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INTRODUÇÃO

Segundo o jovem Nietzsche – brilhante professor de filologia clássica da

Universidade de Basiléia, conhecedor e admirador da civilização helênica e iniciante na

carreira de filósofo1 –, a filosofia quando surgiu na Grécia, na época trágica, séculos VI e V

a.C., se revelou “na sua forma mais pura e mais grandiosa”2. Aí foram formulados os “tipos

principais do espírito filosófico”3 e os problemas fundamentais da filosofia. Conforme o

professor, nos “filósofos arcaicos”4, o pensamento e a vida eram indissociáveis. Não existia

separação entre teoria e prática. Eles viviam como pensavam e pensavam como viviam. O

pensamento constituía “um apoio para a vida e não para o conhecimento erudito, apoio a

partir do qual se salta para o alto”5.

Nietzsche considera que a seqüência de filósofos geniais - Tales, Anaximandro,

Heráclito, Parmênides, Anaxágoras, Empédocles e Demócrito6 – expressa a exuberância e

criatividade da época áurea dos gregos, quando a Grécia foi “uma civilização autêntica”7.

1
Nietzsche inicia sua vida filosófica com uma excelente bagagem adquirida em seus estudos de filologia.
Apaixonado pela civilização helênica, a partir de 1869, quando foi convidado a assumir a cátedra de filologia
clássica em Basiléia, Nietzsche passou a ministrar cursos e conferências sobre poetas e pensadores gregos.
Seus primeiros textos, tais como Homero e a filologia clássica (discurso proferido no dia em que, aos vinte
cinco anos, tomou posse da cátedra), O drama musical grego e Sócrates e a tragédia, continham algumas
idéias que reunidas viriam compor, em 1871, sua primeira grande obra filosófica: O Nascimento da Tragédia
2
NIETZSCHE, Les philosophes préplatoniciens (FP). Apresentação e notas: Paolo D’Iorio; trad. Nathalie
Fernand. Paris, Editions de Léclat, 1994.FP, p. 83.
3
NIETZSCHE. A filosofia na época trágica dos gregos (FE). Trad. Rubens Torres Filho, in Os Pensadores,
volume “Os Pré-socráticos”. São Paulo, Ed. Abril S.A, 1973, § I.
4
Este termo é freqüentemente utilizado por Nietzsche nos aforismos do outono-inverno de 1872 em O último
filósofo.
5
FE, § I.
6
Sócrates em certo sentido faz parte dessa seqüência, pois ele foi um filósofo “puro”, no entanto, como será
visto a seguir, ele também foi visto por Nietzsche como o símbolo do socratismo, por isso, ele não faz parte.
7
FE, § I.
12

Por isso, se alguém quiser saber o que é a filosofia e quem é o filósofo não deve buscar

respostas na Ásia ou no Egito, nem na modernidade, é preciso voltar-se para os primeiros

pensadores gregos entre os quais a filosofia apareceu à altura que sempre deve ter8:

Os gregos souberam começar na altura própria, e ensinam mais


claramente do que qualquer povo a altura em que se deve começar a
filosofar. Não só na desgraça, como pensam aqueles que derivam a
filosofia do descontentamento. Mas antes na felicidade, na plena
maturidade viril, na alegria ardente de uma idade adulta, corajosa e
vitoriosa. Que os gregos tenham filosofado nesse momento (da sua
história) informa-nos tanto sobre o que é a filosofia e o que ela deve ser
como sobre os próprios gregos9.

Para Nietzsche, mais importante do que a veracidade ou falsidade dos sistemas

teóricos é perceber a personalidade de cada filósofo, é o modo de ser – ethos – que não

deve ser esquecido. O que Nietzsche quer é “extrair o fragmento de personalidade que

contém e que pertence ao elemento irrefutável que a história deve guardar (...) e que não

nos pode ser roubado por nenhum conhecimento posterior: o grande homem” 10. Os

primeiros filósofos são modelos de homens exuberantes. Contemplando-os, Nietzsche

elabora uma “imagem do filósofo” que, para ele, é o autêntico filósofo:

mesmo que (os antigos sistemas filosóficos) sejam inteiramente errôneos,


não deixam de ter um ponto completamente irrefutável, uma disposição
pessoal, uma tonalidade; podem utilizar-se para construir a imagem do
filósofo, assim como a partir de uma planta se pode tirar conclusões sobre
o solo11.

Mas, apesar de tantos estudos, análises e escritos a respeito dos “verdadeiros

mestres da filosofia”, nada foi publicado. A interpretação de Nietzsche sobre os primeiros

8
“Quem prefere ocupar-se da filosofia egípcia ou persa em vez de se ocupar da grega porque aquelas talvez
sejam mais originais e, de qualquer modo, mais antigas, comporta-se de maneira tão imprudente como
aqueles que não descansam antes de terem remetido a mitologia grega, tão magnífica e tão profunda, para
trivialidades físicas, para o sol, o relâmpago, a tempestade e o nevoeiro, como seus começos primordiais”,
Ibidem.
9
Ibidem.
10
Ibidem, Prefácio.
11
Ibidem.
13

filósofos gregos e a “imagem do filósofo” por ele criada permaneceram obscuras e

dispersas nos póstumos. Esta tese tem como finalidade dar unidade e nitidez à figura

imaginada por Nietzsche. Mais do que compreender a interpretação de Nietzsche sobre

cada pensador em particular, o objetivo desta pesquisa é descobrir quais são os traços que

compõem a imagem do filósofo que é aqui designada de “filósofo arcaico”.

Os escritos de Nietzsche utilizados nesta tese foram redigidos entre 1872 e 1875,

fase em que mais se dedicou a analisar (e inclusive dar aulas) os primeiros filósofos gregos.

Os principais escritos são: O último filósofo. Considerações sobre o conflito entre arte e

conhecimento, de 1872 (outono-inverno) – um conjunto de valiosos aforismos em que

Nietzsche investiga os problemas essenciais da filosofia e mostra o contraste entre os pré-

socráticos e os pós-socráticos; A filosofia na época trágica dos gregos12 , escrito em 1873 a

partir de um extenso, rico e detalhado manuscrito intitulado Os filósofos pré-platônicos13,

em que encontramos informações precisas acerca das fontes bibliográficas usadas pelo

professor Nietzsche em suas pesquisas filológicas e filosóficas. Além desses manuscritos, o

ensaio de 1873, a Introdução teorética sobre verdade e mentira no sentido extra-moral,

tem uma participação fundamental neste trabalho, pois mostra a compreensão de Nietzsche

sobre a questão da verdade e sobre a formação da linguagem. Embora não se refira aos pré-

socráticos, está em continuidade com o panorama no qual se delineia a imagem que se

procura elucidar. Nesses escritos – ao lado de outros pequenos ensaios: Sobre o pathos da
12
Nos dois prefácios de A filosofia na época trágica dos gregos, um livro não publicado, Nietzsche avisa ao
leitor que seu interesse é mais pelas “personalidades” originais de cada um dos filósofos do que por seus
sistemas cosmológicos. Por este motivo, para apresentá-los, ele não aborda todo o conjunto de suas idéias.
Escolhe somente as teorias “em que ressoa com maior força a personalidade de cada filósofo”. “De cada
sistema quero apenas extrair o fragmento de personalidade que contém e que pertence ao elemento irrefutável
que a história deve guardar. (...) A tarefa consiste em trazer à luz o que devemos amar e venerar sempre e que
não nos pode ser roubada por nenhum conhecimento posterior: o grande homem”.
13
Desde 1969, Nietzsche pretendia ministrar um curso sobre os primeiros filósofos (incluindo Sócrates), que
só se realizou em 1873. Como base para suas aulas, começou a escrever as Lições sobre os filósofos pré-
platônicos e terminou em 1872. Este é um manuscrito denso que consta a referência das fontes bibliográficas
e extensos comentários sobre os fragmentos dos primeiros filósofos.
14

verdade (1872); O filósofo como médico da civilização (1873); A ciência e a sabedoria em

conflito (1875) –, o filósofo arcaico aparece em oposição ao filósofo socrático e vinculado a

problemas gerais, tais como: o que é a filosofia; qual é a relação entre filosofia, arte, ciência

e religião; como se forma a linguagem, como se constitui o pensamento lógico, conceitual;

qual a relação entre intuição, imaginação e razão; qual é o valor da filosofia, do

conhecimento; os limites da razão; qual é o significado de verdade e mentira na vida social;

qual o valor da arte para a vida; qual o valor da ilusão etc. Mergulhar nesse oceano de

questões, a fim de trazer à tona o “filósofo arcaico”, é a meta desta pesquisa.

Conforme mostra Nietzsche, o período arcaico da filosofia tem uma importância

ímpar na história da civilização helênica e da humanidade14: é uma fase de transição, de

passagem do antigo mundo dos mitos para o novo mundo racional socrático. Nesse

momento, o mito e a razão coexistem; os impulsos lógicos, místicos e artísticos se

misturam. Nietzsche gosta e valoriza essa mistura de elementos, pois dela nasce a filosofia

(e a arte trágica), a autêntica filosofia, que irá desaparecer a partir do socratismo, quando se

impõe um novo tipo de homem, o “homem teórico” e, por conseqüência, uma nova imagem

de filósofo. Nietzsche marca a diferença entre o filósofo arcaico e o filósofo socrático:

enquanto este quer iluminar e ordenar todas as coisas através da razão, o filósofo arcaico

preserva o lugar do escuro, do silêncio, do oculto, do sagrado, e enaltece o lugar da arte, das

cores, das imagens e das metáforas. Ele não é um adepto do “otimismo teórico” cuja

pretensão é enunciar a verdade “a todo custo”. Para Nietzsche, o nascimento do novo

14
Vale dizer que a valorização dos gregos como modelo de civilização não é uma característica apenas de
Nietzsche. Ele, como outros escritores, filólogos e artistas – como Goethe, Schiller, Schelling, Hölderlin,
Schopenhauer, Wagner – fizeram parte de um movimento cultural na Alemanha que tinha os gregos –
sobretudo, os trágicos – como paradigma.
15

homem teórico significa o fim de uma época de “maturidade viril” e o início de um período

decadente.

Nietzsche enfatiza a idéia de que os primeiros filósofos gregos inauguraram um

novo modo de ver e dizer o que é o mundo, criaram uma nova linguagem racional: o

discurso filosófico. O nascimento da filosofia com Tales supõe a ruptura com o mito. O

filósofo surge questionando os antigos poetas, profetas e adivinhos porque pensa a

realidade de modo racional, “não-mítico”15. Chamando a atenção para a marca

originalmente revolucionária da filosofia, Nietzsche afirma que é possível “apresentar os

filósofos arcaicos como aqueles para quem a atmosfera e os costumes gregos são uma

cadeia e uma prisão: por isso eles se emancipam (...) todos contra o mito”16. Quer dizer, faz

parte dos primeiros filósofos um juízo crítico em relação às antigas verdades da tradição.

Este senso crítico, que possibilitou ver a natureza – physis – não mais como uma máscara

dos deuses, para Nietzsche, é o aspecto científico do filósofo. Tales, diz ele, possuía um

“entendimento calculador”17 que via por todos os lados relações de causalidade. Sem essa

racionalidade científica que mede, calcula, classifica e conceitua, não teria nascido o

pensamento filosófico. Estaríamos ainda na lógica do pensamento mítico. Ou seja, uma

certa dose do espírito científico está presente na filosofia desde seu nascimento.

No entanto, é preciso salientar que: os mitos ficam para trás, mas os impulsos

místicos não. A primeira filosofia mantém um certo grau de misticismo visto que suas

verdades não surgiram por meio da razão. Não é o filósofo lúcido e consciente que,

conduzindo seu pensamento numa lógica linear, finalmente, chega à verdade. Ao contrário,

a verdade é que vem ao seu encontro. Ela aparece de repente, como uma “súbita
15
FP, p. 87
16
NIETZSCHE, A ciência e a sabedoria em conflito (CS). Trad. Rubens Eduardo Ferreira Frias. In O livro do
filósofo. São Paulo, Centauro, § 194, p. 90.
17
FE, § III.
16

iluminação”18, um sentimento, um “pathos”, que invade o pensador. Segundo Nietzsche, o

filósofo parte de uma “intuição filosófica profunda”19 também chamada de “intuição

mística”20 (mystischen Intuition), uma experiência arrebatadora em que o mundo a ele se

revela. Se essa visão imediata da verdade é designada como experiência mística é porque

se realiza de modo misterioso, não racional. É um acontecimento inesperado, que

independe do indivíduo. Nietzsche chama a atenção de que até mesmo o mais abstrato dos

filósofos arcaicos, Parmênides, não encontrou a sua verdade através de um encadeamento

racional, como o próprio Parmênides disse: as deusas lhe mostraram a “verdade bem

redonda”. É importante ressaltar que o filósofo arcaico não se caracteriza pelo desejo da

verdade, pela falta da verdade, mas por sua posse. Ele tem a sua verdade que foi recebida

como um presente divino. Como ela não vem pelo discurso, em vez de falar, o filósofo

arcaico se cala a fim de escutar o que diz a physis. A escuta (como em Heráclito), e não a

fala (como em Sócrates), é própria do seu caráter. Usando a imagem de Nietzsche: “o

filósofo tenta ressoar em si a sinfonia do mundo”21.

Uma vez tendo vislumbrado a verdade, o filósofo arcaico não sente necessidade de

prová-la logicamente, nem para si nem para os outros. Na época trágica, o que fundamenta

o discurso filosófico é o imenso “pathos da verdade”22 (Wahrheitspathos). O pensador

traduz em palavras, em conceitos, a sua experiência da verdade mesmo sabendo que a sua

fala não diz o que ela é. Trata-se de uma experiência singular, concreta, viva. Se ele

transforma a sua visão de mundo em um sistema lógico é por prazer, não por necessidade.

Seu discurso é essencialmente poético. Nietzsche considera que entre os pré-socráticos “o


18
NIETZSCHE, Sobre o pathos da verdade (PV). Trad. Pedro Süssekind. In Cinco prefácios para cinco livros
não escritos. Rio de Janeiro, 7 Letras, 1996§ 1, p. 25.
19
FE, § III.
20
Ibidem.
21
Ibidem, § 3
22
UF, in LF, § 61, p. 20.
17

filosofar está ainda presente como obra de arte, mesmo que não se possa demonstrá-lo

como construção filosófica (...) o que decide não é o puro instinto de conhecimento, mas o

instinto estético”23. Isto é, na filosofia arcaica, os “instintos estéticos” predominavam sobre

os “instintos de conhecimento”. Segundo Nietzsche, os primeiros filósofos gregos devem

ser entendidos como aqueles que “dominam o instinto de conhecimento” 24, por isso é

preciso reaprender com eles o modo “supremo” de praticar a filosofia: “A dignidade

suprema do filósofo mostra-se quando ele circunscreve o instinto de conhecimento sem

limites, forçando-o a unificar-se”25.

A primeira hipótese, a mais geral, que norteia esta tese é que a imagem do filósofo

arcaico é constituída por três traços igualmente essenciais: científicos, místicos e estéticos.

Em um aforismo de O último filósofo, Nietzsche aponta para essa mistura de elementos:

O conceito de filósofo e seus tipos – O que é comum a todos? (...) É contemplativo como o

artista plástico, compassivo como o homem religioso, lógico como o cientista: pretende que

ressoem em seu interior todos os ritmos do universo e que tal sinfonia aflore através de conceitos.

Amplia-se num macrocosmo e distancia a observação que reflete – do mesmo modo que o ator ou o

poeta dramático, que se transforma e, contudo, permanece consciente de que se projeta no exterior.

O .+

No nível mais profundo, estão as “intuições” (die Intuition, die Anschauugen): uma

vivência corporal, neurológica, concreta, singular, não racional. Distinguem-se dois tipos

de intuição: as que ocorrem no cotidiano – os “estímulos nervosos”26 que constituem a


23
Ibidem.
24
UF, in LF, § 32, p. 6
25
Ibidem, § 30, p. 5.
26
NIETZSCHE. Introdução teorética sobre verdade e mentira no sentido extra-moral (VM). Trad. de Rubens
Torres Filho, in Os Pensadores, volume Nietzsche. São Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 47. “O que é uma
18

matéria prima para elaborar a linguagem - e as que são extraordinárias, que só acontecem

aos homens mais raros, os filósofos27, num momento excepcional, quando é tomado pelo

“pathos da verdade”, um sentimento que lhe propicia escutar a música do universo, o

possibilita sentir a unidade de todas as coisas. Esta intuição mística vivida pelo filósofo

arcaico corresponde ao êxtase vivido pelo entusiasta dionisíaco – seu contemporâneo –

quando é tomado pelo “sentimento místico de unidade”28.

A seguir, o sentimento místico de união com a natureza, que dissolve as fronteiras

individuais, dá lugar à “produção imaginativa” (Phantasieerzeugung) que se realiza no

mundo das múltiplas formas. O filósofo é conduzido pela “imaginação” (Phantasie),

definida como um “poder estranho e ilógico”29 (fremde, unlogische Macht) capaz de duas

atividades: a de criar e a de associar imagens (Bildern) – “Existe uma dupla força artística:

a que gera as imagens e a que as escolhe” 30. Como o artista plástico, o filósofo transforma

sua percepção musical em uma “profusão de imagens” (Bilderfülle). A magia dionisíaca dá

lugar à magia apolínea que faz o filósofo voar sobre as “asas da imaginação” 31. Agora,

“Apolo se aproxima dele e o toca com seu laurel. O encantamento dionisíaco-musical lança

à sua volta como que centelhas de imagens”. Como será visto, Nietzsche enfatiza a

importância da imaginação na constituição da linguagem e, por conseqüência, na formação

do discurso filosófico. Para ele, todo discurso, mais ou menos científico, é resultado de um

“processo artístico”32 (künrstlerische Prozess).

palavra? A figuração de um estímulo nervoso em sons”, p. 47.


27
PV, p. 28.
28
NIETZSCHE. O nascimento da tragédia (NT). Trad. J. Guinsburg. São Paulo, Companhia das Letras, 1992,
§ 2, p. 32.
29
FE, § III.
30
UF, in LF, § 64, p. 21.
31
Ibidem, § 60, p. 19 e FE § III.
32
UF, in LF, § 64., p. 21.
19

Por fim, no terceiro momento, a razão entra em cena e reflete sobre as imagens

produzidas, a partir delas, constrói novas associações. Assim surgem os conceitos, as

“representações abstratas” – expressão de Schopenhauer; também utilizada por Nietzsche.

Os conceitos são representações de representações, por isso, a razão é chamada de

“reflexão” (Reflexion) por ambos os filósofos, ela reflete sobre as imagens, sobre as

“representações intuitivas”. A partir das múltiplas e mutantes imagens, “criaturas

liqüefeitas”, a razão constrói um rígido sistema lógico conceitual. Se existe um motivo para

Nietzsche admirá-la é este: “consegue erigir sobre fundamentos móveis e como que sobre

água corrente um domo conceitual infinitamente complicado”33. A razão constrói

grandiosas teorias que são como teias de aranha, tênues a ponto de serem carregadas pelas

ondas e firmes a ponto de não serem despedaçadas pelo sopro de cada vento34.

Tal como na tragédia, na filosofia da época trágica existe a presença de Dioniso e

Apolo. O êxtase dionisíaco e as imagens apolíneas podem ser vistos através dos aspectos

místicos e artísticos do filósofo. Nesse sentido, diz Nietzsche: “reina nos filósofos arcaicos

um instinto análogo àquele que criou a tragédia”35. O processo do qual surge o discurso

filosófico é semelhante ao do poeta trágico36: começa na profunda e musical dimensão

dionisíaca e depois se transmuta em imagens poéticas, a diferença é que, no caso do

filósofo, as imagens poéticas são, depois, traduzidas por conceitos filosóficos.

Os traços místicos, artísticos e lógicos estão presentes em todos os pré-socráticos,

embora em graus e medidas diferentes37. Em cada pensador se deu um tipo de composição.


33
VM.
34
Ibidem.
35
Ibidem.
36
NT, 5, p. 44. Nietzsche cita Schiller para descrever o processo de criação do poeta lírico que se inicia com
um sentimento sem imagens, pré-verbal: “‘O sentimento se me apresenta no começo sem um objeto claro e
determinado; este só se forma mais tarde. Uma certa disposição musical de espírito vem primeiro e somente
depois é que se segue em mim a idéia poética’”.
37
Aliás, eles existem em todos nós, diz Nietzsche: “não é mais que uma questão de graus e de quantidades:
todos os homens são artistas, filósofos, cientistas, etc”. UF, in LF, § 65, p. 21.
20

Mas o filósofo arcaico criado por Nietzsche (e tratado aqui como personagem literário) é,

sobretudo, um filósofo artista. Aqui está a segunda hipótese: no filósofo arcaico, o elemento

artístico é o predominante. Terceira hipótese: entre os pré-socráticos, Heráclito é o filósofo

mais semelhante à figura imaginada por Nietzsche, pois sua filosofia apresenta uma

concepção estética do mundo.

É importante dizer que os primeiros filósofos gregos são, por Nietzsche, agrupados

de dois modos diferentes: “pré-platônicos”, que inclui Sócrates, e “pré-socráticos”, que o

exclui. No primeiro caso, Sócrates é visto como o último dos filósofos “puros”; no

segundo, como o primeiro filósofo do “otimismo teórico”. Consideramos que tal dualidade

não é contraditória porque as duas designações possuem sentidos diferentes que, vistos no

contexto do pensamento de Nietzsche, não se excluem. O termo “pré-platônico” remete

para os filósofos “puros”, originais, que precedem os filósofos “mistos”38. Para Nietzsche,

Platão é o primeiro filósofo misto e Sócrates, o último puro. Inclusive, é considerado um

dos três filósofos mais puros que existiram, os outros dois seriam Pitágoras e Heráclito 39. O

termo “pré-socrático” remete para o período anterior ao otimismo teórico, inaugurado por

Sócrates. A partir dele, diz Nietzsche, começa uma nova e decadente fase na história da

filosofia. O filósofo arcaico é “pré-socrático” e não “pré-platônico”. Sócrates é visto como

o símbolo do filósofo que se contrapõe à imagem do filósofo arcaico.

Semelhante ao herói das tragédias de Eurípides, “que precisa defender as suas

ações por meio da razão e contra-razão”40, o filósofo socrático utiliza - somente e sempre -

o “método racionalista”41 que exige a demonstração lógica das verdades. Para Nietzsche,

38
Platão é apresentado como o primeiro filósofo “misto”, neste aspecto, ele inicia uma nova etapa da filosofia.
Cf, FE, § II.
39
FP, p. 144.
40
NT, § 14, p. 89.
41
Ibidem, § 2, p. 81.
21

não há dúvida de que o modo socrático de ser filósofo, que acredita em “conceitos e

combinações lógicas”42, marca o fim da época áurea da filosofia: “o helenismo arcaico

manifestou sua força através de seus filósofos. Com Sócrates é interrompida esta

manifestação”43. Com ele “Dá-se então o corte de tesoura. É preciso permanecer na época

trágica dos gregos”44.

Outra observação a ser feita: ao mesmo tempo em que Nietzsche elabora a imagem

do filósofo arcaico, ele começa a esboçar uma outra imagem, a do “filósofo do

conhecimento trágico”45. Nietzsche vincula o conhecimento trágico à filosofia de Kant, na

qual a razão faz a crítica de si mesma e reconhece os seus próprios limites. Em O último

filósofo, Nietzsche anuncia a chegada de uma nova espécie de filósofo. Diz ele: “posso

imaginar uma espécie totalmente nova de filósofos-artistas (Philosophen-Künstlers)”46.

Mas, apesar de o filósofo arcaico não ser o “filósofo trágico”47, eles têm características

comuns. A começar pelo fato de não serem otimistas teóricos. Em ambos, a razão não é a

faculdade predominante, o desejo de conhecimento não é desmesurado. Nietzsche atribui

ao filósofo arcaico (sua personagem) um certo grau de “conhecimento trágico”, pois este

sabe que seu discurso racional é incapaz de dizer a sua verdade, visto que ela não é um

produto da razão. A grande diferença entre o filósofo arcaico e o “filósofo trágico” é que

aquele não crê na razão como caminho para a verdade, mas crê na verdade intuída,

enquanto este não acredita nem na razão nem na intuição como meios de chegar à verdade.

O filósofo trágico não acredita na ciência, acredita na arte, no poder de criar ilusões; neste

ponto, também é semelhante ao filósofo arcaico que valoriza a imaginação.


42
FE, § III.
43
UF, in LF, § 193, p. 89.
44
CS, in LF, § 193, p. 193.
45
UF, in LF, § 37, p. 8
46
Ibidem, § 44, p. 11.
47
UF, in LF, § 37, p. 8
22

Mais velho, em Ecce homo, Nietzsche chega a dizer que procurou em vão por

indícios da sabedoria trágica nos primeiros filósofos gregos e declara que ele é o primeiro

“filósofo trágico”. Porém, junto dessa afirmação vem uma dúvida, diz ele: “Permanece-me

uma dúvida com relação a Heráclito, em cuja vizinhança sinto-me mais cálido e bem

disposto do que em qualquer outro lugar”48. Nessa fase de sua filosofia, o conceito

“trágico” está vinculado ao “eterno retorno” e o único pensador que, possivelmente, o tenha

intuído (antes de Nietzsche) tenha sido Heráclito. Se Nietzsche encontrou ou não o saber

trágico nos primeiros filósofos, se Heráclito enunciou, ou não, o eterno retorno, não

aumenta nem diminui a importância da figura do filósofo arcaico, já que os pré-socráticos

sempre foram vistos como os “grandes gregos da filosofia”, assim como, Heráclito sempre

foi admirado por Nietzsche como um filósofo movido por suas intuições: “a filosofia pouco

demonstrada de Heráclito possui um valor de arte superior a todas as proposições de

Aristóteles”49.

Desde já vale apontar para o fato de que nos escritos utilizados nesta tese, de 1872 a

1875, a atitude de Nietzsche frente à noção de verdade se modifica: ele não defende mais

uma verdade dionisíaca, como fez em O nascimento da tragédia, segundo a qual o Uno-

originário é a eterna realidade da qual emergem os indivíduos. Nesse momento, ele tem

uma visão crítica em relação a qualquer enunciação da verdade, considera todo

conhecimento antropomórfico. O que provocou essa mudança é a sua nova maneira de

compreender a formação da linguagem. Conforme mostra seu ensaio de 1873, Verdade e

Mentira no sentido extra-moral, a linguagem se constitui através de uma série de

“transposições ilógicas”50. Os conceitos são metáforas, isto é, surgem de um processo

48
NIETZSCHE, Ecce Homo. São Paulo, Companhia da Letras, 1995. “O Nascimento da tragédia”, § 3.
49
UF, in LF, § 53, p. 16.
50
VM.
23

imaginativo, artístico. A relação que existe entre as palavras e as coisas é determinada pelo

homem. Como não existe adequação entre a linguagem e as coisas, nem o filósofo, nem o

cientista, são capazes de dizer a verdade do mundo. Para Nietzsche, a essência da

linguagem é retórica: “Todas as figuras de retórica (quer dizer, a essência da linguagem)

são falsos silogismos. E é com eles que começa a razão” 51. Como afirma Mirko Wischke, a

partir do momento em que Nietzsche compreende a linguagem como retórica, desaparece a

diferença entre uma verdade que habita as profundezas dionisíacas e a ilusão que mora na

superfície apolínea.

Com a premissa de que a linguagem seja retórica, o teor significativo do


conceito de aparência modifica-se em Nietzsche depois de 1872: a
aparência não é mais a expressão da nostalgia pela salvação diante de um
mundo de crueldade e dor inimagináveis, mas expressão do domínio da
dificuldade constitutiva do homem por não ter acesso à essência das
coisas52.

A afirmação de Wischke é pertinente. No entanto, é preciso ressaltar que, se por um

lado, Nietzsche é um crítico da noção de verdade, pois já não mais acredita no acesso à

essência das coisas; por outro, ele não critica os filósofos arcaicos por acreditarem nas suas

verdades. Ao contrário, ele valoriza o forte sentimento, gerado pela experiência intuitiva

(que produz verdades personalizadas)53, que garante ao pensador a certeza de ter a verdade.

Como diz Conford, em seu livro Principium Sapientiae, os primeiros filósofos não se

preocupavam com “a questão de o homem ser capaz de atingir o conhecimento exato e, no

caso de o ser, em que campos e por que processos”:

51
UF, in LF, § 142, p. 46.
52
WISCHKE, Mirko. “O tecido quebradiço das ilusões. Nietzsche sobre a origem da arte e da linguagem”, in
Kriterion, Vol. XLVI, n. 111. Belo Horizonte, Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, janeiro a junho/2005.
53
Diz Nietzsche: “os sistemas filosóficos só são inteiramente verdadeiros para os seus criadores”, FE,
primeiro prefácio.
24

O filósofo do século VI não tivera quaisquer dúvidas quanto à sua


“apreensão mental” de verdades evidentes em si mesmas. Lucrécio
descreve muito bem esta atitude quando compara as afirmações dos
filósofos pré-socráticos aos oráculos de Apolo! Saúda a poesia de
Empédocles como a voz do gênio inspirado que apresenta suas magníficas
descobertas de tal maneira que nem parece descender da raça dos mortais.
Ele e outros inferiores a ele foram inspirados pelos deuses para descobrir
muitas verdades e ‘têm tirado do sacrário dos seus corações respostas
mais santas e mais certas do que as proclamadas pela Pítia do tripé e do
loureiro de Febo54.

Esta tese está dividida em três capítulos. No primeiro, é apresentado o amplo

cenário que constitui a época trágica dos gregos, em que se encontram as características

gerais da filosofia arcaica: seu caráter livre e ousado; o primeiro problema filosófico (o que

é o devir); o segundo problema (o valor da existência); seu fim: marcado pelo início do

socratismo. No segundo capítulo, onde está o âmago da tese, desenvolvem-se as duas

primeiras hipóteses: 1- a imagem do filósofo arcaico é constituída por três traços

igualmente essenciais (místicos, estéticos e científicos) que correspondem às três

faculdades (intuição, imaginação e razão); 2 - os traços estéticos predominam. O terceiro

capítulo procura mostrar a interpretação de Nietzsche sobre Heráclito para depois

demonstrar a terceira hipótese: 3 - Heráclito é o filósofo pré-socrático mais semelhante ao

filósofo arcaico.

54
CONFORD, F.M. Principium Sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego.Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1989.
25

CAPÍTULO I

CARACTERÍSTICAS GERAIS DA FILOSOFIA ARCAICA GREGA

1.1 Seu caráter livre e ousado

A filosofia não surgiu na Grécia na época trágica por acaso. Nesse período, o

mundo homérico e o pensamento mítico (mágico-religioso) estavam em crise. Novos

valores e um espírito racional se desenvolviam. Os filósofos, os poetas líricos e os poetas


26

trágicos anunciavam grandes mudanças. Diz Nietzsche: “Eles (os filósofos) e a arte ocupam

o lugar do mito que está desaparecendo” 55. Contestando os mitos e os valores do mundo

homérico, cada filósofo buscou descobrir por si mesmo qual é a lógica ordenadora do

Cosmo. Cada um apresentou uma nova imagem do universo, uma nova visão de mundo:

De Tales aos sofistas e a Sócrates, nós temos sete categorias


independentes, quer dizer, sete vezes o aparecimento de filósofos originais
e independentes: 1- Anaximandro, 2- Heráclito, 3- os Eleatas, 4-
Pitágoras, 5- Anaxágoras, 6- Empédocles, 7- Atomismo (Demócrito). Eles
representam sete visões de mundo radicalmente diferentes56.

Além de os primeiros filósofos gregos terem inaugurado novas visões de mundo

também criaram uma nova forma de dizer o que viram. Em suas Lições sobre os pré-

platônicos, Nietzsche define a filosofia com base nos próprios gregos: a filosofia é “a arte

de representar em conceitos a imagem de tudo o que existe. Tales foi o primeiro a satisfazer

essa definição”57, “pôs um princípio de onde ele tira suas conclusões: ele é o primeiro a

sistematizar”58. Ou seja, Tales foi o primeiro a elaborar uma visão “não-mítica” do mundo

em sua totalidade. O primeiro a ver que “tudo é um”, pois viu a multiplicidade e a

diversidade que constitui o real a partir do princípio comum a todas as coisas: arché.

Nietzsche exalta o espírito inovador que movia os primeiros filósofos e apresenta o

nascimento da filosofia como inseparável de uma atitude crítica que contesta os mitos

cantados por Homero e Hesíodo. A nova geração de filósofos ousou pensar o mundo de um

modo absolutamente inédito, afastando-se da tradição.

