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Escola Universitária

História da Medicina Veterinária


Vasco da Gama
Manuel Magalhães Sant’Ana 2016-2017

Mestrado Integrado em Medicina Veterinária


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História da Medicina Veterinária

Ano lectivo de 2016/2017


Manuel Magalhães Sant’Ana
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História da Medicina Veterinária Manuel Magalhães Sant’Ana 2016-2017

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Índice

Introdução .................................................................................................................................... 2
Domesticação Animal .............................................................................................................. 3
Antiguidade Greco-Romana .................................................................................................. 6
Islamismo .................................................................................................................................... 11
Séc XVI – Renascimento ......................................................................................................... 12
Séc XVII – Idade da Revolução Científica ........................................................................ 17
Séc XVIII – Surgimento da Profissão Médico-Veterinária ............................................. 22
Séc XIX – Nascimento da Medicina Moderna................................................................. 30
A Medicina Veterinária em Portugal .................................................................................. 44
Sécs. XX e XXI – Uma Só Saúde ........................................................................................... 46
Ética Da Experimentacao Animal ........................................................................................ 50
Bibliografia .................................................................................................................................. 54

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História da Medicina Veterinária Manuel Magalhães Sant’Ana 2016-2017

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Introdução

“ Quem não conhece a história universal,


não tem lugar no mundo espiritual,
quem não conhece a história da sua disciplina,
é um estranho na sua própria casa.”
August Postolka
(1861-1922, Médico Veterinário, Áustria)

Porquê uma disciplina de História da Medicina Veterinária (H.M.V.)? Existe, nos nossos dias,
uma separação crescente entre a profissão de médico veterinário e o estudo da sua história.
A exigência de conhecimentos científicos cada vez mais complexos e exaustivos não deixa
espaço para se prestar atenção à evolução do pensamento médico através dos tempos. E,
assim, a H.M.V. vai-se tornando numa curiosidade anacrónica praticada por historiadores ou
simples amadores.

Na verdade, só compreendendo os métodos anteriormente usados para ultrapassar as


dificuldades e aprendendo com os erros praticados no passado estaremos em melhores
condições para crescer como cientistas e como seres humanos.

O saber científico, isolado e cristalizado, extingue-se. Pelo contrário, na contínua evolução


da arte da Medicina Veterinária, o nosso saber dá continuidade ao que outros antes de nós
começaram, tal como as gerações vindouras dependerão daquilo que nós descobrirmos e
aprendermos.

Reparará o aluno que a história aqui contada, feita de pequenas-grandes estórias, é ao


mesmo tempo da Medicina Humana e da Medicina Veterinária; pois pela sua
complementaridade, elas são indissociáveis uma da outra, caminham a par e há apenas 250
anos podem ser consideradas disciplinas autónomas.

Serve esta unidade curricular - e com ela esta prosaica ‘sebenta’ - para incutir no aluno o
gosto pela investigação histórica, para fazê-lo sentir orgulho da profissão médico-veterinária
e motivá-lo a fazer mais e melhor do que os seus predecessores.

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História da Medicina Veterinária Manuel Magalhães Sant’Ana 2016-2017

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Domesticação Animal

A domesticação, de plantas e animais, é provavelmente o evento mais importante na


história da humanidade. Nenhum outro terá tido o mesmo impacto e gerado tantas
transformaçoes sobre o ser humano e sobre a natureza que nos rodeia. Para mais, não é
possivel compreender a evolução
da espécie humana sem estudar a
relação do homem com os outros
animais. O fascínio pelos animais e
o importante papel que eles
desempenham na vida do homem
paleolítico é bem patente nas
gravuras rupestres de Foz Coa e nas
pinturas de Altamira, em Espanha
ou nas de Lascaux, em França. Estas
gravuras terão sido feitas quando o homem era ainda nómada e caçador-recolector,
vivendo em grupos pequenos e isolados. A domesticação das plantas, há 12 mil anos, deu
origem à agricultura e à sedentarização e marca a transição entre os períodos paleolítico e
neolítico (10 000 a.C.). À excepção do cão, a domesticação dos animais ocorreu a partir do
momento em que o homem se sedentarizou e as primeiras civilizaçoes se desenvolveram.

