida dos outros”; o Fr.88DK: “O mesmo é vivo e morto, vivendo-morrendo a
vigília e o sono, tanto novo como velho: pois estes se alterando são aqueles e aqueles se modificando são
estes”.
390
FE, § V.
114
rivalidade, inclusive, a inveja, como algo altamente positivo, já que tira o homem da inércia
e o impulsiona para a ação, para a ação da disputa. Para Nietzsche, “a disputa, mais ainda, a
regularidade imanente que decide o desenlace do combate, distingue os gregos dos outros
povos” 391.
Nietzsche é tão encantado com esse valor genuíno da cultura grega que escreve um
ensaio sobre o tema, A disputa de Homero, que seria o prefácio de um livro. Aí ele mostra
enaltece os combates – agon – entre os heróis), a começar pelo primeiro poema didático
dos gregos, Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, que começava distinguindo duas deusas da
rivalidade, uma que deveria ser louvada tanto quanto a outra deveria ser censurada. Citando
a tradução de Nietzsche:
“Há sobre a Terra duas deusas Eris”. Este é um dos mais notáveis
pensamentos helênicos, digno de ser gravado no portal de entrada da ética
helênica, assim como aquilo que vem em seguida. “Uma Eris deve ser tão
louvada, quanto a outra deve ser censurada, pois diferem totalmente no
ânimo estas duas deusas. Pois uma delas conduz à guerra má e ao combate
cruel! Nenhum mortal preza sofrê-la, pelo contrário, sob o jugo da
necessidade prestam-se as honras ao fardo pesado desta Eris, segundo os
desígnios dos imortais. Ela nasceu como mais velha, da noite negra; a
outra, porém, foi posta por Zeus, o regente altivo, nas raízes da Terra e
entre os homens, como bem melhor. Ela conduz até mesmo o homem sem
capacidades para o trabalho; e um que carece de posses observa o outro,
que é rico, e então se apressa a semear e plantar do mesmo modo que este,
e a ordenar bem a casa; o vizinho rivaliza com o vizinho que se esforça
para seu bem estar. Boa é esta Éris para os homens. Também o oleiro
guarda rancor do oleiro, e o carpinteiro do carpinteiro, o mendigo inveja o
mendigo e o cantor inveja o cantor”392.
Para Nietzsche, não há dúvida de que Heráclito herdou dos antigos esse valor. Diz
ele, “nos ginásios, nas disputas musicais, na vida política, Heráclito aprendeu a conhecer o
391
FP, p. 151. E também em FE, § V.
392
NIETZSCHE, “A disputa de Homero” in Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Trad. Pedro
Süssekind. Rio de Janeiro, 7 Letras, 1996, p. 77-78
115
caráter próprio desse pólemos”393. Inclusive, Nietzsche afirma que o conceito diké-pólemos
considera que
tudo acontece de acordo com esta luta, e é esta luta que manifesta a justiça
eterna. É uma idéia admirável, oriunda da mais pura fonte do gênio
helênico que considera a luta como ação contínua de uma justiça
homogênea, severa, vinculada a leis eternas. Só um grego seria capaz de
fazer desta representação o fundamento de uma cosmodiceia; é a Boa Éris
de Hesíodo transformada em princípio cósmico, é a idéia de competição
dos gregos singulares (...) para o mais universal, de maneira que, agora, a
engrenagem do cosmos nela gira394.
Vemos assim que o fato de Heráclito não ter sido o autor da idéia de pólemos-díke,
para Nietzsche “um dos conceitos mais grandiosos” da filosofia, não diminui em nada o seu
elogio, em proposições nas quais o termo “sublime” aparece com freqüência395. Ele valoriza
Heráclito por ter tido o “pressentimento sublime” de ver que a Boa Éris de Hesíodo é o
do sistema de Heráclito. Conforme diz o fragmento 30, o mundo é fogo sempre vivo que se
393
FP, p. 152
394
FE, § V.
395
FP, 152 e 158, FE, § V e § VIII.
396
FP, p. 151. E também em FE, § V.
397
FP, p. 154.
