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SOPRO 20

Desterro, janeiro de 2010


Panfleto politico-cultural
www.culturaebarbarie.org/sopro

LITERATURAS
PÓS-AUTÔNOMAS
Josefina Ludmer
Publicado na Ciberletras - Revista de crítica
literaria y de cultura, n. 17, julho de 2007

Estou buscando territórios do presente e penso dizer que não se sabe ou não importa se são ou não
em um tipo de escrituras atuais da realidade co- são literatura. E tampouco se sabe ou não importa se
tidiana que se situam em ilhas urbanas (em zonas são realidade ou ficção. Instalam-se localmente em
sociais) da cidade de Buenos Aires: por exemplo, o uma realidade cotidiana para “fabricar um presente”
bajo Flores dos imigrantes bolivianos (peruanos e e esse é precisamente seu sentido.
coreanos) da Bolivia Construcciones de Bruno Mo-
rales (pseudônimo de Sergio Di Nucci, Buenos Aires, I
Sudamerica, 2007), e também La Villa de César Aira Imaginemos isto. Muitas escrituras do presente
(Buenos Aires, Emecé, 2001), Monserrat de Daniel atravessam a fronteira da literatura (os parâmetros
Link (Buenos Aires, Mansalva, 2006), o Boedo de que definem o que é literatura) e ficam dentro e fora,
Fabián Casas, em Ocio (Buenos Aires, Santiago Ar- como em posição diaspórica: fora, mas presas em
cos, 2006), o zoológico de María Sonia Cristoff em seu interior. Como se estivessem “em êxodo”. Se-
Desubicados (Sudamericana, 2006), e em sua com- guem aparecendo como literatura e tem o formato
pilação Idea Crónica (Beatriz Viterbo, 2006). Penso livro (são vendidas em livrarias e pela internet e em
também no projeto Biodrama de Vivi Tellas, e em feiras internacionais do livro) e conservam o nome do
certa arte. Assim como muitas vezes se identificam autor (que pode ser visto na televisão e em periódicos
“as pessoas” (“la gente”) nos meios (Rosita de Boe- e revistas de atualidade e recebe prêmios em fes-
do, Martín de Palermo), nesses textos os sujeitos se tas literárias), se incluem em algum gênero literário
definem pelo seu pertencimento a certos territórios. como o “romance”, e se reconhecem e definem a si
Estou pensando na reflexão de Florencia Garramuño mesmas como literatura. Aparecem como literatura,
(Hacia una estética heterónoma: poesía y experi- mas não se pode lê-las com critérios ou categorias
encia en Ana Cristina Cesar y Néstor Perlongher, literárias como autor, obra, estilo, escritura, texto e
[publicada em 2008] no Journal of Latin American sentido. Não se pode lê-las como literatura porque
Cultural Studies). E também penso na reflexão de aplicam “à literatura” uma drástica operação de esva-
Tamara Kamenszain (La boca del testimonio: lo ziamento: o sentido (ou o autor, ou a escritura) resta
que dice la poesía. Buenos Aires, Norma, 2007) sem densidade, sem paradoxo, sem indecidibilidade,
sobre certa poesia argentina atual: o testemunho é “sem metáfora”, e é ocupado totalmente pela ambi-
a “prova do presente”, não “um registro realista do valência: são e não são literatura ao mesmo tempo,
que passou”. Meu ponto de partida é esse. Essas são ficção e realidade. Representariam a literatura no
escrituras não admitem leituras literárias; isto quer fim do ciclo da autonomia literária, na época das em-