Tal como a agricultura, a domesticação de animais não foi um fenómeno isolado ou bem
definido no tempo e no espaço. Ela terá ocorrido gradualmente, à escala global e em função
das espécies existentes em cada região do planeta. Uma das poucas certezas que se tem
sobre este processo é que o cão foi o primeiro animal a ser domesticado, sendo que a sua
origem é motivo de acesso debate entre os antropozoólogos. É provável que a domesticação
do lobo (canis lupus) tenha ocorrido simultaneamente na Ásia e na Europa dando origem ao
cão (canis familiaris) há cerca de 15 mil anos atrás (13 000 a.C.).26

Mas não se pense que o lobo foi roubado à natureza pelo ser humano. Na verdade, a
domesticação do lobo dependeu pouco da nossa vontade. Tudo indica que terá sido o lobo
a aproximar-se do homem na procura de restos de alimento. Por um mecanismo de selecção
natural, alguns lobos comecam a tolerar o homem, dando origem ao proto-cão. A partir
desse momento, o homem selecciona, de forma não totalmente consciente, os proto-cães
por características desejáveis, nomeadamente pela sua docilidade. Esta reprodução
selectiva vai despoletar uma cascata de alteraçoes fisícas, comportamentais e relacionais
que vão dar origem a uma nova espécie, o cão doméstico, e à criação do elo homem-
animal (human-animal bond).

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Daqui se depreende que a domesticação do


cão obedeceu a um processo de mútua
sociabilização, pois ambas as espécies
‘compreenderam’ as vantagens da
cooperação inter-específica: o Canis lupus,
ao acompanhar os humanos, tinha a
prerrogativa de obter alimento todo o ano; o
Homo sapiens, por seu lado, encontrou naquele canídeo um aliado vigilante, protector contra
os predadores e atento às futuras presas. Esta entreajuda evoluiu de geração em geração
para uma ligação afectiva e cúmplice, que perdura até aos dias de hoje. Por isso dizemos
que cão e homem co-evoluiram. Nas palavras de Greger Larson, da Universidade Oxford (UK),
“quanto mais sabemos sobre o processo de como os cães se associaram às pessoas, mais
aprendemos sobre as origens da civilização".

Foi só muito mais tarde que o homem comecou a seleccionar artificialmente cães pela
sua utilidade (caça, trabalho, pastoreio, companhia), dando origem às centenas de raças
diferentes espalhadas pelos quatro cantos do planeta. Neste prolongado processo de
domesticação, cães e pessoas sofreram um fenómeno de evolução convergente, em que os
primeiros desenvolveram competências especializadas para a leitura do nosso
comportamento social e comunicativo. Pensa-se, inclusivamente, que a co-evolução dos
cães com os humanos os pode ter dotado de uma teoria da mente para os relacionamentos
sociais. Por outras palavras, os cães parecem ser capazes de ler as nossas emoçoes e saber
quando estamos alegres ou tristes.

Já no que diz respeito aos outros animais, depois de um período de aproximação ao


homem na procura de segurança, a sua adopção pelo homem terá tido como objectivo
inicial a obtenção duma reserva de alimento para períodos de carência. Em particular, a
domesticação dos ruminantes marca uma alteração radical nos hábitos nómadas dos seres
humanos, pelo menos tão importante como a descoberta da agricultura. A domesticação
resultou em animais com cérebros menores e sentidos menos apurados do que os seus
correspondentes selvagens. Isto acontece porque há mais recursos disponíveis, menos
competição por esses recursos e menor necessidade de dispender energia para os obter. De
certa forma, os animais domésticos são versoes juvenis dos seus congéneres selvagens. A este
fenómeno de infantilização, que permite a docilidade e o confinamento, chamamos
neotenia.

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A cabra descende do Ibex, a cabra selvagem, e a sua domesticação teve lugar há uns
10 000 anos no Médio Oriente. A ovelha, pelo seu tamanho e docilidade, foi facilmente
amansada a partir do Muflão asiático há cerca de 9 000 anos atrás. E só então o homem terá
compreendido os benefícios adicionais que podia obter para além da sua carne: a lã, o leite
e seus derivados. O cao aprende a guardar os rebanhos em vez de os atacar, como fazia o
seu ancestral lupino, e o homem percebe que pode ganhar com isso.