116
metamorfoses do fogo, como diz o Fr.90DK: “Pelo fogo tudo se troca e por tudo, o fogo;
como pelo ouro, as mercadorias e pelas mercadorias, o ouro”. O fogo é o elemento mais
puro que se transforma em mar, depois em terra, depois volta ser mar e depois volta a ser
fogo. Importante aqui é salientar a idéia de que do fogo, “sempre vivo”, surgem e
ciclos, infinitos são os mundos. Nietzsche salienta a idéia de que existe sempre um impulso
que leva à formação de novos mundos, um impulso que faz surgir do fogo todas as
múltiplas formas399.
díke e fogo – é possível dizer que o mundo, para o Heráclito de Nietzsche, é: puro devir,
fogo sempre vivo, que se realiza conforme a justiça (díke), que se apresenta na luta
Nietzsche ensina a interpretar Heráclito não apenas através de conceitos, mas por
meio de uma imagem (que aparece em todos os seus ensaios sobre Heráclito) designada
como a grande “metáfora cósmica” que sintetiza o pensamento do filósofo dito obscuro.
Que imagem é esta? A de uma criança jogando. Jogando o quê? O jogo dos contrários, do
pólemos-díke, o jogo de criar e destruir. O jogo da criança simboliza o jogo do devir, que se
faz conforme uma justa e severa medida. Além de ser o jogo dos contrários, expressão da
díke, o que é relevante nessa imagem é a inocência da criança que é a mesma tanto na
criação quanto na destruição. Tal imagem do jogo da criança, segundo Nietzsche, mostra
com clareza que os dois movimentos do devir, surgir e desaparecer, nascer e morrer, se
398
Fr.30.DK:“O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses o fez e nenhum dos homens o fez mas
sempre foi, é será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando”.
399
FE, § VI.
117
destruir e formar mundos”, é a mesma inocência que leva a criança a construir e destruir
(Diels) no centro de sua interpretação de Heráclito”400. Este fragmento diz: “O tempo é uma
criança que brinca, movendo as pedras do jogo para lá e para cá, governo de criança”401.
das anedotas sobre Heráclito, contada por Diógenes Laércio e reapresentada por Heidegger
da seguinte forma: “Dirigiu-se, porém, ao santuário de Ártemis para lá jogar dados com as
crianças; voltando-se aos efésios que se puseram de pé ao seu redor, exclamou: ‘Seus
infames, o que estão olhando aqui tão espantados? Não é melhor fazer o que estou fazendo
Entre homens, Heráclito era inacreditável como homem; e quando ele foi
visto dando atenção ao jogo de crianças barulhentas, pensava ali algo que
nenhum mortal havia pensado nas mesmas circunstâncias – o jogo de
Zeus, dessa grande criança do mundo, e a brincadeira eterna de destruir e
formar mundos404.
400
FINK, E. A filosofia de Nietzsche. Lisboa, Editorial Presença, 1988.
401
Na tradução de Emmanuel Carneiro Leão esse fragmento é: “O tempo (aion) é uma criança, criando,
jogando o jogo de pedras; vigência da criança”.
402
FE, § VII.
403
Texto citado por Heidegger em seu livro Heráclito. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1998, p. 22
404
PV, p. 30
118
crime, hybris, na existência, como pensava Anaximandro. Mais uma vez, Nietzsche
para o qual “o devir é uma injustiça e deve ser expiada pela decomposição”405, para
concluía ele, que o vir-a-ser não poderia ser injusto nem criminoso”.407 O que significa
dizer que todo aspecto negativo que existe no devir - “o caminho para baixo”, a
e não da hybris, Nietzsche ressalta que, em Heráclito, “não é a hybris, mas o despertar de
problema algum nesse mundo da diversidade, que é, aliás, o único mundo existente.
Entretanto, Nietzsche faz questão de dizer que, se por um lado, Heráclito é contrário à visão
pessimista de mundo, “por outro lado, ele não tem nada de otimista, pois ele não nega o
real”412. Mas, essa “idéia terrível e perturbadora”, cujo efeito é semelhante ao “sentimento
de quem, num tremor de terra, perde a confiança que tem na terra firme”, graças a uma
“força assombrosa”, foi transformada por ele em um efeito oposto: “impressão sublime e no
assombro bem-aventurado”413.
jogo de criança”. Mas ele ampliou a imagem recebida criando novas configurações. Para
Nietzsche, a criança de Heráclito também é fogo, é Zeus, “a grande criança universal” 414.