Pode-se apresentar estes filósofos arcaicos como aqueles para os quais a


atmosfera e os costumes gregos são uma cadeia e uma prisão: por isso eles
se emancipam (combate de Heráclito contra Homero e Hesíodo, de
Pitágoras contra a secularização, de todos contra o mito, sobretudo
55
UF, in LF, § 24, p. 3
56
FP, p. 128
57
FP, p. 88
58
FP, p. 87
27

Demócrito). Eu os vejo como precursores de uma reforma dos gregos:


mas não como os precursores de Sócrates. Ao contrário, sua reforma não
vinga, e em Pitágoras persiste no estado de seita. Um conjunto de
fenômenos contém todo esse espírito de reforma59.

Nietzsche vê na famosa frase de Tales de Mileto – “a água é o princípio de todas as

coisas” – uma ousadia sem precedentes. Ela marca o início da filosofia grega por três

razões: “em primeiro lugar, porque essa proposição enuncia algo sobre a origem das coisas;

em segundo lugar, porque faz sem imagem e fabulação; e enfim, em terceiro lugar, porque

nela, embora em estado de crisálida, está contido o pensamento: ‘Tudo é um’”60. Ao

assinalar que a expressão “tudo é um”61 marca o nascimento da filosofia, Nietzsche mostra

que o filósofo arcaico é um investigador da physis e, por isso, seu olhar ultrapassa o

individual e transitório e busca o eterno e divino. Nesse sentido, a filosofia arcaica é

metafísica, pois investiga o que é a natureza em sua totalidade, unidade e eternidade.

De acordo com Nietzsche, Tales, que também era visto na antigüidade como um dos

Sete Sábios62, tem um mérito enorme pois ele foi um “criador e mestre que começou a

sondar as profundidades da natureza sem fábulas fantasiosas”63, “ele foi o primeiro a

sistematizar”64.
59
UF, in LF § 194, p. 90.
60
FE, § III.
61
FE, § 3. Schopenhauer, em sua obra O mundo como vontade e representação, tão conhecida e admirada
pelo jovem filólogo, também salienta que o próprio da filosofia é perceber a unidade na diversidade e a
diversidade na unidade.
62
Nietzsche destaca como uma das qualidades mais significativas da cultura helênica o reconhecimento do
alto valor da “sabedoria”. Levando em consideração que “um povo é não só caracterizado por seus grandes
homens, mas, sobretudo, pela maneira de os reconhecer e de os honrar”, o povo grego pode ser conhecido
como aquele que mais valorizou a sabedoria, prova disso é a grande importância que davam aos Sete Sábios:
“A consagração dos Sete Sábios é um dos grandes traços característicos dos Gregos: outros povos têm santos,
os gregos têm sábios” (FP, p. 82). Estes eram tomados como modelos conforme os quais se deveria viver. É
tão grande o respeito em relação a eles que o sentimento de admiração chega a ser uma espécie de adoração
religiosa. Por isso, diz Nietzsche, a lista dos Sete Sábios era uma forma de “canonização dos sábios”, um
acontecimento similar à canonização dos santos feito pela Igreja católica.
63
FE, § III.
64
Ibidem.
28

Tales se diferencia (dos outros sábios) porque é não-mítico. Sua


contemplação se completa em conceitos. (...). Tales pôs um princípio de
onde ele tira suas conclusões: ele é o primeiro a sistematizar. Poderia
alguém objetar que essa mesma capacidade de sistematização se
encontrava já nas cosmogonias as mais antigas (...), nas representações
cosmogônicas da Ilíada, depois na Teogonia (de Hesíodo), nas teogonias
órficas, de Ferecídes de Siros (esse já um contemporâneo de Tales)65.

Mas, nessas cosmogonias, continua Nietzsche, a capacidade intelectual de

sistematização estava a serviço dos mitos, dos cultos. Com Tales, o pensamento torna-se

livre dos mitos. No primeiro filósofo se vê liberdade e ousadia, diz Nietzsche: “Conceber

pela primeira vez o universo inteiro, tão heterogêneo, como a evolução de uma única

matéria original revela uma liberdade e ousadia incríveis. É um mérito que ninguém pode

ter outra vez66”.

De Tales a Demócrito, os filósofos elaboraram diferentes concepções sobre o que é

o mundo que em sua linguagem é physis. Todos os fragmentos pré-socráticos são peri

physeos (sobre a natureza). Physis é um conceito complexo. É devir, um eterno processo de

vir-a-ser em constante criação e destruição, geração e corrupção, vida e morte. É toda a

multiplicidade que constitui a natureza – deuses, estrelas, planetas, pássaros, homens,

plantas, pedras, etc. É, também, a natureza em sua totalidade e unidade. Ela não tem

princípio nem fim, ela é o princípio e o fim de todas as coisas, é arché. Na compreensão de

Heidegger, physis é a realidade primordial, é o “vigor dominante” presente em tudo o que é,

mas não se reduz às coisas que são. Physis “evoca o que sai ou brota de dentro de si mesmo

(por exemplo, o brotar de uma rosa), o desabrochar, que se abre, o que nesse despregar-se

se manifesta e nele se retém e permanece; em síntese, o vigor dominante daquilo que brota

65
Ibidem.
66
FP, p. 110.
29

e permanece”67. A physis é eterna, o devir é eterno, mas todas as coisas individuais – que

têm uma existência concreta e singular – surgem e desaparecem, têm princípio e fim.

Outra característica apontada por Nietzsche acerca da marcante personalidade dos

primeiros filósofos é o sentimento de segurança que possuíam. Todos eram absolutamente

seguros de suas verdades e críticos em relação às convenções. Gozavam da máxima auto-

estima. Nietzsche os apresenta como altivos e orgulhosos, homens de uma “solidão

extraordinária”68. Nietzsche enfatiza as reformas propostas por Pitágoras69 e Empédocles70

que, ao se considerarem verdadeiros deuses, tentaram implantar novos costumes (novos

ritos de purificação, por exemplo) e acabar com antigos hábitos (por exemplo, o de comer

carne). Apesar de não ter sido uma personalidade tão transformadora como Pitágoras e

Empédocles, Xenófanes, diz Nietzsche, também foi um grande crítico da tradição

homérica, “com ele, a liberdade do indivíduo está no seu ponto mais alto” 71. Nietzsche

ressalta o caráter inovador, solitário e orgulhoso dos filósofos arcaicos quando apresenta

Heráclito, o filósofo que não precisava do reconhecimento dos homens, os homens é que

precisavam e ainda precisam dele:

Heráclito era orgulhoso, e quando o orgulho entra num filósofo, então, é


um grande orgulho. A sua ação nunca o remete para um “público”, para o
aplauso das massas e para o coro entusiasta dos seus contemporâneos.
Seguir um caminho solitário pertence à essência do filósofo. O seu dom é
o mais raro e, de certa maneira, o menos natural, excluindo e ameaçando
todos os outros dons. O muro da sua auto-suficiência deve ser de diamante
para não ser destruído nem partido, porque tudo se movimenta contra ele.
(...) Homens assim vivem num sistema solar próprio (...) o mundo precisa
eternamente da verdade, precisa, portanto eternamente de Heráclito,
embora ele não precise do mundo. Que lhe importa a sua glória? A glória
dos “mortais em incessante fluxo!”, como ele brada com desdém. A sua

67
Heidegger, M. Introdução à metafísica. Trad. Emmanuel Carneiro Leão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1978, p. 45.
68
FE, § 1.
69
“Pitágoras ganha uma influência política considerável como o fundador de uma ordem independente, regida
por leis rituais Pitágoras se apresenta a nós como um reformador religioso”, FP, p. 133.
70
“O reformador malogrado é Empédocles”. CS, in LF, § 194, p. 90.
71
FE, § IX.
30

glória importa aos homens não a ele; a imortalidade da humanidade


precisa dele, ele não precisa da imortalidade do homem Heráclito72.

Em suas Lições, Nietzsche mostra que o filósofo surgiu se diferenciando da antiga

figura do sábio. Os antigos sábios eram de três tipos: “o príncipe patriarca rico de

experiência, o aedo inspirado, e o sacerdote iniciado”73. Embora diferentes, o rei, o poeta e

o sacerdote possuíam algo em comum: acreditavam nos mitos. Crença não compartilhada

pelo filósofo, o pensador não-mítico. Diferente dos antigos sábios, o filósofo “não se limita

a uma filosofia esporádica, por sentenças isoladas; não se limita a uma grande descoberta

científica. Mas ele quer a totalidade, ele cria uma imagem do mundo” 74. Ele cria uma

imagem de tudo o que existe e transforma essa imagem em conceitos logicamente

interligados. Nietzsche enaltece a filosofia e a considera um avanço em relação aos antigos

sábios, pois o filósofo ousou criar uma nova linguagem para expressar uma nova visão do

mundo.

1.2 O primeiro problema filosófico: o que é o devir?

Nietzsche considera que são dois os problemas fundamentais da filosofia arcaica: o

que é o devir e o que vale a existência. “O que deve fazer o filósofo? Em meio a este

fervilhar, tem que ressaltar o problema da existência e, acima de tudo, os problemas

eternos”75. Acima de tudo estão os problemas eternos porque o modo de ser do homem

72
Ibidem, § VIII.
73
FP, p. 102.
74
FP, p. 88. Segundo as Lições de Nietzsche, a filosofia surgiu ultrapassando “1- o estado mítico da filosofia;
2. A forma esporádica-sentenciosa da filosofia; (3. A ciência isolada). O primeiro por um pensamento
conceitual; o segundo pela sistematização, (o terceiro pela construção de uma imagem de mundo)”. FP, p. 88.
75
UF, in LF, § 27, p. 5.
31

depende do modo de ser da physis. O problema do valor da existência segue o problema do

devir.

Diferente do homem homérico, que via a natureza como um disfarce dos deuses e a

vida como um bem supremo (a ser celebrado continuamente), o filósofo vê a physis como

um enigma a ser decifrado. Porque desconhece o que ela é, ele se surpreende diante das

coisas mais simples. Seu sentimento é de “espanto”, de “admiração” 76. Nietzsche nos fala:

“eis aqui o verdadeiro sinal da aptidão filosófica: a surpresa diante do que se encontra sob

nossos olhos”77. Nesse ponto, o filósofo alemão estava de acordo com Platão, Aristóteles78 e

Schopenhauer que também valorizavam a idéia de que a admiração é “o sentimento

filosófico por excelência”79.

O mundo é, para o filósofo, um problema a ser solucionado: “tornado livre, o

intelecto põe seu olhar sobre as coisas e, agora, pela primeira vez, o cotidiano lhe aparece

digno de interesse, problemático”80. Segundo Nietzsche: “o fenômeno mais cotidiano é o

devir; com ele começa a filosofia jônica”81. Isto é, antes de tudo, o que o filósofo vê é o

ininterrupto vir-a-ser, e não o ser. Todos os sentidos lhe mostram a transformação constante

de todas as coisas. Por isso, o devir – essa realidade fundamental e cotidiana – é o primeiro

76
FP, p. 86. Gerd Bornheim, em seu livro Introdução ao filosofar (São Paulo, Globo, 1998), analisa a
“admiração” como um dos componentes da “atitude inicial do comportamento filosófico”, p. 23.
77
FP, p. 86.
78
Aristóteles na célebre passagem da Metafísica - Livro A - diz que o espanto é o que “leva e levou os
primeiros homens à especulação filosófica. No início, sua admiração voltava-se para as primeiras dificuldades
que se apresentavam ao espírito; depois progredindo pouco a pouco, estenderam sua investigação a problemas
mais importantes tais como os do fenômeno da lua, os do sol e das estrelas, e, enfim, à gênese do Universo.
Ora, perceber uma dificuldade e admirar-se é reconhecer a própria ignorância”. Este reconhecimento da
própria ignorância é o que move o filósofo em direção ao conhecimento.
79
Em O Mundo como Vontade e Representação, Schopenhauer cita Platão: “É pelo esforço de se livrar de
qualquer dúvida que o homem se torna filósofo, verdade que Platão exprime dizendo que ‘o espanto -
taumatzein - é o sentimento filosófico por excelência’”; Livro 1, § 6, p. 47. FP, p 85
80
Nesse sentido, a filosofia se aproxima da ciência e das artes porque, em contraste com as religiões, se
interessam pelo simples cotidiano, FP, p 85.
81
FP, p 86.
32

enigma a ser decifrado pelo filósofo. O que é o devir? – esta é a primeira questão da

filosofia arcaica grega.

Ao olhar a filosofia pré-socrática como um conjunto, Nietzsche a vê dividida em

dois momentos: o primeiro, marcado pelo problema do devir, momento em que “o devir

suscita o Taumatzein”82; o segundo, marcado pela teoria do ser de Parmênides83 (segundo a

qual o que é não está em devir) que “separa o pensamento pré-socrático em duas metades,

sendo que a primeira pode ser chamada de anaximândrica e a segunda parmenídica”84.

Nesses dois períodos, o devir é a realidade a ser conhecida. A contemplação da natureza em

seu constante vir-a-ser é o ponto de partida de todos os pré-socráticos, inclusive dos Eleatas

que, apesar de negarem a existência real dele, não negavam o fato de os sentidos o

perceberem, o que eles negavam não era a visão efetiva do vir-a-ser, mas que essa visão

fosse verídica. Para Parmênides, o devir percebido pelos sentidos é pura ilusão, por isso, ele

“zangava-se com os seus olhos por verem o vir-a-ser e com seus ouvidos, por ouvi-lo. Seu

imperativo era: ‘Não siga os olhos estúpidos, não siga o ouvido ruidoso ou a língua, mas

examine tudo somente com a força do pensamento’”85. Nietzsche comenta que Parmênides

julgava que “restava para ele a tarefa de dar a resposta correta à pergunta: ‘o que é o vir-a-

ser?’ E este era o momento em que ele precisava saltar para não cair, ainda que, talvez, para

tais naturezas como a de Parmênides, todo salto equivalesse a uma queda”86. Ou seja, a

questão fundamental da filosofia não é o ser, é o devir, pois até mesmo Parmênides, que o

nega, o vê.

82
Em um fragmento póstumo de 1871-1872 (FP 14[29]). Cf. nota do tradutor dor, FP, p. 276.
83
“O problema foi colocado uma vez mais pelos Eleatas num nível infinitamente mais elevado. Eles
observaram que nosso intelecto não concebia absolutamente o devir e inferiram daí a existência de um mundo
metafísico.(...). Todos os filósofos posteriores lutaram contra o eleatismo”, FP, § 1, p. 86.
84
FE, § IX.
85
Ibidem, § IX.
86
Ibidem.
33

Anaximandro, diz Nietzsche, é o primeiro pensador a formular uma compreensão

filosófica sobre o devir. Ele considera que tudo que está em devir, que tem uma existência

individual e temporal, possui uma determinação que a diferencia de todas as outras coisas.

E a característica principal de tudo que é determinado é o fato de que está próximo de seu

fim, está na iminência de perder a determinação que possui. Isto é, “tudo o que é

determinado desaparece. A determinação é o que leva à morte”87. Sendo assim, todos os

indivíduos que existem no devir são destinados à morte, toda a realidade submetida ao

tempo está fadada a envelhecer, degenerar e desaparecer. Ou seja, para Anaximandro devir

é um processo de decadência, que caminha para o fim, pois “tudo o que alguma vez veio a

ser também perece (outra vez), quer pensemos na vida humana, quer na água, quer no

quente e no frio”88.

Tudo o que está em devir morre, mas o devir, ele próprio, não morre. Entretanto,

para Anaximandro – Nietzsche mostra a sua lógica – é necessário que exista uma realidade

primordial que não esteja submetida ao devir e que seja seu fundamento. De acordo com

este raciocínio, é preciso que exista o ser antes do devir: “o vir-a-ser eterno só pode ter sua

origem no ser eterno”89. Anaximandro acredita que “o ser originário, assim denominado,

está acima do vir-a-ser e, justamente por isso, garante a eternidade e o curso ininterrupto do

vir-a-ser”90. Ou seja, para ele, o ser verdadeiro – originário, eterno e “atemporal”91 – não é o

devir, a verdadeira realidade é o eterno ápeiron, de onde tudo brota e para onde tudo

retorna, pois “de onde as coisas têm seu nascimento, ali também devem ir ao fundo,

segundo a necessidade”.

87
FP, p. 121.
88
FE, § IV.
89
FE, § IV.
90
Ibidem.
91
“(...) o tempo só existe para esse mundo individual, o ápeiron, ele é atemporal”, FP, p. 118.
34

Vemos assim que, a partir da visão do devir, Anaximandro supõe a existência de

uma realidade anterior e superior a ele. Nietzsche nos mostra que surge, aqui, pela primeira

vez, a crença na existência de dois mundos separados: um “mundo do ser verdadeiro e

metafísico em oposição ao mundo físico, do devir e do declínio” 92; sendo que o “mundo do

ser, do eterno”, só pode ser “por nós conhecido unicamente de modo negativo” 93, já que é

indeterminado. Essa dualidade criada por Anaximandro (do ápeiron e do devir) faz dele o

primeiro filósofo metafísico. A partir dele, a oposição entre os dois mundos e o privilégio

do primeiro sobre o segundo, são considerações metafísicas que marcam a história da

filosofia.

Existem dois mundos separados, por quê? Anaximandro também faz essa pergunta:

por que houve a separação do ser eterno? Como foi possível o determinado ter nascido, por

declínio, do indeterminado, o temporal ter nascido do eterno, o injusto da justiça? Se há

uma unidade eterna, como é possível a pluralidade? Segundo Nietzsche, para Anaximandro,

existem dois mundos separados, mas não deveria existir. O mundo da multiplicidade, do

tempo, do devir, é um erro, é resultado de um processo de injustiça – adikia. A injustiça é o

que caracteriza o devir. Porque as coisas se separam da realidade primordial elas sofrem até

o momento em que retornam ao ápeiron.

Essa visão dualista e pessimista sobre o devir marca os dois séculos trágicos da

filosofia94. Os filósofos posteriores se deparam com a solução de Anaximandro dada ao

problema do devir. Heráclito e Parmênides vieram logo a seguir. Para eles, “o ápeiron e o

92
FP, p. 123
93
Ibidem, p. 118.
94
De Anaximandro “foi dado o impulso em direção às doutrinas dos Eleatas assim como em direção a
Heráclito, a Empédocles etc”, FP, p. 118. “O primeiro e mais antigo período do próprio filosofar de
Parmênides ainda carrega a rubrica de Anaximandro; este período produziu um sistema físico-filosófico
efetivo como respostas às perguntas de Anaximandro”, FE, § IX. Parmênides, “evidentemente teve na teoria
de Anaximandro seu ponto de partida”, Ibidem.
35

mundo do devir estavam justapostos de maneira incompreensível, num dualismo brutal” 95.

Ambos

viam repetidamente aquele mesmo mundo que Anaximandro tão


melancolicamente condenara, explicando-o como o lugar de crime e
simultaneamente da expiação para a injustiça do vir-a-ser96.
Ambos procuravam uma saída daquela oposição e separação de uma
dupla ordem do mundo97.
Aquele salto no Indeterminado (...) não era tão fácil para duas cabeças tão
independentes e diferentes como as de Heráclito e Parmênides; eles
primeiramente procuraram andar tão longe quanto podiam e reservaram o
salto para aquele lugar onde o pé não encontrava mais apoio e onde se
precisa saltar para não cair98.

No capítulo III, será esclarecido o contraste apontado por Nietzsche entre a visão

pessimista e dualista de Anaximandro e a visão estética de Heráclito. Enquanto que para

aquele o devir é criminoso e a vida é um castigo, para este, o devir é inocente e a vida

também é.

1.3 O segundo problema: o valor da existência

Nietzsche ressalta a importância de Anaximandro por colocar o problema do valor

da existência99 (para que viver?), que é inseparável do problema do devir (o que é o

mundo?). Indo além de Tales – cuja façanha foi ter “compreendido a pluralidade das coisas

como um desdobramento de uma única realidade original, no caso, a água” 100 –,

95
FP, p. 129.
96
FE, § IX.
97
Ibidem: “Parmênides (...) tinha as mesmas suspeitas em relação à perfeita separação entre um mundo que
apenas é e um mundo que apenas vem a ser, suspeita que também Heráclito empreendera e que o conduzira à
negação do ser”.
98
FE, § IX.
99
FP, p. 123.
100
FE, § IV.
36

Anaximandro perguntou pela origem deste mundo não apenas no seu aspecto físico101. Ele

abriu as “perspectivas aos mais profundos problemas éticos. Tales se encontrava assim

infinitamente superado”102.

(Anaximandro) foi o primeiro grego que ousou tomar nas mãos o novelo
do mais profundo dos problemas éticos. Como pode perecer o que tem
direito de ser! De onde vem aquele incansável vir-a-ser, de onde vem
aquela contorção de dor na face da natureza, de onde vem o infindável
lamento mortuário em todo reino do existir?103.

Conforme Nietzsche, Anaximandro é o primeiro a perguntar: para que viver se a

vida é devir e o devir é uma injustiça que expiamos com sofrimento e morte? O que vale a

vida, se viver é caminhar para a morte. “Refugiado em um abrigo metafísico”, do qual se

debruça, Anaximandro lança a pergunta: “O que vale vosso existir? E, se nada vale, para

que estais aí?”104.

Ele deixa o olhar deslizar ao longe, para enfim, depois de um silêncio


meditativo, dirigir a todos os seres a pergunta: “O que vale vosso existir?
E, se nada vale, para que estais aí? Por vossa culpa, disso me apercebo eu,
que permaneceis nessa existência. Com a morte terei de expiá-la. Vede
como murcha vossa terra; os mares se retraem e secam; a concha sobre a
montanha vos mostra o quanto já secaram; o fogo desde já destrói vosso
mundo, que, no fim, se esvairá em vapor e fumo. Mas sempre, de novo,
voltará a edificar-se um tal mundo de inconstância: quem seria capaz de
livrar-vos da maldição do vir-a-ser?”105.

Se o devir é resultado de uma injustiça original, por conseqüência, o que está em

devir (todos os entes vivos e não vivos) também é resultado dessa mesma injustiça. Isto é,
101
Anaximandro é, para Nietzsche, expressão autêntica da época trágica em que os deuses do Olimpo
perderam a sua majestade e o saber pessimista ganhou os palcos. Ele “vivia como escrevia; falava tão
solenemente quanto se vestia; elevava a mão pousava o pé como se esse estar-aí fosse uma tragédia em que
ele teria nascido para tomar parte como herói”, Ibidem.
102
FP, p. 118.
103
FE, IV.
104
Ibidem, § IV. Agora “a questão posta não era mais puramente física, mas (...) abria perspectivas aos mais
profundos problemas éticos”; FP, p. 118.
105
Ibidem.
37

para Anaximandro, a vida traz consigo uma falta moral, por isso, tudo que vive paga pelo

crime de ter nascido. Seguindo essa lógica: a vida não é digna de ser vivida, pois ela traz

consigo o crime e o castigo. Nietzsche mostra que Anaximandro foi o primeiro a dar uma

resposta pessimista aos dois problemas fundamentais da filosofia.

Em O nascimento da tragédia, Nietzsche trata a questão sobre o valor da existência

como sendo “o primeiro problema filosófico”106, pois seu interesse, nesse momento, é

refletir sobre a tragédia, precisamente, sobre a tragédia de Ésquilo O prometeu

acorrentado, que apresenta e representa o problema do crime original, que explica porque o

homem traz consigo o sofrimento e a morte. Diz Nietzsche: “o primeiro problema filosófico

estabelece imediatamente uma penosa e insolúvel contradição entre homem e deus, e a

coloca como um bloco rochoso à porta de cada cultura”107. O bloco rochoso é uma metáfora

para falar de Prometeu que, para ele, é uma personagem mitológica de fundamental

importância para a civilização helênica. O mito de Prometeu se destaca porque aponta para

a penosa e insolúvel contradição que caracteriza o gênero humano. Ele explica porque os

homens sofrem e morrem: porque existe um crime na origem de sua história. A vida traz

consigo um “sacrilégio”, uma falta moral108.

Ao falar do “bloco rochoso que está na porta de todas as culturas”, o mito mostra a

dualidade que existe no homem: por um lado, ele é um ser vivo que traz em si a centelha

divina; por outro, como ser individualizado, é infinitamente pequeno e insignificante,

destinado à degeneração. E por que o homem traz em seu seio essa contradição, essa “dupla

106
NT, § 9, p.67.
107
Ibidem.
108
Segundo Nietzsche, a tragédia de Ésquilo mostra que “o melhor e o mais excelso do que é dado à
humanidade participar, ela o consegue graças a um sacrilégio, e precisa agora aceitar de novo as suas
conseqüências, isto é, a inundação total de sofrimentos e inquietações com que os ofendidos Celestes afligem
o nobre gênero humano que aspira para o alto”, Ibidem.
38

essência”109? Por que seu melhor bem – o fogo, o conhecimento – lhe gera o pior de todos

os males? A resposta do poeta trágico, como dito anteriormente, é: porque existe, na origem

da vida, um crime.

Nietzsche considera que o mito de Prometeu na cultura helênica corresponde ao

mito da Árvore do conhecimento na religião judaico-cristã. Ambos mostram que o imenso

sofrimento e todo o mal que aflige o homem é resultado de uma transgressão original. Mas,

Nietzsche também aponta para a diferença. Entre os gregos, houve um delito: Prometeu

roubou o fogo sagrado dos deuses e o deu aos homens. Já entre os hebreus e cristãos, houve

um pecado que se realizou quando Eva, uma personagem negativa, maliciosa e enganadora,

persuadiu Adão a comer o único fruto proibido. A grande diferença é que o “pecado

ativo”110 de Prometeu tem a sua “glória”111, e uma enorme glória, enquanto o crime de Adão

não tem mérito algum, foi simplesmente uma transgressão passiva e inglória. Essa

diferença quanto à dignidade que conferem ao sacrilégio reflete o quanto os gregos são

diferentes dos judeus e cristãos. Deleuze, em sua obra Nietzsche e a filosofia, assinala que,

Nietzsche diferencia os gregos dos cristãos porque para os primeiros, na vida, existe

“loucura e não pecado”112.

É importante notar que esse pessimismo fora e dentro do universo filosófico é uma

característica da época trágica dos gregos, que é uma “idade adulta, corajosa e vitoriosa”,

109
Diz Nietzsche: “sua natureza (é) a um só tempo dionisíaca e apolínea”; Ibidem, § 10, p. 69.
110
Ibidem, § 9, p. 67. Para os gregos, Prometeu, “o grande amigo dos homens”, é admirado e adorado. Seu
crime é considerado uma ação nobre, proveniente de uma atitude de força e audácia (e, além do mais, o
sacrilégio é necessário). Ao contrário, no mito da Árvore do conhecimento, Adão pecou por ter cedido aos
encantos de Eva, por isso, sua ação foi resultado de uma fraqueza. Seu pecado foi ter cedido.
111
NT, § 9, p. 65.
112
“(...) quando os gregos falam da existência como criminosa e ‘hybrica’, pensam que os deuses tornaram os
homens loucos; a existência é culpada, mas são os deuses que assumem a responsabilidade da falta”; “em
relação ao cristianismo os gregos são crianças. Sua maneira de depreciar a existência, seu ‘niilismo’, não tem
a perfeição cristã. Eles consideram a existência culpada, mas não inventaram ainda o refinamento que consiste
em julgá-la faltosa e responsável”. DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia.. Rio de Janeiro, Editora Rio, 1976,
p. 18.
39

mas também é uma fase de crise de valores. No período trágico, ressurge a figura do sábio

Sileno que tinha sido banido do mundo homérico. Companheiro de Dioniso, ele traz de

volta à Grécia o saber pessimista. Na época pré-homérica, todos conheciam a história do

sábio com o Rei Midas. Nietzsche a conta em O nascimento da tragédia:

Reza a antiga lenda que o rei Midas perseguiu na floresta, durante longo
tempo, sem conseguir capturá-lo, o sábio Sileno, o companheiro de
Dioniso. Quando por fim ele veio a cair em suas mãos, perguntou-lhe o rei
qual dentre as coisas era a melhor e a mais preferível para o homem.
Obstinado e imóvel, o demônio calava-se; até que, forçado pelo rei,
prorrompeu finalmente, por entre um riso amarelo, nestas palavras:-
“Estirpe miserável e efêmera, filhos do acaso e do tormento! Por que me
obrigas a dizer-te o que seria para ti mais salutar não ouvir? O melhor de
tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser.
Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer”113.

A filosofia nasceu nesse ambiente em que as palavras de Sileno voltam a ressoar

pelos ares, quando os valores do fantástico mundo homérico perdem sua validade. Por isso,

Nietzsche considera essa época perigosa. A filosofia nasceu, diz ele, “entre os perigos

enormes e as tentações de uma vida secularizada”114. “É nas épocas de grande perigo que

aparecem os filósofos – no momento em que a roda gira com velocidade cada vez

maior”115.

Vale notar que Anaximandro e Ésquilo, frutos da época trágica, usando diferentes

linguagens, deram a mesma resposta ao problema do valor da existência. Ambos viram na

essência da vida, um crime moral, viram “a desventura na essência das coisas (...), a

contradição no âmago do mundo (...), um mundo divino e um mundo humano”116.

113
NT, § 3, p. 36.
114
FE, § I, p. 21.
115
UF, in LF, § 24, p. 3.
116
NT, § 9, p. 67.
40

1.4 O período pré-filosófico e a fantástica exaltação da vida

Na época trágica, o mundo glorioso dos heróis homéricos chega ao fim: “o engano

apolíneo é rompido e destruído”117. A “montanha mágica do Olimpo”118 – uma invenção

genial para escapar do pessimismo – perde seu encanto. Quebrou-se o espelho que

transfigurava tudo em beleza e a terrível verdade de que a vida humana é efêmera e

insignificante aparece sob o sol do meio-dia. Os deuses foram embora e os homens ficaram

sós119. O filósofo surge exatamente nesse momento de desilusão e solidão. Ele veio – com

sua nova verdade – preencher o vazio que existia: “cada um dos filósofos gregos expressa

uma angústia: e nesta lacuna insere o seu sistema. Edifica o seu mundo sobre esta

lacuna”120.

É interessante esclarecer, em linhas gerais, o modo como o homem homérico – pré-

filosófico – concebia a existência. Segundo Nietzsche, na “cultura homérica”, uma “cultura

apolínea”121, há uma “fantástica exaltação da vida”122. O homem homérico é extremamente

vital e radiante, pois ele olha o mundo através de um “espelho transfigurador” (o véu de

Apolo) que o faz ver, em todos os lugares, a presença dos magníficos deuses123. No mundo

homérico, os homens são semelhantes aos deuses: vivem a mesma vida (com a diferença de

117
Ibidem, § 21, p. 129.
118
Ibidem, § 3, p. 36.
119
Entram em cena figuras trágicas: “Aquela Moira [Destino] a reinar impiedosa sobre todos os
conhecimentos, aquele abutre a roer o grande amigo dos homens que foi Prometeu, aquele horrível destino do
sagaz Édipo, aquela maldição sobre a estirpe dos Átridas, que obriga Orestes ao matricídio, em suma, toda
aquela filosofia do deus silvano, justamente com seus míticos exemplos”, NT, § 3, p. 37.
120
UF, in LF, § 27, p. 5.
121
NT, § 3, p. 35. “(...) o mesmo impulso que se materializou em Apolo, engendrou todo o mundo olímpico
e, nesse sentido, Apolo deve ser reputado por nós como um pai desse mundo”, NT, § 3, p. 37.
122
Ibidem, p. 36.
123
Ibidem. O “homem homérico” é extremamente vital, radiante: com um “filtro mágico no corpo puderam
tais homens exuberantes desfrutar da vida a ponto de se depararem, para onde quer que olhassem, com o riso
de Helena – a imagem ideal, ‘pairando em doce sensualidade’, da própria existência deles”. A imagem da
existência é, então, o sorriso de Helena “pairando em doce sensualidade”. Por isso, ele ama e celebra a
existência.
41

que estes morrem e aqueles são imortais), por isso, diz Nietzsche: “os deuses legitimam a

existência humana pelo fato de eles próprios a viverem”124.

A existência de tais deuses sob o radioso clarão do sol é entendida como


algo em si digno de ser desejado e a verdadeira dor dos homens homéricos
está em separar-se dessa existência, sobretudo em rápida separação, de
modo que agora, invertendo-se a sabedoria do Sileno, poder-se-ia dizer:
“A pior coisa de todas é morrer logo, a segunda pior é simplesmente
morrer um dia. (...) Tão veementemente, no estado apolíneo, anseia a
“vontade” por essa existência, tão unido a ela se sente o homem homérico
que até o seu lamento se converte em um hino de louvor à vida.125

Movido pelo “impulso apolíneo da beleza”126, o homem homérico vive como se

estivesse sonhando e, embalado por esse sonho, diz: “É um sonho! Quero continuar a

sonhá-lo”127. Nietzsche compara o efeito benéfico da “magia terapêutica” 128 de Apolo com

os sonhos e o sono: “o nosso ser mais íntimo, o fundo comum a todos nós, colhe no sonho

uma experiência de profundo prazer e jubilosa necessidade”129. O véu apolíneo propicia o

esquecimento dos aspectos terríveis da existência, estimulando o prazer e irradiando a

alegria. O antigo grego homérico, sensível ao sofrimento, precisava de Apolo como o

homem precisa dormir e sonhar.

