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JANEIRO 2008 76 Educação


L U I Z C A R L O S V I L L A LTA
E ANDRÉ PEDROSO BECHO

Abaixo o João Bobão


Cinema e TV reforçam estereótipos que
surgiram com a vinda da Corte.
Ao superar a caricatura, pode-se
desvendar com os alunos um período
e personagens fascinantes
m d o s m o m e n t o s mais significativos e importan-

U
tes de nossa História tem sido relegado a relativo es-
quecimento. Quando lembradas, a transferência da
Corte portuguesa para o Brasil e suas personagens
costumam receber um tratamento simplista e carica-
to. D. Pedro I tem ares de herói nacional e de artífice
da Independência, além de uma imagem ligada ao
clichê do macho brasileiro, mulherengo e conquista-
dor (o que, de certa forma, é endossado por uma
“historiografia oficial”). Seu pai, D. João VI, inversa-
mente – ele, que foi o único soberano europeu a pôr
os pés em terras americanas na época colonial –, é
representado como um rei medroso, preguiçoso, glu-
tão e despreparado, à frente de uma Corte corrupta
e de má reputação entre as potências européias.
Os principais meios de comunicação, como cinema,
teatro e televisão, têm contribuído para a produção
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e difusão desses estereótipos, tornando-os senso régia, considerando-se a época. Também mostram
comum entre os brasileiros. Quem não se lembra as hesitações de D. João VI. Mas procuram situá-las
do filme “Carlota Joaquina”, de Carla Camurati, ou no contexto em que se desenvolveram: em meio às
da minissérie “O Quinto dos Infernos”, da TV Glo- pressões inglesas e francesas, ao embate entre libe-
bo, paródias sobre esse momento histórico? E de rais e absolutistas e, como se não bastasse, entre
suas personagens, o bobão D. João e a ninfomanía- portugueses e brasileiros (estes últimos começavam
ca, grotesca e ambiciosa D. Carlota? então a se ver dessa maneira).
Freqüentemente, o ensino de História, em vez de
Longe de ser um soberano covarde, medroso
acompanhar as inovações da historiografia, repro-
duz as caricaturas dos filmes e da TV como “ilustra- e bobalhão, D. João agiu, em meio a pressões diversas,
ção” do que se viu nas aulas, ou seja, como “verdades
como um grande estrategista político
históricas”, sem qualquer reflexão crítica. Em vez de
subverter o cânone, utilizando estas produções como Assim, por um lado, D. João favoreceu a
fontes a serem discutidas, a escola o reitera.
Perde-se, assim, a oportunidade de abordar em
sala de aula toda a complexidade e a importância
Inglaterra ao abrir os portos e romper com o mono-
pólio comercial português, medida que prejudicou
todo o esforço que, desde a ascensão de D. José I ao
E
Saiba Mais
daquele período, além de dispensar a análise do trono (1750), procurava desenvolver as manufaturas
momento político e cultural em que as referidas no Reino de Portugal. O mesmo efeito teria o Tratado DIAS, Maria Odila Leite
obras de ficção foram produzidas. de Navegação, Comércio e Amizade, de 1810, que da Silva. A interiorização
da metrópole e outros
Os anos da permanência da Corte no Brasil (1808- fixava tarifas alfandegárias mais baixas para os pro- estudos. São Paulo:
1821) trouxeram mudanças radicais na vida e nos dutos ingleses. Por outro lado, D. João revogou, em 1º Alameda, 2005.
costumes da antiga colônia. Nesse processo, D. João, de abril de 1808, as proibições que pesavam no
LIMA, Oliveira. D. João VI
longe de ser um bobalhão, mostrou-se um político desenvolvimento das manufaturas no Brasil. Além no Brasil. 3ª ed. Rio de
hábil. Governou na confluência de interesses da Cor- disso, não cedeu às pressões inglesas para pôr fim à Janeiro: Topbooks, 1996.
te portuguesa, da abastada sociedade fluminense e, escravidão (que já tinha sido abolida em Portugal em
MALERBA, Jurandir. A
de resto, da região Centro-Sul do Brasil, cujo apoio 1761), pois sua manutenção era importante não só Corte no exílio: civilização e
econômico e político era essencial para a sobrevivên- do ponto de vista econômico, mas também para a poder no Brasil às
cia da monarquia. Como contrapartida ao suporte fi- cooptação das camadas proprietárias do Brasil. vésperas da Independência
(1808-1821). São Paulo:
nanceiro de grandes comerciantes e proprietários, o Em relação aos que se engajaram na Revolução Companhia das Letras,
rei fez farta distribuição de mercês e títulos. Pernambucana de 1817 (espalhando-se por outras 2000.
É verdade que os historiadores falam sobre a partes do atual Nordeste, contra o governo do Rio
corrupção e o caráter arcaico da administração de Janeiro), o soberano reagiu com violência, man- Para ensinar o
período de forma
diferente:
DIVULGAÇÃO

FONTES, Sílvia Drumond


Silva. “A Corte
Portuguesa no Brasil”.
(http://www.fafich.ufmg.br
/pae/independencia.htm).