Diz ele: “O fogo eternamente vivo, o aion (tempo), joga, constrói e destrói”415; “o mundo é
o jogo de Zeus, ou, em termos físicos, do fogo consigo mesmo” 416. É preciso estar atento ao
fato de que o fogo e Zeus estão em conexão com a linguagem do filósofo de Éfeso, mas
existe uma imagem que Nietzsche identifica à criança que não tem relação alguma com o
Heráclito à imagem que ele próprio possui do artista: “Neste mundo, só o jogo do artista e
neles existe a mesma inocência, quer dizer, a mesma ausência de juízos morais. Entre os
homens, somente o artista olha o mundo como uma obra de arte. Na arte, não há certo nem
errado, nem bem nem mal, nem verdade nem mentira. A criação artística exclui os
preceitos morais, visto que um objeto de arte não tem função moral, mas estética. Sua única
finalidade é gerar prazer estético. Por isso, quem vê o mundo como um artista vê sua obra
não pergunta sobre o sentido moral da existência. Não julga a vida em termos morais. Para
o artista, como para a criança, o lado negativo da vida não é sinal de culpa e punição. É
“metáfora sublime”418 é porque ela mostra justamente isto: a vida não é um fenômeno
moral. Segundo ele, se alguém perguntasse a Heráclito por que existe o sofrimento, por que
existe a morte,
Vale saber que, nos fragmentos de Heráclito, os maiores artistas gregos, poetas
consagrados como Homero, Hesíodo e Arquíloco, são alvos de severas críticas. E estas são
conhecidas por Nietzsche que, sobre isso, comenta: “porque ele (Heráclito) ignora a arte,
ele recorre à imagem do jogo da criança. Aqui reina a inocência, mas também a criação e a
418
Ibidem. Diz Nietzsche: “Heráclito utiliza uma metáfora sublime: um devir e um declínio destituído de toda
justificação moral (que) só existe no jogo da criança (ou na arte)”.
419
FE, § VII, p. 51. Continuando: “Mas, esses homens, assim como as suas antipatias e simpatias, o seu ódio e
o seu amor, tê-lo-iam deixado indiferente, e ele tê-los-ia servido com algumas verdades deste tipo: ‘Os cães
ladram aos desconhecidos’, ou ‘O burro prefere a palha ao ouro”.
121
destruição”420. Ou seja, segundo Nietzsche, Heráclito não valoriza o artista porque não sabe
que na criação artística existe a mesma inocência que existe no jogo da criança. Mas, se
Heráclito não sabe, Nietzsche sabe e considera a arte a atividade suprema do homem.
jogo do artista como compreende a filosofia de Heráclito como uma visão estética do
mundo. Isto é, para ele, Heráclito é um artista, pois ele tem uma “percepção estética” do
mundo. Ele vê a invisível justiça, “que se manifesta tanto entre os homens estúpidos como
entre os homens superiores”421, porque vê o mundo com olhos de artista. Seu olhar
limitado que vê as coisas separadas umas das outras e não no seu conjunto”423. Em várias
cada filósofo, pois podemos reconhecer um mesmo mundo sob as diferentes interpretações.
420
FP, p. 158.
421
Ibidem, p. 162.
422
FE, § VII.
423
Ibidem, § V.
424
Ibidem, § VII.
425
FP, p. 162.
426
FE, § VI.
427
FP, p. 158.
428
FE, § VII.
122
Como Anaximandro, Heráclito viu todo aspecto terrível do devir, porém não o julgou como
um mal, já que olhou o mundo como um fenômeno estético e não como um fenômeno
olhar estético de Heráclito que o faz reconhecer a justiça e a inocência nesse mundo de
múltiplas formas, de múltiplos indivíduos. Ele pôde ver, com alegria, que a existência é
inocente, que ela não traz consigo nenhuma mácula, nenhum pecado original. Se
Anaximandro condenou a vida, Heráclito a absolveu. Ou melhor, nem isso, pois a vida não
precisa ser absolvida, já que ela não deve sequer ser julgada.
oposição entre uma visão moralista e uma visão estética do mundo. Graças a sua
“percepção estética fundamental do jogo do mundo”429, Heráclito, com sua filosofia, viu e
mostrou a beleza que existe no devir, “foi ele quem levantou a cortina desse espetáculo
sublime”430. Ele mostrou que a vida é como um espetáculo de arte que merece ser
contemplado e não questionado, que deve suscitar o prazer estético e não tolas perguntas
morais. A vida é um belo e inocente jogo de criança que merece ser (apenas) jogado com
429
“De resto, Heráclito não escapou aos ‘espíritos medíocres’; já os estóicos o interpretaram superficialmente,
rebaixando a sua percepção estética fundamental do jogo do mundo”, Ibidem.