Só mais tarde, há sete ou oito mil anos, são domesticados


os bovinos, como mostra esta pintura rupestre proveniente
do deserto Tassili n’Ajjer, no Sahara argelino. Já não os
vemos a correr livremente mas sim alinhados e em
interacção com os humanos. O boi descende do auroque
(Bos primigenius) que pode ser visto na gruta de Altamira
(pag.3): grande, robusto e nervoso, terão passado muitas
gerações até poder ser utilizado nas actividades
agropecuárias.

A revolução neolítica trouxe uma mudança radical de estilo de vida para a espécie
humana, mas não trouxe necessariamente bonança, pelo menos de ínicio. Na verdade, a
saúde dos primeiros agricultores era muito pior da dos caçadores recolectores que os
precederam. A dieta carnívora e silvestre do homem paleolítico fornecia-lhe as fontes
proteicas e vitamínicas que o tornaram mais forte, alto e inteligente. Como se deslocava com
frequencia, não acumulava lixo ou dejectos e era pouco afectado por doenças parasitárias
ou infecto-contagiosas. Ao invés, o homem do neolítico alimentava-se pior, acumulava
dejectos e lixo e, fruto da domesticação animal, começou a ser afetado por zoonoses (i.e.
doenças originárias dos animais e transmissíveis ao homem), como a brucelose, a salmonelose
e a leptospirose.22

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Antiguidade Greco-Romana

A prática médica, quer humana quer veterinária, acompanha a história da Humanidade


desde tempos imemoriais. Para os pensadores da antiguidade o pensamento médico era
uma cosmogonia porque não se limitava ao indivíduo mas visava compreender a origem e o
funcionamento de todo o Universo (Cosmos). Por isso é que se fala num sistema filosófico-
científico que passava pela justificação de teorias filosóficas consideradas verdadeiras,
independentemente da sua cabal compreensão.

Na Grécia Antiga (pelo menos desde o filósofo Empédocles, no séc. V a.C.) a vida era
vista como a união dos quatro elementos naturais: Terra, Água, Ar e Fogo que se
relacionavam com as respectivas estações do ano (Outono, Inverno, Primavera e Verão).
Tudo gravita em redor destes quatro princípios primordiais, incluindo a saúde e a doença. A
influência exercida pelos elementos naturais na instauração e evolução de uma patologia
está bem patente na Teoria dos Quatro Humores ou Teoria Humoral, aqui representada de
forma esquemática:

Humor Sangue Bílis Amarela Bílis Negra Fleuma


Estação Primavera Verão Outono Inverno

Húmido Seco Seco Húmido


Qualidades
Quente Quente Frio Frio

Elemento Ar Fogo Terra Água


Sanguínea Colérica Melancólica Fleumática
Origem
(corajosa) (enraivecida) (sonolenta) (calma)
Cérebro
Órgão Fígado Vesícula Biliar Baço
Pulmões

Segundo a doutrina humoral, o sangue é produzido e armazenado no fígado e levado


ao coração, onde aquece, sendo considerado quente e húmido como o ar; a fleuma, que
compreende todas as secreções mucosas incluindo o sémen, o suor e a saliva, provém do
cérebro ou pulmões e é fria e húmida por natureza, como a água; a bílis amarela é
secretada pela vesícula biliar e é quente e seca como o fogo, enquanto a bílis negra é
produzida no baço ou no estômago e é de natureza fria e seca, como a terra.1

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Nos organismos vivos saudáveis, os


quatro humores encontram-se em
harmonia (estado de eucrasia). A doença
surge quando há uma alteração nas
proporções humorais (discrasia),
provocada por factores quer internos quer
externos. O humor em excesso putrefaz-se
induzindo a febre ou “ebulição” que é a
primeira manifestação física do
desequilíbrio dos humores. Daqui resulta uma crise em que há uma descarga fisiológica
(vómito, fezes/diarreia, expectoração, sudação) ou provocada (sangria, emése ou purga)
do fluido que se encontra em excesso e em conflito interno com os outros, daí advindo a cura
ou a morte.