Apolo esconde nas profundezas todo o lado terrível, grotesco, titânico da existência,

deixa na superfície somente a “bela aparência”130. Nesse sentido, diz Nietzsche, Apolo é o

deus que legitima a existência individual. Oferecendo o sonho e a magnífica ilusão, ele

fortalece o indivíduo que passa a sentir-se forte como se fosse um deus. Envolvido por sua

magia, o homem homérico vive com ânimo, com entusiasmo.

124
Ibidem, p. 37.
125
Ibidem.
126
Ibidem.
127
Ibidem, § 1, p. 29.
128
Ibidem, § 21, p. 127.
129
Ibidem, § 1, p. 29. “Essa alegre necessidade da experiência onírica foi do mesmo modo expressa por
Apolo”; NT, § 1, p. 29.
130
Ibidem, § 1, p. 30.
42

Eis o verdadeiro desígnio artístico de Apolo: sob o seu nome reunimos


todas aquelas inumeráveis ilusões da bela aparência que, a cada instante,
tornam de algum modo a existência digna de ser vivida e impelem a viver
o momento seguinte131

Em O nascimento da tragédia, para explicar o poder apolíneo de iludir, Nietzsche

cita Schopenhauer quando este descreve a imagem de um homem que vive sob os efeitos

gerados pelo Véu de Maia, noção retirada da filosofia dos Vedantas:

Poderia valer em relação a Apolo aquilo que Schopenhauer observou a


respeito do homem colhido no Véu de Maia, na primeira parte de O
mundo como vontade e representação: ‘Tal como, em meio ao mar
enfurecido que, ilimitado em todos os quadrantes, ergue e afunda
vagalhões bramantes, um barqueiro está sentado em seu bote, confiante na
frágil embarcação, da mesma maneira, em meio a um mundo de
tormentos, o homem individual permanece calmamente sentado, apoiado
e confiante no principium individuationis [princípio de individuação]’.
Sim, poder-se-ia dizer de Apolo que nele obtiveram a mais sublime
expressão a inabalável confiança nesse principium e o tranqüilo ficar aí
sentado de quem nele está preso, e poder-se-ia inclusive caracterizar
Apolo com a esplêndida imagem divina do principium individuationis,
cujo gesto e olhar nos falam de todo o prazer e de toda a sabedoria da
‘aparência’, juntamente com a sua beleza132.

O que é, para Nietzsche, efeito do poder de Apolo é, para Schopenhauer, efeito do

véu de Maia. Mas, apesar das diferenças, o que está em questão é o mesmo poder de

enganar o indivíduo quanto a sua própria força. O homem iludido sente-se poderoso, sente-

se em terra firme até mesmo quando está em meio ao mar enfurecido. Sua segurança é

inabalável mesmo diante de situações de extremo perigo. A imagem apresentada por

Schopenhauer - o barqueiro que, apesar das ondas gigantescas, mantém-se confiante em seu

minúsculo barco – é a escolhida por Nietzsche para descrever o homem apolíneo: ele vive

131
Ibidem, § 25, p. 143.
132
Ibidem, § 1, p. 30.
43

“apoiado e confiante no principium individuationis”133. Embora tal força seja fruto de uma

ilusão (já que o véu esconde do olhar ingênuo a verdade pessimista sobre a vida), a magia

apolínea fortalece o indivíduo.

O fim do mundo homérico e sua “fantástica exaltação da vida” criou o espaço, o

vazio, de onde brotou a reflexão filosófica.

1.5 Seu fim: marcado pelo início do socratismo

Os pré-socráticos, diz Nietzsche, devem ser compreendidos como “precursores de

uma reforma dos gregos, mas não como precursores de Sócrates” 134, pois a novidade que

trouxeram, e que não foi à frente, foi uma filosofia na qual a razão é essencial, mas não é a

faculdade predominante. Mesmo utilizando o raciocínio lógico e formulando conceitos e

pensamentos abstratos, em sua fala está presente a noite mística e o colorido das artes

plásticas. A partir de Sócrates, os êxtases místicos e as imagens apolíneas perdem o valor

que possuíam.

Nietzsche faz severas críticas a Sócrates. Mas, quem é Sócrates para Nietzsche 135? É

um símbolo de um modo de ser e pensar. É o símbolo do “homem teórico”136. Sócrates é o

133
Ibidem.
134
UF, in LF, 194, p. 90.
135
Esta foi a questão principal da minha dissertação de Mestrado: O Sócrates de Nietzsche. Da certeza dos
instintos à incerteza da razão. Rio de Janeiro, UFRJ-IFCS, 1999.
136
NT, § 15, p. 92.
44

“não-místico”137 e o “não-artístico”138 por excelência. Nele, o “impulso lógico”139 é uma

força, diz Nietzsche, “que só encontramos, para o nosso horrorizado espanto, nas maiores

de todas as forças instintivas”140. Se Nietzsche fez de Sócrates o homem-símbolo do

“otimismo teórico”141 foi porque, em sua ótica, ninguém mais e melhor do que ele encarnou

essa nova maneira de ser “absurdamente racional”. Sócrates, o “dialético superior”, foi o

primeiro que não só dedicou sua vida à busca incessante do conhecimento verdadeiro como

foi o primeiro a morrer por ele. Fazendo do ato de morrer uma espécie de ritual filosófico,

esse plebeu saiu do anonimato e entrou para a história. Tornou-se o novo modelo de

homem e de filósofo que passou a encantar a juventude grega, a começar pelo belo e nobre

Platão. Portanto, devido ao caráter excepcional do homem Sócrates, Nietzsche faz dele o

representante de um fenômeno cultural coletivo batizado com o nome de “socratismo” que

condenou tanto a arte quanto a filosofia da época trágica.

Em O nascimento da tragédia, Nietzsche apresenta os efeitos devastadores do

socratismo em relação à arte. Eurípides, o poeta sóbrio que veio condenar e combater os

poetas bêbados142, se opôs à representação tradicional da tragédia, pois tomou para si o

princípio socrático que não admite a criação inconsciente143. Dotado de um “extraordinário

137
“Enquanto, em todas as pessoas, o instinto é justamente a força afirmativa e a consciência se conduz de
maneira crítica e dissuasiva, em Sócrates é o instinto que se converte em crítico, a consciência em criador –
uma verdadeira monstruosidade per defectum! E na verdade percebemos aí um monstruoso defectus de toda
disposição mística, de modo que se poderia considerar Sócrates como o específico não-místico, no qual a
natureza lógica se desenvolvesse tão excessiva quanto no místico a sabedoria instintiva”; NT, 13, p. 86.
138
Sócrates, diz Nietzsche, olhava a tragédia com “aquele olho em que nunca ardeu o gracioso delírio de
entusiasmo artístico”; Ibidem.
139
Ibidem.
140
Ibidem.
141
Ibidem, § 15.
142
Ibidem, § 12.
143
“Também o divino Platão fala, quase sempre com ironia, da faculdade criadora do poeta, na medida em
que ela não é discernimento consciente, e a equipara à aptidão do adivinho e do intérprete de sonhos; posto
que o poeta não é capaz de poetar enquanto não ficar inconsciente e nenhuma inteligência residir mais nele”;
Ibidem, § 12.
45

talento crítico”144 ao sentar no teatro, tal como um espectador, e olhar as tragédias de

Ésquilo e Sófocles, ele

percebe alguma coisa de incomensurável em cada traço e em cada linha


(...) A mais clara figura ainda assim trazia uma cabeleira de cometa que
parecia apontar para o incerto (...) Assim, ele, o espectador, confessava a
si mesmo que não entendia seus predecessores. (...) E nessa dolorosa
situação ele encontrou o outro espectador que não compreendia a tragédia
e por isso não a estimava”145.

É claro, o outro espectador é Sócrates. Ambos, fazendo uma análise à distância,

vêem na tragédia algo que não pode ser delimitado, medido; nela encontram o impreciso, o

incomensurável. Tal visão os incomoda. O aspecto enigmático presente na arte trágica

causa uma má reação. Eles não gostam da tragédia porque não gostam do que não

compreendem. A relação de Eurípides com Ésquilo e Sófocles é análoga a que existe entre

Sócrates e os pré-socráticos. Da mesma forma que o socratismo estético matou a arte

trágica o otimismo teórico deu fim à filosofia arcaica. Assim aconteceu o fim de um “belo

mundo”146 e o início de um “duvidoso Iluminismo”147. Nietzsche mostra que o socratismo

possui “uma dívida extraordinária em relação à arte”148.

Desde então, o império da lógica socrática passa a dominar o universo da filosofia e

a cultura de modo geral. O filósofo torna-se um otimista que acredita na razão como o

único caminho para a verdade. Agora, “a filosofia deixa escapar de suas mãos as rédeas da

ciência”149. Aí começa uma nova fase da história da filosofia em que o impulso de

conhecimento tornou-se cego, ávido, desmesurado.

144
Ibidem, § 11.
145
Ibidem, § 11.
146
Ibidem, § 13.
147
Ibidem, § 13.
148
UF, in LF §57, p. 18.
149
CS, in LF, § 193, p. 89.
46

Assim devem ser entendidos os filósofos gregos mais antigos: dominam o


instinto de conhecimento. O que aconteceu que, a partir de Sócrates, ele (o
domínio) lhes escapou das mãos? Antes de tudo, já notamos a mesma
tendência em Sócrates e sua escola: devemos vê-lo com reserva pelo fato
de que cada indivíduo passe a levar a sua felicidade em consideração. É
uma fase derradeira, pouco elevada. Antigamente não se cogitava de
indivíduos e sim de Heleno150.

Duas características do filósofo socrático se destacam: sua crença na razão e sua

“tendência moral à verdade’”151. Ele considera o “mecanismo dos conceitos, juízos e

deduções (...) como a atividade suprema e o admirável dom da natureza, superior a todas as

outras aptidões”152. Isso porque ele traz consigo uma nova crença de que a humana razão é

capaz de conhecer a verdade do mundo: “aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio

condutor da causalidade, atinge os abismos mais profundos do ser e que o pensar está em

condições, não só de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo”153.

Nietzsche vê no procedimento do filósofo socrático um erro: ele “parte do erro de

acreditar que tem as coisas imediatamente, como objetos puros diante de si”154. Esse erro é

conseqüência de um “esquecimento”. Ele acredita que a razão lhe mostra a verdadeira

realidade porque se esqueceu que suas representações abstratas só existem como reflexo

das imagens produzidas pela imaginação, que, por sua vez, só existe a partir das impressões

recebidas pela intuição. O filósofo otimista projeta seus sistemas lógicos sobre o mundo e

se esquece que seu conhecimento é projeção antropomórfica e que suas palavras são

metáforas.

É só pelo esquecimento deste primitivo mundo de metáforas, é só pela


cristalização e solidificação do que, na origem, era massa de imagens
surgindo, num turbilhão ardente, da capacidade original de imaginação
humana, é só pela crença invencível de que este sol, esta janela, esta
150
UF, in LF, § 32, p. 6
151
VM.
152
NT, § 15.
153
Ibidem, p. 93.
154
VM.
47

mesa, é uma verdade em si, em síntese, só pelo fato que o homem esquece
de si enquanto sujeito e enquanto sujeito da criação artística, é que ele
vive com algum descanso, alguma segurança e alguma coerência: se
pudesse escapar por um único instante dos muros da prisão desta crença,
estaria imediatamente terminada a sua ‘consciência de si’155.

Em nosso mundo socrático, esse esquecimento é normal. Os homens vivem

esquecidos de que suas verdades e mentiras, regras e leis, são apenas figuras de linguagem

criadas por eles próprios. Mas, continua Nietzsche, se os homens vivem iludidos é porque

precisam de ilusões para poder existir como indivíduo e como sociedade. A ilusão é útil e

necessária para a manutenção da ordem social, pois promove a segurança, o descanso e a

coerência desejada.

É importante salientar que o alvo das críticas de Nietzsche não é o fato de o homem

precisar de verdades, mas o de afirmá-las como verdades absolutas. Quer dizer, Nietzsche

faz críticas ao filósofo otimista porque, em nome de uma verdade teórica que não existe, ele

desqualifica o que não é racional. Por isso, é necessário impor limites à pretensiosa razão

socrática que se auto intitula a única a enunciar verdades legítimas. “Por que se necessita de

tal freio? Porque, considerando do ponto de vista científico, é uma ilusão, uma inverdade,

que ludibria o instinto de conhecimento e só provisoriamente o satisfaz”156. Como será

visto, Nietzsche faz questão de denunciar este esquecimento e lembrar que a linguagem

nasce de um processo ilógico, na linguagem não há verdade, só metáforas e metonímias.

“As palavras são apenas símbolos das relações das coisas entre si e conosco, elas não

fundam, em parte alguma, a verdade absoluta”157.

Dividimos as coisas por gêneros, designamos a árvore como feminina, o


vegetal como masculino: que transposições arbitrárias (...) que
155
Ibidem .
156
UF, in LF, § 48, p. 40
157
FE, § IX.
48

preferências unilaterais (...) Acreditamos saber algo das coisas mesmas, se


falamos de árvores, cores, neve e flores e, no entanto, não possuímos nada
mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às
entidades de origem.158

O motivo da impiedosa crítica nietzschiana ao socratismo é seu caráter tirânico, que

denigre moralmente os outros impulsos que não se submetem à sua lógica racional. O

filósofo socrático não admite confusão, gosta somente do que pode ser conhecido, ordenado

e controlado pela razão, por isso, tem aversão a embriaguez dionisíaca e só aceita as

imagens apolíneas se não desviarem do reto e bom caminho da verdade.

Para Nietzsche, após o período arcaico da filosofia predomina o preconceito de que

o filósofo deve ser um homem teórico. Movido por um impulso excessivamente racional,

científico, o filósofo socrático renega seu parentesco com a arte e com a religião. O que é

apontado por Nietzsche como um sinal de enfraquecimento: “O instinto de conhecimento

sem medida e sem discernimento (...) é um indício que a vida envelheceu”159.

158
VM.
159
UF, in LF, 25, p. 3.
49

CAPÍTULO II

A FILOSOFIA ARCAICA GREGA: POR UM LADO ARTE,

POR OUTRO, CIÊNCIA E, NO FUNDO, INTUIÇÃO

Após analisar o amplo panorama que envolve o filósofo arcaico, neste capítulo, a

imagem do filósofo arcaico será decifrada, tornando nítido os traços que compõem essa

figura imaginária. Apresentar-se-á aqui o autêntico filósofo arcaico (criado por Nietzsche) a

partir das duas primeiras hipóteses: 1- ele é definido pela mistura dos três elementos

igualmente essenciais – místicos, artísticos e lógicos – que correspondem às faculdades da

intuição, imaginação e razão; 2- ele é, sobretudo, um artista.

É pertinente apresentar, de modo breve, no início deste capítulo, a interpretação de

Nietzsche sobre a linguagem. Como já foi dito na introdução, Nietzsche vê a formação da

linguagem a partir de três momentos: primeiro, o corpo intui, recebe impressões do exterior

que geram imediatamente um “estímulo nervoso”, atividades fisiológicas, neurológicas,

inconscientes; depois, este estímulo nervoso é transformado em imagem – acontece no


50

homem a primeira mudança de esfera: da intuição à imaginação. Por fim, a imagem se

transforma em conceito – segunda mudança: da imaginação para a razão, que produz o

conceito que nada mais é do que uma entidade abstrata, uma imagem duplicada, metáfora

da metáfora, representação de representação160. Essa seqüência que começa na intuição,

passa pela imaginação e chega à razão, para Nietzsche, são “transposições ilógicas” e

“artificiais” que não guardam nenhum vínculo natural com “o enigmático X da coisa em

si”161. Isto é, a constituição da linguagem não segue nenhum fio condutor capaz de

assegurar que o discurso diz a verdade das coisas. Segundo o professor de filologia, o que

conduz o pensamento é, acima de tudo, a imaginação. É ela que cria as “primeiras

metáforas”, as primeiras formas, a partir das quais é possível construir os conceitos e os

sistemas teóricos. Para Nietzsche, não há dúvida de que a “formação artística das

metáforas”162 é o que explica a linguagem, o pensamento, o conhecimento e a filosofia.

Em várias passagens, Nietzsche aponta para as superposições e inter-relações entre

excitações nervosas, imagens e raciocínios lógicos. Exemplos: “as imagens se ligam à

atividade nervosa que opera por baixo”163. “A criação da forma; nela não há que se

pressupor um ser que intui?”164; “a imitação (a imaginação) supõe uma recepção, depois

uma transposição contínua da imagem percebida em mil metáforas, todas eficazes”; “O

160
Diz Nietzsche: “Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira metáfora. A
imagem, por sua vez, modelada em um som! Segunda metáfora. E a cada vez completa mudança de esfera,
passagem para uma esfera inteiramente outra e nova”, VM.
161
“Confunde-se o significado original das palavras, permanecendo sempre o fato de que o homem representa
o ser-aí das outras coisas segundo a analogia com seu próprio ser-aí, portanto, antropomorficamente, em todo
caso, através de uma transposição ilógica”, FE, § IX.
162
Ibidem.
163
Ibidem.
164
UF, in LF, § 108, p. 37.
51

entendimento é uma força de superfície, é superficial”165. “Todo pensamento nos vem à

superfície como arbitrário, como por nosso gosto”166; “ao pensar já se deve ter o que se

procura, graças à imaginação – a reflexão só pode julgar a seguir”167;

Vale esclarecer que: em Verdade e mentira e em outros aforismos que tratam sobre

a linguagem, Nietzsche fala a respeito das primeiras intuições, mas em nenhum momento

fala sobre a “intuição mística” porque, nesses escritos, o que está em questão são as

atividades corporais, neurológicas, que acontecem com todos os homens todos os dias,

diferente das intuições místicas da verdade, um acontecimento extraordinário que só

acontecem com os “grandes homens”.

2.1 Filosofia, razão e ciência.

2.1.1 Filosofia: uma linguagem racional – lógica e conceitual – sobre o mundo

O filósofo arcaico é uma figura plural. Por um lado, é contemplativo como o artista

plástico que cria e associa imagens, por outro, é semelhante ao cientista que transforma

suas impressões em sistemas lógicos. E, no fundo, é como um homem religioso que se

sente em comunhão com a physis, que escuta a música do universo e a deixa ressoar em si.

Diz Nietzsche:

O filósofo tenta deixar ressoar em si a sinfonia do mundo e destacá-la em


conceitos para fora de si: enquanto é contemplativo como o artista
plástico, compassivo como o homem religioso, enquanto espia fins e
causalidades como o cientista e se sente dilatando até o macrocosmos,

165
Ibidem, § 54, p. 16. “Sensação, movimentos reflexos, muito freqüentes e seguindo-se com rapidez de
relâmpago, animam-se progressivamente, produzindo a operação de raciocínio”, UF, in LF § 97, p. 33
166
Ibidem, § 64, p. 21.
167
Ibidem.
52

conserva a circunspecção de friamente se considerar como reflexo do


mundo168

O filósofo arcaico será visto, em primeiro lugar, pela sua semelhança com o

cientista, isto é, por seu traço racional. Segundo Nietzsche, a filosofia surgiu quando houve

“o domínio do instinto religioso de unidade pelo conceito”169. Devido ao seu “espírito

científico”, o filósofo se afastou da linguagem fabulosa dos mitos e inventou a nova

linguagem lógica e abstrata da filosofia. Apesar das diferenças, a linguagem da ciência

também é lógica e abstrata. Nesse sentido, Nietzsche identifica o discurso filosófico e o

discurso científico: “não há filosofia separada da ciência: naquela como nesta, pensa-se da

mesma maneira”170. Quer dizer, a filosofia e a ciência pensam através de causas e efeitos;

conceitos e combinações lógicas.

É importante ressaltar que são encontrados nos aforismos do jovem professor tanto

críticas quanto elogios à razão e à ciência. As críticas são direcionadas não à razão, mas aos

seus excessos: a avidez pelo conhecimento, o desejo da verdade “a todo custo”. Para

Nietzsche, não se trata de aniquilar a ciência, mas de dominá-la; não se trata de negar a

razão, mas de impor-lhe limites. Eis a grande qualidade apontada e valorizada por ele: os

filósofos pré-socráticos eram racionais, mas não excessivamente racionais. Eles dominaram

o instinto de conhecimento171, neles a arte e o mistério predominaram sobre a razão.

168
FE, § III.
169
Paolo D’iorio - tradutor de Os Filósofos pré-platônicos para o francês –, destaca a importância do “espírito
científico” dos filósofo arcaicos e cita um aforismo de Nietzsche que diz: “O filósofo e o espírito científico
escolhem como problema e acham interessante precisamente o habitual e cotidiano, o irregular e o
excepcional ocupam aqueles que tem a imaginação de espíritos não científicos”, FP, p. 279. O cotidiano
tornou-se problemático para o filósofo quando ele se libertou dos mitos, quando “o intelecto tornou-se livre e
pôs seu olhar sobre as coisas, (aí) pela primeira vez, o cotidiano lhe apareceu digno de interesse,
problemático”. Nesse ponto, a ciência e a filosofia estão próximas da arte: “A ciência tem em comum com a
arte que as coisas as mais cotidianas lhes aparecem novas e atraentes: a vida é digna de ser vivida, diz a arte; o
mundo é digno de ser conhecido, diz a ciência”, FP, Notas, p. 279.
170
UF, in LF, § 61, p. 20.
171
UF, in LF, § 32, p. 6
53

Embora seja um crítico do otimismo teórico, Nietzsche reconhece que sem uma

certa dose de “Iluminismo”, de espírito científico, estaríamos ainda vivendo de acordo com

o pensamento mítico. Sem o uso da razão, a expressão “tudo é um” não teria surgido. A

razão refreia o ritmo intenso das sensações e sentimentos e permite refletir sobre o devir e

compreender “o mundo em seu conjunto”172, como dizia Schopenhauer. Se Nietzsche

valoriza o poder da razão de parar a “roda do tempo”173 é porque esta paralisação permite a

construção do discurso filosófico. Nesse sentido, ele faz o elogio do aspecto científico da

filosofia pré-socrática: “A filosofia grega arcaica, contra o mito e pela ciência”174. “O

filósofo: agarra-se a ele (ao conceito) para fixar o seu encantamento, para o petrificar” 175. A

filosofia vai “do mito às leis da natureza, da religião à ciência”176.

Em todos os filósofos pré-socráticos existe o traço científico, já que a linguagem

filosófica é constituída por “representações abstratas”. No entanto, alguns filósofos são

mais racionais do que outros177. Conforme a interpretação nietzschiana, Parmênides foi

quem apresentou a mais abstrata das teorias, a do ser, enquanto Demócrito apresentou a

mais científica, a teoria mecanicista. O que significa dizer que Parmênides é o modelo do

filósofo abstrato, mas não do filósofo científico, já que a ciência quer conhecer o mundo

sensível e Parmênides nega a legitimidade de um conhecimento sobre o sensível, sobre o

mundo da multiplicidade. Para Nietzsche, aquele que pensa conforme a lógica de

172
“A filosofia é uma soma de juízos bastante universais, cujo fundamento de conhecimento é imediatamente
o mundo no seu conjunto, sem nada excluir”, SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e
representação (MC). Tradução, apresentação, notas e índices de Jair Barbosa. São Paulo, Editora UNESP,
2005, § 16, p. 137.
173
UF, in LF, § 24, p. 3: “Pois a maneira de consideração filosófica consiste no desprezo pelo presente e pelo
instantâneo. Ele (o filósofo) tem a verdade; é possível que a roda do tempo role para onde quiser, ela nunca
poderá escapar da verdade”, PV, p. 25.
174
O filósofo como médico da civilização, in LF, § 169, p. 57.
175
FE, § III, p. 31.
176
FP, p. 278.
177
“Tales quer a ciência, bem como Anaxágoras, Demócrito, o organon de Parmênides”. “Domínio do
místico: reforço do sentido da verdade contra a ficção livre (...), reforço do conhecimento puro (Tales,
Demócrito, Parmênides)”, O filósofo como médico da civilização, in LF, § 175, p. 62.
54

Parmênides, “suprime a possibilidade de ser um investigador da natureza; seu interesse pelo

fenômeno cai, forma-se um ódio em não poder livrar-se desta eterna fraude dos

sentidos”178.

2.1.2 A razão e suas raízes na intuição. Influência de Schopenhauer

É importante esclarecer a compreensão de Schopenhauer sobre a razão, já que

Nietzsche a segue em vários aspectos, a começar pela afirmação de que: “o mundo inteiro

da reflexão repousa e se enraíza no mundo intuitivo”179 e “os conceitos só existem depois

das representações intuitivas”180. Segundo Schopenhauer: 1- a razão é a “faculdade especial

e exclusiva do homem”181, “o animal sente e intui; o homem, além disso, pensa e sabe”182;

2- A razão serve como “um meio para conservação do indivíduo e da espécie como

qualquer outro órgão do corpo”183. 3- Ela é a faculdade de criar conceitos, produz a

linguagem que é o “primeiro produto e instrumento necessário da razão”184: “a razão possui

apenas UMA função, a formação dos conceitos. Desta única função explicitam-se bastante

facilmente por si mesmos todos aqueles fenômenos (...) que diferenciam a vida dos homens

178
FE, § X.
179
MC, § 14, p. 117.
180
MC, § 10, p. 99.
181
MC, § 16, p. 139. “a ação e o comportamento do homem se diferenciam bastante da ação e do
comportamento animal, semelhante diferença deve ser vista tão somente como conseqüência da presença de
conceitos abstratos na consciência. A influência destes sobre a nossa existência inteira é tão determinante e
significativa que, em certo sentido, pode-se dizer que estamos para os animais, assim como os animais estão
para os destituídos de olhos”. Ibidem.
182
Ibidem, § 8, p. 83.
183
Ibidem, § 27, p. 217. “O conhecimento em geral, quer simplesmente intuitivo quer racional, provém
originariamente da Vontade e pertence à essência dos graus mais elevados de sua objetivação, como mera
mekané’, um meio para conservação do indivíduo e da espécie como qualquer outro órgão do corpo”.
184
Ibidem, § 8, p. 83.
55

da dos animais”185. 4- A razão não existe por si mesma, mas como “reflexo”186 das

atividades corporais - não está vinculada a um espírito, a uma alma, não é uma entidade,

não é um eu, não é a psique (embora a consciência utilize, com freqüência, raciocínios

lógicos). Diz ele: “muito apropriadamente e com precisão infalível”187, a razão foi

denominada “reflexão”, “pois, de fato, é uma aparência refletida, algo derivado do

conhecimento intuitivo”188.

Ao lado de suas críticas à pretensão da razão de conhecer o âmago da realidade,

Schopenhauer reconhece seu valor para a vida humana. Apesar de valorizar mais a arte e a

filosofia do que a ciência, mais o conhecimento intuitivo do que o conhecimento racional

(pois este está limitado a conhecer as relações entre os fenômenos enquanto aquele pode ter

acesso às “Idéias”), ele conhece a importância do raciocínio lógico, abstrato, para fixar e

comunicar o conhecimento, pois “só podemos comunicar (o conhecimento) quando o

fixamos nos conceitos”189. “O que dá valor à ciência, ao conhecimento abstrato, é que ele é

comunicável, e é possível conservá-lo, uma vez fixado”190.

O homem vive, diz Schopenhauer, “uma segunda vida in abstracto ao lado da sua

vida in concreto. Na primeira, está sujeito a todas as tempestades da realidade efetiva e à

influência do presente”191. Na segunda, ele se vê protegido do que lhe causa sentimentos

hostis, pode ponderar previamente e calcular suas ações. Porque possui a razão o homem se

diferencia dos animais e cria um mundo paralelo ao mundo do presente efetivo que é

sempre particular e passageiro:


185
Ibidem, § 8, p. 83.
186
Ibidem, § 9, p. 87.
187
Ibidem, § 8, p. 82.
188
Ibidem, § 8, p. 82. “A reflexão é necessariamente cópia, embora de tipo inteiramente especial, é repetição
do mundo intuitivo”, Ibidem, § 9, p. 87. “Há qualquer coisa de feminino na natureza da razão: ela só pode dar
depois de ter recebido”, Ibidem, § 10, p. 99 .
189
Ibidem, § 12, p. 105.
190
Ibidem, § 12, p. 105.
191
Ibidem, § 16, p. 140.
56

A ausência da razão limita os animais às representações intuitivas


imediatamente presentes no tempo. O homem, ao contrário, em virtude do
conhecimento in abstracto, abrange, ao lado do presente efetivo e
próximo, ainda o passado inteiro e o futuro, junto com o vasto reino das
possibilidades192.

Schopenhauer compara o homem racional ao ator dramático que mantém o sangue-

frio diante dos mais terríveis acontecimentos, pois lhe é dado “recolher-se na reflexão”.

Esse recolher-se na reflexão faz o homem parecer um ator que, depois de


seu desempenho e até que entre novamente em cena, ocupa um lugar na
platéia entre os espectadores, de onde, sereno, assiste à sucessão dos
acontecimentos, mesmo que seja a preparação de sua morte (na peça);
depois, porém, volta ao palco e age e sofre como estava escrito193.

É interessante notar que, ao descrever o filósofo da época trágica, Nietzsche usa esta

mesma imagem, a do ator dramático que consegue manter-se sereno em sua atuação porque

usa a sua fria razão como um instrumento que lhe possibilita controlar suas emoções. O

controle sobre os próprios sentimentos permite o filósofo arcaico, como o poeta trágico,

transformar suas impressões em discursos que podem ser comunicados a várias gerações

futuras. Diz Nietzsche em sua definição de filósofo: “(este) amplia-se num macrocosmo e

distancia a observação que reflete – do mesmo modo que o ator ou o poeta dramático, que

se transforma e, contudo, permanece consciente de que se projeta no exterior”194.

Schopenhauer é um crítico da postura metafísica, segundo a qual a razão conhece a

verdade das coisas e as palavras dizem essa verdade. Para ele, a razão só existe no homem e

não no mundo. A linguagem é uma construção racional que só faz sentido para quem possui

a razão, isto é, para o próprio homem. As representações abstratas são um código inventado

192
Ibidem, § 16, p. 139.
193
Ibidem, § 16, p. 141.
194
UF, in LF, § 58, p. 18. Esta mesma definição se encontra em FE, III: “O filósofo busca ressoar em si
mesmo o clangor total do mundo e, de si mesmo, expô-lo em conceitos; enquanto é contemplativo como o
artista plástico, compassivo como o religioso, à espreita de fins e causalidades como o homem de ciência,
enquanto se sente dilatar-se até a dimensão do macrocosmo, conserva a lucidez para considerar-se friamente
como o reflexo do mundo”.
57

e decifrado pelo homem, pois “é a razão que fala para a razão, e o que ela comunica e

recebe são conceitos abstratos”:

A fala, como objeto da experiência externa, não é outra coisa senão um


telégrafo bastante aperfeiçoado que comunica sinais arbitrários com
grande rapidez e nuances sutis. (...) Todos os conceitos, e apenas
conceitos, são denotados por palavras. Eles existem exclusivamente para a
razão e dela procedem. (...) O sentido do discurso é imediatamente
intelectualizado, concebido e determinado de maneira precisa (...) É a
razão que fala para a razão, sem sair do seu domínio, e o que ela comunica
e recebe são conceitos abstratos, (representações) não individuais, não
intuitivas no tempo e no espaço.195

Os fragmentos e ensaios de 1872 e 1873 mostram que Nietzsche estava de acordo

com Schopenhauer em vários sentidos. Para Nietzsche, a razão não existe por si mesma, ela

é um “reflexo”196 das atividades corporais, físicas, químicas, nervosas. É o corpo que está

em primeiro lugar, é ele quem dá vida à razão (idéia fundamental em todo o percurso da

filosofia de Nietzsche). Todos os conceitos surgem da intuição, uma experiência corporal,

fisiológica. Os conceitos são constituídos de modo arbitrário, só existem e têm sentido para

os homens. Assim como Schopenhauer, Nietzsche afirma que não existe uma

correspondência entre as representações abstratas e as coisas. A formação do conceito não

segue nenhum parâmetro objetivo; ao contrário, é puramente subjetivo, arbitrário, humano,

antropomórfico.