430
FE, § VIII.
123
Heráclito e Apolo.
1- Heráclito escutou sua verdade do oráculo de Delfos e, diz Nietzsche, “o que ele
escutou, tomou por uma sabedoria imortal, de eterno valor interpretativo, no sentido em que
3- Heráclito foi, diz Nietzsche, o filósofo que mais viveu conforme o preceito
délfico “Conhece-te a ti mesmo”. Seu sentimento religioso, seu misticismo, o leva a voltar-
dionisíaco. Nos fala Nietzsche sobre Heráclito: “‘Procurei e investiguei a mim mesmo’,
disse ele com palavras pelas quais se indicava o investigar de um oráculo: como se fosse
ele, e ninguém mais, quem na verdade cumpriu e realizou aquela frase délfica: ‘Conhece-te
Flamejando ao dirigir-se para dentro, seu olho observa com vista apagada e glacial o que
431
PV, p.30.
432
Ibidem, p. 29.
433
FP, p. 141.
434
PV, p.30.
124
está fora, como se olhasse apenas para o brilho aparente” 435. Nietzsche o qualifica como
Ele não precisava dos homens, nem sequer para o seu conhecimento;
todas as informações que deles se podiam obter ao interrogá-los e tudo o
que os outros sábios antes dele tinham tentado pesquisar não lhe
interessavam. Falava com desprezo desses homens interrogadores,
colecionadores, em suma, “históricos”436.
4- Nietzsche mostra que Heráclito compara a sua própria filosofia enigmática com a
interpretar como sentença de oráculo, como ele, como o próprio deus délfico ‘nem fala,
nem esconde’. Como ele pronuncia, ‘sem riso, sem adorno e incenso perfumado’, muito
mais ‘com boca transbordante’, algo que deve atravessar os mil anos do futuro” 437. Tais
de solidão que o atravessava: talvez, seu estilo, que ele próprio compara com as sentenças
se realiza de acordo com a justiça divina, díke, o lógos. Se não há culpa também não há
criança que aparece em Heráclito, que é também o jogo do Tempo, do Aion, e do artista,
Nietzsche se refere a Homero, mais precisamente, aos versos da Ilíada em que aparece a
imagem de uma criança que brinca de construir e destruir castelos de areia à beira mar.
troianos na luta contra os gregos, toma a frente e facilmente derruba as muralhas dos
aqueus da mesma forma que uma criança derruba os castelos que construiu à beira mar:
Apolo. Por isso, Nietzsche exclama: “Heráclito: ideal apolíneo, tudo é aparência e jogo!”440.
439
HOMERO, Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001, p. 348.
440
O filósofo como médico da civilização, in LF, § 168, p. 57.
126
separar “o mundo dos sentidos e o mundo dos conceitos”442, a recusar a autenticidade das
intelecto e animou aquela divisão completamente errônea entre corpo e espírito que,
pensador típico do século VI a.C., século dos Mistérios, Parmênides é visto como um
filósofo que destoa de sua época. Diz Nietzsche: “Se Parmênides chegava à unidade do ser
puramente através de uma suposta conseqüência lógica, retirando-a dos conceitos de ser e
não-ser, Xenófanes é um místico religioso e, com aquela unidade mística, pertence, com
efeito, ao VI século”445. Nietzsche apresenta a formulação da teoria do ser, que nega o devir
sumamente móvel”446.
surge o conceito e ser, o mais abstrato dos conceitos de toda a filosofia pré-socrática,
441
“Os eleatas foram os primeiros a descobrir a diferença, mais freqüentemente a oposição, entre o intuído e o
pensado, usando-a de diversas maneiras em seus filosofemas e sofismas. (...) Reconheceu-se que a intuição
sensível não é incondicionalmente confiável, concluindo-se precipitadamente que tão-só o pensamento
lógico-racional funda a verdade”, MC, § 15, p. 124.
442
FE, § IX.
443
Idem.
444
Ibidem.
445
Ibidem.
446
Ibidem.