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presas transnacionais do livro ou das oficinas do livro o potencial, o mágico e o fantasmático. “A realidade uma ilha urbana (um território local). Formariam parte mos; são as duas coisas, oscilam entre as duas ou as
nas grandes redes de jornais e rádios, televisão e ou- cotidiana” das escrituras pós-autônomas exibe, como da fábrica do presente que é a imaginação pública. desdiferenciam. E com essas classificações “formais”
tros meios. Esse fim de ciclo implica novas condições em uma exposição universal ou em um mostruário parecem terminar os enfrentamentos entre escritores
de produção e circulação do livro que modificam os global de uma web, todos os realismos históricos, V e correntes; é o fim das lutas pelo poder no interior da
modos de ler. Poderíamos chamá-las de escrituras ou sociais, mágicos, os costumes, os surrealismos e os Na realidadeficção de algumas pessoas [alguna literatura. O fim do “campo” de Bourdieu, que supõe a
literaturas pós-autônomas. naturalismos. Absorve e fusiona toda a mimese do “gente”] em alguma ilha urbana latino-americana, autonomia da esfera (ou o pensamento das esferas).
passado para constituir a ficção ou as ficções do pre- muitas escrituras de hoje dramatizam certa situação Porque se borram, formalmente e “na realidade”, as
II sente. Uma ficção que é “a realidade”. Os diferentes da literatura: o processo de encerramento da litera- identidades literárias, que também eram identidades
As literaturas pós-autônomas (essas práticas literárias hiper-realismos, naturalismos e surrealismos, todos tura autônoma, aberta por Kant e a modernidade. O políticas. E então se pode ver claramente que essas
territoriais do cotidiano) se fundariam em dois (repeti- fundidos nessa realidade desdiferenciadora, se dis- fim de uma era em que a literatura teve “uma lógica formas, classificações, identidades, divisões e guer-
dos, evidentes) postulados sobre o mundo de hoje. O tanciam abertamente da ficção clássica e moderna. interna” e um poder crucial. O poder de definir-se e ras só podiam funcionar em uma literatura concebida
primeiro é que todo o cultural (e literário) é econômico Na “realidade cotidiana” não se opõe “sujeito” e “re- ser regida “pelas suas próprias leis”, com instituições como esfera autônoma ou como campo. Porque o
e todo o econômico é cultural (e literário). E o segun- alidade” histórica. E tampouco, “literatura” e “história”, próprias (crítica, ensino, academias) que debatiam que dramatizavam era a luta pelo poder literário e
do postulado dessas escrituras seria que a realidade ficção e realidade. publicamente sua função, seu valor, seu sentido. pela definição do poder da literatura. Borram-se as
(se pensada a partir os meios que a constituiriam con- Debatiam, também, a relação da literatura (ou da identidades literárias, formalmente e na realidade, e
stantemente) é ficção e que a ficção é a realidade. IV arte) com as outras esferas: a política, a economia e isto é o que diferencia nitidamente a literatura dos
A idéia e a experiência de uma realidade cotidiana também sua relação com a realidade histórica. Auto- anos 60 e 70 das escrituras de hoje. Nos textos que
III que absorve todos os realismos do passado altera a nomia, para a literatura, foi especificidade e auto-refe- estou lendo as “classificações” responderiam a “outra
Porque essas escrituras diaspóricas não só atraves- noção de ficção dos clássicos latino-americanos dos rencialidade, e o poder de nomear-se e referir-se a si lógica” e a outras políticas.
sam a fronteira da “literatura”, mas também a da séculos XIX e XX. Neles a realidade era “a realidade mesma. E também um modo de ler-se e alterar-se a
“ficção” (e ficam dentro-fora nas duas fronteiras). E histórica”, e a ficção se definia por uma relação es- si mesma. A situação de perda da autonomia da “lite- VII
isso ocorre porque reformulam a categoria de reali- pecífica entre “a história” e “a literatura”. Cada uma ratura” (ou “do literário”) é a do fim das esferas ou do Ao perder voluntariamente a especificidade e atribu-