Nosso entendimento é uma força de superfície, é superficial, É por isso


que se chama também ‘subjetivo’. Conhece por meio de conceitos: nosso
pensar é um classificar, um nomear, logo, qualquer coisa que se liga à
arbitrariedade humana, sem atingir a própria coisa.197

195
MC, § 9, p. 86.
196
“O pensamento consciente nada mais é do que uma escolha entre as representações. Há um longo caminho
até à abstração”. UF, in LF, § 63, p. 21. “As formas do intelecto nasceram da matéria, muito gradualmente”
Ibidem, § 106, p. 36. “Os raciocínios inconscientes provocam a minha reflexão (...). O pensamento
inconsciente deve completar-se sem conceitos: por intuições, portanto”, Ibidem, § 116, p. 38.
197
Ibidem, § 54, p. 16.
58

O conceito de folha, por exemplo, surge quando as características individuais são

colocadas de lado e selecionadas apenas as que servem para compor o que seria a folha em

geral. Desse modo, as características próprias de cada folha são desconsideradas. Nietzsche

enfatiza a idéia de que o conceito surge desta desconsideração pelo singular, por isso, ele (o

conceito) apresenta como semelhantes folhas diferentes: “todo conceito nasce da

identificação do não idêntico (...) do arbitrário abandono das diferenças individuais”198. Ora,

identificar o não idêntico é um procedimento ilógico e, de todo modo, não corresponde à

realidade. O conceito pretende dar conta do que é singular através do universal, mas, ao

privilegiar o universal, perde o singular.

Se o conceito nasce omitindo o singular, o conhecimento também nasce dessa

omissão. Segundo Nietzsche: “Todo conhecimento que nos faz progredir é uma maneira de

identificar o não idêntico, quer dizer, é essencialmente ilógico”199. Em outras palavras, o

conhecimento não é conhecimento (epistéme). O que chamamos conhecimento é criação

humana, é metáfora. O que o sustenta é a crença popular na linguagem, a crença de que as

palavras dizem o que são as coisas. Em todo homem existe a tendência natural à crença na

linguagem, aliás, o que Nietzsche chama de “impulso ao conhecimento” é, na realidade,

impulso à crença no conhecimento. O homem crê na verdade que ele próprio inventou. Sua

crença na verdade lhe permite viver em paz com os outros homens, que também comungam

da crença na linguagem. Essa fé na razão é uma crença moral, já que as verdades

estabelecidas propiciam a vida social.

A necessidade produz às vezes a veracidade como meio de existência de


uma sociedade200”.
198
VM.
199
UF, in LF, § 150, p. 50.
200
Ibidem, § 133, p. 42.
59

O homem bom quer ser também verdadeiro e acredita na verdade de todas


as coisas. Não só na sociedade, mas ainda no mundo. (...) Pois, que razão
teria o mundo para enganá-lo?201.

2.1.3 Linguagem: criação de metáforas

Apesar das influências de Schopenhauer, Nietzsche desenvolve a sua própria

filosofia. Sobre alguns aspectos relevantes, discorda de seu educador. Uma das principais

diferenças diz respeito à questão da verdade. Schopenhauer acredita que o conhecimento

intuitivo tem acesso a uma “verdade absoluta”, que corresponde à contemplação da Idéia.

Diz ele: “a intuição é a fonte primeira de qualquer evidência, e tão somente a referência

imediata ou intermediada a ela é verdade absoluta”202. Para Schopenhauer, o conhecimento

imediato da Idéia é o único seguro, “já que toda intermediação por conceitos acarreta

muitos enganos”203. Em oposição a Schopenhauer, Nietzsche – nesses escritos “pós” 1872 –

não considera possível alcançar pela intuição a “verdade absoluta”. Para ele: “A verdade é

incognoscível. Tudo o que se pode conhecer é a aparência” 204. Todo conhecimento é

antropomórfico. Conforme Verdade e mentira, o estímulo nervoso já não guarda mais um

vínculo com a coisa-em-si. Diferente de Schopenhauer, para Nietzsche, a intuição (menos

ainda, a razão) não leva à verdade. Nietzsche também não acredita na existência das Idéias,

como não acredita que é possível sair da dimensão humana e atravessar o abismo que nos

separa das coisas.

201
Ibidem, § 134, p. 43.
202
MC, § 15, p. 122.
203
Ibidem, § 15, p. 122.
204
VM.
60

Do mesmo modo que Nietzsche, por um lado, compartilha de certos aspectos da

filosofia de Schopenhauer e, por outro, discorda, assim também é sua relação com Kant.

Kátia Muricy aponta, em seu artigo A arte do estilo, as principais semelhanças e diferenças

entre o jovem Nietzsche e Kant:

Nietzsche toma distância da crítica de Kant. Por um lado, segue-lhe seus


passos na afirmação dos limites do conhecimento ao âmbito dos
fenômenos e da impossibilidade de um conhecimento da verdadeira
essência das coisas. Em decorrência, também concorda com Kant quanto
à natureza subjetiva do conhecimento. No entanto, para Nietzsche não
existem formas transcendentais apriorísticas e, tampouco, um objeto do
conhecimento constituído logicamente. Conceitos e categorias são
instrumentos contingentes que tiveram a sua origem nas necessidades da
espécie e foram fruto da capacidade ficcional do homem, expressa nas
metáforas da linguagem205.

Esta última frase esclarece a diferença entre Nietzsche e Kant quanto à linguagem.

Diferente de Kant, para Nietzsche, “conceitos e categorias são instrumentos contingentes

que tiveram a sua origem nas necessidades da espécie e foram fruto da capacidade ficcional

do homem”. Enquanto Kant acredita que existem sólidos parâmetros transcendentais

capazes de fundamentar um conhecimento legítimo do fenômeno e Schopenhauer crê na

intuição da Idéia, Nietzsche considera que o conhecimento racional e o conhecimento

intuitivo são decorrentes de um processo artístico que não é capaz de fundamentar nenhum

conhecimento verdadeiro. Eis aqui uma característica que o diferencia: apresenta o

conhecimento como uma construção cujos pilares são metáforas. A esfera da razão só

existe vinculada à imaginação e à intuição. Nietzsche alerta: as palavras não levam às

coisas. A linguagem não é o lugar onde se encontram as verdades do mundo, é o lugar onde

se encontram imagens do mundo, e imagens de imagens, conceitos de conceitos:

205
MURICY, Kátia. “A arte do estilo”,. In Assim falou Nietzsche III. Rio de Janeiro, Sete Letras, 2001.p. 85–
86.
61

Através de palavras e conceitos nós não chegamos jamais a penetrar a


muralha das relações, nem mesmo a algum fabuloso fundamento
originário das coisas. (...) nós não ganhamos nada que se assemelhe a uma
veritas aeterna. É incondicionalmente impossível, para o sujeito, querer
conhecer e ver algo acima de si mesmo; tão impossível que conhecimento
e ser são, de todas as esferas, as mais contraditórias206.

As palavras não levam às coisas, mas (devido à crença na linguagem) os homens

confundem as palavras com as coisas. Como nos fala Nietzsche: “o conceito ‘lápis’ é

confundido com a coisa ‘lápis’”207. Normalmente, o homem acredita que o mundo é tal

como ele o vê, que as coisas são como as percebe. Na contramão desta crença metafísica,

Nietzsche defende a idéia de que todo conhecimento começa com o conceito e este surge da

criação de metáforas que é um processo artístico, ilógico e arbitrário; “com ele (o conceito)

começa o nosso conhecimento: pela denominação, pelos gêneros que estabelecemos. Mas a

isto não corresponde a essência das coisas”208.

Ou seja, para Nietzsche, o conhecimento é uma produção criativa da linguagem.

Conhecer é nomear, identificar, conceituar, classificar. O conhecimento cria metáforas para

falar do mundo. “Tempo, espaço e causalidade não são mais que metáforas do

conhecimento pelas quais nós explicamos as coisas209”. Através das “metáforas do

conhecimento” o homem se sente o senhor da realidade, pois ele lhe impõe ordem. Ele cria

um mundo onde todas as coisas têm sentido: uma vez designadas, tornam-se familiares. Dar

nome às coisas é o modo humano de tornar a vida familiar, normal.

Nossa única maneira de nos tornarmos senhores da multiplicidade é


estabelecer categorias, como por exemplo chamar de “ousado” um grande
número de modos de ação. Nós os explicamos a nós mesmos quando as

206
FE, § IX.
207
UF, in LF, § 152, p. 51.
208
Ibidem, § 150, p. 50.
209
Ibidem, § 140, p. 45.
62

colocamos sob a rubrica “ousado”. Todo explicar e todo conhecer não é


propriamente mais que um denominar210.

Não podemos deixar de falar aqui sobre a obra de Michel Foucault, As palavras e as

coisas. Vale salientar que Foucault escreveu esse livro motivado por um texto do poeta

Jorge Luis Borges. Ou melhor, como ele próprio diz no prefácio, As palavras e as coisas

nasceu de um riso ao ler uma citação feita por Borges de uma “uma certa enciclopédia

chinesa” em que aparece a seguinte classificação dos animais:

a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d)


leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdades, h) incluídos na
presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k)
desenhados com um pincel de pêlo de camelo l) que acabam de quebrar a
bilha, m) que de longe parecem moscas.

Foucault achou engraçada essa classificação, pois ela mostra o quanto é arbitrário os

princípios adotados para pensar a realidade. Essa taxinomia chinesa “sacode todas as

familiaridades do pensamento, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos

que tornam sensata para nós a população dos seres, fazendo vacilar e inquietando por longo

tempo a nossa prática milenar do Mesmo e do Outro”. Ora, é exatamente isto o que faz

Nietzsche ao mostrar o quanto é antropomórfico o conhecimento humano: “sacode todas as

familiaridades do pensamento”.

2.1.4 A razão e seus limites. O “conhecimento trágico”

Em seu ensaio Verdade e mentira Nietzsche narra o aparecimento do homem no

universo e mostra que durante todo o tempo em que a humanidade existiu sobre o planeta
210
Ibidem, § 141, p. 46.
63

terra foi um tempo irrisório diante da eternidade da natureza. Diante do cosmo infinito é

evidente a insignificância do homem e de seu conhecimento científico, tecnológico. Houve

tempos em que não existia nem o homem nem a ciência e ainda haverá outros sem a

existência deles. Nietzsche compara o homem à mosca que também percebe o mundo a

partir de si própria e se sente o centro do universo211.

Em O Nascimento da tragédia, ele diferencia dois tipos opostos de conhecimento: o

“conhecimento socrático” e o “conhecimento trágico”. O primeiro é otimista, acredita que

através de conceitos, juízos e deduções pode “abarcar em círculos, cada vez mais largos, o

mundo inteiro dos fenômenos”. O segundo é pessimista em relação ao próprio

conhecimento. O “conhecimento trágico”212 é apresentado como um tipo de saber que nasce

quando “naufraga o otimismo oculto da ciência”, quando “o homem nobre e dotado (...)

tropeça nas fronteiras do pensamento lógico e vê, assustado, que a lógica não tem outro

fundamento que não ela própria”213.

Quando divisa aí, para seu susto, como, nesses limites, a lógica passa a
girar ao redor de si mesma e acaba por morder a própria cauda – então
irrompe a nova forma de conhecimento trágico, que mesmo para ser
apenas suportado, precisa da arte como meio de proteção e remédio214.

Nietzsche utiliza, nessa passagem, o conceito “trágico” para falar dos limites do

conhecimento lógico, racional. Este conhecimento trágico não se refere a “autêntica

sabedoria dionisíaca” presente na tragédia – cujo ensinamento é: por trás do pricipium

individuationis está a “vida eterna da vontade”, “a mãe primordial eternamente criativa” 215.
211
VM.
212
NT, § 15, p. 95
213
Ibidem.
214
Ibidem.
215
Ibidem, § 17, p. 103. A tragédia ensina que o aniquilamento do indivíduo não afeta a verdadeira e eterna
realidade do Uno-primordial. Daí é possível o “consolo metafísico”, pois sabe-se, não através de conceitos,
mas de modo imediato, intuitivo, que “a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mutação dos fenômenos, é
indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria”, “(...) a tragédia, com o seu consolo metafísico, aponta para a
vida perene daquele cerne da existência, apesar da incessante destruição das aparências”, Ibidem, p. 55.
64

Ele se refere aos limites da razão, ele vai contra as filosofias dogmáticas. Isto é, o

conhecimento trágico aponta para Kant e Schopenhauer. Estes são vistos por Nietzsche

como seus precursores no combate ao otimismo teórico. Com eles foi reconhecida como

crença, e não como conhecimento, a convicção de que através da causalidade lógica é

possível sondar “o ser mais íntimo das coisas. A enorme bravura e sabedoria de Kant e

Schopenhauer conquistaram a vitória mais difícil, a vitória sobre o otimismo oculto na

essência da lógica”216. Ou seja, o conceito “trágico”, aqui, diz respeito a um conhecimento

que reconhece seus limites, remete ao modo como a razão se relaciona com ela própria: ela

chega às suas fronteiras, por isso não pretende “apreender o absoluto com a consciência”.

Depois de Kant e Schopenhauer, diz Nietzsche, a ingenuidade em relação ao poder

da razão – e seus limites - já não pode mais ser aceita. Desde então, a filosofia otimista é

uma “ignorância atrevida”. Se Parmênides, como será visto, é ingênuo em relação aos

poderes da razão, depois de Kant não há mais como se iludir com a possibilidade de, por

meios racionais, chegar a uma verdade em si. Por conseguinte, a tarefa da filosofia pós-

kantiana não é chegar ao coração das coisas através da consciência:

Se Parmênides, na ingenuidade ignorante da crítica do intelecto de então,


podia presumir chegar a um ser-em-si a partir de um conceito eternamente
subjetivo, hoje, depois de Kant, é uma ignorância atrevida colocar aqui e
ali, como tarefa da filosofia, (...), ‘apreender o absoluto com a
consciência’.217

Ainda em O nascimento da tragédia, Nietzsche, como ele próprio diz, “se atreve” a

denominar trágica uma cultura que se apoia no conhecimento trágico. Quer dizer, Kant e

Schopenhauer são apresentados como “matadores de dragões”218 que fundam uma cultura

trágica, “cuja característica mais importante é que, para o lugar da ciência como alvo

216
Ibidem, § 18, p. 110
217
FE, § IX.
218
NT, § 18, p. 111.
65

supremo, se empurra uma sabedoria que não está iludida pelos sedutores desvios das

ciências”219.

Em um aforismo de O último filósofo, Nietzsche volta a distinguir dois tipos de

conhecimento só que, agora, eles aparecem vinculados ao dois tipos de filósofos: o

“filósofo do conhecimento trágico” e o “filósofo do conhecimento desesperado”. Enquanto

este “é conduzido a uma ciência cega, ao saber a todo custo”220, o “filósofo trágico” faz a

crítica do próprio conhecimento.

O filósofo do conhecimento trágico. Domina o instinto de conhecimento,


mas não por meio de uma nova metafísica. Não estabelece nenhuma
crença nova. Sente tragicamente que perdeu o campo da metafísica,
todavia o turbilhão enovelado das ciências não pode satisfazê-lo. Trabalha
para construir uma vida nova: restabelece os direitos da arte. (...) Para o
filósofo trágico a imagem da existência realiza-se de um modo tal que o
leva a entender tudo o que compete à metafísica como algo meramente
antropomórfico. Não é um cético. Então é necessário criar um conceito:
porque o ceticismo não é um fim em si. O instinto de conhecimento,
atingindo seus limites, volta-se contra si próprio, para chegar à crítica do
saber. O conhecimento a serviço da vida torna-a melhor. É preciso querer
até a ilusão – nisto consiste o trágico221.

“O filósofo do conhecimento trágico domina o instinto de conhecimento”, nesse

sentido, ele é igual ao filósofo arcaico, é o oposto do otimista teórico. Não acredita que a

razão é capaz de fundamentar o conhecimento, mas, diferente do filósofo arcaico, também

não crê na revelação mística da verdade. O filósofo trágico não é metafísico. “Não

estabelece nenhuma crença nova”. Está aqui o que o diferencia do filósofo arcaico: ele

compreende “tudo o que compete à metafísica como algo meramente antropomórfico”.

Quer dizer, ele não acredita que é possível chegar a coisa-em-si nem pela razão nem pela

intuição mística. O filósofo trágico vive consciente dos limites do conhecimento. Ele sente

que perdeu a metafísica, perdeu a verdade das coisas, perdeu a coisa-em-si.


219
Ibidem.
220
UF, in LF, § 37, p. 8
221
Ibidem.
66

Quem é este filósofo que possui o conhecimento trágico?

Não é Kant, porque o filósofo trágico não se satisfaz com as ciências particulares, “o

turbilhão enovelado das ciências não pode satisfazê-lo”. Vale notar que Kant aceitou a

ausência da verdade absoluta, da coisa-em-si, mas quis assegurar a possibilidade de um

conhecimento verdadeiro dos fenômenos. Não é Schopenhauer, porque o filósofo trágico

afirma que é preciso querer a ilusão e Schopenhauer não quis a ilusão, quis a verdade

absoluta das Idéias que são conhecidas pela intuição. Ele criticou o conhecimento dos

fenômenos, o conhecimento racional, mas encontrou o fundamento do conhecimento na

intuição. Fez a crítica às ciências, mas defendeu o conhecimento intuitivo como

conhecimento da verdade absoluta.

Ora, o filósofo trágico não é Kant porque não crê no conhecimento dos fenômenos e

não é Schopenhauer porque não crê em nenhuma metafísica. O filósofo trágico é o próprio

Nietzsche! É ele quem faz crítica ao conhecimento racional e ao conhecimento intuitivo.

Ele não acredita na possibilidade de possuir um “conhecimento incondicional” seja através

da razão ou da intuição. Para ele, o conhecimento se funda na crença na verdade e não na

verdade. O conhecimento nasce de uma série de transposições artísticas e ilógicas. O

homem vê causalidade quando o que aparece é sucessividade:

Todo conhecimento na natureza no fundo é inexplicável para nós:


podemos somente verificar a cada vez o cenário em que se apresenta o
drama propriamente dito. Falamos então de causalidade, quando no fundo
não vemos mais que uma sucessão de acontecimentos. Que esta sucessão
deva se produzir sempre em uma determinada sensação é uma crença
contrariada, muitas vezes222.

222
VM, in LF, § 177, p. 81. Este aforismo não aparece na Coleção Os pensadores, pois aqui a tradução é
incompleta.
67

Nietzsche é, de certo modo, cético na medida em que, como ele diz, o ceticismo

“destrói tudo o que é abençoado pela fé”. Nietzsche não tem fé na verdade, nele existe a

“aceitação cética de que talvez todos nós estejamos em erro”223. É interessante notar que

Nietzsche fala “talvez estejamos em erro” porque, a rigor, não é possível saber se nossa

percepção do mundo é, ou não, exata. “Contra Kant é possível contrapor sempre que, para

admitir todas as suas teses, subsiste a possibilidade plena de que o mundo seja tal qual se

nos mostra”224. Ou seja, talvez o mundo seja como o percebemos, talvez não. Não há como

ter certezas. Para Nietzsche, este “talvez” já impossibilita fundamentar um conhecimento

incondicional, por isso, ele assume a incerteza como sendo própria do homem, já que não

há como sair da dimensão humana da linguagem e encontrar a coisa-em-si. Ele enfatiza a

idéia de que nós estamos fadados a viver na dimensão humana das imagens. Nascemos,

vivemos e morremos no reino da imaginação. “O fato de conhecer é somente o fato de

trabalhar com as metáforas mais aceitas, então é uma maneira de imitar não mais sentida

como imitação. Naturalmente não se pode, pois, penetrar no domínio da verdade”225. Quer

dizer, a constatação da ausência da verdade é uma característica fundamental do

pensamento de Nietzsche e da figura do filósofo trágico.

Se Nietzsche é cético em relação à verdade, ele não o é em relação ao valor do

discurso filosófico. Como o “filósofo do conhecimento trágico”, ele reconhece o valor

poético das “verdades e mentiras” criadas pelo homem. Isto é, para ele, o conhecimento

humano vale como arte, vale como metáfora. A metáfora tem valor, não um valor moral,

mas um valor extra-moral. O saber de que não é possível ir além das metáforas não é

interpretado como um fardo. Ao contrário, para Nietzsche, sem as metáforas e o fabuloso

223
Ibidem, p. 79.
224
UF, in LF, § 84, p. 29.
225
Ibidem, § 149, p. 49.
68

reino da imaginação a existência humana não seria possível, pois o homem não pode viver

sem as ilusões.

Possuindo o conhecimento trágico, o filósofo poderia emudecer, mas isso não

acontece, pois reconhece a necessidade de criar conceitos mesmo sabendo que são

metáforas: “é necessário criar um conceito, porque o ceticismo não é um fim em si”226.

Nietzsche valoriza o aspecto criativo da filosofia na medida em que enfatiza a importância

da arte, da ilusão, para a vida. Diz ele: “o conhecimento a serviço da vida torna-a melhor. É

preciso querer até a ilusão – nisto consiste o trágico”. O filósofo trágico, que é o próprio

Nietzsche, restabelece os direitos da arte, não porque a arte mostre alguma verdade, mas

porque a arte aceita a ilusão como ilusão: nisto consiste o trágico. Ou seja, o conceito de

trágico – aqui – está vinculado ao “conhecimento de que o bem supremo do homem

encontra-se muito mais nas ilusões”227. O filósofo trágico é aquele que perdeu a verdade

metafísica (da coisa-em-si), perdeu a verdade das ciências (do fenômeno), mas fez da arte a

sua verdade. “Tudo o que é bom e tudo o que é belo depende da ilusão: a verdade mata – e

mais ainda, ela própria se mata (à medida que reconhece que seu fundamento está no

erro)”228. Ele reconhece o valor da crença na verdade para a vida em sociedade229.

É importante dizer que a expressão “filósofo trágico” também aparece nos escritos

sobre os filósofos da época trágica onde Nietzsche afirma: “Empédocles é o filósofo

trágico, o contemporâneo de Ésquilo”. Mas, nessa passagem, o termo “trágico” não tem o

mesmo sentido que no aforismo acima. Como veremos a seguir, Empédocles é trágico na

medida em que, para Nietzsche, sua filosofia, semelhante aos ensinamentos da tragédia que
226
Ibidem, § 37, p. 8.
227
VM, in LF, § 177, p. 79. Este aforismo não aparece na Coleção Os pensadores, pois aqui a tradução é
incompleta.
228
Ibidem, § 176, p. 79.
229
“A veracidade como fundamento de todos os contratos e como pressuposto da subsistência da espécie
humana é uma exigência eudemonista”, Ibidem, § 177, p. 79.
69

mostram a existência do Uno-originário, revela a unidade fundamental de todas as coisas.

Empédocles é trágico porque é dionisíaco. Diferente dele, o filósofo trágico é “trágico”

porque possui um conhecimento que “volta contra si próprio” e se assume como ilusório. O

filósofo do conhecimento trágico não segue em direção ao Uno-originário, segue em

direção à arte, à ilusão.

Embora o filósofo do conhecimento trágico se diferencie do filósofo arcaico, já que

este acredita que a sua verdade intuída é a verdade do mundo e aquele não crê na

possibilidade de existir um conhecimento que não seja feito à imagem e semelhança do

homem, esses dois tipos de filósofos possuem importantes semelhanças: 1- o domínio do

instinto de conhecimento que os coloca em oposição ao filósofo socrático, e 2- valoriza a

arte para a vida. Vale salientar que, há momentos em que essas duas imagens se aproximam

e se confundem. Sob um certo prisma, a figura do filósofo arcaico nos faz ver o filósofo

trágico, isto é, remete para o próprio Nietzsche.

O entrelaçamento do autor e suas figuras imaginárias mostram a intercessão entre o

que chamamos de realidade e sonho. A fronteira é imprecisa, para não dizer inexistente.

Quer dizer, há momentos em que o sonho é tão real quanto a realidade e a realidade tão

fantástica como um sonho. Será que morrer é acordar de um sonho cheio de sonhos? Sobre

os sonhos, Nietzsche concorda com Pascal.

Pascal tem razão quando afirma que, se todas as noites nos viesse o
mesmo sonho, ficaríamos tão ocupados com ele como com as coisas que
vemos cada dia: “Se um trabalhador manual tivesse certeza de sonhar
cada noite, doze horas a fio, que é rei, acredito”, diz Pascal, “que seria tão
feliz quanto um rei que todas as noites durante doze horas sonhasse que é
um trabalhador manual”.

A confusão entre um personagem criado e seu autor é algo que acontece com

freqüência no mundo da literatura onde é considerada legítima e, até, celebrada. No caso de


70

Miguel de Cervantes e seu Dom Quixote, essa confusão entre o criador e criatura, entre o

mundo fantástico e o mundo real aparece de forma primorosa. O poeta Jorge Luis Borges

fez um belo poema sobre este tema, Sueña Alonso Quijano230:

El hombre se despierta de un incierto


Sueño de alfanjes y de campo llano
Y se toca la barba com la mano
Y se pergunta si está herido o muerto.
No lo perseguiran los hechiceros
Que han jurado su mal bajo la luna?
Nada. Apenas el frio. Apenas una
Dolencia de sus años postrimeros.
El hidalgo fue sueño de Cervantes
Y Don Quijote un sueño del hidalgo.
El doble sueño los confunde y algo
está pasnado que pasó mucho antes.
Quijano duerme y sueña. Una batalla:
Los mares de Lepanto y la metralla.

2.2 Filosofia e misticismo

2.2.1 A “intuição mística da verdade”, o “pathos da verdade”

Em A filosofia na época trágica dos gregos, Nietzsche mostra-nos que os conceitos

abstratos traduzem uma “intuição filosófica profunda”231. Os primeiros filósofos gregos não

chegavam às suas verdades através de raciocínios lógicos. A verdade é que lhes chegava, e

não de um modo lógico. A verdade surge de repente, sem a mediação da razão, sem

qualquer deliberação prévia da consciência. Ao analisar Tales de Mileto, Nietzsche deixa

claro que o que levou o primeiro filósofo a enunciar a sua teoria, a sua “monstruosa

generalização” - a água é a origem de todas as coisas -, não foram as suas observações

230
BORGES, Jorge Luis. “Sonha Alonso Quijano”. In Obras Completas III. São Paulo, Ed. Globo, 1999.
231
FE, § III..
71

empíricas e raciocínios científicos. Conforme o jovem professor, “o que o impeliu foi um

postulado metafísico, uma crença que tem sua origem em uma intuição mística e que

encontramos em todos os filósofos”232.

Ou seja, o que está na base das teorias filosóficas não é um impulso racional. Se o

filósofo pré-socrático teve uma determinada visão de mundo é porque a natureza a ele

assim se mostrou. Cada verdade é apreendida como algo que vem de fora para dentro,

como um presente divino. Por isso, outro termo utilizado por Nietzsche ao falar sobre a

origem mística das diversas verdades é “pathos da verdade”. A verdade surge de um

pathos, surge da dimensão profunda dos sentimentos. Os filósofos da época trágica, diz

Nietzsche, são movidos por um “imenso pathos da verdade”233. Por se tratar de um

sentimento é possível usar o adjetivo “imenso” à noção de verdade. Se fosse uma verdade

lógica, o termo “imenso” seria inadequado, já que não existe uma variação de intensidade

nas demonstrações lógicas, estas só podem ser ou não logicamente verdadeiras, não

havendo gradações.

Pathos é um termo grego - utilizado por Platão – que, segundo Édouard Des Places,

significa: “1- ‘paixão’ (por oposição à ‘ação’); 2- ‘impressão, sentimento’; 3- ‘acidente’

(por oposição à ‘essência’), ‘caráter’; 4- ‘estado, situação’”234. A verdade chega ao filósofo

arcaico por meio de um pathos, de um intenso sentimento que o domina. Essa espécie de

possessão vivida pelo filósofo é semelhante ao que os antigos gregos chamavam de

mania235: um estado de “loucura”, “delírio”, “exaltação”, “furor”, em que um impulso

divino toma posse do intelecto humano. Platão, em seu belo diálogo Fedro, fala sobre os
232
Ibidem.
233
UF, in LF, § 72, p. 24.
234
PLACES, Édouard des, S.J. Platon. Ouvres coomplètes Tome XV, Lexique. Paris, Les belles Tettres, 1989.
235
Segundo Giovanni Reale: mania significa “possessão, que implica estar fora de si, não mais em posse da
própria razão, na medida em que esta é possuída pelo Divino”, REALE, G. História da filosofia antiga. Vol.
V. Léxico, Índices, Bibliografia. São Paulo, Loyola, 1995, p. 158.
72

tipos de manias que existem: da arte poética, da adivinhação, da iniciação nos Mistérios (e

do amor. Quando o homem perde o domínio de si e é inspirado pelos deuses - o poeta pelas

Musas, o vidente por Apolo, o místico por Dioniso, o apaixonado (o filósofo) por Eros e

Afrodite –, ele ganha um saber divino, que não tem explicações racionais. Nesse diálogo,

que mostra o contraste entre o estado irracional de um homem apaixonado e o estado de

sobriedade racional de um homem não apaixonado, Platão exalta a loucura divina e a

reconhece como um bem superior ao que é proporcionado pelo estado de sobriedade

racional. Diz ele: “os maiores bens nos vêm do delírio, que é, sem a menor dúvida, uma

dádiva dos deuses. A profetisa de Delfos e as sacerdotisas de Dodona, em seus delírios

prestaram inestimáveis serviços à Hélade, tanto nos negócios públicos como nos

particulares; ao passo que em perfeito juízo pouco fizeram, ou mesmo nada”236.

Mas, apesar de, aqui, Platão considerar o saber que surge da inspiração divina

superior ao saber conquistado pelo próprio homem, sua filosofia valoriza mais o estado de

sobriedade do que o estado de delírio já que a própria filosofia é definida como uma

atividade racional e o conhecimento, epistéme, é algo a ser conquistado através do método

racional. É através do exercício dialético que o filósofo vai, aos poucos, subindo os degraus

do conhecimento.

Vale destacar que, no próprio Fedro, Platão afirma que essa elevação do filósofo

também é um acontecimento produzido por Eros. Quer dizer, o processo de conhecimento

não é somente racional, envolve também o sentimento e um certo misticismo erótico. No

entanto, o que é essencial na caminhada do filósofo em direção as verdades eternas (as

236
PLATÃO, Fedro. 244 b. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, UFPA, 1980. Cf. CONFORD, F.M.
Principium Sapientiae. As origens do pensamento filosófico grego.Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1989.
73

Idéias) é o controle das paixões. Ou seja, de todo modo, o erotismo aqui presente deve ser

governado pela razão237.

Não se pretende aqui adentrar no pensamento de Platão, mas, sim, mostrar que,

conforme a interpretação de Nietzsche, seja ela correta ou não, Platão perpetuou o

otimismo teórico recém inaugurado por Sócrates, de acordo com o qual, o estado próprio do

filósofo é o de sobriedade, sophrosyne, e não o de delírio. Para o filósofo socrático, a

verdade não está no começo do seu percurso e nem surge de um modo místico e abrupto.

Ele acredita que, mantendo-se sóbrio e sereno, um dia, ele poderá alcançar a tão desejada

verdade.

Em sua obra tão familiar a Nietzsche, O mundo como vontade e representação, ao

se referir aos diversos tipos de sentimento, Schopenhauer fala do “sentimento da

verdade”238 e o diferencia de um conhecimento racional da verdade. Cita autores que falam

sobre o “sentimento lógico e matemático”239, sobre o “sentimento da igualdade ou diferença

entre duas fórmulas”240. Com a frase “sentimos que os sofismas não eram raciocínios

corretos, todavia não pudemos descobrir o erro”241, Schopenhauer mostra a diferença entre

sentir a verdade e poder demonstrá-la através de argumentações lógicas. Segundo ele, o

conceito de “sentimento” “abrange as coisas mais heterogêneas”242, por exemplo: o

sentimento religioso, os sentimentos de prazer e de dor, o sentimento moral, de honra, de

vergonha, o sentimento corporal, das cores, dos sons, o sentimento estético, o sentimento de

força, fraqueza, amor, ódio, amizade etc. O que há em comum a todos os diferentes

237
De acordo com Reale: “Normalmente Platão considera o senso, a sabedoria e o conhecimento superiores à
mania divina, a qual é nitidamente desvalorizada do ponto de vista teorético”. História da filosofia antiga.
Vol. V. Léxico, Índices, Bibliografia. São Paulo, Loyola, 1995, p. 158.
238
MC, § 11, p. 101.
239
Ibidem, § 11, p. 101.
240
Ibidem.
241
Ibidem.
242
Ibidem.
74

sentimentos, inclusive ao “sentimento da verdade”, é o fato de ser algo que ocorre ao

homem e é percebido pela consciência, mas não é produzido pela razão. Conforme

Schopenhauer, o conceito de sentimento é essencialmente negativo, indica tudo que não é

pensamento abstrato: “O conceito que designa a palavra sentimento possui em realidade um

conteúdo meramente negativo, noutros termos, designa algo (...) que não é conceito, não é

conhecimento abstrato da razão”243. A razão “engloba sob o único conceito de sentimento

qualquer modificação da consciência que não pertence imediatamente ao seu modo de

representação, isto é, que não é conceito abstrato”244. O sentimento está para a razão assim

como o conhecimento intuitivo está para o conhecimento abstrato, o que significa dizer que

a dimensão dos sentimentos precede à razão. E ilustra essa idéia dizendo:

Lembro-me de ter lido na introdução de uma tradução de Euclides que se


deve permitir aos que se iniciam na geometria fazer primeiro o desenho
das figuras, antes de as demonstrar, pois assim sentem a verdade
geométrica antes de a demonstração lhes evidenciar o conhecimento
completo245.