127
interpretava o devir (apontado por Anaximandro) como sendo constituído por ser e não-ser
– termos que designam dois tipos opostos de qualidade: as positivas, que explicavam o ser,
que está sempre presente, e as negativas, que explicavam a mudança, tanto o nascer quanto
Algo que não é pode ser uma qualidade? Ou, interrogando no plano dos
princípios: algo que não é, pode ser? Mas a única forma do conhecimento
que nos oferece imediatamente uma segurança incondicional e cuja
negação iguala a loucura é a tautologia A = A. Este mesmo conhecimento
tautológico lhe dizia implacavelmente: ‘O que não é, não é! O que é, é!
Repentinamente ele sentiu pesar sobre a sua vida um monstruoso pecado
lógico; ele sempre havia suposto sem escrúpulo que existiam qualidades
negativas, não-seres em geral, havia suposto que, formalmente expresso,
A = não A447.
Parmênides é, para Nietzsche, o precursor do otimismo teórico visto que ele anuncia
a crença na razão e a descrença nos sentidos. Seu lema era: “‘examine tudo somente com a
abstrato, resistente e fechado às insinuações dos sentidos”449. Com ele surgiu “o pressuposto
de que nós temos um órgão de conhecimento que vai à essência das coisas e é independente
intuição, mas é trazido de outra parte, de um mundo extra-sensível ao qual nós temos
447
Ibidem.
448
Ibidem.
449
Ibidem.
450
Ibidem .
128
dois períodos a história da filosofia arcaica), Nietzsche o critica, pois a teoria do ser
razão. Passando por Kant451 e Schopenhauer452, Nietzsche levanta a sua crítica à teoria do
ser de Parmênides: “ela é apenas um jogo com abstrações”, um jogo vazio porque o
conteúdo da sua verdade lógica não está vinculada a nenhum objeto dado pela intuição453.
verdadeiro. Ou seja, a teoria do ser ensina o desprezo pelas intuições e pelo mundo do
Parmênides pretendeu fugir do devir através “do mais frio e inexpressivo conceito, o
ser”455.
segundo é justo) nem por isso ele deixa de apontar para a oposição entre Parmênides e
Heráclito. Para este, o devir é real, para aquele é ilusório. Mas, há outra oposição entre
451
“Pois o puro critério ‘lógico da verdade, como Kant ensina, isto é, a concordância de um conhecimento
com as leis formais e gerais do entendimento e da razão, é apenas o conditio sine qua nom, portanto, a
condição negativa de toda verdade: a lógica não pode ir mais longe nem descobrir, através de nenhum
procedimento, o erro que se refere, não à forma, mas ao conteúdo”; FE, XI.
452
Para Schopenhauer, se o pensamento abstrato não surge de uma intuição sensível, ele é apenas uma
abstração vazia, sem sentido e sem verdade alguma, pois a “intuição (...) é a fonte de toda verdade e o
fundamento de qualquer ciência”, MC, § 14, p. 116
453
“A verdade lógica daquela oposição entre o ser e o não-ser é completamente vazia, se não pode ser dado o
objeto subjacente, se não pode ser dada a intuição através da qual esta oposição é deduzida por abstração; sem
este retorno à intuição, ela é apenas um jogo com abstrações através do qual nada é conhecido de fato”, FE,
XI.
454
FE, § V.
455
Ibidem, § IX.
129
estes pensadores. Eles se opõem também na forma de ser e pensar: Heráclito é “feito de
fogo”, seu pensamento é intuitivo e se mostra por imagens; Parmênides é “feito de gelo”,
apesar de usar imagens e partir da intuição, sua teoria sobre o ser renega suas impressões
sensíveis.
Enquanto Parmênides quer pelo menos uma certeza demonstrada racionalmente que
lhe sirva como uma tábua sobre o mar da incerteza, Heráclito é “frio, insensível e mesmo
hostil” em relação à razão. Enquanto Parmênides dizia (de acordo com a interpretação de
Nietzsche): “tomai para vós tudo o que vem-a-ser, o que é exuberante, multicolorido,
florescente, enganador, excitante e vivo; e dai-me apenas a única, pobre e vazia certeza’”458,
Heráclito diria: tomai para vós tudo o que é descolorido, gelado e abstrato, e dai-me apenas
leveza própria do artista, remete aos pré-socráticos. No entanto, os primeiros filósofos são
diferentes entre si, uns mais intuitivos, outros mais abstratos. Nietzsche destaca dois
filósofos que representam o mais intuitivo e o mais abstrato, são eles: Heráclito e
Parmênides. Heráclito tem o dom da intuição, vê a sua verdade imediatamente, sem o uso
456
Ibidem § V.