D. João chega à Bahia,


na pele de Marco
Nanini, em filme que
aborda a estada da
Corte no Brasil: pro-
duções audiovisuais
são ótimas fontes para
se tratar do período
em sala de aula.
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CEDOC / GLOBO
Ao lado, André dando tropas, ordenando a execução e a prisão de
Marques em inter- líderes. Iniciativas que estão distantes da imagem
pretação hilária de de um soberano covarde, medroso e bobalhão.
D. João VI, na minissé-
O professor também pode trabalhar com as
rie “O Quinto dos
transformações induzidas no espaço urbano da
Infernos”: versões da
capital. O monarca investiu na mudança da fisiono-
história veiculadas
mia do Rio de Janeiro e em iniciativas culturais,
pela mídia podem ser
confrontadas com destacando-se a introdução da imprensa e a criação
documentação de da Biblioteca Régia, do Jardim Botânico, da
época. Academia de Belas-Artes e de algumas escolas supe-
riores. Estas realizações se inseriam num projeto
maior de “civilizar” o Rio de Janeiro, permitindo a
instalação na cidade de uma Corte nos moldes
europeus, além de se glorificar e buscar adeptos
para a monarquia. Gravuras e desenhos de artistas
como Debret e Montigni dão conta deste tema.
D. João, portanto, não foi um simples defensor
do domínio português sobre o Brasil, uma simples
marionete de seus ministros e de lorde Strangford
Idéias, projetos e personagens em confronto
(um dos principais representantes ingleses na
Corte). Num contexto de guerra, agiu dentro das
Alguns trechos de documentos que po- gal e dos Algarves, do horroroso atentado limitadas margens de manobra de que dispunha,
dem ser utilizados pelo professor em sa- cometido nesta Capitania nos dias seis e se- procurando firmar sua soberania e preservar a uni-
la de aula servem para ilustrar a varieda- guintes de Março do presente ano, viram (...)
de de projetos e posições no momento o primeiro exemplo entre os Portugueses de
dade do império luso-brasileiro, ou, pelo menos, o
conturbado de transferência, permanên- deslealdade a seu natural e legítimo Sobera- controle de sua família sobre as partes de que este
cia e partida da Corte portuguesa. no (...) que incalculáveis males não amea- se compunha. Foi, com certeza, um grande estrate-
çam o Brasil no seu estado atual? O exem- gista político e um reformador, ainda que defensor
Carta do marquês de Alorna ao plo da Ilha de São Domingos [isto é, o Haiti,
príncipe regente D.João (1801): onde houve uma rebelião de escravos em
do absolutismo – uma ambigüidade que pode
V. A. R. tem hum grande Imperio no Bra- 1792, com a morte de inúmeros senho- muito bem chamar a atenção para as transforma-
zil, e o mesmo inimigo que ataca agora res e, depois, a conquista da Independên- ções políticas daquela época.
com tanta vantagem, talvez que trema, e cia, em 1804] é tão horroroso, e está ainda D. Carlota Joaquina, a maior vítima dos precon-
mude de projecto, se V. A. R. o ameaçar tão recente, que ele só será bastante para
de que se dispõe a hir ser Imperador aterrar os Proprietários deste Continente [...]
ceitos, tem recebido hoje um tratamento mais cui-
n’aquelle vasto território donde pode todos os Vassalos de Sua Majestade devem dadoso da historiografia. Ela foi uma articuladora
facilmente conquistar as Colônias espa- acudir sem demora e destruir no berço uma política importante, principalmente por sua partici-
nholas e aterrar em pouco tempo as de rebelião que se ganhasse forças faria nadar pação nos conflitos dinásticos espanhóis. Causou,
todas as Potências da Europa. em sangue este delicioso País.
inclusive, problemas para a diplomacia portuguesa,
Proclamação ao Povo Pernambucano, Carta de D. Carlota para D. João VI levando D. João e seus ministros a fazerem, em
de 9 de março de 1817, feita pelo (1822), depois de não tê-lo acom- determinado momento, um cerco político à sua
governo provisório republicano, ins- panhado no juramento da atuação, que não se limitava ao que geralmente se
taurado pelos revolucionários contra Constituição portuguesa de 1822:
o governo central do Rio de Janeiro: Na terra do desterro eu serei mais livre que
esperava de uma pessoa do sexo feminino, mesmo
A Pátria é a nossa mãe comum, vós sois V. M. em vosso palácio. Eu levo comigo a li- pertencente à nobreza.
seus filhos, sois descendentes dos valoro- berdade: o meu coração não está escravi- Para os professores de História, lançar novos
sos Lusos, sois Portugueses, sois america- zado; ele jamais curvou diante de altivos olhares sobre Carlota Joaquina pode ser uma ini-
nos, sois Brasileiros, sois Pernambucanos. súditos que têm ousado impor leis a V. M....
ciativa estimulante. Significa analisar o ativo papel
Proclamação aos habitantes de Carta de D. Pedro para D. João VI, de desempenhado por uma mulher no jogo político
Pernambuco feita pelo capitão 19 de junho de 1822: de então. Uma mulher que muitas vezes tomou ati-
José Maria Monteiro, um dos Eu ainda me lembro e me lembrarei tudes desvinculadas dos interesses portugueses e
comandantes do bloqueio do sempre do que Vossa Majestade me dis-
porto de Recife, promovido por se, antes de partir, dois dias, no seu quar-
de seu marido e rei, D. João.
ordem de D. João (1817): to: ‘Pedro, se o Brasil se separar, antes se- O mesmo vale para o ensino de todo aquele rico
Habitantes de Pernambuco! Chegando a ja para ti, que me hás de respeitar, do período, determinante para a história do país. Uma
notícia aos Governadores do Reino de Portu- que para algum desses aventureiros’. estratégia interessante seria tomar como ponto de
partida os próprios estereótipos. Discussões em
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DIVULGAÇÃO
Qualquer versão é válida?