dade: não se pode lê-las como mero “realismo”, em teria sua esfera bem delimitada, o que não ocorre pensamento das esferas (para praticar a imanência tos literários, ao perder “o valor literário” (e ao perder
relações referenciais ou verossimilhantes. Tomam a hoje. A narração clássica canônica, ou do boom (Cien de Deleuze). Como se disse muitas vezes: hoje se “a ficção”) a literatura pós-autônoma perderia o poder
forma do testemunho, da autobiografia, da reporta- años de soledad, por exemplo) traçava fronteiras níti- borram os campos relativamente autônomos (ou se crítico, emancipador e até subversivo que a autono-
gem jornalística, da crônica, do diário intimo, e até da das entre o histórico como “real” e o “literário” como borra o pensamento em esferas mais ou menos de- mia atribuiu à literatura como política própria, especí-
etnografia (muitas vezes com algum “gênero literário” fábula, símbolo, mito, alegoria ou pura subjetividade, limitadas) do político, do econômico, do cultural. A fica. A literatura perde o poder ou já não pode exercer
enxertado em seu interior: policial ou ficção cientí- e produzia uma tensão entre os dois: a ficção consis- realidadeficção da imaginação pública as contém e esse poder.
fica, por exemplo). Saem da literatura e entram “na tia nessa tensão. A “ficção” era a realidade histórica as fusiona.
realidade” e no cotidiano, na realidade do cotidiano (política e social) passada (ou formatada) por um VIII
(e o cotidiano é a TV e os meios de comunicação, mito, uma fábula, uma árvore genealógica, um sím- VI As escrituras pós-autônomas podem exibir ou não
os blogs, o e-mail, internet, etc). Fabricam o pre- bolo, uma subjetividade ou uma densidade verbal. Em algumas escrituras do presente que atravessaram suas marcas de pertencimento à literatura e os tópi-
sente com a realidade cotidiana e essa é uma das Ou, simplesmente, traçava uma fronteira entre pura a fronteira literária (e que chamamos pós-autônomas) cos da auto-referencialidade que marcaram a era da
suas políticas. A realidade cotidiana não é a realidade subjetividade e pura realidade histórica (como Cien se pode ver nitidamente o processo de perda da literatura autônoma: o marco, as relações especula-
histórica referencial e verossímil do pensamento re- años de soledad; Yo el Supremo, Historia de Mayta autonomia da literatura e as transformações que res, o livro no livro, o narrador como escritor e leitor,
alista e da sua história política e social (a realidade de Mario Vargas Llosa, 1984; El mandato de José produzem. Terminam formalmente as classificações as duplicações internas, recursividades, isomorfis-
separada da ficção), mas sim uma realidade produ- Pablo Feinmann, 2000; e os romances históricos de literárias; é o fim das guerras e divisões e oposições mos, paralelismos, paradoxos, citações e referências
zida e construída pelos meios, pelas tecnologias e Andrés Rivera, como La revolución es un sueño eter- tradicionais entre formas nacionais ou cosmopolitas, a autores e leituras (ainda que sejam em tom burles-
pelas ciências. É uma realidade que não quer ser re- no). Essas escrituras “sem metáfora” (como as que formas do realismo ou da vanguarda, da “literatura co, como na literatura de Roberto Bolaño). Podem
presentada porque já é pura representação: um teci- analisa Tamara Kamenszain) seriam “as ficções” (ou pura” ou “da literatura social” ou comprometida, da situar-se ou não simbolicamente dentro da literatura e
do de palavras e imagens de diferentes velocidades, a realidade) na era dos meios de comunicação e da literatura rural e urbana, e também termina a dife- seguir ostentando os atributos que as definiam antes,
graus e densidades, interiores-exteriores a um sujeito indústria da língua (na imaginação pública). Seriam a renciação literária entre realidade (histórica) e ficção. quando eram totalmente “literatura”. Ou podem colo-
que inclui o acontecimento, mas também o virtual, realidade cotidiana do presente de alguns sujeitos em Não se pode ler essas escrituras com ou nesses ter- car-se como “Basura” [lixo] (Héctor Abad Faciolince.