457
Ibidem, § IX.
458
Ibidem.
130
da razão; Parmênides tem o dom da abstração. Ele, que quase se transformou “numa
sua verdade através de uma “suposta seqüência lógica”. É evidente que Nietzsche admira
Mas, Parmênides, apesar de seu otimismo teórico, ainda era muito ingênuo no seu
modo de ser racional. Ainda está longe do modelo socrático. Por isso, até ele, com seus
raciocínios gélidos, é chamado por Nietzsche de “profeta da verdade” 460. Se ele, que “quase
absolutamente lógico de seu pensamento teria surgido de uma experiência não lógica. Sua
verdade surgiu “de repente”, independentemente de sua vontade. Ou seja, sua verdade não é
um resultado de uma “suposta seqüência lógica”. Eis como Nietzsche narra o grande
momento em que Parmênides vislumbrou sua verdade e reconheceu o pecado lógico que
459
Ibidem.
460
Ibidem § IX.
461
Ibidem
131
Cada um dos pré-socráticos apresentou a sua resposta original aos dois problemas
filosóficos, sobre o devir e o do valor da existência. Como foi visto, a verdade de cada um
trágico”, quer dizer, do próprio Nietzsche que – nesse período, imediatamente posterior aO
nascimento da tragédia – aponta para o fato de que somente por esquecimento ou loucura
ele não pode responder à primeira questão – o que é o mundo? Para ele, o mundo é um
enigma indecifrável. Todavia, ele tem a sua resposta para a segunda questão: a vida se
justifica como fenômeno estético. Esta é a única resposta encontrada em suas obras de
tratam dos filósofos arcaicos. Esta resposta evidencia a afinidade entre o filósofo alemão e
Heráclito: ambos vêem a vida com olhos de artista. Em suas Considerações extemporâneas,
para que tu indivíduo estás aí? isso te pergunto, e se ninguém pode dizê-lo
tente ao menos uma vez legitimar o sentido de tua existência como que a
posteriori propondo tu a ti mesmo um fim, um alvo, um “para quê”, um
alto e nobre “para quê”. Morra por ele – não conheço nenhuma finalidade
melhor para a vida do que morrer pelo grandioso e pelo impossível463.
462
VM, in LF, § 177, p. 80.
463
Considerações extemporâneas, Da utilidade e desvantagem para a história, § 9, in Nietzsche, Os
pensadores, p. 70.
132
Enquanto que este último vê o devir como uma injustiça que precisa ser expiada pelo
manifestam-se em todo vir-a-ser; daí concluía ele, que o vir-a-ser não poderia ser injusto
opor ao filósofo pessimista, Heráclito “não nega o sofrimento”465. Ele viu, como
Anaximandro, o aspecto terrível do devir, “a inconsistência total de todo o real”, mas esta
idéia perturbadora foi transformada em uma “assombro bem-aventurado” 466. Quer dizer,
morte presentes no devir como uma compensação de uma falta moral. Foram as forças da
arte que o fizeram ver que o devir é inocente em seus dois movimentos – de criação e
oposição entre uma visão estética do mundo e uma visão pessimista. Heráclito é “o homem
forma que Anaximandro possui uma percepção moralista do mundo. Em continuidade com
464
FE, § IX.
465
FP, p. 162.
466
FE, § VII.
467
Ibidem.
468
“De resto, Heráclito não escapou aos ‘espíritos medíocres’; já os estóicos o interpretaram superficialmente,
rebaixando a sua percepção estética fundamental do jogo do mundo”, Ibidem.
133
mesma resposta pessimista e moralista sobre esta questão. Define o homem, e tudo o que
existe na sua individualidade, como um ser destinado ao sofrimento e à morte que são as
formas de pagar pelo pecado de existir, “em essência, incluindo-se também o mundo
criminoso, por isso, viver é expiar pelo crime de ter nascido. A “eterna justiça” que
desta justiça eterna aquele que reconhece a vida como crime e castigo. Referindo-se a este
assunto Schopenhauer cita o poema de Calderon, A vida é sonho: “Pois o delito maior do
homem, é ter nascido. Como não seria um delito, se, conforme uma lei eterna, a morte vem
depois? Calderon também apenas exprimiu em tais versos o dogma cristão do pecado
original”471.
entre seu educador e Heráclito. Schopenhauer, tal como o filósofo de Éfeso, compreende o
469
“Schopenhauer retorna aos problemas originais mais profundos da ética e da arte, ele ressalta a questão do
valor da existência”, UF, in LF, § 33, p. 6.