O filme “Carlota Joaquina, Princesa vê a obra de Debret, mas sim a famí-


do Brazil” (1995), de Carla Camurati, lia real. A infanta Maria Tereza acha o
deliciosa paródia sobre a Cor te por- quadro lindo; já a rainha D. Carlota,
tuguesa no Brasil, sugere que todos depois de contemplá-lo por algum
os documentos históricos são menti- tempo, diz: “Ah, não havia tanta gen-
rosos, principalmente as imagens. te, tenho cer teza”. D. João retruca:
Uma das seqüências mais interessan- “Carlota, por Deus, pões sempre de-
tes do filme é aquela em que o pin- feito em tudo!” Esta seqüência faz
tor Jean-Baptiste Debret apresenta par te de um conjunto maior, no qual
duas de suas obras para a família real. a cineasta defende que a História es-
Em relação ao quadro “Vista do Lar- tá recheada de mentiras.
go do Palácio”, as reações das perso- O filme dá a entender que a verdade
nagens são distintas. A câmera se po- histórica simplesmente não existe.
siciona no lugar do quadro, exibindo Uma vez que o saber histórico com-
as expressões das personagens que o por ta inúmeras versões, qualquer
obser vam. Assim, o espectador não versão seria válida. Será?

ACERVO FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL


sala de aula e a exibição do filme “Carlota O filme e a minissérie citados devem ser toma- Acima, “Vista do
Joaquina” ou de capítulos da minissérie “O Quinto dos igualmente como documentos. São testemu- Largo do Palácio”, de
dos Infernos” permitirão identificar o senso nhos do tempo em que foram produzidos, ou Debret, cuja apresen-
comum em voga entre os alunos, e na sociedade, seja, da década de 90 do século passado, período tação aos monarcas é
retratada no filme de
sobre a presença da Corte no Brasil. O confronto em que se vivia uma incerteza econômica, além
Carla Camurati.
dessas representações com aquelas encontradas de pulularem escândalos na vida pública e priva-
em documentos escritos e em imagens produzidas da de políticos, do presidente da República a
no próprio período poderá indicar contradições e ministros. Com isso, será possível entender os
À esquerda, cartaz do
dar margem a questionamentos e a dúvidas por porquês históricos dos estereótipos. Grosso filme “Carlota Joaqui-
parte dos alunos. Em seguida, eles poderão apro- modo, essas produções estabelecem uma linha de na”, no qual se nota
fundar seus estudos com base na análise de outros continuidade entre a corrupção e a velhacaria uma crítica aos políti-
documentos, das contribuições oferecidas pela his- dos políticos da época joanina e as dos atuais, cos do século XX.
toriografia e mesmo pelos livros didáticos. simplificando o passado e eliminando as diferen-
O uso de documentos de época é muito profí- ças entre ele e o presente.
cuo, mas recorrer a fontes primárias requer certo
Filme e minissérie dos anos 1990 também ref letem
cuidado. Sua eficácia em termos pedagógicos
depende dos procedimentos críticos da investiga- o seu tempo, marcado por escândalos políticos.
ção histórica. Não se pode empregá-los como
Por isso ressaltam estereótipos ligados à corrupção
forma “ilustrativa” e “comprobatória” de interpre-
tações transmitidas prontas e acabadas pelo profes- e à velhacaria da época joanina
sor. Isso não enriquece o aprendizado. Os docu- A mesma leitura crítica deve ser feita nos docu-
mentos devem instigar os alunos a opor imagens e mentos produzidos na época joanina. Os professo-
representações, analisando quem, quando, como e res podem valer-se atualmente de farta produção
por que elas foram produzidas, detectando suas historiográfica, que permite escapar de uma visão
diferenças e semelhanças, e produzindo uma sínte- simplificadora sobre esse período, além de um
se interpretativa no fim do exame de todo o mate- acesso mais fácil a fontes históricas.
rial. Com isso, participam do processo de constru- Um exemplo de documentação passível de ser
ção do conhecimento em sala de aula. utilizada são os volumes da Gazeta do Rio de
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Exemplar do Correio Janeiro, periódico que reproduzia documentos ofi-