Para ilustrar como a teoria humoral funciona na prática, escolhi um trecho de um pequeno
conto do genial romancista russo Leon Tolstoi, escrito no não tão distante ano de 1860:

“Contudo, nos últimos tempos, depois de estar em casa adquirira pouco a pouco uma reputação
de habilidade extraordinária e até um pouco sobrenatural na arte veterinária. Sangrava uma vez,
duas vezes; depois deitava o cavalo, fazia-lhe não sei o quê na coxa, metia-o em talas, cortava-
lhe o jarrete até fazer sangue, apesar dos coices e dos relinchos; pretendia que aquelas
demonstrações do animal significavam: “Deixe correr o sangue por cima do meu casco.”
Explicava em seguida ao mujique a necessidade de tirar o sangue das veias “para maior ligeireza”
e punha-se consequentemente a cortar com uma lanceta. Em seguida, tendo enrolado o xaile
da mulher na barriga do cavalo, queimava com pedra-infernal ou humedecia com o conteúdo
de um frasco todas as chagas, e algumas vezes fazia engolir ao animal tudo que lhe lembrava. E
quantos mais cavalos matava, mais acreditavam nele e mais lhe traziam.”15

As doenças nunca atingiam um órgão específico ou região anatómica mas sim o indivíduo
no seu todo. Do mesmo modo, não interessava saber qual a razão porque os humores se
desarmonizavam. O importante era repor o equilíbrio. Segundo o Princípio da Antipatia, as
coisas contrárias curam-se entre si (e.g. medicamentos frios e húmidos eram recomendados
em doencas quentes e secas). Contraria contrariis curantur, esta era a regra de ouro da
farmacologia antiga.21

Três pensadores, considerados infalíveis por contemporâneos e seguidores, vão ser os


principais responsáveis pelo aprofundamento desta teoria: Hipócrates, Aristóteles e, mais
tarde, Galeno. A teoria dos humores só começou a ser rebatida a partir do século XVII e
prevaleceu até à segunda metade do século XIX, dominando o pensamento médico durante
2500 anos!

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Hipócrates de Cós (c. 460 a.C. a 377 a.C.) é unanimemente


considerado o Pai da Medicina, embora este epíteto seja um
pouco forçado. Não se sabe ao certo quem era ele - se é que
existiu - mas parece plausível a teoria que defende que o seu
saber, compilado no enciclopédico Corpus Hippocraticum,
seja uma colecção de ensinamentos seus, de
contemporâneos e de seguidores. Hipócrates considerava a
doença como um fenómeno natural e não a consequência
de um castigo divino; usando métodos empíricos ele fez
avanços em áreas tão díspares como anatomia, fisiologia,
patologia geral, terapia, diagnóstico, prognóstico, cirurgia, obstetrícia e ginecologia,
doenças mentais e ética.

O nome de Hipócrates está intimamente ligado não só ao famigerado Juramento Médico


ou Jus Jurandum mas também ao Método Hipocrático que rege a actuação semiológica e
deontológica do médico por quatro regras fundamentais:

1. Observação: Uso dos cinco sentidos. Observar o paciente


e tudo que o rodeia antes de tirar conclusões.
2. Estudar o paciente e não a doença: relacionar a idade,
sexo, história clínica, ambiente, hábitos alimentares entre
outros.
3. Avaliar honestamente: dada a diminuta capacidade de
intervenção terapêutica, muitas vezes ao médico da
antiguidade só competia emitir um prognóstico, e dizer se
o paciente sobreviveria ou não. E isto era, muitas vezes, o
suficiente…
4. Confiar na Natureza: o médico deve actuar até ao limite das suas capacidades, mas não
deve ir para além disso. Segundo palavras de Hipócrates: “No que diz respeito às doenças
atenta a duas coisas: ajudar e, acima de tudo, não fazer mal (primum non nocere)”.
A actualidade do que aqui foi escrito é fascinante. Estes princípios são regras universais
para sempre a ser seguidas pela classe médica.

E se Hipócrates é tido como pai da medicina, com a mesma propriedade podemos


considerar Aristóteles (383 a.C. – 322 a.C.) o Pai da Zoologia e, por inerência, da Medicina
Veterinária. Historia Animalium, De Partibus Animalium e De Genetatione Animalium são
alguns dos tratados dedicados à classificação, comportamento, fisiologia, anatomia
comparada, embriologia e patologia animal. Só um observador atento e dedicado
investigador poderia ter compilado tanta informação sobre variadíssimas espécies animais.
Deixo um trecho do Livro VIII de Historia Animalium [Da História dos Animais]:

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“A vida dos animais pode, então, ser dividida em dois actos:


procriação e alimentação; Pois é nestes dois actos que se
concentram todos os seus interesses e toda a sua vida. O seu
alimento depende em muito da substância principal da sua
constituição; pois a fonte do seu crescimento, em qualquer caso,
será esta substância. E como tudo o que é conforme com a natureza
é agradável, todos os animais buscam o prazer, mantendo a sua
natureza.”2

Claudius Galeno (129-200 d.C.) foi o mais influente médico da Era Romana e o último dos
grandes pensadores de acordo com a tradição grega. Autor de mais de 500(!) livros, os seus
dizeres perduraram quase 1500 anos como verdades inabaláveis. A ele se deve a
determinação da origem ou “temperamento” da doença (colérica, sanguínea, fleumática e
melancólica), acrescentando um quinto elemento à Teoria Humoral: a Pneuma que era para
ele o princípio primordial da vida.
Galeno era um clínico muito atento e perspicaz. Dava especial
atenção ao pulso e usava muitos medicamentos, especialmente
vegetais, segundo a teoria dos quatro humores: para uma doença
caracterizada como fria e húmida, provocada por um excesso de
fleuma, era necessário um fármaco quente e seco. Era igualmente um
cirurgião meticuloso que aperfeiçoou o uso de instrumentos devido à
experiência acumulada como médico de gladiadores no tratamento
de feridas e traumas.13
Através de dissecções em animais vivos (ou vivissecções) fez
inúmeras descobertas anatómicas e fisiológicas. Um dos seus principais contributos para a
ciência terá sido a demonstração de que as artérias transportam sangue em vez de “ar” –
sangue vaporizado ou gasoso – como se pensava até então (artéria significa tubo de ar,
enquanto veia, do grego phebos, significa tubo de sangue).23
No entanto, Galeno nunca dissecou um cadáver humano nem terá assistido a autópsias12
já que a manipulação de corpos humanos era proibida. À conta disso, quase tão numerosos
como as suas descobertas foram os seus erros. Para que os resultados fossem coincidentes
com as suas teorias, Galeno alterou observações de forma ostensiva: ele “imaginou” a
presença de minúsculos poros no septo inter-ventricular do coração para ir ao encontro da
sua teoria da movimentação sanguínea.

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Segundo esta teoria o sangue não circula, mas é antes continuamente produzido pelo
fígado a partir dos alimentos e onde recebe o espírito natural que comanda as funções de
nutrição e crescimento. Daqui flúi, movido por uma força atractiva, para o coração através
da veia cava; ao passar do ventrículo direito para o ventrículo esquerdo, através do tal septo,
o sangue recebe o espírito vital (Pneuma Zoticon) responsável pelos movimentos involuntários
que geram a alegria, a dor e o prazer. Do coração é distribuído para os restantes orgãos que
o consomem e em especial para o cérebro, centro galénico do corpo e da personalidade,
onde recebe o espírito animal (Pneuma Physicon)
que comanda os movimentos voluntários e
fenómenos intelectuais. O que faria mover o
sangue seria, não a sístole cardíaca, mas antes a
sucção provocada pela expansão da mistura do
sangue com o pneuma aquando da diástole.23
Extrapolando abusivamente as suas
conclusões anatómicas de animais para a
espécie humana (na ânsia de tudo saber e
explicar), Galeno levou a que deduções
perniciosas se perpetuassem no tempo até serem
contrariadas no séc. XVI por Vesálio e por Ruini
(ver adiante). Autoridade máxima e médico de
reis e imperadores, Galeno - ao elaborar tantas
obras de forma didáctica mas ao mesmo tempo
dogmática - deixou a ideia propositada de que
tudo já fora descrito por si e de que não restavam
mais questões por responder.

Refiro ainda o enciclopedista romano Aulus Cornelius Celsus (25 a.C. – 50 d.C.). Possuidor
de profundos conhecimentos médicos e cirúrgicos, ele é responsável pelo estabelecimento
dos quatro sinais identificadores dos processos inflamatórios, ainda hoje válidos: Tumor, Calor,
Rubor e Dor (rubor et tumor com calore et dolore). A sua obra “De Medicina” foi o primeiro
tratado médico a ser impresso, após a invensão da tipografia de Gutenberg, no ano de 1478,
sob os auspícios do Papa Nicolau V.