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Basura. I Premio Casa de América de Narrativa Ame-
ricana Innovadora. Madrid, Lengua de Trapo, 2000)
ou “Trash” (Daniel Link. La ansiedad: novela trash.
Buenos Aires, El cuenco de plata, 2004). Isso não
RESENHA
Um para cem? 99 poemas de Brossa
poema com um só plano/ sempre dá a sensação de
pequeno.)” (p. 77); “Atenuados em certo aspecto,
um poema é o prolongamento/ do outro; aqui, então,
conquisto um outro pedaço/ e inicio novamente a sua
muda seu estatuto de literaturas pós-autônomas. Nas Pádua Fernandes expansão.” (p. 129).
duas posições ou em suas nuances, essas escrituras No primeiro livro, Fez-me Joan Brossa, (significa-
colocam o problema do valor literário. Eu gosto e não O poeta e historiador Ronald Polito já nos deu, do a numerologia do prefácio). Foram selecionados tivo título), lê-se: “E agora peruca raspada, sobran-
me importa se são boas ou ruins enquanto literatura. catalão Joan Brossa (1919-1998), os Poemas Ci- os poemas não visuais em versos livres; à possível celhas espessas/ e esta mesma cara coberta de
Tudo depende de como se lê a literatura hoje. Ou de vis, traduzidos com Sérgio Alcides, e Sumário As- objeção de que esta não seria a parte mais valiosa barba.”; a peruca é assimilada ao cabelo, e a barba a
onde se leia. Ou se lê este processo de transforma- tral e outros poemas da obra, ele replica que maquilagem – tudo é artefato, nada escapa ao fazer
ção das esferas (ou perda da autonomia ou da “litera- (neste, foi responsável Brossa também foi in- artístico. Nada mais consequente, portanto, do que a
turalidade” e seus atributos) e se altera a leitura ou se pela tradução para o ventivo nesses poemas; comparação da poesia com a calcografia em Calco-
segue sustentando uma leitura no interior da litera- português; a tradução ademais, “No fundo, não mania (p. 85). Tudo é artefato, mesmo o que não é
tura autônoma e da “literaturalidade”, e então aparece espanhola ficou a car- importa a forma, mas sim convencionalmente poético. Sua desmesurada am-
o “valor literário” em primeiro plano. Dito de outro go de Pere Galceran- esses movimentos entre bição é a de que nada possa estar fora do poema: “A
modo: ou se vê a mudança no estatuto da literatura, e Uyà). 99 poemas (São contrastes” (p. 176). noite/ O dia// Partimos o poema meio/ a meio.” (p. 55).
então aparece outra episteme e outros modos de ler. Paulo: Annablume, Tais movimentos, em Onde tudo é poético, não há mais espaço para
Ou não se vê ou se nega, e então seguiria existindo Coleção Demônio Negro, que Brossa aproxima a poética? Este é um risco que faz Brossa traba-
literatura e não literatura, ou ruim e boa literatura. 2009), com traduções elementos de ordens lhar sempre no limite do literário com outros gêne-
IX apenas de Polito, e or- aparentemente muito dis- ros: “Olhe: são os pássaros que pulam/ de galho
As literaturas pós-autônomas do presente sairiam da ganizado e selecionado tintas (como o povo e um em galho.// Eis aqui o limite da expressão/ literária”
“literatura”, atravessariam a fronteira, e entrariam em por ele e Victor da Rosa, boneco joão-teimoso), (p. 61). Uma exceção é sua poesia de amor, que é
um meio (em uma matéria) real-virtual, sem foras, a inicia-se com uma breve Polito analisa-os segundo mais convencional (Título luminoso, porém, possui
imaginação pública: em tudo o que se produz e circula apresentação escrita pelo a sinestesia e o ideal das todo o inusitado desta poesia: “Há guerra de laranjas
e nos penetra e é social e privado e público e “real”. segundo organizador que correspondências, que na casa de um poeta”, p. 101). Esta antilira cria suas
Ou seja, entrariam em um tipo de matéria e em um pode ser resumida às Baudelaire, em conhecido outras convenções, que aproximam Brossa das artes
trabalho social (a realidade cotidiana) em que não há frases finais: “90 anos de soneto, introduziu na poe- plásticas e questionam o discursivo: “Vocês tornariam
“índice de realidade” ou “de ficção” e que constrói pre- vida, 10 anos de morte, sia moderna. Em Brossa, falso este poema/ com outras interpretações” (p. 49);
sente. Entrariam na fábrica do presente que é a imagi- 99 poemas. É quase ma- temos em muitos poemas “Não se trata de textos em que já tenha havido/ uma
nação pública para contar algumas vidas cotidianas gia. São coisas que, afi- uma “utopia concretizada, intenção poética: me interessam/ textos neutros, fun-
em alguma ilha urbana latino-americana. As experiên- nal, só podemos apren- enquanto pequena epi- cionais, que eu posso converter/ em poéticos pelo
cias da migração e do “subsolo” de certos sujeitos que der com Brossa.” (p. 15). fania” (p. 166), numa fato de tê-los selecionado” (p. 115); “O silêncio é o
se definem fora e dentro de certos territórios. No posfácio de Polito “perspectiva analógica do original,/ as palavras são a cópia.” (p. 145).
(Uma relação concor- pensamento mágico” (p. Os materiais de que se compõe Brossa, no en-
X dante ou discordante), 167-8) que o obrigará a tanto, não estariam completos se as convenções
Assim, postulo um território, a imaginação pública ou lê-se provavelmente tentar transformar a vida políticas e sociais também não fossem radicalmente
fábrica do presente, onde situo minha leitura ou onde o texto mais revela- em arte. Polito brilhante- questionadas em nome de uma ética de esquerda
eu mesma me situo. Nesse lugar não há realidade dor que se fez no Bra- mente discorre sobre as contra o capitalismo, em um questionamento que é o
oposta à ficção, não há autor e tampouco há demasi- 99 Poemas de Joan Brossa
sil sobre esta poesia (por sinal, nele possibilidades e limitações (como po- da linguagem: “Os adesivos publicitários, transparen-
ado sentido. Desde a imaginação pública leio a litera- Tradução de Ronald Polito
são incluídas traduções de poemas Seleção de Ronald Polito emas repetitivos) desse projeto. tes,/ não desvirtuarão as propriedades das moedas/
tura atual como se fosse uma notícia ou um chamado que não integram o corpo principal da e Victor da Rosa Na antologia, os poemas são cur- que os portem nem impedirão que possam/ ser intro-
da Amelia de Constituición ou do Iván de Colegiales. antologia, que, assim, ultrapassa o São Paulo: Annablume tos, porém vastos por suas camadas de duzidas nas máquinas” (p. 123): o raso infinito da lin-
Tradução de Flávia Cera número de cem poemas e desautoriza (Selo Demônio Negro), 2009 significados e seu encadeamento: “(Um guagem publicitária adere plenamente aos bilhões do