As duas expressões usadas, “intuição mística da verdade” e “pathos da verdade”,

indicam que a verdade do filósofo arcaico emerge da dimensão mais primitiva, pré-

racional. No princípio, o filósofo escuta a “sinfonia do mundo” e só depois a traduz em uma

língua abstrata. Nietzsche descreve esse momento ímpar na vida do pensador como um

acontecimento extraordinário, mágico, misterioso, involuntário, inconsciente. É a

experiência mais rara e mais gloriosa que só os homens mais raros, os filósofos, vivem;

“são os momentos das iluminações súbitas, quando o homem estica seu braço

imperiosamente, como que para criar um mundo, produzindo luz de si mesmo e

espelhando-a em torno”246.

243
Ibidem.
244
Ibidem, § 12, p. 101.
245
Ibidem, § 11, p. 100-101.
246
PV, p. 25.
75

Nietzsche busca demonstrar que a verdade do filósofo pré-socrático não é um

produto da razão, mas, da intuição, pois o pathos da verdade “nada tem a ver com a

lógica”247. “O pathos da verdade relaciona-se à crença”248. Cada filósofo acredita piamente

que somente ele vislumbrou a verdade absoluta do mundo249. Sua certeza não se apóia na

força das argumentações dedutivas, mas na convicção gerada pelo intenso sentimento de

possuir a verdade. Diz Nietzsche: “Análise da crença na verdade: porque toda posse da

verdade no fundo nada mais é que uma convicção de possuir a verdade. O pathos (...) vem

desta fé e não da pretensa verdade”250.

Nos séculos trágicos os deuses olímpicos perderam a credibilidade que existia na

época homérica, no entanto, o espírito religioso, místico, não foi extinto. Assim como na

tragédia de Sófocles Édipo questionou o saber do adivinho Tirésias, mas em nenhum

momento questionou a existência dos deuses, o filósofo arcaico questionou os mitos e os

deuses homéricos, mas não questionou a existência do “divino”. Aliás, ele busca encontrá-

lo. Na linguagem pré-socrática, arché, o princípio de todas as coisas – a água, o apeiron, o

ar, o logos, o fogo, o ser, os quatro elementos, as homeomerias, os átomos e o vazio –, o

fundamento último da realidade, substitui os deuses antropomórficos. O princípio é divino

na medida em que é eterno, além de não ter fim, não teve origem, ele é a origem. Como a

verdade intuída de modo místico pelo filósofo remete ao princípio de todas as coisas e o

princípio é imanente à natureza (physis) podemos dizer que nesse misticismo pré-socrático

não há transcendência. É uma religiosidade da imanência.

247
UF, in LF, § 143, p. 46.
248
Ibidem, in LF, § 187, p. 84.
249
Nietzsche sempre salienta o grande orgulho dos antigos mestres e chega, até mesmo, chamar esse
exagerado sentimento de autoconfiança tirania: seriam todos “tiranos do espírito”, já que eram igualmente e
absolutamente convictos de seus princípios, de suas verdades, o que lhes proporcionava uma tendência para
criar novas leis, novos costumes.
250
VM, in LF, § 177, p. 80.
76

2.2.2 Duas verdades distintas: uma mística e singular, a outra racional e moral

Os escritos de juventude de Nietzsche mostram que ele diferencia uma verdade

intuída, presente nos pré-socráticos, de uma verdade racional, característica dos filósofos

otimistas. São duas verdades distintas: a primeira chega ao filósofo por meio da intuição,

surge de uma experiência mística, misteriosa, fora do seu controle. A outra verdade é

construída pelo encadeamento dos raciocínios lógicos. Para Nietzsche, esta crença em uma

verdade alcançada através da razão, por meio de raciocínios “dialéticos”, é algo que só

passou a ser exigido na filosofia depois de Sócrates. A época trágica é marcada pela arte e

pelos Mistérios. Por isso, o Parmênides é visto como uma exceção entre os filósofos. Ele

foi o primeiro a separar o “mundo dos conceitos” do “mundo dos sentidos” e a acreditar

que só o pensamento racional conduz à verdade. Nesse sentido, como veremos, Parmênides

é apresentado como o filósofo mais próximo do socratismo. Sua teoria do ser é fruto da

mais pura abstração, é o momento “não-grego como nenhum outro nos dois séculos da

época trágica”251. Já “Xenófanes é um místico religioso e, com aquela unidade mística,

pertence, com efeito, ao VI século”252. A unidade divina vislumbrada por Xenófanes,

comenta Nietzsche, aconteceu “em um daqueles estados de visão dignos de seu século, tem

em comum com a visão do ser de Parmênides apenas a expressão e a palavra mas não

certamente a origem. Foi antes em um estado de espírito oposto que Parmênides encontrou

as teorias do ser”253.

251
FE, § IX.
252
Ibidem.
253
Ibidem.
77

Embora Parmênides anuncie o filósofo otimista, nele ainda existe um certo grau de

misticismo que o diferencia do filósofo socrático, um “homem teórico”. Até mesmo a sua

verdade surge de um pathos e não de uma “suposta conseqüência lógica”254. Nietzsche

considera que o poder da razão tornou-se dominante somente numa “época tardia”255 não só

na história da filosofia como na história da humanidade. O “pensamento lógico, pouco

empregado pelos Jônios, desenvolve-se muito lentamente”256. Houve uma “predominância

progressiva das forças lógicas”257:

Permitia-se a mentira ao narrador épico porque não existe então nenhum


efeito pernicioso a temer. Portanto, quando a mentira tem valor agradável
é permitida: a beleza e a aceitação da mentira, supondo-se que ela não
prejudique. É assim que o sacerdote imagina os mitos de seus deuses: a
mentira justifica-se por sua grandeza. É extraordinariamente difícil tornar
vivo outra vez o sentimento mítico da mentira livre. Os grandes filósofos
gregos vivem ainda nesta justificativa da mentira. (...) A tendência à
verdade é uma aquisição infinitamente lenta para a humanidade. Nosso
sentimento histórico é algo de totalmente novo no mundo. Poderá ser
possível que venha a oprimir a arte. A enunciação da verdade a todo custo
é socrática258.

Os primeiros filósofos viveram num período em que a razão ainda não possuía um

poder hegemônico e por isso a mentira ainda justificava-se por ser prazerosa. Na época

trágica dos gregos, período em que a intuição predomina sobre a razão, “o filósofo está

cheio do mais elevado pathos da verdade”259. A partir de Sócrates, não é mais o pathos o

que move o filósofo. É um excessivo impulso lógico. O filósofo otimista inaugura um novo

estatuto da verdade. Nessa nova política, a lógica racional elimina todas as outras verdades

não demonstradas racionalmente.

254
Ibidem.
255
CS, in LF, § 193, p. 89.
256
UF, in LF, § 142, p. 46.
257
Ibidem, § 70, p. 24.
258
Ibidem, § 70, p. 24.
259
Ibidem, § 61, p. 20.
78

A verdade defendida pelo otimismo teórico como a única legítima, conforme a

interpretação nietzschiana, é indissociável de uma necessidade moral. Como o homem, “por

necessidade e tédio, ao mesmo tempo, quer viver em sociedade”260, é preciso estabelecer

um código comum a todos. “O homem exige a verdade e a realiza no intercâmbio moral

com os homens; é nisto que se fundamenta toda a vida em comum”261. Isto é, a vida em

sociedade só é possível graças a um acordo compartilhado por todos. Este acordo

estabelece o que é verdade e o que é mentira, o que é legítimo e o que não é, o certo e o

errado. Dessa forma, a noção de verdade está vinculada a princípios morais: “O homem

exige a verdade e a realiza no intercâmbio moral com os homens; é nisto que se fundamenta

toda a vida em comum”262. As verdades socialmente e racionalmente estruturadas tendem,

então, a se impor e a calar tudo o que não segue seus parâmetros. “A verdade surge como

uma necessidade social: por uma metástase em seguida passa a ser aplicada a tudo, mesmo

onde não é necessária”263.

No regime em que impera o otimismo teórico, as verdades devem ter validade

universal; na filosofia arcaica, as verdades são personalizadas, inseparáveis de seus autores,

homens profundamente solitários. Eles “ignoram todas as convenções, porque naquela

altura não havia nenhuma classe de filósofos e de sábios. Todos eles são, numa solidão

extraordinária, os únicos homens que então viviam votados ao conhecimento”264.

É no meio dos filósofos que se devem procurar os cavaleiros mais audazes


entre aqueles que procuram a glória, os que acreditam encontrar seus
brasões inscritos em uma constelação. Sua ação não se volta para um
“público”, para o alvoroço das massas e o aplauso aclamador dos
contemporâneos; pertencem à sua essência os passos solitários da estrada.

260
VM.
261
UF, in LF, § 70, p. 24.
262
Ibidem, § 70, p. 24.
263
Ibidem, § 91, p. 32.
264
FE, § I.
79

Sua vocação é a mais rara. (...) Ele não saberia ficar se não fosse sobre as
asas vastamente abertas de todos os tempos.265

É importante salientar que o “pathos da verdade” não é alvo das críticas de

Nietzsche. Sua crítica se dirige a uma verdade sem pathos, sem sentimento, (supostamente)

exclusivamente racional, resultado de uma “suposta conseqüência lógica”. Para ele, “a

metafísica otimista da lógica, intoxica e falsifica tudo progressivamente. A lógica como

orientadora única conduz à mentira, pois ela não é a única orientadora. O outro sentimento

de verdade provém do amor, prova de força”266. Nessa passagem, Nietzsche diferencia a

verdade produzida pelo método racionalista da verdade que é proveniente do “amor que

está ligado a um desejo de unidade”267. O amor, a religião e a arte “são os três poderes

ilógicos que se reconhecem como tais”268, por isso, são “o que há de mais verdadeiro neste

mundo: o amor, a religião e a arte”.

2.2.3 A compaixão: o sentimento místico de unidade. Empédocles, o mais dionisíaco

Como foi visto, a intuição mística da verdade é um acontecimento extraordinário.

Como o homem religioso, o filósofo arcaico vive uma experiência mágica, mística. Seu

sentimento é, diz Nietzsche, de compaixão. A compaixão é aqui valorizada pelo jovem

professor, pois ela é o “imenso pathos” que faz o filósofo perder suas fronteiras individuais

e se unir com o âmago do mundo. Consideramos que este sentimento de compaixão do

filósofo da época trágica corresponde ao estado dionisíaco de “embriaguez” vivido por seus

265
PV, p.28.
266
UF, in LF, § 72, p. 25.
267
Ibidem, § 72, p. 25.
268
VM, in LF, § 177, p. 82.
80

contemporâneos, o entusiasta dionisíaco e o poeta trágico. Neles pulsa o mesmo

“sentimento de unidade que reconduz (o indivíduo) ao coração da natureza”269.

A compaixão compreendida como embriaguez dionisíaca se diferencia da

“compaixão” cristã. A primeira é o sentimento de êxtase místico que reconduz o homem ao

“coração da natureza” e a segunda é um sentimento por alguém que está sofrendo,

corresponde à “piedade”. Na religião cristã, sentir compaixão é sentir junto com o outro a

dor, é se identificar através do sofrimento e não da exuberância, como no misticismo

dionisíaco. Embora Nietzsche identifique em Pitágoras e Empédocles a compaixão no

sentido de piedade, não é esse o significado de compaixão que caracteriza o filósofo

arcaico. Enquanto a compaixão cristã diz respeito apenas à dimensão humana e está

associada à preceitos morais, o “sentimento místico de unidade” se refere, sobretudo, ao

Uno-originário e está dissociado do âmbito moral. A fusão dionisíaca entre o homem e a

natureza não segue valores de bem e de mal, de certo e errado.

Para Nietzsche, Empédocles é o filósofo em que mais pulsou o sentimento místico

de unidade: “uma simpatia profunda com toda a natureza e uma compaixão transbordante

aliam-se a ele”270. Seu sentimento de compaixão, tão intenso que transbordou, o levou a

formular uma filosofia e uma prática de vida que enaltece o “amor”, a amizade, a phília, a

unidade de todas as coisas. Para ele, o amor é a força fundamental que une todas as coisas e

Afrodite é o “princípio cósmico”. Citando Nietzsche: “Todo o pathos de Empédocles

repousa sobre este ponto que tudo o que vive é um, deuses, homens e animais estão unidos

enquanto seres vivos”271.

269
NT, § 7, p. 55.
270
FE, p. 200.
271
FP, p. 203.
81

Mas, na physis, além do amor, existe o ódio. O amor e o ódio são as duas forças

fundamentais que explicam o devir, a geração e a corrupção, o nascimento e a morte.

Enquanto o amor une e gera prazer, o ódio separa e gera a dor. Por isso, a rigor, a união só

é possível quando a força do amor está presente. O semelhante ama seu semelhante e

rechaça o que lhe é díspar. Por esse motivo, Nietzsche ressalta: “o verdadeiro pensamento

de Empédocles é a unidade de tudo aquilo que se ama”272, pois é o amor que faz a unidade

de tudo que vive. Sentindo uma “nostalgia pelo semelhante” 273, os corpos que se amam

querem se unir. De acordo com Nietzsche, o desejo sexual tem um lugar de honra na

filosofia de Empédocles, na medida em que ele é a intensificação desse desejo de união que

luta contra o impulso de separação: “A vida sexual lhe parece o que há de melhor e de mais

nobre, a mais forte resistência ao instinto da discórdia. É nesta que aparece com a maior

evidência a tendência das partes separadas a se reunirem para engendrar outro ser”274.

Empédocles, diz Nietzsche, “sofre por viver neste mundo de tormento e

contradição; só pode explicar sua presença nele pelo efeito de uma culpa”275. Se no mundo

existe o ódio é porque deve ter ocorrido um crime, uma falta na sua origem. Ele considera

que “é um castigo terrível estar sujeito ao ódio”276. Assim como Anaximandro julga a

passagem do ápeiron (indeterminado, único e eterno) às coisas determinadas como sendo

criminosa, Empédocles também vê a existência do ódio na natureza como resultado de uma

falta moral. Para Empédocles, a existência é fruto de um crime, prova disso é que tudo que

nasce está condenado à morte. Para ele, “a terra é uma caverna sombria, a pradaria da

272
FE.
273
Ibidem.
274
Ibidem.
275
Ibidem.
276
Ibidem.
82

infelicidade, morada do assassínio, do rancor e das outras Keres, das doenças e da

podridão”277.

Nietzsche, assim, descreve o pessimista Empédocles:

vestido de púrpura, cingido de ouro, com sandálias de bronze nos pés e


uma coroa délica na cabeça. Usava os cabelos longos; seu rosto era
imutavelmente sombrio (...) Tentou, evidentemente, converter todos os
gregos à nova maneira de viver e de filosofar dos pitagóricos;
aparentemente, tratava-se apenas de uma reforma dos ritos sacrificiais.
Em Olímpia incumbiu um rapsodo de cantar seus catharmes que
começavam por uma estrofe a seus amigos de Agrigento: “Adeus! Não é
mais como mortal, mas é como imortal que passo entre vós ..., mal chego
às cidades florescentes, sou venerado por todos, homens e mulheres, aos
milhares, me seguem, para aprender o caminho da salvação (...). Mas por
que demorar-me nessas coisas, como se tivessem importância, quando
estou tão acima dos miseráveis mortais!”278

Empédocles é pessimista, assinala Nietzsche, mas de um modo diferente de

Anaximandro, que ficou refugiado em seu abrigo metafísico. Ele não fugiu do mundo. Ele

acreditava que a sua missão era “restaurar o que o neikos (discórdia) deteriorou, de

anunciar o pensamento da unidade do amor no interior do mundo do neikos”. Empédocles

promoveu mudanças, novos ritos de purificação, tentou implementar uma reforma social

que defendia a abolição da propriedade privada. Para ele, “a união dos díspares engendra a

dor, a união do semelhante engendra a alegria”279, então, o que os homens precisam é de

uma “sociedade de amigos”. Dessa forma, “para fundar o reino exclusivo do amor fraternal,

escolheu a vida de profeta errante, depois de ter fracassado em Agrigento” 280. Segundo

Nietzsche, em Empédocles, “o que mais surpreende é seu extraordinário pessimismo, mas

um pessimismo ativo, não quietista”281.

277
Ibidem.
278
Ibidem.
279
Ibidem.
280
Ibidem.
281
Ibidem,.
83

No aspecto místico, diz Nietzsche, Empédocles está bem próximo do “misticismo

pitagórico e órfico”282, que são expressões de um novo misticismo, ligado aos Mistérios,

introduzido na Grécia na época trágica: “A migração através de todos os elementos

corresponde, na ordem da natureza, à metempsicose de Pitágoras; o próprio Empédocles se

lembra de ter sido pássaro, arbusto, peixe, rapaz e moça. Ele usa em tais casos, a expressão

mítica dos pitagóricos”283. Empédocles é, para Nietzsche, o filósofo mais próximo da

sabedoria dionisíaca transmitida pela tragédia: “o conhecimento básico da unidade de tudo

o que existe, a consideração da individuação como causa primeira do mal” 284. De acordo

com Nietzsche285, Empédocles acredita que a missão de sua existência é de restaurar o que a

discórdia deteriorou, é de anunciar o pensamento da unidade do amor no interior do mundo

do ódio. Sua filosofia pretende o mesmo que a arte trágica: promover a fusão do indivíduo

com o “Uno-vivente”286. Na tragédia, “sob o grito de júbilo de Dioniso, é rompido o feitiço

da individuação e fica franqueado o caminho para as Mães do Ser, para o cerne mais íntimo

das coisas”287; “o efeito imediato da tragédia dionisíaca é que o Estado e a sociedade,

sobretudo o abismo entre um homem e outro, dão lugar a um superpotente sentimento de

unidade que reconduz ao coração da natureza”288.

Empédocles proclamou o Amor, Eros, como o princípio do cosmo. Sua filosofia,

sua vida, exalta o sentimento místico de unidade tal como faz a arte trágica. Por isso,

Nietzsche identifica Empédocles ao poeta trágico e o chama de “filósofo trágico”: “Ele é o

filósofo trágico, o contemporâneo de Ésquilo”289. Ao se jogar no vulcão Etna, Empédocles

282
Ibidem.
283
Ibidem.
284
NT, p. 70.
285
Ibidem, § 7, p. 55.
286
Ibidem, § 17, p. 103.
287
Ibidem, § 16, p. 97.
288
Ibidem, § 17, p. 103.
289
FE.
84

é movido pelo impulso dionisíaco que leva ao Uno-originário. Sua morte é a passagem para

o “substrato dionisíaco do mundo”290. Semelhante ao entusiasta dionisíaco, Empédocles foi

em direção às “Mães do Ser”.

Note-se que, como já foi dito, o conceito “trágico” vinculado a Empédocles está

ligado ao saber da arte trágica que é diferente do “trágico” usado em relação ao filósofo

trágico. Neste caso, o “conhecimento trágico” não aponta para o “coração da natureza”.

Aponta, sim, para os limites da razão humana.

2.3 Filosofia, imaginação e arte

2.3.1 A importância da imaginação na gênese da linguagem

Existem dois modos de pensar: por imagens e por conceitos, através da imaginação

e da razão. Imaginar é ver semelhanças entre as imagens, como fazem os poetas. Raciocinar

é ver relações de causalidade entre os conceitos, como fazem os cientistas. Não há uma

distinção radical entre imaginar e raciocinar, visto que todo pensamento nasce das imagens,

das “primeiras metáforas”. Como já mencionado, a gênese da linguagem não ocorre

logicamente291. A linguagem “tem em si um elemento ilógico, a metáfora (...), ela é,

portanto, um efeito de imaginação”292. Diz Nietzsche: “ao conceito corresponde primeiro a

imagem, as imagens são pensamentos originais”293.

290
NT, § 25, p. 143.
291
VM.
292
Ibidem.
293
UF, in LF, § 54, p. 16
85

A imaginação consiste em ver rapidamente as semelhanças. A seguir a


reflexão avalia conceito por conceito e verifica. A semelhança deve ser
substituída pela causalidade294.
ao pensar já se deve ter o que se procura, graças à imaginação – a reflexão
só pode julgar a seguir295.

Quer dizer, para Nietzsche, pensar é, antes de tudo, imaginar, a razão “vem a

seguir”, se vier. A imaginação (Phantasia) é definida, por ele, como um “poder estranho e

ilógico”296, uma “dupla força artística” que cria e associa imagens: “existe uma dupla força

artística: a que gera as imagens e a que as escolhe”297. Vale dizer que em alemão existem

algumas palavras que significam “imaginação” (Einbildung, Einbildungskraft,

Vorstellung), mas o termo freqüentemente usado por Nietzsche é Phantasia que é o mesmo

usado pelos antigos gregos. De modo geral, significa faculdade de produzir imagens298.

Imaginar é tornar visível, é fazer aparecer, é estabelecer contornos, sendo que essa

“produção imaginativa” tende a escolher novas relações e, assim, multiplicar as imagens,

criando ininterruptamente novas configurações.

Pensar é um discernir. Há muito mais seqüências de imagens no cérebro


que as que são utilizadas para pensar: o intelecto escolhe rapidamente as
imagens semelhantes, a imagem escolhida produz de novo uma profusão
de imagens: mas depressa o intelecto escolhe de novo uma imagem entre
estas e assim ininterruptamente. O pensamento consciente nada mais é
que uma escolha entre as representações. Há um longo caminho até à
abstração299
No pensamento por imagens também o darwinismo tem razão: a imagem
mais forte destrói as imagens de pouca importância300.

294
Ibidem, § 60, p. 19.
295
Ibidem, § 64, p. 21
296
FE, § III.
297
UF, in LF, § 63, p. 20.
298
Conforme Édouard des Places, em Platão, Phantasie tem o sentido de: “a) ‘imaginação, representação’, b)
‘aparência, ilusão’ (dos sentidos)”. PLACES, Platon. Ouvres coomplètes Tome XV, Lexique. Paris, Les belles
Tettres, 1989, p. 531.
299
Ibidem, § 63, p. 20.
300
Ibidem, § 67, p. 23.
86

Nietzsche destaca o papel fundamental da imaginação no processo que forma a

linguagem, pois ela é a força artística que cria os “pensamentos originais”. É a matriz a

partir da qual se desenvolve todo pensamento, inclusive o pensamento dedutivo, silogístico,

matemático, que pretende ser exato. Para Nietzsche, as palavras mais simples, mãe, por

exemplo, como as mais complexas teorias, Bing-bang, são igualmente metáforas criadas

pela imaginação. Isto é, todo pensamento, por mais lógico e racional que seja, é, mesmo

sem querer, resultado de um processo artístico: “há algo de artista nesta produção de formas

por meio das quais alguma coisa entra na memória”301; “o pensamento contém grandezas

artísticas”302. Kátia Muricy assinala o fato de que, aos olhos de Nietzsche, a relação entre o

homem e a linguagem é, primordialmente, uma “relação estética” e não de conhecimento.

A relação primordial do homem com a linguagem é a de sujeição da


criação artística (subjekt künstlerisch schaffendes) e não a de sujeito da
relação cognitiva com o objeto. A relação primordial deste sujeito com a
linguagem é, portanto, uma relação estética (ein ästhetische Verhalten).
(...) Este é o processo de formação da linguagem: deslocamentos de uma
esfera para outra não segundo uma gênese lógica, mas ao arbítrio ficcional
das criações metafóricas. Não há uma relação de causalidade entre o
sujeito e o objeto, mas uma relação estética inteiramente lingüística que é,
na definição de Nietzsche, “uma transposição insinuante, uma tradução
balbuciante em uma língua completamente estrangeira”303.

Para Nietzsche, as imagens e os conceitos são igualmente metáforas que não falam

da essência das coisas. As imagens são “metáforas intuitivas” que falam do que é individual

e sem igual e os conceitos são metáforas que falam do que é abstrato e universal. Embora

não exista uma linguagem mais verdadeira do que a outra, Nietzsche valoriza mais a

linguagem poética do que o discurso científico, valoriza mais o pensamento por imagens do

que o pensamento por conceitos. Por quê? Por que Nietzsche desqualifica a produção

301
Ibidem, § 64, p. 21
302
Ibidem, § 55, p. 17
303
MURICY, Kátia. “A arte do estilo”, in Assim falou Nietzsche III. Rio de Janeiro, Sete Letras, 2001.p. 86–
87.
87

conceitual em nome da produção poética? Por que (freqüentemente) ele denigre o conceito

e o define como uma metáfora gasta, descolorida, fria, “sepulcro das intuições”? Em outras

palavras, por que ele valoriza mais a imaginação do que a razão?

Porque a imaginação dá asas ao pensamento enquanto que a razão dá peso ao

pensamento. Imaginar é deixar fluir o pensamento, é ver rapidamente as semelhanças e os

contrastes entre as coisas; raciocinar é pensar de acordo com princípios lógicos, de modo

que partindo de determinadas premissas chega-se, necessariamente, a determinada

conclusão. As semelhanças são transformadas em causalidade. A diferença entre imaginar e

raciocinar corresponde à diferença entre a arte e a ciência: diferenciam-se pelo grau de

liberdade do pensamento. Enquanto a arte dá espaço para criar arranjos inéditos,

estimulando a criatividade, o pensamento racional-científico exige explicação, coerência, e

demonstração. O reino da imaginação é o das infinitas possibilidades, o da razão é o das

poucas (supostas) certezas.

Se a linguagem é ficção, transposição, deslocamento, então não há como

fundamentar um conhecimento verdadeiro. A razão não pode ser o fundamento da verdade

científica já que ela não se fundamenta em si própria. Seu fundamento está na dimensão das

imagens, que, por sua vez, são metáforas dos estímulos nervosos. Como todo discurso é

uma “tradução balbuciante”, por conseqüência, não existe distinção entre um discurso

verdadeiro e um falso, assim como não existe diferença conhecimento (epistéme) e opinião

(dóxa). A natureza da linguagem não é, portanto, dizer a verdade das coisas. Segundo o

jovem filólogo-filósofo, o que Aristóteles definiu como retórica é a característica

fundamental da linguagem. Diz ele em seu Curso sobre a retórica:

a linguagem ela mesma é o resultado de artes puramente retóricas. A força


(Kraft) que Aristóteles chama de retórica, que é a força de deslindar e
fazer valer, para cada coisa, o que é eficaz e impressiona, essa força é ao
88

mesmo tempo a essência da linguagem: esta reporta-se tão pouco à


essência das coisas, quanto a retórica ao verdadeiro304.

Nietzsche valoriza a imaginação como sendo o “impulso fundamental do homem

que não se pode deixar de levar em conta nem por um instante, porque com isso o homem

mesmo não seria levado em conta”305. Quer dizer, o homem não tem por natureza, como

dizia Aristóteles, um “honesto e puro impulso à verdade”. Sua tendência natural é em

direção à aparência, à ilusão. O homem é um ser poético, cuja natureza é criar imagens,

palavras, sentidos, mundos.

Portanto, a interpretação nietzschiana sobre a formação da linguagem aponta para o

seu caráter retórico, ilógico, arbitrário, antropológico e, principalmente, poético. É preciso

deixar claro que Nietzsche não vê nenhum problema no caráter criativo da linguagem e do

conhecimento. Ao contrário, o considera admirável. O homem, espantosamente, cria de si

mesmo - como a aranha tira de si mesma a sua teia – metáforas e metonímias que,

associadas, formam redes de pensamento, teias de significados. Ele cria “uma construção

como que de fios de aranha, tão tênue a ponto de ser carregada pelas ondas, tão firmes a

ponto de não ser despedaçada pelo sopro de cada vento”306. Nietzsche reconhece a

importância das grandiosas construções do homem, pois nestes edifícios conceituais ele

pode se abrigar e se proteger. No entanto, Nietzsche faz questão de salientar que estas

construções teóricas que estruturam e organizam a vida humana, são criações poéticas, são

teias que surgem do próprio homem, são criaturas imaginárias.

304
NIETZSCHE, Curso sobre a retórica, in Da retórica. Trad. de Tito Cardoso e Cunha, Coleção Passagens.
Lisboa, editora Veja, 1995.
305
VM.
306
Ibidem.
89

2.3.2 A filosofia “é uma forma de poesia” e o filósofo, um poeta conceitual

Devemos perguntar: o que é arte na filosofia?


E a obra de arte? O que resta depois que seu sistema,
enquanto ciência é aniquilado?
Ora, deve ser justamente este resíduo
que domina o instinto de saber e, também, o
nele existe de artístico307.

É próprio do filósofo pensar por conceitos, diz Nietzsche: “O filósofo esforçar-se

para estabelecer, em lugar do pensamento em imagens, um pensamento por conceitos”308.

No entanto, como acabamos de ver, o pensamento por conceitos se faz a partir do

pensamento por imagens. O que implica dizer que a filosofia é “uma forma de poesia”309. E,

se alguém perguntar: que forma de poesia é a filosofia? Podemos responder: é poesia

conceitual.

É importante notar que Nietzsche concebe o discurso filosófico como um produto

final de um processo complexo que é intuitivo, imaginativo e, por fim, racional. A fim de

apontar para a importância da imaginação na construção da linguagem filosófica, ele

pergunta: “o que é arte na filosofia? E sua resposta é: a filosofia “é arte em sua

produção”310. Quer dizer, a filosofia, em sua produção, é criação e associação de metáforas.

A partir desta produção metafórica surgem os conceitos e os sistemas teóricos. Todos os

filósofos usam a imaginação para pensar, mas o que os diferencia é o valor que atribuem ao

pensamento por imagens. O filósofo arcaico a valoriza, o filósofo socrático, a desqualifica.

307
UF, in LF, § 48, p. 40.
308
Ibidem, § 116, p. 38.
309
Ibidem, § 53, p. 15
310
Ibidem, § 53, p. 15.
90

Se a filosofia é uma forma de poesia e a poesia fala por metáforas, então a filosofia

não tem valor como conhecimento verdadeiro, como ciência311. O sistema filosófico é uma

tradução infiel, o resultado de uma série de transposições ilógicas. Este saber da

inadequação das palavras pode criar um conflito no filósofo: por que comunicar algo que

por natureza é incomunicável? Por que produzir a escrita filosófica se o conceito é uma

“transposição metafórica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra

linguagem”?

Conflito do filósofo: Seu instinto universal constrange-o a um


pensamento medíocre, o imenso pathos da verdade, produzido pela
amplitude do seu ponto de vista, constrange-o à comunicação e esta, por
sua vez, à lógica312.

Surge, assim, a questão: para que serve a filosofia se não é um caminho à verdade?

Qual o seu valor? A resposta do filósofo arcaico (e de Nietzsche) é clara: a filosofia serve

como obra de arte. Segundo Nietzsche, nos pré-socráticos “o filosofar está ainda presente

como obra de arte, mesmo que não se possa demonstrá-lo como construção filosófica (...) o

que decide não é o puro instinto de conhecimento mas o instinto estético”313.

Nietzsche entrega aos pré-socráticos, e não a Schopenhauer ou a Kant, o mérito de

ensinar que o discurso filosófico vale como arte e não como conhecimento. No período

arcaico da filosofia, não se pensava sem usar imagens. Ainda não existia o pensamento

puramente abstrato como ainda não existia o homem puramente teórico. Por isso, até

mesmo Parmênides, que separou o mundo dos conceitos do mundo dos sentidos, escreveu

em versos e usou imagens para se expressar. Nietzsche incorpora este ensinamento – de que

311
Diz Nietzsche: “ser absolutamente verdadeiro – prazer esplêndido para o homem em uma natureza
mentirosa! Mas isto é apenas muito relativamente possível! É trágico!”. Ibidem, § 73, p. 25-26.
312
Ibidem, § 72, p. 25
313
Ibidem, § 61, p. 19-20.
91

o valor da filosofia é estético – e o utiliza para avaliar os filósofos. Conforme suas análises,

a filosofia pouco demonstrada de Heráclito, que o fez ser chamado, erroneamente, de “o

obscuro”, possui um valor estético superior a todas as proposições lógicas de Aristóteles.