470
MC, § 56, p. 400.
471
Ibidem, § 63, p. 453.
472
Não podemos deixar de dizer que existe entre Schopenhauer e Anaximandro uma diferença. Para este,
existem dois mundos radicalmente distintos, para aquele, o mundo é um só, embora se apresente de dois
modos, como representação e Vontade. Schopenhauer - como Nietzsche - é um crítico da crença metafísica de
que existem duas realidades opostas, uma supra-sensível, a outra sensível, sendo que a primeira, sempre
vinculada à razão, seria superior à outra. Para ele, não há um Deus fora do mundo, não existe alma separada
do corpo. Do inorgânico ao mais complexo dos seres, no fundo, tudo é expressão da Vontade. Eis aqui uma
bela imagem que fala da unidade da Vontade: “Assim como uma lanterna mágica mostra muitas e variadas
imagens, porém aí se trata de uma única e mesma flama que confere visibilidade a elas, assim também em
todos os diversos fenômenos que um ao lado do outro preenchem o mundo ou se rechaçam como
acontecimentos sucessivos, trata-se apenas de UMA VONTADE que aparece”, MC, Livro II, 28, p. 218.
Como Maria Lúcia Cacciola diz em seu livro: “A fórmula da cosmologia schopenhauriana já está contida no
título de sua obra principal: Die Welt als Wille und Vorstellung. Nela não é dito o que (was) o mundo é, mas
como (wie) ele se apresenta”. CACCIOLA, Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo, Editora da
Universidade de São Paulo, 1994. Ou seja, para Schopenhauer, o mundo é um só que se apresenta como
multiplicidade.
134
mundo (o devir, a Vontade) como combate entre opostos, mas se para Heráclito a luta entre
modo nenhum capaz de fazer-nos felizes”. Nietzsche aponta para a diferença que é da
maior relevância:
o tom dessa descrição (da luta dos opostos) já não é mais o de Heráclito,
pois, para Schopenhauer, o combate é apenas uma prova da divisão
interna do querer viver, na qual esse instinto sombrio e confuso devora a
si mesmo; é um fenômeno completamente terrível, de modo nenhum
capaz de fazer-nos felizes473.
realidade que existe –, mas se apresenta como múltiplo. Quer dizer, o processo de
mundo do eterno ser. Aliás, não existe crime, como também não existe um mundo do ser. A
filosofia de Heráclito ensina que na vida não há uma transgressão original. Esta
Heráclito e no filósofo arcaico (de Nietzsche). Eis aqui a terceira hipótese: Heráclito, entre
Nietzsche e Heráclito do outro. Essa distância é a que separa uma visão estética da vida e
473
FE, § V.
135
dão a mesma resposta ao problema do valor da existência: a vida vale como fenômeno
estético.
CONCLUSÃO
136
também nas ciências, na cultura e na vida comum. No mundo moderno reina a “cultura
socrática” que se caracteriza pela crença na razão e na verdade. Ninguém se lembra de que
jovem Nietzsche quer mudar essa situação, quer subverter esse jogo de forças. Por isso, ele
lança a arte contra a tirania da razão. É preciso restabelecer os direitos da arte, já que só ela
pode dar limites à arrogância e à presunção de uma razão excessiva, “agora o domínio da
ciência só se realiza através da arte”476. Por este motivo, Nietzsche faz uma “apologia da
arte”. Diz ele: “Agora lançamos a arte contra o saber: o retorno à vida. O domínio do
instinto de conhecimento”477.
Apologia da arte (...) Nossa época tem o mesmo ódio pela arte e pela
religião. Não se rende nem à promessa do além, nem à promessa de uma
transfiguração artística do mundo. Considera-se ‘poesia’ fútil, um simples
brinquedo etc. (...) Queremos transfigurar-lhes o mundo em imagens tão
fortes que os façam estremecer diante delas. Está em nosso poder!478.
Ainda que nunca cheguemos a constituir uma civilização bem-sucedida,
precisaremos das extraordinárias forças da arte para aniquilar o instinto de
conhecimento sem limites479.
474
CS, in LF, § 193, p. 90
475
VM.
476
UF, in LF, § 39, p. 9
477
Ibidem, § 43, p. 11.