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capital. O genial Experiência questiona as hierarquias escrita pelo critico de arte, artista plástico e escri-
de classe (p. 63). tor espanhol, Adolfo Montejo Navas, que destaca o
Em Monumento, lemos: “Consiste em esculpir/ o jogo libertário da poética de Brossa e aponta corres-
interior de um buraco/ monumental de modo/ que o pondências com outros autores, como Lezama Lima
vazio afete a/ forma de uma estátua.// Propiedad par- e Alberto Pimenta.
ticular./ Prohibido el paso.” (p. 55) Note-se o uso do Lamente-se apenas o trabalho editorial da Anna-
espanhol para os interditos do direito de propriedade blume (apesar da beleza da capa de Vanderley Men-
– a língua do governo fascista (o livro é de 1969), que donça, com desenho de Guto Lacaz), que deixou o
reprimia, também no campo linguístico, os catalães. livro com problemas de revisão nos textos em prosa
Askatasuna, o título de um de seus livros, significa (em revanche, a revisão da poesia, feita pelos escri-
liberdade em... basco. Vê-se aqui uma ética antimon- tores Josep Domenèch Ponsatí e Pere Galceran-Uyà,
umentalizante e antitriunfalista: “O Homem sempre é exemplar): vários erros de separação de sílabas,
fala com a autoridade/ que lhe dá o fracasso” (p. 141). obviamente feita por um programa automático; a
A ironia é outro material imprescindível; do livro tradução para o português de La clau a la boca apa-
Liberdade, foram recolhidos poemas que aludem à rece na página em catalão (p. 10) e sem a indicação
censura e às forças de segurança. Apenas na página do ano do livro; há deslizes como “um pesquisa” (p.
71, podemos ler quatro exemplos: “A censura supri- 161); “da força humanas” (p. 182); “em apostar nessa
miu nove poemas:/ sinal de que os outros não valem diferencia” (p. 185), “poética que se saboteia” (p.
nada.”; o poema escrito em espanhol “É proibido/ 187), “E Sem querer” (p. 188), “condição se nem qua
entrar na obra/ sem o correspondente/ capacete de non” (p. 190), “isso pode ser ainda pais contrato” (p.
proteção.” (a academia muitas vezes produz esses 176), entre outros.
capacetes); este outro faz-nos lembrar do aviso “en- Concluo, porém, com Brossa e sua caracterização
tre sem bater” à porta do Barão de Itararé, depois de da música de câmara, adequada também para esta
visita da polícia de Getúlio: “Não, você se engana; é grande poesia, tão singular: “[...] trata-se/ de escutar
o vento/ que golpeia a porta.” Nem é de uma invulgar a si mesmo, mais que/ de fazer os outros escutar”
consciência ética materialista: “Como podemos dizer (p. 115). Deste um pode-se partir para o vário.
que Deus não existe/ se nem mesmo há um Deus que
De Joan Brossa, o SOPRO já publicou, no número 10
não/ existe?” Versos corajosos contra a tradição in- (maio/2009), Nove Poemas selecionados por Victor da Rosa,
quisitorial espanhola, como estes: “Quando diz deus que também assina o verbete Cadeiras (publicado no número
17, dezembro/2009) sobre o autor catalão. O material pode ser
a cruz se apodera da barata” (p. 107). visualizado no site: http://www.culturaebarbarie.org/
O livro conta ainda com uma “coda brossiana”, sopro

SOPRO no próximo número:


Debate Resenha
Ideologia jornalística e Poder
Hugo Albuquerque
de The enemy of all (de Daniel Heller-Roazen)
por Alexandre Nodari

www.culturaebarbarie.org/sopro
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