Ele nos fala: “Heráclito não envelhecerá nunca. É a poesia além dos limites da experiência,

prolongamento do instinto mítico; e, em essência, também em imagens. A exposição

matemática não faz parte da essência da filosofia”314. Quer dizer, Nietzsche adota a mesma

avaliação que aprendeu com os primeiros filósofos: por mais lógicos e matemáticos que

sejam os sistemas filosóficos, eles valem como “expressão estética”315:

São a beleza e a magnitude de uma construção do mundo (aliás, a


filosofia) que decidem agora o seu valor dizendo de outra maneira, ela é
considerada uma obra de arte (...) A rigorosa formulação matemática
(como em Spinoza), que despertava em Goethe uma impressão bem
tranquilizadora não tem mais outro valor a não ser o de meio de expressão
estética316.

Em oposição ao filósofo socrático, o filósofo arcaico é movido pelas “asas da

imaginação”317. São elas que o fazem seu pensamento voar rapidamente e “saltar de uma

possibilidade a outra, todas sendo tomadas provisoriamente como certezas”318.

O pensamento filosófico (...) avança saltando rapidamente sobre suportes


leves (...). Sobrevoa com infinita rapidez os grandes espaços! Trata-se
apenas de uma grande velocidade? Não. É o bater de asas da imaginação,
quer dizer, o salto de uma possibilidade a outra, todas sendo tomadas
provisoriamente como certezas. Aqui e ali, de uma possibilidade a uma
certeza e de novo a uma possibilidade319.

Embora se diferencia do poeta, que fala através de personagens individuais como

Prometeu, Édipo, Antígona, o filósofo arcaico (de Nietzsche) é, também, uma espécie de
314
Ibidem, § 53, p. 16
315
Ibidem, § 49, p. 14
316
Ibidem, 49, p. 14
317
Ibidem, § 60, p. 19. A mesma passagem se encontra também em FE, § III.
318
Ibidem.
319
Ibidem
92

poeta, já que sua filosofia é uma forma de poesia, uma vez que sua relação com a

linguagem é estética. Suas argumentações lógicas, sua dialética e sua reflexão científica,

são apresentadas como metáforas poéticas, como poesia conceitual. Seus conceitos

filosóficos equivalem aos versos do poeta:

Assim como para o poeta dramático, a palavra e o verso não passam de


um balbuciar em língua estrangeira, para nela dizer o que viveu e o que
viu e o que também só pode traduzir diretamente através de gestos e da
música, assim também a expressão de toda a intuição filosófica profunda
pela dialética e pela reflexão científica é, por um lado, o único meio de
comunicar o que foi intuído pelo pensador, mas é, ao mesmo tempo, um
meio miserável porque no fundo não passa de uma transposição
metafórica e absolutamente inadequada para outra esfera e para outra
linguagem320.

Em O nascimento da tragédia, Nietzsche aponta para as semelhanças entre o

filósofo e o poeta: possuem a mesma vocação para criar e associar metáforas. Os dois são

pessoas “suscetíveis ao artístico”, possuem um imenso prazer estético em interpretar as

imagens e, a partir delas, a vida. Neste aspecto, o filósofo está em continuidade com os

antigos sábios (os poetas, os profetas, os videntes), uma vez que eles também se dedicavam

a interpretar signos321. Platão, diz Nietzsche, também vê a proximidade entre o filósofo, o

poeta e o adivinho. No Fedro, como já dito, Platão define a poesia como um tipo de mania,

de inspiração divina, e a elogia ressaltando que o estado inconsciente do poeta é condição

necessária para a boa qualidade da poesia:

320
FE, § III.
321
O homem de propensão filosófica tem a premonição de que sob essa realidade - na qual vivemos e somos -
se encontra uma outra, diversa, mas que também é uma aparência; Schopenhauer considera característica da
aptidão filosófica o dom de, em certas ocasiões, definir os homens e todas coisas como puros fantasmas ou
imagens oníricas. Assim como o filósofo procede com a realidade da existência (Dasein), do mesmo modo se
comporta a pessoa suscetível ao artístico em face da realidade do sonho; observa-o precisa e prazerosamente,
pois a partir dessas imagens interpreta a vida, e com base nessas ocorrências exercita-se para a vida. NT, § 1,
p. 28
93

quem se apresenta às portas da poesia sem estar atacado do delírio das


Musas, convencido de que apenas com o auxílio da técnica chegará a ser
poeta de valor, revela-se, só por isso, de natureza espúria, vindo a
eclipsar-se sua poesia, a do indivíduo equilibrado pela do poeta tomado do
delírio322.

Mas, apesar dos elogios de Platão aos poetas, Nietzsche o considera irônico. Platão,

na realidade, desvaloriza o poeta e a poesia em nome do discurso racional, científico, que é

a filosofia. Utilizando também a ironia, Nietzsche nos fala:

Também o divino Platão fala, quase sempre com ironia, da faculdade


criadora do poeta, na medida em que ela não é discernimento [Einschit]
consciente e a equipara à aptidão do adivinho e do intérprete de sonhos;
posto que o poeta não é capaz de poetar enquanto não ficar inconsciente e
nenhuma inteligência residir mais nele323.

Vale dizer que, conforme o método de ascese de Platão, a imaginação (Phantasia)

faz parte do processo para se alcançar o verdadeiro conhecimento (epistéme). Porém, é um

estado preliminar, é opinião (dóxa) que pode ser verdadeira ou falsa. Porque “se refere ao

devir, que é ambíguo, também a opinião acaba tendo um caráter ambíguo (permanece no

meio entre a ciência e a ignorância), isto é, permanece como algo teoreticamente não

positivo. (...) somente ‘ligando-a com o raciocínio causal’ é possível eliminar sua

instabilidade”324.

Para Platão, o discurso poético, guiado pela imaginação, não é capaz de demonstrar

logicamente, através de raciocínios dedutivos, suas hipóteses. Além de não ser

conhecimento, pode ser prejudicial em termos morais, pois intensifica as emoções. Por isso,

na cidade ideal, a poesia precisa ser controlada, subordinada, pelo rei filósofo. Para Platão,

a imaginação é própria dos poetas e não dos filósofos. Estes precisam seguir a razão, pois
322
PLATÃO, Fedro. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém, UFPA, 1980, 245 a.
323
NT, § 12, p. 83
324
REALE, G. História da filosofia antiga. Vol. V. Léxico, Índices. São Paulo, Loyola, 1995, p. 78.
94

ela é o caminho que leva à verdade enquanto que a imaginação é pode desviar deste bom

caminho. Para Nietzsche, o discurso logicamente encadeado não leva à verdade e a

imaginação não é um desvio, é um modo de pensar por imagens altamente positivo. Em

oposição a Platão, Nietzsche não acredita que o discurso racional, dedutivo, seja capaz de

demostrar a verdade. Nietzsche não vê nenhum problema com a imaginação. Ao contrário,

a reconhece como uma potência valiosa e mais fundamental que a razão.

Enquanto Platão tem restrições à poesia e desconfia do poder da imaginação,

Nietzsche tem restrições à ciência e desconfia do poder da razão. É evidente que Nietzsche

vê Platão em continuidade com o socratismo do mesmo modo que se vê em continuidade

com os pré-socráticos. A admiração por Nietzsche ao filósofo arcaico é devido a sua forma

de se relacionar com a linguagem. Ele se assume como um criador de metáforas. Sua

filosofia é apresentada como resultado de um processo artístico. Apesar de as palavras

serem um “meio miserável” de expressar a sua verdade, elas são reconhecidas por seu valor

estético. Nele, a imaginação – sempre aliada à intuição - predomina sobre a razão. Eis aqui

a segunda hipótese: para responder quem é o filósofo arcaico é preciso dizer que ele é uma

mistura de vários elementos, mas seu talento artístico predomina sobre seu lado místico e

científico. Seu pensamento filosófico não está a serviço da ciência, está a serviço da arte.

As forças da arte o levam a escrever. Por isso, sua filosofia não pretende explicar, calcular,

demonstrar verdades, pretende apresentar configurações conceituais que servem como

objetos de contemplação estética. “O homem de ciência calcula os números aferentes às leis

da natureza, o artista os contempla: ali, legalidade, aqui, beleza”325.

Enquanto o valor de uma obra de arte está em ser bela, o valor de um discurso

científico está em seu “grau de certeza”326. No mundo artístico o que se procura não é a
325
UF, in LF, § 155, p. 52.
326
Ibidem, § 40, p. 9.
95

verdade, mas a beleza. O que interessa não é dizer, conhecer, o que alguma coisa é, mas

criar alguma coisa. Se Nietzsche eleva a arte e rebaixa a ciência é porque, diferente desta, a

arte se apresenta como pura criação estética, ela é sincera ao mostrar a aparência como

aparência, sem nenhuma nostalgia da verdade absoluta. Para ele, a arte é mais digna do que

a ciência porque mostra a ilusão como ilusão, enquanto a ciência mostra a ilusão como

verdade. Diz ele: “A arte recebe agora uma dignidade totalmente nova. As ciências, em

compensação, decaíram um grau. Veracidade da arte: agora é a única a ser sincera327”.

2.3.3 Os dois viajantes: um “homem intuitivo” e um “homem racional”

Ao escolher e discriminar assim o insólito, assombroso,


difícil e divino, a filosofia marca o limite que a separa da
ciência328.

A filosofia em seu período arcaico era indissociável de uma cosmologia, de uma

investigação da natureza. Mas Nietzsche ressalta: o pensamento filosófico vai além do

pensamento científico. “Se (Tales) tivesse dito: ‘Da água provém a terra’, teríamos apenas

uma hipótese científica, falsa, mas dificilmente refutável. Mas ele foi além do científico” 329.

A filosofia ultrapassa os limites da ciência porque vê o universo como um todo330. A

experiência vital do filósofo - o sentimento de que “tudo é Um” – o leva a refletir sobre o

327
Ibidem, § 73, p. 26.
328
FE, § III.
329
Ibidem.
330
“As parcas e desordenadas observações da natureza empírica que Tales havia feito sobre a presença e as
transformações da água ou, mais exatamente, do úmido, seriam o que menos permitiria ou mesmo
aconselharia tão monstruosa generalização”, Ibidem.
96

invisível, o “insólito, assombroso, difícil, divino e inútil”. Neste ponto, Nietzsche concorda

com Aristóteles. Inclusive, o cita:

Aristóteles diz com razão: “Aquilo que Tales e Anaxágoras sabem será
chamado de insólito, assombroso, difícil, divino, mas inútil, porque eles
não se preocupavam minimamente com os bens terrenos”. Ao escolher e
discriminar assim o insólito, assombroso, difícil e divino, a filosofia
marca o limite que a separa da ciência, do mesmo modo que, ao preferir o
inútil, marca o limite que a separa da prudência331.

A filosofia se diferencia da ciência porque só se interessa pelo que é valioso,

importante. Quando diz “isto é grande”, ela “eleva o homem acima da avidez cega,

desenfreada, de seu impulso ao conhecimento. Pelo conceito de grandeza, ela refreia esse

impulso”332. Quer dizer, para Nietzsche, a “grandeza” é sinal de talento artístico. Talento

que está presente na época trágica dos gregos, por isso, nesse período, os impulsos estéticos

refrearam os impulsos racionais.

O filósofo arcaico possui um gosto refinado que o leva em direção às coisas dignas,

grandiosas, e o distancia das pequenas coisas. Ele olha o mundo como um artista, “o

filósofo e o artista falam dos segredos da atividade da natureza”333. Diferente deste, o olhar

do filósofo otimista, igual ao do cientista, não separa o grande do pequeno, o relevante do

irrelevante. Tudo lhe interessa. Por isso, precipita-se sobre todas as coisas com uma avidez

insaciável.

A ciência, sem essa seleção, sem esse refinamento de gosto, precipita-se


sobre tudo que é possível saber, na cega avidez de querer conhecer a todo
preço; enquanto o pensar filosófico está sempre no rastro das coisas
dignas de serem sabidas, dos conhecimentos importantes e grandes334.

331
Ibidem.
332
Ibidem.
333
UF, in LF, § 24, p. 3.
334
FE, § III.
97

Na medida em que a filosofia ultrapassa “as ciências isoladas, pressente a solução

última das coisas e vence, com esse pressentimento, o acanhamento dos graus inferiores do

conhecimento”335, Nietzsche atribui a ela uma importante missão: “A filosofia deve manter

firme a corrente espiritual através dos séculos: pela eterna fertilidade de tudo o que é

grande. Para a ciência não existe grande nem pequeno – mas para a filosofia, sim!” 336. Ou

seja, a filosofia deve controlar a ciência e este domínio se realiza, sobretudo, através das

“forças da arte”.

Enquanto o impulso artístico aliado às intuições inspira o filósofo da época trágica,

os impulsos excessivamente racionais conduzem os filósofos otimistas. Em A filosofia na

época trágica dos gregos, Nietzsche nos oferece uma imagem que ilustra bem a diferença

entre os dois tipos de filósofos. Ele nos descreve dois viajantes diante de uma forte torrente

de água. O primeiro é o filósofo – embora não esteja explícito, trata-se do filósofo arcaico -,

o segundo é o cientista, ou o filósofo socrático. Graças a seu talento criativo e versátil, o

filósofo salta rapidamente sobre apoios frágeis, sobre as pedras que logo depois serão

arrastas pelas águas agitadas. O cientista não salta, para sair do lugar precisa ter a certeza de

que seus passos “pesados e prudentes” encontrarão um chão estável e sólido para pisar.

Enquanto o pensamento filosófico voa, o “pensamento calculador”, científico, anda com a

máxima cautela. Eis a imagem:

Julga-se ver dois viajantes à beira de uma torrente agitada que arrasta
pedras consigo: um deles salta com leveza por cima dela, servindo-se das
pedras para se lançar à frente, mesmo que estas se afundem bruscamente
atrás dele. O outro se encontra desamparado a cada momento, deve
primeiro construir fundamentos que possam sustentar seu passo pesado e
prudente; às vezes, não consegue, e então nenhum deus o ajuda a transpor
a torrente. O que leva, pois, o pensamento filosófico tão rapidamente ao
seu fim? Distingue-se ele do pensamento calculador mensurante só por

335
Ibidem.
336
Ibidem.
98

percorrer mais rapidamente grandes espaços? Não porque lhe dá asas um


poder estranho e ilógico, a imaginação. Impelida por esta força, salta de
possibilidade em possibilidade, que se aceitam como certezas provisórias:
aqui e ali, chega mesmo a apanhar certezas em vôo337.

Essa descrição dos dois viajantes à beira de uma torrente ilustra bem a diferença

entre o filósofo arcaico e o filósofo otimista. Enquanto aquele, impulsionado pela

imaginação, salta de possibilidade em possibilidade, este, seguindo critérios metodológicos,

se empenha na construção de sólidos fundamentos capazes de sustentar seu passo pesado. A

diferença é clara. O primeiro é tão leve que voa, sente-se confiante e forte, por isto se

arrisca sem pensar no futuro, é inconseqüente. Não precisa de um chão firme, ele é firme.

Vive no vasto reino das possibilidades e das incertezas. O outro é pesado, sente-se

desamparado e frágil, não se arrisca, pois pensa no futuro, é responsável. Precisa de

segurança já que ele é inseguro. Vive à procura de certezas definitivas.

Vê-se em Verdade e mentira uma descrição de dois tipos de homens: o “homem

intuitivo” e o “homem racional”. Embora Nietzsche não faça a correlação destes homens

com os dois viajantes ela existe. Se na descrição dos viajantes a imaginação do filósofo se

contrapõe à razão científica, aqui, o contraste é entre a intuição e a razão. Neste caso, a

intuição é o que move o artista. Consideramos que a intuição e a imaginação estão sempre

associadas, entrelaçadas. São impulsos que levam o homem em direção ao vasto reino das

possibilidades. Por isso, o homem intuitivo e imaginativo procura escapar do “mundo

regular e rígido”, foge da “praça forte” e busca refúgio em um outro leito do rio, na arte e

no mito. Aí, ele pode exercer livremente o ofício da criação, pois seu intelecto “está livre e

dispensado de seu serviço de escravo”. Quer dizer, está livre das exigências da razão. O

homem intuitivo é o artista, isto é, não precisa, como o cientista, demonstrar racionalmente

337
Ibidem.
99

suas obras. A arte não precisa provar o que produz. Ele brinca com a lógica. Usa os

raciocínios dedutivos e silogísticos, não para construir fundamentos sólidos, mas como um

andaime para construir novas possibilidades. “O homem intuitivo, (...) desfruta, a partir de

suas intuições, de um esplendor que se irradia continuamente”338.

A arte tem o poder de encantar, de enfeitiçar, transformar a realidade cotidiana em

um acontecimento fabuloso, mágico, maravilhoso, em que tudo é possível, como no sonho.

O artista vive num estado de “sublime felicidade e uma olímpica ausência de nuvens”339.

Ele traz a fantasia, satisfaz de tal modo suas necessidades que estas nem parecem

necessárias. Ele vive como o viajante que brinca de saltar sobre pedras escorregadias: “com

prazer criador ele entrecruza as metáforas e desloca as pedras-limites das abstrações”.

Constantemente ele embaralha as rubricas e compartimentos dos


conceitos, propondo novas transposições, metáforas, metonímeas,
constantemente ele mostra o desejo de dar ao mundo de que dispõe o
homem acordado uma forma tão acromaticamente irregular,
inconseqüentemente incoerente, estimulante e eternamente nova como a
do mundo do sonho340.

Em oposição ao artista, que é movido por suas intuições, o homem racional é guiado

por conceitos e esquemas abstratos. Ele é um homem “razoável”, isto é, ele controla seus

impulsos não-racionais. Procura nunca se abalar “ao ser arrebatado por impressões súbitas,

por intuições; ele generaliza todas estas impressões em conceitos descoloridos e mais frios

a fim de submeter-lhes a condução de sua vida e de sua ação”. Seus impulsos lógicos o

levam para o mundo rígido e regular da ciência, pois a ciência é para ele o que a arte é para

o homem intuitivo. O homem racional é um homem sério, responsável, que age de acordo

com as leis e códigos morais, sociais, jurídicos. Ele possui uma “tendência moral ‘a

338
VM.
339
Ibidem.
340
Ibidem.
100

verdade’”341. Não aceita a mentira porque ela é prejudicial para a manutenção da ordem

pública. Ele desqualifica a arte porque ela não tem compromisso com a verdade. A fácil e

livre proliferação de imagens poéticas pode desviar do caminho árduo que leva à verdade.

Outra característica do homem racional é a preocupação com o futuro que lhe parece

ameaçador. É necessário se prevenir do desconhecido. Mas, apesar de muito planejamento,

muito trabalho, ele não alcança a satisfação desejada. A sua carência é tão evidente quanto

é o entusiasmo do artista.

O contraste entre os dois viajantes, como o que existe entre o homem intuitivo e o

homem racional, é semelhante ao que existe entre o filósofo arcaico e o filósofo socrático.

Embora o filósofo arcaico não seja idêntico ao artista, pois tem seu lado científico e seu

lado místico, ele é, sobretudo, artista já que a sua filosofia é conduzida por suas intuições e

sua imaginação. Nele, a razão “vem a seguir”. Ele é livre no seu ofício de pensador. Ele não

pretende demonstrar logicamente seu discurso filosófico. Seu pensamento é livre para criar

novas possibilidades. Sua filosofia está a serviço da arte e a arte está a serviço da vida. Para

o filósofo arcaico (para Nietzsche): “O valor da filosofia (...) não corresponde à esfera do

conhecimento, mas à esfera da vida, a vontade de existência usa a filosofia tendo por fim

uma forma superior de existência”342.

Os dois tipos de filósofos representam dois modos de exercer o pensamento

filosófico: o primeiro, levado pelas “asas da imaginação”, sem medo das alturas e se

apoiando sobre o provisório; e o segundo, segue procurando solidez, segurança e a certeza.

Mas, nos mostra Nietzsche, no fundo, estes diferentes companheiros de viagem querem a

mesma coisa: se firmar por um minuto na existência: “ambos desejam dominar a vida; este

sabendo enfrentar as necessidades mais importantes pela previdência, prudência e


341
Ibidem.
342
UF, in LF, § 48, p. 14.
101

regularidade, aquele, enquanto personagem ‘demasiado alegre’, não vendo as necessidades

e só tomando como real a vida disfarçada em aparência e beleza”343.

2.3.4 Imaginação: uma “dupla força artística” a favor da vida

Um sábio genial é conduzido por um pressentimento certo? Sim, ele vê


com exatidão as possibilidades sem ter os apoios suficientes: e sua
genialidade se mostra pelo fato de que considera tal coisa possível344

A imagem do filósofo arcaico é a de um filósofo artista. Mas, o que significa “arte”,

neste momento, para Nietzsche? Corresponde à “arte trágica” que é composta pelo apolíneo

e o dionisíaco? É o caminho à dimensão profunda, dionisíaca, da realidade? A arte é uma

“atividade metafísica”? A resposta é: não. Nos escritos de 1872 a 1875, o sentido de arte

não é mais o da “arte trágica”. Em desacordo com a sua própria tese apresentada em O

nascimento da tragédia, Nietzsche passa a pensar a arte como “ilusão” e não mais como

verdade. Diferente da tragédia que conduzia o homem ao Uno-originário, que revelava o

conhecimento trágico do mundo e promovia o consolo metafísico, agora, a arte não leva

mais às profundidades dionisíacas. Permanece na superfície apolínea.

343
VM.
344
UF, in LF, § 68, 23.
102

Agora, quando Nietzsche fala “arte” está se referindo às artes plásticas e à poesia,

modelos da arte apolínea cuja característica é a contemplação de imagens visuais. O “artista

plástico diante de uma queda d’água”, diz ele, vê “nas formas que saltam ao seu encontro,

um jogo artístico e prefigurado da água, com corpos de homens e de animais, máscaras,

plantas, falésias, ninfas, grifos e, em geral, com todos os protótipos possíveis” 345. Quer

dizer, agora, arte tem um sentido semelhante ao que antes era denominada arte apolínea já

que se realiza na dimensão da ilusão, da ficção, da aparência, do sonho, da individuação, da

multiplicidade. No entanto, é preciso notar que Nietzsche não pensa mais a aparência em

oposição à verdade dionisíaca. O que existe é o mundo das metáforas e não há como dele

sair e nem para onde ir. O universo humano é o mundo das imagens e a arte mostra esta

verdade, a verdade da ilusão. Agora, a arte não leva mais, como arte trágica, ao coração do

mundo. Por isto, Nietzsche não apresenta mais a arte como “atividade metafísica”, também

não diferencia mais a arte apolínea da dionisíaca, fala simplesmente “arte”, uma atividade

alegre, leve e livre.

A arte mostra a metáfora como metáfora, mostra a ilusão como ilusão, ela declara a

sua mentira. Nesse sentido, ela diz a verdade, a verdade de ser mentirosa. Conforme

Nietzsche, a “alegria de mentir é estética. (...) O prazer estético é o maior, uma vez que, sob

a forma de mentira, diz a verdade de uma maneira bastante geral” 346. Quer dizer,

apresentando ilusões, a arte nos faz lembrar que nossas verdades cotidianas são tão ilusórias

como as verdades poéticas. “A arte detém a alegria de nos despertar das crenças por meio

das superfícies: mas não somos enganados! Pois então a arte cessaria. (...) A arte acolhe,

pois a aparência enquanto aparência, então não quer enganar, é verdadeira”347.

345
FE, § III.
346
VM, in LF, § 183, p. 83.
347
UF, in LF, § 184, p. 83
103

A arte se apresenta como uma brincadeira de falsear a realidade. Não tem nenhuma

outra finalidade senão criar a ilusão. Para que servem as ilusões criadas pela arte? Servem à

vida. A arte está a serviço da vida porque ela cria ilusões e a vida precisa das ilusões, do

fantástico, para lhe dar sentido. A vida precisa da beleza, da “alegria da criação artística a

desafiar todo e qualquer infortúnio”348. Não existiria homem nem civilização se não

existissem as ilusões. Nietzsche chega a dizer que, no futuro, ainda se reconhecerá que as

forças artísticas são necessárias também nos animais e até mesmo no mundo orgânico349.

Toda forma de civilização começa pelo fato de que uma certa quantidade
de coisas está velada. O progresso do homem depende deste véu. (...) Se
somos melhores e mais nobres, devemos isto às ilusões que isolam os
fatos. A ciência da natureza, no entanto, opõe a isto a verdade natural
absoluta: certamente a fisiologia superior compreenderá as forças
artísticas em nosso devir e não somente no devir do homem, mas também
no do animal; dirá que o artístico já se inicia no orgânico350.

Roberto Machado, em seu livro Nietzsche e a verdade, aponta para a mudança na

compreensão do jovem Nietzsche sobre a definição de arte:

Os textos imediatamente posteriores (a’O nascimento da tragédia), como,


por exemplo, o conjunto de fragmentos que deveriam constituir O livro
do filósofo, retomam a mesma problemática da relação entre arte e
conhecimento. Mas se a crítica à metafísica persiste nesses escritos, como
em toda a obra de Nietzsche, ela não mais se faz em nome de uma
metafísica de artista, isto é, de uma dimensão metafísica da arte ou de uma
experiência artística da essência do mundo – o elemento da arte é a
ilusão351.

Continuando sua interpretação, ele mostra que, adotando uma perspectiva

“extramoral”, Nietzsche passa a situar “o antagonismo entre arte e ciência no próprio

campo da ilusão. No fundo, dois tipos de ilusão: a ilusão socrática, ilusão metafísica, que

considera a verdade superior à aparência; e a ilusão artística, consciente do valor da ilusão,

348
NT, § 9, p. 66.
349
UF, in LF, § 50, p. 14.
350
Ibidem, § 52, p. 15.
351
MACHADO, Nietzsche e a verdade. São Paulo, Paz e Terra, 1999, p. 39.
104

que sabe que tudo é ilusão”352. Desse modo, apesar da mudança em relação à definição do

que é arte, apesar das diferenças conceituais, Nietzsche manteve-se crítico à racionalidade

científica e próximo da arte. Quer dizer, para Nietzsche, a arte perdeu seu caráter

“metafísico”, mas não perdeu sua preciosidade. Continua sendo a forma por excelência de

afirmar a existência. Por isso, mesmo sem defender uma “metafísica de artista”, Nietzsche

continua a fazer apologia da arte pois ela continua tendo o poder de encantar, enfeitiçar e

criar sentido para a vida. A arte faz o pensamento voar. O artista multiplica as

possibilidades e espalha as fagulhas do mundo fantástico no mundo real.

O reconhecimento da importância da arte para a vida é algo que Nietzsche diz ter

aprendido com os antigos gregos, que eram “homens intuitivos”. Eles o ensinaram que a

arte é capaz de tornar a vida bela, exuberante, intensa, extraordinária. Os gregos mostraram

que a arte é capaz de transformar a vida em um espetáculo de prazer:

Onde alguma vez o homem intuitivo, digamos como na Grécia antiga, conduz
suas armas mais poderosamente e mais vitoriosamente do que seu adversário
pode formar-se, em caso favorável, uma civilização e fundar-se o domínio da arte
sobre a vida: aquele disfarce, aquela recusa da indigência, aquele esplendor das
intuições metafóricas e em geral aquela imediatez da ilusão acompanham todas as
manifestações de tal vida. Nem a casa, nem o andar, nem a indumentária, nem o
cântaro de barro denunciam que a necessidade os inventou353.

Vale notar que estes antigos gregos – que reconhecem o valor da arte para a vida –

são tanto os da época homérica quanto os da época trágica. Nesses dois períodos (pré-

socráticos), os impulsos estéticos são predominantes, seja como arte apolínea ou arte

trágica. Para Nietzsche, tanto a tragédia e a filosofia pré-socrática quanto a poesia épica

revelam que os antigos gregos eram afirmativos em relação à vida. De modos diferentes,

352
Ibidem, p. 45.
353
VM.
105

disseram sim à arte porque disseram sim à existência. A grande diferença é que os gregos

homéricos escondiam as coisas terríveis sob o véu apolíneo e os trágicos não escondem o

terrível, o transformam em um espetáculo artístico. Os gregos da época trágica, como diz

Nietzsche em o último parágrafo de O nascimento da tragédia, jogam com o espinho do

desprazer, confiando em suas poderosas artes mágicas, “justificam com tal jogo a própria

existência do ‘pior dos mundos’”. Como será abordado, de acordo com a interpretação

nietzschiana, Heráclito é o filósofo que foi capaz de transformar a terrível visão do devir

criada por Anaximandro em um espetáculo sublime justamente porque viu a vida como um

jogo inocente de criança.

Os poetas e filósofos da época trágica não eram ingênuos como os homens

homéricos. Eles têm consciência de que a vida humana é efêmera e insignificante, que traz

a morte e o sofrimento, mas eles sabem lidar com esta consciência, pois não permitem que

ela seja uma consciência pesada. Através das forças da arte, eles transformam o maior dos

pesos em algo leve e, desse modo, tornam a vida digna de ser vivida.
106

CAPÍTULO III

VISÕES DE MUNDO

3.1 A visão dualista e pessimista de Anaximandro

Segundo Nietzsche, a visão do que é o devir apresentada por Anaximandro de

Mileto marca profundamente o primeiro período da filosofia arcaica grega que vai até

Parmênides. Anaximandro, “o grande sucessor”354 de Tales, que “nos fala muito mais

claramente”355, escreveu a primeira sentença filosófica que marcou todos os outros

filósofos. Para Nietzsche: “a influência deste primeiro escrito deve ter sido considerável,

pois daí foi dado o impulso em direção à doutrina dos Eleatas, assim como em direção à

doutrina de Heráclito, de Empédocles etc.”356. É visível a admiração de Nietzsche por ele,

pelo filósofo que escreve como escreverá “o filósofo típico”:

(...) em inscrições sobre pedra, estilo grandioso, frase por frase, cada uma
testemunha de uma nova iluminação e expressão do demorar-se em
contemplações sublimes. O pensamento e sua forma são marcos de milha
na senda que conduz àquela sabedoria altíssima. Nessa concisão lapidar,
diz Anaximandro uma vez: “De onde as coisas têm seu nascimento, ali

354
FE, § IV.
355
Ibidem.
356
FP, p. 118.
107

também devem ir ao fundo, segundo a necessidade; pois têm de pagar


penitência e de ser julgadas pelas suas injustiças, conforme a ordem do
tempo”. Enunciado enigmático de um verdadeiro pessimista, inscrição
oracular sobre a pedra limiar da filosofia, como te interpretaremos”.357

Nietzsche compreende o enigmático enunciado de Anaximandro a partir de sua

relação com Schopenhauer e cita uma passagem do Parerga:

O verdadeiro critério para o julgamento de cada homem é ser ele um ser


que absolutamente não deveria existir, mas se penitencia de sua existência
pelo sofrimento multiforme e pela morte: o que se pode esperar de um tal
ser? Não somos todos pecadores condenados à morte? Expiamos o nosso
nascimento, primeiro, pela vida e, em seguida, pela morte358.

Quer dizer, Nietzsche vê Anaximandro como predecessor de Schopenhauer, como o

primeiro pensador que apresenta em linguagem filosófica uma visão pessimista do mundo e

da existência humana. A definição de Schopenhauer sobre o homem - “um ser que

absolutamente não deveria existir”, mas, já que existe, sofre porque paga pelo erro de

existir - corresponde à definição de todos os indivíduos, não só o homem, em

Anaximandro. Para este, o mundo inteiro - visto como multiplicidade de seres individuais -

não deveria existir, mas, uma vez que existe, paga por sua “injustiça”.

Conforme Nietzsche, “o pensamento fundamental de Anaximandro é: tudo o que

devém perece e não pode ser o princípio. Todo ser que possui qualidades determinadas é

submetido ao devir. É por isso que o ser verdadeiro não deve possuir qualidades

determinadas, senão ele pereceria”359. O ápeiron, o indeterminado, não morre justamente

porque não possui nenhuma determinação. Criticando outras interpretações que traduzem

ápeiron como ilimitado ou infinito, Nietzsche está seguro de que o ápeiron deve ser

357
FE, § IV.
358
FE, § IV.
359
FP, p. 121
108

compreendido e traduzido como indeterminado, pois “se o ser originário fosse determinado

ele seria engendrado: mas, por esta razão, seria condenado à morte”360. Diz ele:

A imortalidade e eternidade do ser originário não está em sua infinitude e


inexauribilidade - como comumente admitem os comentadores de
Anaximandro -, mas em ser destituído de qualidades determinadas, que
levam a sucumbir: e é, por isso, também, que ele traz o nome de
“indeterminado”361.