ACERVO FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL


Braziliense editado em ciais e noticiava fatos da vida política. Todas as
Londres em 1808: as suas edições estão disponíveis no Acervo Digital
versões dos fatos
da Biblioteca Nacional (www.bn.br). Deve-se aler-
apresentadas pelo
tar os alunos que esse periódico era publicado na
periódico de Hipólito
forma das tradicionais gazetas do Antigo Regime,
da Costa podem ser
controladas pela censura régia, e que, portanto,
comparadas com
fontes oficiais. traziam apenas o discurso político afinado com
os interesses da monarquia lusitana. Esse discur-
so pode ser comparado com o de outro periódico
da época, o Correio Braziliense, de Hipólito da
Costa, que, por ser editado e impresso na
Inglaterra, permitia ao editor divulgar opiniões e
discursos políticos que às vezes divergiam da
posição oficial presente na Gazeta. Todos os volu-
mes do Correio foram reimpressos recentemente
pela Imprensa Oficial de São Paulo e também são
de fácil acesso.
Para despertar o interesse dos alunos, usar
imagens produzidas pelos artistas da Missão
Francesa também é uma boa opção. É importante
destacar o esforço desses pintores, como vimos,
de construir uma imagem da monarquia e da
Corte segundo os moldes tradicionais europeus.
São fontes extremamente ricas: permitem ao pro-
Um rei de muitas caras fessor abordar as linhas gerais do projeto político
joanino de dar ares de Corte ao Rio, fortalecendo
a monarquia e um governo central, expressam

ACERVO FUNDAÇÃO BIBLIOTECA NACIONAL E ACERVO MUSEU HISTÓRICO DO ITAMARATI


Se o perfil político de D. João VI é motivo de opiniões divergentes, seus retra- concepções estéticas e culturais de artistas euro-
tos são mais variados ainda. De peruca, desgrenhado, bem penteado, magro, um peus, com um olhar estrangeiro que valorizava o
pouco mais rechonchudo, o rei por tuguês já foi até representado com um vi- exótico, e mostram as peculiaridades da socieda-
sual que lembra o estilo black power. Políticos e historiadores bem que se em- de da Colônia e suas contradições.
penharam em construir imagens diversas do rei por tuguês, mas parece que pin- O ensino da história do período de D. João VI,
tores e desenhistas os superaram nesta tarefa. (Equipe RHBN) por fim, não deve levar em consideração apenas o
processo de imposição de um projeto político
monárquico, defensor de uma sociedade escravis-
ta e de uma cidadania restrita. É preciso focalizar
também os projetos que se contrapunham aos do
governo português, e que levaram à instalação de
uma arena de combate após a partida do sobera-
no, em 1821. Houve, de fato, distintos projetos
políticos, que hoje estão esquecidos. Os precon-
ceitos e estereótipos não vitimam apenas a Corte
portuguesa no Brasil e suas personagens princi-
pais. Ao reiterar o cânone, também apagam da
memória os que na época sonhavam com outros
Brasis. H

LUIZ CARLOS VILLALTA É PROFESSOR DE HISTÓRIA DO


BRASIL E DE PRÁTICA DE ENSINO DE HISTÓRIA NA UFMG.
ANDRÉ PEDROSO BECHO É MESTRANDO EM HISTÓRIA NA
UFMG.

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