478
Ibidem, § 56, p. 18.
479
UF, in LF, § 30, p. 5. “Contra a historiografia icônica e contra as ciências da natureza tornam-se
necessários muitos artistas prodigiosos”, UF, in LF, 27, p. 4. “Já ninguém mais sabe com o que se parece um
bom livro, torna-se preciso mostrar-lhes: não entendem a composição. A imprensa destrói sempre e cada vez
mais o sentimento. Poder preservar o sublime!” UF, in LF, § 26, p. 4.
137
Da mesma forma que a arte está para a ciência, o filósofo arcaico está para o
filósofo socrático. O parentesco com a arte é o que os diferencia 481. O filósofo arcaico usa a
razão para se comunicar, mas é não é movido por ela. Ele intui a sua verdade como um
místico, a comunica como um cientista e vive como um artista que transforma suas
impressões em poesia conceitual. Enquanto o filósofo arcaico se deixa inspirar pela arte, o
filósofo socrático renega seu talento artístico; sua filosofia, como sua vida, está submetida a
rígidos princípios racionais. Ele caminha sobre parâmetros – supostamente – sólidos, firmes
descanso, segurança, bem estar, em suma, a “paz de rebanho”. A paz que existe quando o
homem se esquece de que o mundo no qual vive é construído por ele próprio, pois ele é o
A vida normal – eis aqui, justamente, o que não quer o filósofo arcaico! De modo
algum, ele quer a paz de rebanho. Ele não vive, como o “homem racional”, guiado por
conceitos e abstrações, programando sua vida para se proteger de uma possível infelicidade
futura. Ele não é razoável. Ao contrário, ele quer ser arrebatado por suas intuições, por seus
pressentimentos, quer voar bem alto, quer saltar rapidamente sobre as pedras antes de elas
serem arrastadas pela forte torrente. Ele vive a vida como um acontecimento raro, intenso e
perigoso. Seu pensamento está livre do jugo da razão. Ele vive consciente de que sua
relação com a linguagem é uma relação estética. Ele sabe que seus conceitos são metáforas
e os quer assim: como metáforas. Ou seja, ele quer a filosofia como “uma forma de poesia”.
480
Ibidem , § 39, p. 9
481
“Comparação da filosofia arcaica com a dos pós-socráticos. 1- A mais antiga está aparentada com a arte,
sua solução do enigma universal freqüentemente deixa-se inspirar pela arte”. CS, in LF, p. 89.
482
VM.
138
vida. Ele não quer uma vida fraca e melancólica, mas uma vida radiante, bela e prazerosa.
Ele quer a alegria que acompanha a criação artística, nele “a alegria não demonstra um
mundo presente do homem desperto (...) uma forma plena de encanto e eternamente nova
tal como no mundo do sonho”483. Sem arte, sem filosofia, sem ilusão, sem alegria, a
existência seria sofrimento e perderia o sentido. E, neste caso, Sileno teria razão: o melhor
dos bens seria não ter nascido e o segundo seria morrer o quanto antes. Porém, o filósofo
arcaico discorda dessa visão moralista de mundo de acordo com a qual viver é pagar pelo
pecado de existir.
quem foi o autêntico filósofo da época trágica dos gregos e serve como arquétipo de quem é
e quem será o autêntico filósofo, pois o que é primordial nesta figura ultrapassa as
fronteiras históricas, passa por Heráclito, pelo próprio Nietzsche, o “filósofo trágico”, e
forma artística, criativa e singular. A imagem do filósofo arcaico não é unívoca, plana,
unidimensional. Ela é como um caleidoscópio, que apresenta várias faces, ganha feições
diferentes, muda conforme o foco do nosso olhar. Seus traços místicos, racionais e
artísticos se interligam criando diferentes composições. Vários são os prismas que ela
oferece, mas o predominante é seu perfil estético. O grande ensinamento do filósofo arcaico
- de Heráclito e de Nietzsche - é mostrar que a vida está aí para ser vivida como um
483
VM.
139
que o pensamento deve fluir livre das rédeas da razão. Como um viajante que percorre
terras desconhecidas, o filósofo arcaico faz da arte as pedras escorregadias do seu caminho.
Vive e pensa envolvido com metáforas que lhe dão asas para voar. A filosofia é preciosa
porque traz leveza e alegria aos que passam pelo mundo, é uma forma de dizer sim à vida.
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