Segundo Nietzsche, a partir da contemplação do devir, Anaximandro deduziu a

existência de outra realidade mais fundamental, a do ápeiron e, assim, formulou pela

primeira vez uma visão dualista do mundo: de um lado, o ápeiron, eterno, uno e

indeterminado; do outro, o devir, temporal, múltiplo, repleto de coisas determinadas.

Nietzsche compara essa dualidade de mundos de Anaximandro com as duas relevantes

noções formuladas por Kant de coisa-em-si e fenômeno. Diz ele: a “matriz de todas as

coisas, por certo só pode ser designada negativamente pelo homem, como algo a que não

pode ser dado nenhum predicado do mundo do vir-a-ser que aí está, e poderia, por isso, ser

tomada como equivalente à ‘coisa-em-si’ kantiana”362. Ou seja, o mundo do ser, do ápeiron,

como a coisa-em-si, não pode ser conhecido a não ser de modo negativo.

Como existem dois mundos separados, surge a questão: que tipo de relação existe

entre eles? Uma relação de “injustiça”363, responde o “primeiro filósofo pessimista”. O

mundo do devir, da multiplicidade, da individualidade, do efêmero, é resultado de

injustiças. Anaximandro foi o primeiro a apresentar uma resposta pessimista para o

problema do devir, pois “o devir é uma injustiça que deve ser expiada pela

decomposição”364. Para ele, o processo que gera o devir é um processo criminoso, é algo
360
Ibidem.
361
FE, § IV. Fisicamente, Anaximandro discorda de Tales, já que a água, por ser uma substância determinada,
não pode ser a arché.
362
FE, § IV.
363
“Tudo o que devém e declina expia uma falta deve expiar as conseqüências de sua injustiça”, FP, p. 118.
364
FP, p. 150.
109

que não deveria acontecer, mas como acontece, merece punição. Ou seja, porque há

injustiça, há expiação. Porque existe crime, existe castigo. Anaximandro encontra assim

uma explicação para o sofrimento e a morte de tudo o que existe no devir: o mundo da

individuação, da determinação, está expiando pelo crime de ter se diferenciado do “ser

originário”, sendo que esta expiação nunca termina, já que o devir é uma realidade

eternamente amaldiçoada e condenada a pagar por suas injustiças. Nada, ninguém, pode

salvar os seres que estão no mundo do devir: “sempre, de novo, voltará a edificar-se um tal

mundo de inconstância: quem seria capaz de livrar-nos da maldição do vir-a-ser?”365.

Se o mundo do devir é fruto da injustiça, a existência humana também é. Se a vida

humana se realiza no âmbito do devir, ela traz consigo a mesma injustiça que existe no

ininterrupto vir-a-ser. Por este motivo, a vida é um mal, um crime que primeiro é expiado

pelos sofrimentos e depois pela morte. Anaximandro vê o homem e todos os outros

indivíduos como seres que expiam pela injustiça de existir: “a pluralidade das coisas

nascidas é uma soma de injustiças a ser expiadas”366. De acordo com essa lógica, viver é

pagar pelo crime de existir. Desse modo, a existência individual, determinada, não se

justifica. É próprio desse mundo da pluralidade uma contradição, pois ele “consome e nega

a si mesmo. Sua existência se torna para ele um fenômeno moral, que não se legitima, mas

se penitencia, perpetuamente, pelo sucumbir”367.

Conforme Nietzsche, se Anaximandro primeiro percebeu o mundo do devir e depois

entendeu que este não poderia ser o princípio de tudo, então a noção de ser não é a

primeira, a mais fundamental, tal como parece. A noção de ser surgiu depois, por uma

dedução abstrata da realidade primeira, que é o devir. Isto é, para Nietzsche, o mundo do

365
FE, § IV.
366
Ibidem.
367
Ibidem.
110

ser é uma criação para escapar do devir. Anaximandro, diz ele, “saltou no indeterminado”

e, através desse salto, “escapou de uma vez por todas do reino do vir-a-ser e de suas

qualidades”368. Ele viu o mundo do devir a partir de seu “refúgio metafísico”.

3.2 A visão estética de mundo de Heráclito, o filósofo mais próximo de Apolo

Conforme a interpretação nietzschiana, logo após Anaximandro veio Heráclito de

Éfeso e Parmênides de Eléia. Os dois discordaram do “dualismo brutal” 369 de Anaximandro

(ápeiron/devir). Nesse ponto, nos fala Nietzsche, Heráclito e Parmênides se assemelham,

pois para ambos existe um único mundo, uma única realidade. Só que a identificação acaba

aqui, já que, para Heráclito, o único mundo que existe é o do devir e, para Parmênides, é o

do ser. Quer dizer, Heráclito e Parmênides partiram igualmente de Anaximandro e se

opuseram a ele, mas foram para direções opostas:

Heráclito nega radicalmente o mundo do ser e afirma somente o mundo


do devir. Parmênides faz o inverso para sair do problema de
Anaximandro. Todos os dois procuraram acabar com o dualismo. Mas de
maneiras opostas, é por isso que Parmênides combate Heráclito com o
maior vigor 370.
Heráclito só vê o Um, mas no sentido oposto ao de Parmênides371.

Contemplando o devir, diz Nietzsche, Heráclito teve “duas prodigiosas intuições”372.

A primeira: o devir é a única realidade que existe, “não existe nada que se possa dizer ‘isto

368
FE, § IX.
369
FP, p. 129
370
Ibidem.
371
Ibidem, p. 150. Enquanto que, para Heráclito, a multiplicidade é o modo de ser do mundo, por isso, o Um
não é outra coisa senão o múltiplo, para Parmênides, a multiplicidade não é real, é apenas uma ilusão que os
sentidos apresentam, a única verdadeira realidade é a do ser.
372
“Dois prodigiosos modos de contemplação cativaram seu olhar: o movimento eterno, quer dizer, a negação
da permanência no mundo, e a regularidade interna e unitária do movimento. Essas são duas prodigiosas
intuições”; Ibidem, p. 146
111

é’”373, ou seja, não há ser fora do devir, a permanência se apresenta como uma perfeita

ilusão. A segunda intuição, que não deve ser considerada menos importante que a primeira:

o devir se realiza de acordo com uma “regularidade interna e unitária”374, o devir se realiza

de acordo com a justiça (díke), lógos, medida, lei eterna e divina que tudo governa375.

Nietzsche o diferencia dos outros pré-socráticos pela sua “fé na unidade e regularidade do

processo da natureza”376; “Heráclito, o único a ter reconhecido a regularidade homogênea

do mundo, por essa razão, era fechado a todos os homens”377.

Notamos que, ao privilegiar o termo díke, justiça, ao invés de lógos, Nietzsche

aponta para o fato de que “Heráclito, com a díke, deu uma resposta ao problema da adikia

posto por Anaximandro”378. Assim, ele torna evidente a oposição entre os dois filósofos:

enquanto Anaximandro viu injustiça no devir, Heráclito viu a justiça:

No meio da noite mística em que estava envolto o problema do vir-a-ser,


de Anaximandro, veio Heráclito de Éfeso e iluminou-a com um
relâmpago divino: “Vejo o vir-a-ser”, exclama, “e ninguém contemplou
tão atentamente esse eterno quebrar de ondas e esse o ritmo das coisas. E
o que vi? Conformidade a leis, certezas infalíveis, trilhas sempre iguais do

373
Desta primeira intuição, diz Nietzsche, ele tirou duas “negações entre si solidárias (...), negou a dualidade
de mundos totalmente diferentes, que Anaximandro se vira obrigado a admitir (...). Após este primeiro passo,
(...) negou o ser em geral. (...) Heráclito exclamou mais alto do que Anaximandro: ‘só vejo o devir. Não vos
deixeis enganar! É a vossa vista curta e não à essência das coisas que se deve o fato de julgardes encontrar
terra firme no mar do devir e da evanescência. Usais os nomes das coisas como se tivessem uma duração fixa;
mas, até o próprio rio, no qual entrais pela segunda vez, já não é o mesmo que era da primeira vez”, FE, § V.
e FP, p. 150. Esta idéia está vinculada ao célebre fragmento 91DK: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo
rio”.
374
FP, p. 146.
375
Conforme diz o fragmento 102DK: “Para o Deus, tudo é belo e bom e justo. Os homens, porém, tomam
umas coisas por injustas, outras por justas”. (Fr.92. DK). Utilizamos a tradução feita por Emmanuel Carneiro
Leão, Os pensadores originários. Petrópolis, RJ, Vozes, 1991. Nietzsche salienta que o devir e a lei seguida
por ele, no fundo é uma coisa só: “O que devém está em eterna transformação, e a lei dessa eterna
transformação – o lógos nas coisas - é precisamente o Um, o fogo. Pois o Um que está em devir é a sua
própria lei. Seu devir e o como do seu devir constituem sua obra. o Um que está em devir é para ele mesmo a
sua própria lei.”, FP, p. 150.
376
Ibidem.
377
Ibidem. Em suas Lições, a respeito da noção de justiça, Nietzsche cita os seguintes fragmentos: “Não
houvesse isto (a injustiça) ignorariam o próprio nome de justiça”: “O Sol não ultrapassará os seus limites; se
isto acontecer, as Eríneas, auxiliares da Justiça, saberão descobri-lo”. Podemos acrescentar o fragmento: “Para
deus, tudo é belo e bom e justo, os homens, contudo, julgam umas coisas injustas e outras justas”, (Fr.102
DK).
378
Ibidem, p. 154.
112

justo. (...) Vi o mundo inteiro como o espetáculo de uma justiça reinante,


e forças naturais, demoniacamente onipresentes, subordinadas a seu
serviço. Não vi a punição do que veio a ser, mas justificação do vir-a-
ser”379

Das duas intuições de Heráclito - (só existe o devir e este se realiza de acordo com a

díke) - surgiram os dois conceitos apresentados, por Nietzsche, como fundamentais: “ao

lado do devir, o segundo conceito fundamental é a díke”380. Mas, continua Nietzsche,

Heráclito teve “um pressentimento ainda mais alto”381. Viu que “o próprio conflito do seres

múltiplo é a pura justiça’”382. Isto é: a guerra é o modo de se realizar da justiça, “o processo

da díke é o pólemos”383. Aqui está “o terceiro conceito fundamental”384: pólemos-díke,

conflito-justiça. Este é o conceito mais trabalhado por Nietzsche, já que engloba os dois

primeiros, a noção de justiça e a noção de devir.

O que diz esse terceiro conceito é: todo o devir nasce do conflito entre os contrários;

as qualidades que nos aparecem como duradouras só exprimem a superioridade

momentânea de um dos lutadores, e esse conflito se realiza de acordo com a justiça que é

comum a todos. O fragmento (80DK) é, aqui, em sua Lições, citado: “É necessário saber

que a guerra é universal, e que a díke é conflito, e que tudo se produz conforme o

conflito”385. Ou seja, sem a guerra, a eterna luta entre o dia e a noite, o inverno e o verão, a

vida e a morte – pólemos - não haveria justiça, nem devir e, portanto, não existiria mundo.

Para Heráclito, existe uma lei divina que regula os conflitos, impedindo que um dos

contrários seja o único vitorioso. Idéia que remete a vários fragmentos, por exemplo, o Fr.

8DK: “O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela


379
FE, § V.
380
FP, p. 151
381
FE, § VI.
382
Ibidem.
383
FP, p. 151
384
Ibidem.
385
Ibidem. Também é o que diz o fragmento 53: “De todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é
senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros, livres” (Fr.53DK).
113

harmonia”. Diz Nietzsche, “tem aqui uma harmonia, mas uma harmonia que se funda sobre

uma discordância”386. Como dizia Plutarco, citado por Nietzsche, a díke em Heráclito

corresponde à “harmonia discordante do mundo”387.

O conceito de pólemos-díke, que contém a idéia de que o devir se realiza sempre

conforme a justiça que é indissociável da luta entre os contrários, implica a idéia de que os

contrários estão sempre juntos - juntos e em guerra. De modo que a presença de um deles

não exclui a presença do outro; ao contrário, um aponta para o outro. Nietzsche comenta

que: “na realidade, em cada instante a luz e a sombra, o doce e o amargo, estão juntos e

ligados um ao outro como dois lutadores, dos quais, ora a um, ora a outro cabe a

supremacia”388. Assim, para Heráclito, os contrários são iguais na medida em que são

igualmente expressões da justiça. Como confirma, por exemplo389, o Fr.60DK: “Caminho:

para cima, para baixo, um e o mesmo”; o Fr.49aDK: “No mesmo rio entramos e não

entramos, somos e não somos”. A idéia de que os contrários são o mesmo, observa

Nietzsche, irritou Aristóteles, que acusou Heráclito de “crime supremo diante do tribunal da

razão, de ter pecado contra o princípio de contradição”390.

De acordo com o jovem professor de filologia, a idéia de que não há justiça sem

conflito, pólemos-díke, não é um conceito original de Heráclito, sendo proveniente do

386
Ibidem, p. 162
387
Ibidem, p. 151
388
FE, § V. Sobre esta questão específica, em suas Lições, Nietzsche cita Simplício, que cita Teofrasto: “O
surgimento da vida e da morte é somente a vantagem tornada visível que uma das forças ganhou sobre seu
próprio contrário e que, no mesmo instante, perde em benefício do outro. Agitadas, as duas forças são sempre
simultaneamente, de modo que seu conflito eterno não permite nem a vitória nem a opressão por muito
tempo”, FP, p. 152.
389
Outros exemplos, fragmento 61DK: “O mar, água, a mais pura e a mais impura. Para os peixes, potável e
vivificante, para os homens, não potável e mortal”; Fr.62DK: “Imortais mortais, Mortais imortais, vivendo a
morte dos outros, morrendo a vida dos outros”; o Fr.88DK: “O mesmo é vivo e morto, vivendo-morrendo a
vigília e o sono, tanto novo como velho: pois estes se alterando são aqueles e aqueles se modificando são
estes”.
390
FE, § V.
114

âmago da civilização grega homérica que considerava a disputa, o agon, a guerra, a

rivalidade, inclusive, a inveja, como algo altamente positivo, já que tira o homem da inércia

e o impulsiona para a ação, para a ação da disputa. Para Nietzsche, “a disputa, mais ainda, a

regularidade imanente que decide o desenlace do combate, distingue os gregos dos outros

povos” 391.

Nietzsche é tão encantado com esse valor genuíno da cultura grega que escreve um

ensaio sobre o tema, A disputa de Homero, que seria o prefácio de um livro. Aí ele mostra

que a valorização da disputa, da rivalidade, estava em destaque no mundo homérico (que

enaltece os combates – agon – entre os heróis), a começar pelo primeiro poema didático

dos gregos, Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, que começava distinguindo duas deusas da

rivalidade, uma que deveria ser louvada tanto quanto a outra deveria ser censurada. Citando

a tradução de Nietzsche:

“Há sobre a Terra duas deusas Eris”. Este é um dos mais notáveis
pensamentos helênicos, digno de ser gravado no portal de entrada da ética
helênica, assim como aquilo que vem em seguida. “Uma Eris deve ser tão
louvada, quanto a outra deve ser censurada, pois diferem totalmente no
ânimo estas duas deusas. Pois uma delas conduz à guerra má e ao combate
cruel! Nenhum mortal preza sofrê-la, pelo contrário, sob o jugo da
necessidade prestam-se as honras ao fardo pesado desta Eris, segundo os
desígnios dos imortais. Ela nasceu como mais velha, da noite negra; a
outra, porém, foi posta por Zeus, o regente altivo, nas raízes da Terra e
entre os homens, como bem melhor. Ela conduz até mesmo o homem sem
capacidades para o trabalho; e um que carece de posses observa o outro,
que é rico, e então se apressa a semear e plantar do mesmo modo que este,
e a ordenar bem a casa; o vizinho rivaliza com o vizinho que se esforça
para seu bem estar. Boa é esta Éris para os homens. Também o oleiro
guarda rancor do oleiro, e o carpinteiro do carpinteiro, o mendigo inveja o
mendigo e o cantor inveja o cantor”392.

Para Nietzsche, não há dúvida de que Heráclito herdou dos antigos esse valor. Diz

ele, “nos ginásios, nas disputas musicais, na vida política, Heráclito aprendeu a conhecer o

391
FP, p. 151. E também em FE, § V.
392
NIETZSCHE, “A disputa de Homero” in Cinco prefácios para cinco livros não escritos. Trad. Pedro
Süssekind. Rio de Janeiro, 7 Letras, 1996, p. 77-78
115

caráter próprio desse pólemos”393. Inclusive, Nietzsche afirma que o conceito diké-pólemos

de Heráclito é a Boa Éris de Hesíodo transposta para a linguagem filosófica. Heráclito

considera que

tudo acontece de acordo com esta luta, e é esta luta que manifesta a justiça
eterna. É uma idéia admirável, oriunda da mais pura fonte do gênio
helênico que considera a luta como ação contínua de uma justiça
homogênea, severa, vinculada a leis eternas. Só um grego seria capaz de
fazer desta representação o fundamento de uma cosmodiceia; é a Boa Éris
de Hesíodo transformada em princípio cósmico, é a idéia de competição
dos gregos singulares (...) para o mais universal, de maneira que, agora, a
engrenagem do cosmos nela gira394.

Vemos assim que o fato de Heráclito não ter sido o autor da idéia de pólemos-díke,

para Nietzsche “um dos conceitos mais grandiosos” da filosofia, não diminui em nada o seu

mérito. Sempre que Nietzsche se refere ao conceito de pólemos-díke o faz em tom de

elogio, em proposições nas quais o termo “sublime” aparece com freqüência395. Ele valoriza

Heráclito por ter tido o “pressentimento sublime” de ver que a Boa Éris de Hesíodo é o

princípio que reina no universo:

É um dos conceitos mais grandiosos: o conflito como ação ininterrupta de


uma díke única, conforme as leis, racional, conceito criado da mais
profunda alma grega. (...) A idéia de pólemos-díke é a primeira idéia
especificamente helênica introduzida na filosofia (...) só um grego estaria
apto a encontrar uma idéia tão sublime para uma Cosmodicéia396.

O quarto conceito destacado por Nietzsche é o fogo397, o elemento físico primordial

do sistema de Heráclito. Conforme diz o fragmento 30, o mundo é fogo sempre vivo que se

393
FP, p. 152
394
FE, § V.
395
FP, 152 e 158, FE, § V e § VIII.
396
FP, p. 151. E também em FE, § V.
397
FP, p. 154.
116

acende e se apaga conforme a medida398. A múltipla realidade se mostra como

metamorfoses do fogo, como diz o Fr.90DK: “Pelo fogo tudo se troca e por tudo, o fogo;

como pelo ouro, as mercadorias e pelas mercadorias, o ouro”. O fogo é o elemento mais

puro que se transforma em mar, depois em terra, depois volta ser mar e depois volta a ser

fogo. Importante aqui é salientar a idéia de que do fogo, “sempre vivo”, surgem e

desaparecem os mundos. O acender e o apagar da chama nunca terminam. Infinitos são os

ciclos, infinitos são os mundos. Nietzsche salienta a idéia de que existe sempre um impulso

que leva à formação de novos mundos, um impulso que faz surgir do fogo todas as

múltiplas formas399.

Interligando os quatro conceitos selecionados por Nietzsche - devir, díke, pólemos-

díke e fogo – é possível dizer que o mundo, para o Heráclito de Nietzsche, é: puro devir,

fogo sempre vivo, que se realiza conforme a justiça (díke), que se apresenta na luta

(pólemos) entre os contrários.

Nietzsche ensina a interpretar Heráclito não apenas através de conceitos, mas por

meio de uma imagem (que aparece em todos os seus ensaios sobre Heráclito) designada

como a grande “metáfora cósmica” que sintetiza o pensamento do filósofo dito obscuro.

Que imagem é esta? A de uma criança jogando. Jogando o quê? O jogo dos contrários, do

pólemos-díke, o jogo de criar e destruir. O jogo da criança simboliza o jogo do devir, que se

faz conforme uma justa e severa medida. Além de ser o jogo dos contrários, expressão da

díke, o que é relevante nessa imagem é a inocência da criança que é a mesma tanto na

criação quanto na destruição. Tal imagem do jogo da criança, segundo Nietzsche, mostra

com clareza que os dois movimentos do devir, surgir e desaparecer, nascer e morrer, se

398
Fr.30.DK:“O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses o fez e nenhum dos homens o fez mas
sempre foi, é será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando”.
399
FE, § VI.
117

realizam da mesma forma. A inocência do devir, em sua grande “brincadeira eterna de

destruir e formar mundos”, é a mesma inocência que leva a criança a construir e destruir

castelos de areia à beira mar.

Concordamos com Eugen Fink quando afirma: “Nietzsche coloca o fragmento 52

(Diels) no centro de sua interpretação de Heráclito”400. Este fragmento diz: “O tempo é uma

criança que brinca, movendo as pedras do jogo para lá e para cá, governo de criança”401.

Nas palavras de Nietzsche, esse fragmento se transforma em:

assim como joga a criança e o artista, joga o fogo eternamente vivo,


constrói e destrói, em inocência – e esse jogo joga o Aion consigo mesmo.
Transformando-se em água e terra, faz, como uma criança, montes de
areia à borda do mar; faz e desmantela; de tempo em tempo começa o
jogo de novo402.

Além do Fr.52DK, a imagem da criança é conhecida por Nietzsche através de uma

das anedotas sobre Heráclito, contada por Diógenes Laércio e reapresentada por Heidegger

da seguinte forma: “Dirigiu-se, porém, ao santuário de Ártemis para lá jogar dados com as

crianças; voltando-se aos efésios que se puseram de pé ao seu redor, exclamou: ‘Seus

infames, o que estão olhando aqui tão espantados? Não é melhor fazer o que estou fazendo

do que cuidar da pólis junto com vocês?”403.

Mencionando essa anedota, Nietzsche nos fala:

Entre homens, Heráclito era inacreditável como homem; e quando ele foi
visto dando atenção ao jogo de crianças barulhentas, pensava ali algo que
nenhum mortal havia pensado nas mesmas circunstâncias – o jogo de
Zeus, dessa grande criança do mundo, e a brincadeira eterna de destruir e
formar mundos404.

400
FINK, E. A filosofia de Nietzsche. Lisboa, Editorial Presença, 1988.
401
Na tradução de Emmanuel Carneiro Leão esse fragmento é: “O tempo (aion) é uma criança, criando,
jogando o jogo de pedras; vigência da criança”.
402
FE, § VII.
403
Texto citado por Heidegger em seu livro Heráclito. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1998, p. 22
404
PV, p. 30
118

Se o mundo é um jogo inocente de criança é porque não há injustiça no devir nem

crime, hybris, na existência, como pensava Anaximandro. Mais uma vez, Nietzsche

apresenta Heráclito em contraste com seu predecessor. Contrariando o filósofo pessimista,

para o qual “o devir é uma injustiça e deve ser expiada pela decomposição”405, para

Heráclito, “a decomposição não é, de jeito nenhum, uma punição”406. “Heráclito descobriu

que maravilhosa ordenação, regularidade e certeza manifestam-se em todo vir-a-ser; daí

concluía ele, que o vir-a-ser não poderia ser injusto nem criminoso”.407 O que significa

dizer que todo aspecto negativo que existe no devir - “o caminho para baixo”, a

degeneração, o envelhecimento, o sofrimento e a morte - é “testemunho da díke”, do lógos,

e não da hybris, Nietzsche ressalta que, em Heráclito, “não é a hybris, mas o despertar de

um impulso lúdico que impele novamente em direção à ordem universal”408:

Esta palavra perigosa, a hybris, é de fato a pedra de toque de todo o


discípulo de Heráclito; é aqui que ele pode demonstrar se compreendeu ou
não o mestre. Será que este mundo está cheio de culpa, de injustiça, de
contradições e de sofrimento? Sim, grita Heráclito, mas só para o homem
limitado,409

O caminho de cada coisa, de cada indivíduo, já está escrito, e não pela


hybris. Contrariando o que disse Anaximandro, o Um deve ter todos os
predicados, todas as qualidades, porque tudo testemunha a diké. Heráclito
remete o mundo da diferença em sua inteireza ao Um, no sentido em que
o Um se manifesta em todo lugar. Ao contrário do que disse
Anaximandro, ele (o princípio) deve ter todos os predicados, todas as
qualidades, porque tudo é testemunho da Díke. De modo que o devir e o
declínio são propriedades fundamentais do princípio.410

Para Nietzsche, portanto, em oposição a Anaximandro que, refugiado em seu

“abrigo metafísico”, condenou o mundo da multiplicidade, Heráclito viu que não há


405
FP, p. 150
406
Ibidem, p. 151
407
FE, § IX.
408
FP, p. 162. “No fundo, ele é contrário a um pessimista. Por outro lado, ele não tem nada de otimista, pois
ele não nega o sofrimento”.
409
FE, § VII.
410
FP, p. 151. “A díke se manifesta nessa regularidade. Mas, se o devir e o declínio são efeitos de uma díke,
então um tal dualismo entre um mundo do ápeiron e o mundo das qualidades não existe. As qualidades são
instrumentos da diké”, Ibidem, p. 151.
119

problema algum nesse mundo da diversidade, que é, aliás, o único mundo existente.

Entretanto, Nietzsche faz questão de dizer que, se por um lado, Heráclito é contrário à visão

pessimista de mundo, “por outro lado, ele não tem nada de otimista, pois ele não nega o

sofrimento”411. Isto é, diferentemente do ingênuo homem homérico, Heráclito viu, como

Anaximandro, o aspecto terrível do devir que mostra “a inconsistência total de todo o

real”412. Mas, essa “idéia terrível e perturbadora”, cujo efeito é semelhante ao “sentimento

de quem, num tremor de terra, perde a confiança que tem na terra firme”, graças a uma

“força assombrosa”, foi transformada por ele em um efeito oposto: “impressão sublime e no

assombro bem-aventurado”413.

Nietzsche aprendeu com Heráclito a pensar o mundo como um “belo e inocente

jogo de criança”. Mas ele ampliou a imagem recebida criando novas configurações. Para

Nietzsche, a criança de Heráclito também é fogo, é Zeus, “a grande criança universal” 414.

Diz ele: “O fogo eternamente vivo, o aion (tempo), joga, constrói e destrói”415; “o mundo é

o jogo de Zeus, ou, em termos físicos, do fogo consigo mesmo” 416. É preciso estar atento ao

fato de que o fogo e Zeus estão em conexão com a linguagem do filósofo de Éfeso, mas

existe uma imagem que Nietzsche identifica à criança que não tem relação alguma com o

pensamento de Heráclito: é a figura do artista. Nietzsche identifica a imagem da criança de

Heráclito à imagem que ele próprio possui do artista: “Neste mundo, só o jogo do artista e

da criança tem um vir à existência e um perecer, um construir e um destruir, sem qualquer

imputação moral, em inocência”417.


411
FP, 162.
412
FE, § V.
413
Ibidem.
414
Ibidem, VIII.
415
FP, p. 158.
416
FE.
417
FE, § VII. “A tendência moral da totalidade, assim como a teleologia estão excluídas pois a criança
cósmica não age segundo fins, mas somente de acordo com uma díke imanente. Ela ( a criança) só pode agir
unicamente em conformidade a leis e a fins, mas ela não quer nem um nem outro”, Ibidem, p. 158.
120

Assim, se o jogo do artista corresponde, para Nietzsche, ao jogo da criança é porque

neles existe a mesma inocência, quer dizer, a mesma ausência de juízos morais. Entre os

homens, somente o artista olha o mundo como uma obra de arte. Na arte, não há certo nem

errado, nem bem nem mal, nem verdade nem mentira. A criação artística exclui os

preceitos morais, visto que um objeto de arte não tem função moral, mas estética. Sua única

finalidade é gerar prazer estético. Por isso, quem vê o mundo como um artista vê sua obra

não pergunta sobre o sentido moral da existência. Não julga a vida em termos morais. Para

o artista, como para a criança, o lado negativo da vida não é sinal de culpa e punição. É

apenas um dos momentos desse jogo de luz e trevas.

Se Nietzsche chega a dizer que a imagem da criança brincando uma é uma

“metáfora sublime”418 é porque ela mostra justamente isto: a vida não é um fenômeno

moral. Segundo ele, se alguém perguntasse a Heráclito por que existe o sofrimento, por que

existe a morte,

este responderia simplesmente: “É um jogo, não se aborda pateticamente


e, sobretudo, de um modo moral! Heráclito só descreve o mundo que
existe e acha nele o mesmo prazer contemplativo com que o artista olha
para a sua obra em vias de realização. Só os que não se dão por satisfeitos
com essa descrição natural do homem é que o acham triste, melancólico,
choroso, sombrio, bilioso, pessimista e, numa só palavra, odioso”419.

Vale saber que, nos fragmentos de Heráclito, os maiores artistas gregos, poetas

consagrados como Homero, Hesíodo e Arquíloco, são alvos de severas críticas. E estas são

conhecidas por Nietzsche que, sobre isso, comenta: “porque ele (Heráclito) ignora a arte,

ele recorre à imagem do jogo da criança. Aqui reina a inocência, mas também a criação e a

418
Ibidem. Diz Nietzsche: “Heráclito utiliza uma metáfora sublime: um devir e um declínio destituído de toda
justificação moral (que) só existe no jogo da criança (ou na arte)”.
419
FE, § VII, p. 51. Continuando: “Mas, esses homens, assim como as suas antipatias e simpatias, o seu ódio e
o seu amor, tê-lo-iam deixado indiferente, e ele tê-los-ia servido com algumas verdades deste tipo: ‘Os cães
ladram aos desconhecidos’, ou ‘O burro prefere a palha ao ouro”.
121

destruição”420. Ou seja, segundo Nietzsche, Heráclito não valoriza o artista porque não sabe

que na criação artística existe a mesma inocência que existe no jogo da criança. Mas, se

Heráclito não sabe, Nietzsche sabe e considera a arte a atividade suprema do homem.

Sem constrangimento algum, Nietzsche não só identifica o jogo da criança com o

jogo do artista como compreende a filosofia de Heráclito como uma visão estética do

mundo. Isto é, para ele, Heráclito é um artista, pois ele tem uma “percepção estética” do

mundo. Ele vê a invisível justiça, “que se manifesta tanto entre os homens estúpidos como

entre os homens superiores”421, porque vê o mundo com olhos de artista. Seu olhar

diferenciado, o “assemelha a um deus contemplativo”422. Ele se diferencia do “homem

limitado que vê as coisas separadas umas das outras e não no seu conjunto”423. Em várias

passagens, Nietzsche salienta a visão estética de Heráclito:

Ao mundo, só assim o contempla o homem estético424.


ele reconhece a presença de um eterno destino (...) Essa harmonia é
somente reconhecida pelo deus que contempla e por quem se parece com
ele425.
Com o olhar do espectador encantado (ele) vê lutar com alegria inúmeros
pares sob a vigilância de árbitros severos426.
a disputa entre as diferentes qualidades reguladas pela díke deve ser
compreendida como um fenômeno artístico. É uma visão de mundo
puramente estética427.
Perante seu olhar de fogo, não subsiste nenhuma gota de injustiça no
mundo derramado em seu redor428.

É importante notar que o que determina as diferentes visões de mundo é o olhar de

cada filósofo, pois podemos reconhecer um mesmo mundo sob as diferentes interpretações.

420
FP, p. 158.
421
Ibidem, p. 162.
422
FE, § VII.
423
Ibidem, § V.
424
Ibidem, § VII.
425
FP, p. 162.
426
FE, § VI.
427
FP, p. 158.
428
FE, § VII.
122

Como Anaximandro, Heráclito viu todo aspecto terrível do devir, porém não o julgou como

um mal, já que olhou o mundo como um fenômeno estético e não como um fenômeno

moral. É o olhar moralista de Anaximandro que projeta na realidade a injustiça moral. E é o

olhar estético de Heráclito que o faz reconhecer a justiça e a inocência nesse mundo de

múltiplas formas, de múltiplos indivíduos. Ele pôde ver, com alegria, que a existência é

inocente, que ela não traz consigo nenhuma mácula, nenhum pecado original. Se

Anaximandro condenou a vida, Heráclito a absolveu. Ou melhor, nem isso, pois a vida não

precisa ser absolvida, já que ela não deve sequer ser julgada.

Assim, fica evidente que a oposição entre Heráclito e Anaximandro corresponde à

oposição entre uma visão moralista e uma visão estética do mundo. Graças a sua

“percepção estética fundamental do jogo do mundo”429, Heráclito, com sua filosofia, viu e

mostrou a beleza que existe no devir, “foi ele quem levantou a cortina desse espetáculo

sublime”430. Ele mostrou que a vida é como um espetáculo de arte que merece ser

contemplado e não questionado, que deve suscitar o prazer estético e não tolas perguntas

morais. A vida é um belo e inocente jogo de criança que merece ser (apenas) jogado com

alegria e prazer. Portanto, para Nietzsche, a filosofia de Heráclito justifica a existência

como um fenômeno estético.

Heráclito, o mais próximo de Apolo

429
“De resto, Heráclito não escapou aos ‘espíritos medíocres’; já os estóicos o interpretaram superficialmente,
rebaixando a sua percepção estética fundamental do jogo do mundo”, Ibidem.
430
FE, § VIII.
123

Segundo Nietzsche, Heráclito, “o eremita do templo de Ártemis”, está longe da

religiosidade dionisíaca e próximo do deus de Delfos. Nietzsche aproxima em vários pontos

Heráclito e Apolo.

1- Heráclito escutou sua verdade do oráculo de Delfos e, diz Nietzsche, “o que ele

escutou, tomou por uma sabedoria imortal, de eterno valor interpretativo, no sentido em que

os discursos proféticos da Sibila são imortais”431.

2- Heráclito não sente a compaixão (sentimento dionisíaco) pelos homens. Isto é,

“Dele não emana nenhum sentimento de exaltação compassiva, nenhuma pretensão de

querer ajudar ou salvar”432:

Que se preste atenção às formas completamente diferentes de veneração


sobre si sobre humanas em Pitágoras e em Heráclito. (...) Em Heráclito a
veneração de si não tem absolutamente nada de religioso: fora dele, ele só
vê insanidade, ilusão, ignorância – nada o leva em direção aos outros
homens, nenhum sentimento todo poderoso de compaixão o unia a
eles”433.

3- Heráclito foi, diz Nietzsche, o filósofo que mais viveu conforme o preceito

délfico “Conhece-te a ti mesmo”. Seu sentimento religioso, seu misticismo, o leva a voltar-

se para dentro, ele se mantém no mundo da individuação. Heráclito é um crítico do êxtase

dionisíaco. Nos fala Nietzsche sobre Heráclito: “‘Procurei e investiguei a mim mesmo’,

disse ele com palavras pelas quais se indicava o investigar de um oráculo: como se fosse

ele, e ninguém mais, quem na verdade cumpriu e realizou aquela frase délfica: ‘Conhece-te

a ti mesmo’”434. Heráclito é “o descobridor solitário”, “é como um astro sem atmosfera.

Flamejando ao dirigir-se para dentro, seu olho observa com vista apagada e glacial o que

431
PV, p.30.
432
Ibidem, p. 29.
433
FP, p. 141.
434
PV, p.30.
124

está fora, como se olhasse apenas para o brilho aparente” 435. Nietzsche o qualifica como

alguém que se sente ímpar num mundo repleto de cegos e surdos.

Ele não precisava dos homens, nem sequer para o seu conhecimento;
todas as informações que deles se podiam obter ao interrogá-los e tudo o
que os outros sábios antes dele tinham tentado pesquisar não lhe
interessavam. Falava com desprezo desses homens interrogadores,
colecionadores, em suma, “históricos”436.

4- Nietzsche mostra que Heráclito compara a sua própria filosofia enigmática com a

fala da sacerdotisa – Sibila - do oráculo de Delfos: “tal sabedoria só pode se deixar

interpretar como sentença de oráculo, como ele, como o próprio deus délfico ‘nem fala,

nem esconde’. Como ele pronuncia, ‘sem riso, sem adorno e incenso perfumado’, muito

mais ‘com boca transbordante’, algo que deve atravessar os mil anos do futuro” 437. Tais

particularidades de Heráclito levam Nietzsche a afirmar: “É difícil representar o sentimento

de solidão que o atravessava: talvez, seu estilo, que ele próprio compara com as sentenças

oraculares e à linguagem da Sibila, ajude a exprimi-lo”438.

5- Conforme a visão de Nietzsche, para Heráclito, no mundo não há hybris. O devir

se realiza de acordo com a justiça divina, díke, o lógos. Se não há culpa também não há

castigo. A metáfora cósmica que descreve a filosofia de Heráclito é a de uma criança

jogando, um “jogo belo e inocente”. Em suas Lições, ao analisar a imagem do jogo da

criança que aparece em Heráclito, que é também o jogo do Tempo, do Aion, e do artista,

Nietzsche se refere a Homero, mais precisamente, aos versos da Ilíada em que aparece a

imagem de uma criança que brinca de construir e destruir castelos de areia à beira mar.

Essa criança é Apolo.


435
Ibidem, p. 29.
436
FE, § VIII.
437
PV, p.30.
438
FP, p. 141, 142.
125

Zeus, em sua atividade demiúrgica, é comparado a uma criança que (como


se diz de Apolo (na Ilíada, XV) que destroi o muro dos aqueus com a
mesma facilidade de uma criança que depois de construir seu monte de
areia sente prazer em destruí-lo) constrói, na beira do mar, montes de
areia para depois os destruir.

Nietzsche está se referindo à passagem da Ilíada, quando Apolo, incitando todos os

troianos na luta contra os gregos, toma a frente e facilmente derruba as muralhas dos

aqueus da mesma forma que uma criança derruba os castelos que construiu à beira mar:

Em formações adensadas avançam; Apolo, na frente, a égide sempre a


vibrar, derrubava o alto muro dos Aqueus. Como criança que, estando a
brincar pela praia arenosa e em pueril inocência construído tivesse um
castelo, para depois derrubá-lo com as mãos ou com os pés, por
brinquedo: tão facilmente, arqueiro infalível, o muro destruíste dos
esforçados Argivos e em fuga inditosa os lançaste439.

Ou seja, a metáfora cósmica do jogo que sintetiza a filosofia de Heráclito remete a

Apolo. Por isso, Nietzsche exclama: “Heráclito: ideal apolíneo, tudo é aparência e jogo!”440.

3.3 Parmênides de Eléia e o prenúncio do otimismo teórico

439
HOMERO, Ilíada. Trad. Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001, p. 348.
440
O filósofo como médico da civilização, in LF, § 168, p. 57.
126

Como Schopenhauer441, Nietzsche vê Parmênides como o primeiro filósofo a

separar “o mundo dos sentidos e o mundo dos conceitos”442, a recusar a autenticidade das

impressões sensíveis. Mergulhado no “banho frio de suas terríveis abstrações”443,

Parmênides “repentinamente separou os sentidos e a capacidade de pensar abstrações, a

razão, como se fossem duas faculdades inteiramente distintas, desintegrou o próprio

intelecto e animou aquela divisão completamente errônea entre corpo e espírito que,

especialmente desde Platão, pesa sobre a filosofia como uma maldição”444.

Nietzsche considera que não há nenhuma relação de continuidade entre Parmênides

e Xenófanes, o primeiro filósofo a conceber a physis como Una e Imóvel. Enquanto

Xenófanes, contemporâneo de Parmênides e também morador de Eléia, é visto como um

pensador típico do século VI a.C., século dos Mistérios, Parmênides é visto como um

filósofo que destoa de sua época. Diz Nietzsche: “Se Parmênides chegava à unidade do ser

puramente através de uma suposta conseqüência lógica, retirando-a dos conceitos de ser e

não-ser, Xenófanes é um místico religioso e, com aquela unidade mística, pertence, com

efeito, ao VI século”445. Nietzsche apresenta a formulação da teoria do ser, que nega o devir

e a multiplicidade, como um acontecimento “milagroso”: “O milagroso é, antes de tudo, a

terrível energia da aspiração à certeza em uma época de pensamento místico, fantástico e

sumamente móvel”446.

Parmênides, antes de ser “acometido daquele calafrio de abstrações glaciais” da qual

surge o conceito e ser, o mais abstrato dos conceitos de toda a filosofia pré-socrática,
441
“Os eleatas foram os primeiros a descobrir a diferença, mais freqüentemente a oposição, entre o intuído e o
pensado, usando-a de diversas maneiras em seus filosofemas e sofismas. (...) Reconheceu-se que a intuição
sensível não é incondicionalmente confiável, concluindo-se precipitadamente que tão-só o pensamento
lógico-racional funda a verdade”, MC, § 15, p. 124.
442
FE, § IX.
443
Idem.
444
Ibidem.
445
Ibidem.
446
Ibidem.
127

interpretava o devir (apontado por Anaximandro) como sendo constituído por ser e não-ser

– termos que designam dois tipos opostos de qualidade: as positivas, que explicavam o ser,

que está sempre presente, e as negativas, que explicavam a mudança, tanto o nascer quanto

o perecer -, em um determinado momento, parou e desconfiou do conceito de não-ser:

Algo que não é pode ser uma qualidade? Ou, interrogando no plano dos
princípios: algo que não é, pode ser? Mas a única forma do conhecimento
que nos oferece imediatamente uma segurança incondicional e cuja
negação iguala a loucura é a tautologia A = A. Este mesmo conhecimento
tautológico lhe dizia implacavelmente: ‘O que não é, não é! O que é, é!
Repentinamente ele sentiu pesar sobre a sua vida um monstruoso pecado
lógico; ele sempre havia suposto sem escrúpulo que existiam qualidades
negativas, não-seres em geral, havia suposto que, formalmente expresso,
A = não A447.

Parmênides é, para Nietzsche, o precursor do otimismo teórico visto que ele anuncia

a crença na razão e a descrença nos sentidos. Seu lema era: “‘examine tudo somente com a

força do pensamento’”448. Seu método “revela uma aptidão ao procedimento lógico

abstrato, resistente e fechado às insinuações dos sentidos”449. Com ele surgiu “o pressuposto

de que nós temos um órgão de conhecimento que vai à essência das coisas e é independente

da experiência. Segundo Parmênides, o elemento de nosso pensamento não está presente na

intuição, mas é trazido de outra parte, de um mundo extra-sensível ao qual nós temos

acesso direto através do pensamento”450.

447
Ibidem.
448
Ibidem.
449
Ibidem.
450
Ibidem .
128

Embora reconheça a relevância de Parmênides na história da filosofia (dividiu em

dois períodos a história da filosofia arcaica), Nietzsche o critica, pois a teoria do ser

estabelece, embora ainda de modo “ingênuo”, a “errônea” separação entre os sentidos e a

razão. Passando por Kant451 e Schopenhauer452, Nietzsche levanta a sua crítica à teoria do

ser de Parmênides: “ela é apenas um jogo com abstrações”, um jogo vazio porque o

conteúdo da sua verdade lógica não está vinculada a nenhum objeto dado pela intuição453.

A teoria do ser contradiz a experiência sensível e afirma a superioridade e

autonomia da razão. Para Parmênides, “o mundo presente, colorido e em mudança, que se

comprime a nossa volta em todas as experiências”454, é uma ilusão, não é o mundo

verdadeiro. Ou seja, a teoria do ser ensina o desprezo pelas intuições e pelo mundo do

devir, que é desqualificado na medida em que é visto como ilusório. Enquanto

Anaximandro tentou escapar do devir criando um mundo paralelo a ele, o ápeiron,

Parmênides pretendeu fugir do devir através “do mais frio e inexpressivo conceito, o

ser”455.

É importante ressaltar que, se Nietzsche aponta para a oposição entre Anaximandro

e Heráclito a respeito do problema do devir (para o primeiro o devir é injusto e para o

segundo é justo) nem por isso ele deixa de apontar para a oposição entre Parmênides e

Heráclito. Para este, o devir é real, para aquele é ilusório. Mas, há outra oposição entre

451
“Pois o puro critério ‘lógico da verdade, como Kant ensina, isto é, a concordância de um conhecimento
com as leis formais e gerais do entendimento e da razão, é apenas o conditio sine qua nom, portanto, a
condição negativa de toda verdade: a lógica não pode ir mais longe nem descobrir, através de nenhum
procedimento, o erro que se refere, não à forma, mas ao conteúdo”; FE, XI.
452
Para Schopenhauer, se o pensamento abstrato não surge de uma intuição sensível, ele é apenas uma
abstração vazia, sem sentido e sem verdade alguma, pois a “intuição (...) é a fonte de toda verdade e o
fundamento de qualquer ciência”, MC, § 14, p. 116
453
“A verdade lógica daquela oposição entre o ser e o não-ser é completamente vazia, se não pode ser dado o
objeto subjacente, se não pode ser dada a intuição através da qual esta oposição é deduzida por abstração; sem
este retorno à intuição, ela é apenas um jogo com abstrações através do qual nada é conhecido de fato”, FE,
XI.
454
FE, § V.
455
Ibidem, § IX.
129

estes pensadores. Eles se opõem também na forma de ser e pensar: Heráclito é “feito de

fogo”, seu pensamento é intuitivo e se mostra por imagens; Parmênides é “feito de gelo”,

apesar de usar imagens e partir da intuição, sua teoria sobre o ser renega suas impressões

sensíveis.

O dom real de Heráclito é a sua faculdade sublime de representação


intuitiva; ao passo que se mostra frio, insensível e mesmo hostil para com
o outro modo de representação que se efetiva em conceitos e combinações
lógicas, portanto, para a razão, e parece ter prazer em poder contradizê-la
com uma verdade adquirida intuitivamente456.

Se todas as palavras de Heráclito exprimem o orgulho e a majestade da


verdade, mas de uma verdade que ele aprende em intuições e que não
conquista na escada de corda da lógica, se contempla, num êxtase sibílico
(...), o seu contemporâneo Parmênides é o seu contrário; também ele é um
profeta da verdade, mas parece feito de gelo e não de fogo, e irradia à sua
volta uma luz fria que queima457.

Enquanto Parmênides quer pelo menos uma certeza demonstrada racionalmente que

lhe sirva como uma tábua sobre o mar da incerteza, Heráclito é “frio, insensível e mesmo

hostil” em relação à razão. Enquanto Parmênides dizia (de acordo com a interpretação de

Nietzsche): “tomai para vós tudo o que vem-a-ser, o que é exuberante, multicolorido,

florescente, enganador, excitante e vivo; e dai-me apenas a única, pobre e vazia certeza’”458,

Heráclito diria: tomai para vós tudo o que é descolorido, gelado e abstrato, e dai-me apenas

o vir-a-ser, que é a única realidade efetiva, viva e exuberante.

Para Nietzsche, a imagem do filósofo como um homem intuitivo, que possui a

leveza própria do artista, remete aos pré-socráticos. No entanto, os primeiros filósofos são

diferentes entre si, uns mais intuitivos, outros mais abstratos. Nietzsche destaca dois

filósofos que representam o mais intuitivo e o mais abstrato, são eles: Heráclito e

Parmênides. Heráclito tem o dom da intuição, vê a sua verdade imediatamente, sem o uso
456
Ibidem § V.
457
Ibidem, § IX.
458
Ibidem.
130

da razão; Parmênides tem o dom da abstração. Ele, que quase se transformou “numa

máquina de pensar inteiramente petrificada pela intransigência da lógica”459, teria chegado à

sua verdade através de uma “suposta seqüência lógica”. É evidente que Nietzsche admira

mais o filósofo intuitivo, Heráclito, do que o filósofo abstrato.

Mas, Parmênides, apesar de seu otimismo teórico, ainda era muito ingênuo no seu

modo de ser racional. Ainda está longe do modelo socrático. Por isso, até ele, com seus

raciocínios gélidos, é chamado por Nietzsche de “profeta da verdade” 460. Se ele, que “quase

se transformou numa máquina de pensar”, é chamado de “profeta” é porque o conteúdo

absolutamente lógico de seu pensamento teria surgido de uma experiência não lógica. Sua

verdade surgiu “de repente”, independentemente de sua vontade. Ou seja, sua verdade não é

um resultado de uma “suposta seqüência lógica”. Eis como Nietzsche narra o grande

momento em que Parmênides vislumbrou sua verdade e reconheceu o pecado lógico que

até então cometia:

Naquele dia e naquele estado, ele examinava aquelas oposições


cooperantes cujo desejo e ódio constituíam o mundo e o vir-a-ser, o ser e
o não-ser (...). Repentinamente ele sentiu pesar sobre a sua vida um
monstruoso pecado lógico; ele sempre havia suposto sem escrúpulo que
existiam qualidades negativas, não seres em geral, havia suposto que,
formalmente expresso, A = não A (...). Mas o mesmo momento que o
acusa deste crime ilumina-o com a glória de uma descoberta; ele
encontrou um princípio, a chave para o mistério universal, separado de
toda ilusão humana; na firme e terrível mão da verdade tautológica sobre
o ser, ele desce agora ao abismo das coisas461.

3.4 O filósofo arcaico, Nietzsche, Heráclito e a vida.

459
Ibidem.
460
Ibidem § IX.
461
Ibidem
131

Cada um dos pré-socráticos apresentou a sua resposta original aos dois problemas

filosóficos, sobre o devir e o do valor da existência. Como foi visto, a verdade de cada um

surge de uma experiência mística. Esta vivência o diferencia do “filósofo do conhecimento

trágico”, quer dizer, do próprio Nietzsche que – nesse período, imediatamente posterior aO

nascimento da tragédia – aponta para o fato de que somente por esquecimento ou loucura

pode o homem supor que possui alguma verdade:

Ninguém pode, sem loucura nenhuma, acreditar tão firmemente que


possui a verdade: o ceticismo não tardará a vir. À questão: é permitido
sacrificar a humanidade à loucura, dever-se-ia responder não. Porém, na
prática, aquilo acontece, porque o fato de crer na verdade é precisamente
loucura. A fé na verdade – ou a loucura462.

Para Nietzsche, a incerteza é a única garantia. O “filósofo trágico” não acredita na

intuição nem na razão como garantia de um conhecimento verdadeiro. Por conseqüência,

ele não pode responder à primeira questão – o que é o mundo? Para ele, o mundo é um

enigma indecifrável. Todavia, ele tem a sua resposta para a segunda questão: a vida se

justifica como fenômeno estético. Esta é a única resposta encontrada em suas obras de

juventude, tanto em O nascimento da tragédia quanto em seus escritos posteriores que

tratam dos filósofos arcaicos. Esta resposta evidencia a afinidade entre o filósofo alemão e

Heráclito: ambos vêem a vida com olhos de artista. Em suas Considerações extemporâneas,

de 1874, Nietzsche apresenta uma resposta ao problema do valor da existência:

para que tu indivíduo estás aí? isso te pergunto, e se ninguém pode dizê-lo
tente ao menos uma vez legitimar o sentido de tua existência como que a
posteriori propondo tu a ti mesmo um fim, um alvo, um “para quê”, um
alto e nobre “para quê”. Morra por ele – não conheço nenhuma finalidade
melhor para a vida do que morrer pelo grandioso e pelo impossível463.

462
VM, in LF, § 177, p. 80.
463
Considerações extemporâneas, Da utilidade e desvantagem para a história, § 9, in Nietzsche, Os
pensadores, p. 70.
132

Vale notar que Nietzsche apresenta Heráclito em oposição a Anaximandro.

Enquanto que este último vê o devir como uma injustiça que precisa ser expiada pelo

sofrimento e pela morte, condenando assim o mundo da multiplicidade; Heráclito o

absolve. “Heráclito descobriu que maravilhosa ordenação, regularidade e certeza

manifestam-se em todo vir-a-ser; daí concluía ele, que o vir-a-ser não poderia ser injusto

nem criminoso”464. Tudo é testemunho da justiça, da díke, e não da hybris. Apesar de se

opor ao filósofo pessimista, Heráclito “não nega o sofrimento”465. Ele viu, como

Anaximandro, o aspecto terrível do devir, “a inconsistência total de todo o real”, mas esta

idéia perturbadora foi transformada em uma “assombro bem-aventurado” 466. Quer dizer,

Heráclito superou o pessimismo de Anaximandro já que não interpretou o sofrimento e a

morte presentes no devir como uma compensação de uma falta moral. Foram as forças da

arte que o fizeram ver que o devir é inocente em seus dois movimentos – de criação e

destruição –, e possibilitaram transformar a terrível visão do devir em um espetáculo

sublime, em um “jogo belo e inocente”.

A oposição mostrada por Nietzsche entre Heráclito e Anaximandro corresponde à

oposição entre uma visão estética do mundo e uma visão pessimista. Heráclito é “o homem

estético”467, possui uma “percepção estética fundamental do jogo do mundo”468, da mesma

forma que Anaximandro possui uma percepção moralista do mundo. Em continuidade com

Anaximandro está, segundo Nietzsche, dois outros grandes pessimistas, Empédocles e

Schopenhauer, que também viram culpa e castigo na existência. Para Nietzsche,

464
FE, § IX.
465
FP, p. 162.
466
FE, § VII.
467
Ibidem.
468
“De resto, Heráclito não escapou aos ‘espíritos medíocres’; já os estóicos o interpretaram superficialmente,
rebaixando a sua percepção estética fundamental do jogo do mundo”, Ibidem.
133

Schopenhauer segue os passos do primeiro filósofo pessimista. Primeiro, porque recoloca o

problema inaugurado por Anaximandro sobre o valor da existência469; segundo, porque dá a

mesma resposta pessimista e moralista sobre esta questão. Define o homem, e tudo o que

existe na sua individualidade, como um ser destinado ao sofrimento e à morte que são as

formas de pagar pelo pecado de existir, “em essência, incluindo-se também o mundo

animal que padece, TODA VIDA É SOFRIMENTO”470. O processo de individuação é

criminoso, por isso, viver é expiar pelo crime de ter nascido. A “eterna justiça” que

Schopenhauer vê no mundo é uma compensação do erro original. Alcança o conhecimento

desta justiça eterna aquele que reconhece a vida como crime e castigo. Referindo-se a este

assunto Schopenhauer cita o poema de Calderon, A vida é sonho: “Pois o delito maior do

homem, é ter nascido. Como não seria um delito, se, conforme uma lei eterna, a morte vem

depois? Calderon também apenas exprimiu em tais versos o dogma cristão do pecado

original”471.

Além de identificar Schopenhauer e Anaximandro472, Nietzsche mostra a oposição

entre seu educador e Heráclito. Schopenhauer, tal como o filósofo de Éfeso, compreende o

469
“Schopenhauer retorna aos problemas originais mais profundos da ética e da arte, ele ressalta a questão do
valor da existência”, UF, in LF, § 33, p. 6.
470
MC, § 56, p. 400.
471
Ibidem, § 63, p. 453.
472
Não podemos deixar de dizer que existe entre Schopenhauer e Anaximandro uma diferença. Para este,
existem dois mundos radicalmente distintos, para aquele, o mundo é um só, embora se apresente de dois
modos, como representação e Vontade. Schopenhauer - como Nietzsche - é um crítico da crença metafísica de
que existem duas realidades opostas, uma supra-sensível, a outra sensível, sendo que a primeira, sempre
vinculada à razão, seria superior à outra. Para ele, não há um Deus fora do mundo, não existe alma separada
do corpo. Do inorgânico ao mais complexo dos seres, no fundo, tudo é expressão da Vontade. Eis aqui uma
bela imagem que fala da unidade da Vontade: “Assim como uma lanterna mágica mostra muitas e variadas
imagens, porém aí se trata de uma única e mesma flama que confere visibilidade a elas, assim também em
todos os diversos fenômenos que um ao lado do outro preenchem o mundo ou se rechaçam como
acontecimentos sucessivos, trata-se apenas de UMA VONTADE que aparece”, MC, Livro II, 28, p. 218.
Como Maria Lúcia Cacciola diz em seu livro: “A fórmula da cosmologia schopenhauriana já está contida no
título de sua obra principal: Die Welt als Wille und Vorstellung. Nela não é dito o que (was) o mundo é, mas
como (wie) ele se apresenta”. CACCIOLA, Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo, Editora da
Universidade de São Paulo, 1994. Ou seja, para Schopenhauer, o mundo é um só que se apresenta como
multiplicidade.
134

mundo (o devir, a Vontade) como combate entre opostos, mas se para Heráclito a luta entre

os contrários é expressão da justiça, para ele é “um fenômeno completamente terrível, de

modo nenhum capaz de fazer-nos felizes”. Nietzsche aponta para a diferença que é da

maior relevância:

o tom dessa descrição (da luta dos opostos) já não é mais o de Heráclito,
pois, para Schopenhauer, o combate é apenas uma prova da divisão
interna do querer viver, na qual esse instinto sombrio e confuso devora a
si mesmo; é um fenômeno completamente terrível, de modo nenhum
capaz de fazer-nos felizes473.

Nietzsche viu em Heráclito o que não encontrou em Schopenhauer: uma força

extraordinária capaz de transformar o sofrimento que existe na vida em um espetáculo

estético de prazer. A vida é inocente, pois o devir é inocente. O devir é Um – é a única

realidade que existe –, mas se apresenta como múltiplo. Quer dizer, o processo de

individuação, do Um ao múltiplo, é o modo de ser do devir, expressão da justiça divina. O

mundo da multiplicidade, da individuação, não é o lugar da expiação e nem é inferior ao

mundo do eterno ser. Aliás, não existe crime, como também não existe um mundo do ser. A

filosofia de Heráclito ensina que na vida não há uma transgressão original. Esta

compreensão da inocência da vida – própria da criança e da arte – está presente em

Heráclito e no filósofo arcaico (de Nietzsche). Eis aqui a terceira hipótese: Heráclito, entre

todos os pré-socráticos, é o mais semelhante da personagem do autêntico filósofo.

É preciso destacar que: Nietzsche se identifica com Heráclito e se coloca em

oposição a Anaximandro e Schopenhauer. Schopenhauer e Anaximandro de um lado,

Nietzsche e Heráclito do outro. Essa distância é a que separa uma visão estética da vida e

outra moralista e pessimista. O filósofo arcaico, Heráclito, e Nietzsche (o filósofo trágico),

473
FE, § V.
135

dão a mesma resposta ao problema do valor da existência: a vida vale como fenômeno

estético.

CONCLUSÃO
136

Minha tarefa, de um modo geral: mostrar como a vida,


a filosofia e a arte podem manter uma com a outra uma
relação de profundo parentesco, sem que a filosofia se
torne aborrecida nem a vida do filósofo mentirosa474.

Depois da época trágica dos gregos, o impulso ao conhecimento tornou-se

desmesurado. O otimismo teórico passou a ser determinante não só na filosofia, mas

também nas ciências, na cultura e na vida comum. No mundo moderno reina a “cultura

socrática” que se caracteriza pela crença na razão e na verdade. Ninguém se lembra de que

as verdades e as mentiras são criações antropomórficas. “O homem (...) mente, pois,

inconscientemente de maneira designada e conforme costumes centenários” 475. Mas, o

jovem Nietzsche quer mudar essa situação, quer subverter esse jogo de forças. Por isso, ele

lança a arte contra a tirania da razão. É preciso restabelecer os direitos da arte, já que só ela

pode dar limites à arrogância e à presunção de uma razão excessiva, “agora o domínio da

ciência só se realiza através da arte”476. Por este motivo, Nietzsche faz uma “apologia da

arte”. Diz ele: “Agora lançamos a arte contra o saber: o retorno à vida. O domínio do

instinto de conhecimento”477.

Apologia da arte (...) Nossa época tem o mesmo ódio pela arte e pela
religião. Não se rende nem à promessa do além, nem à promessa de uma
transfiguração artística do mundo. Considera-se ‘poesia’ fútil, um simples
brinquedo etc. (...) Queremos transfigurar-lhes o mundo em imagens tão
fortes que os façam estremecer diante delas. Está em nosso poder!478.
Ainda que nunca cheguemos a constituir uma civilização bem-sucedida,
precisaremos das extraordinárias forças da arte para aniquilar o instinto de
conhecimento sem limites479.

474
CS, in LF, § 193, p. 90
475
VM.
476
UF, in LF, § 39, p. 9
477
Ibidem, § 43, p. 11.
478
Ibidem, § 56, p. 18.
479
UF, in LF, § 30, p. 5. “Contra a historiografia icônica e contra as ciências da natureza tornam-se
necessários muitos artistas prodigiosos”, UF, in LF, 27, p. 4. “Já ninguém mais sabe com o que se parece um
bom livro, torna-se preciso mostrar-lhes: não entendem a composição. A imprensa destrói sempre e cada vez
mais o sentimento. Poder preservar o sublime!” UF, in LF, § 26, p. 4.
137

Que trabalho imenso e quanta dignidade da arte nesta empresa! Ela


precisa recriar tudo e recolocar a vida no mundo unicamente por si480.

Da mesma forma que a arte está para a ciência, o filósofo arcaico está para o

filósofo socrático. O parentesco com a arte é o que os diferencia 481. O filósofo arcaico usa a

razão para se comunicar, mas é não é movido por ela. Ele intui a sua verdade como um

místico, a comunica como um cientista e vive como um artista que transforma suas

impressões em poesia conceitual. Enquanto o filósofo arcaico se deixa inspirar pela arte, o

filósofo socrático renega seu talento artístico; sua filosofia, como sua vida, está submetida a

rígidos princípios racionais. Ele caminha sobre parâmetros – supostamente – sólidos, firmes

e familiares. Viver é, para ele, um acontecimento normal. Essa normalidade promove

descanso, segurança, bem estar, em suma, a “paz de rebanho”. A paz que existe quando o

homem se esquece de que o mundo no qual vive é construído por ele próprio, pois ele é o

“sujeito da criação artística”482.

A vida normal – eis aqui, justamente, o que não quer o filósofo arcaico! De modo

algum, ele quer a paz de rebanho. Ele não vive, como o “homem racional”, guiado por

conceitos e abstrações, programando sua vida para se proteger de uma possível infelicidade

futura. Ele não é razoável. Ao contrário, ele quer ser arrebatado por suas intuições, por seus

pressentimentos, quer voar bem alto, quer saltar rapidamente sobre as pedras antes de elas

serem arrastadas pela forte torrente. Ele vive a vida como um acontecimento raro, intenso e

perigoso. Seu pensamento está livre do jugo da razão. Ele vive consciente de que sua

relação com a linguagem é uma relação estética. Ele sabe que seus conceitos são metáforas

e os quer assim: como metáforas. Ou seja, ele quer a filosofia como “uma forma de poesia”.
480
Ibidem , § 39, p. 9
481
“Comparação da filosofia arcaica com a dos pós-socráticos. 1- A mais antiga está aparentada com a arte,
sua solução do enigma universal freqüentemente deixa-se inspirar pela arte”. CS, in LF, p. 89.
482
VM.
138

A postura do filósofo arcaico em relação à filosofia revela a sua atitude diante da

vida. Ele não quer uma vida fraca e melancólica, mas uma vida radiante, bela e prazerosa.

Ele quer a alegria que acompanha a criação artística, nele “a alegria não demonstra um

desejo de verdade”. A alegria demonstra o prazer de pensar com imagens e multiplicar as

possibilidades. Seu desejo é o mesmo do “homem intuitivo”: o de tornar a vida cotidiana

um acontecimento extraordinário, como um sonho encantado: “seu desejo é dar a este

mundo presente do homem desperto (...) uma forma plena de encanto e eternamente nova

tal como no mundo do sonho”483. Sem arte, sem filosofia, sem ilusão, sem alegria, a

existência seria sofrimento e perderia o sentido. E, neste caso, Sileno teria razão: o melhor

dos bens seria não ter nascido e o segundo seria morrer o quanto antes. Porém, o filósofo

arcaico discorda dessa visão moralista de mundo de acordo com a qual viver é pagar pelo

pecado de existir.

A imagem do filósofo arcaico traduz a compreensão do jovem Nietzsche sobre

quem foi o autêntico filósofo da época trágica dos gregos e serve como arquétipo de quem é

e quem será o autêntico filósofo, pois o que é primordial nesta figura ultrapassa as

fronteiras históricas, passa por Heráclito, pelo próprio Nietzsche, o “filósofo trágico”, e

chega ao “filósofo do futuro” que, semelhante ao filósofo arcaico, exerce a filosofia de

forma artística, criativa e singular. A imagem do filósofo arcaico não é unívoca, plana,

unidimensional. Ela é como um caleidoscópio, que apresenta várias faces, ganha feições

diferentes, muda conforme o foco do nosso olhar. Seus traços místicos, racionais e

artísticos se interligam criando diferentes composições. Vários são os prismas que ela

oferece, mas o predominante é seu perfil estético. O grande ensinamento do filósofo arcaico

- de Heráclito e de Nietzsche - é mostrar que a vida está aí para ser vivida como um

483
VM.
139

acontecimento estético – deve ser saboreada, contemplada, ouvida, cheirada e tocada – e

que o pensamento deve fluir livre das rédeas da razão. Como um viajante que percorre

terras desconhecidas, o filósofo arcaico faz da arte as pedras escorregadias do seu caminho.

Vive e pensa envolvido com metáforas que lhe dão asas para voar. A filosofia é preciosa

porque traz leveza e alegria aos que passam pelo mundo, é uma forma de dizer sim à vida.

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