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Islamismo

Com a Era Cristã a maior parte do conhecimento helenístico (isto é, grego) perdeu-se ou foi
suprimido. Coube à cultura islâmica garantir que os ensinamentos filosóficos, matemáticos e
científicos da antiguidade clássica perdurassem através dos séculos. Os árabes eram, e ainda
são, são fervorosos amantes de cavalos. A figura equina conjuga de forma hamoniosa a fina
elegância com o poder físico. Dependendo do cavalo para o trabalho, o transporte e na
arte da guerra, aos árabes se deve o desenvolvimento da arte da equinicultura ou hipiatria.

Al-Jahiz (776-868 d.C.) era zoólogo, além de poeta e filósofo. Escreveu Kitab al-Hayawan
ou ‘Livro dos Animais’. É um belíssimo tratado, conservado na Biblioteca Ambrosiana de Milão,
em que disserta sobre o comportamento animal - das formigas aos camelos - os efeitos do
clima e da dieta e sobre doenças na região da Mesopotâmia, procurando sempre respeitar
os animais como obra de Deus.3

Tratamento Ocular (esq) e


Sangria (dta) em Cavalos

Para não me tornar demasiado exaustivo refiro apenas o pensador persa Avicena (980-1037
d.C.). Criança-prodígio, diz-se que aos 10 anos de idade já dominava o Corão e aos 16 praticava
medicina. O seu saber abarcava todos os ramos do conhecimento mas notabilizou-se como
médico, consagrando no domínio da Medicina o raciocínio dedutivo do sistema filosófico de
Aristóteles. Avicena escreveu uma centena de livros dos quais o Kitab al-Qanun ou ‘Cânon de
Medicina’, que compila o pensamento médico da época, é o mais famoso. O Cânon acabou
por se tornar a obra básica do ensino universitário medieval. Apesar da ascensão do anti-
islamismo, era ainda largamente utilizada no século XVI.3

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Séc XVI – Renascimento

Toda a gente sabe do que se trata quando falamos de Renascimento. Acordando


lentamente da Idade das Trevas, a Europa renasce em termos filosóficos e artísticos. A ciência,
porém, continua a navegar à deriva, sob a égide das restrições religiosas, pois ainda é mais
importante salvar almas do que salvar corpos.

O saber médico ocidental sobrevive cristalizado mas é enriquecido com a absorção da


cultura árabe, cientificamente mais avançada. O maior exemplo da preservação da prática
médica diz respeito à clínica de equinos, como atrás referido. A hipiatria será a ciência
veterinária a merecer maior atenção durante os séculos seguintes.

As armas médicas disponíveis serviam para repor o equilíbrio dos humores e incluiam:

• Sangrias – A sangria ou flebotomia (corte de um vaso sanguíneo) constituía a pedra


basilar da medicina da antiguidade. Se um paciente apresentava febre e rubor, tal
dever-se-ia à ebulição do sangue que, em excesso, teria de ser drenado do organismo.
• Ventosas – A ventosa é um instrumento médico antiquíssimo. O seu propósito seria, ao
provocar congestão na zona aplicada, o de drenar a “má matéria” do sangue,
afastando–a assim para longe dos órgãos vitais. Também era usada em conjunto com
o escarificador para remover sangue periférico.
• Sanguessugas (Hirudoterapia) – Os invertebrados sugadores de sangue (Hirudo
medicinalis) eram usados como alternativa à sangria, na remoção do sangue
deletério, mas também para provocar congestão local, à semelhança das ventosas,
para limpar feridas infectadas e tratar problemas cardiovasculares.
• Purgas – A indução do vómito (através de eméticos) ou da defecação (laxantes) era
usada nas discrasias relacionadas com o excesso de bílis amarela ou negra.
• Ervas medicinais – Com efeitos digestivos, laxantes, eméticos, diuréticos, antissépticos
e outros.
• Dietas – À base de leite, ovos, caldos ou outros.
• Banhos e saunas – normalmente usados antes dos anteriores para arrefecer ou
aquecer o corpo doente; também serviam para purificação.
• Cirurgia – limitada a resolução de feridas de pele, fracturas, luxações, amputações,
fistulações. Estão descritas, embora raramente e na maior parte das vezes sem sucesso,
cirurgias a cataratas, cistólitos (pedras na bexiga) e hérnias.
• Misticismo – rituais simbólicos, uso de amuletos (feitos de pedras ou partes de animais),
exorcismos, o “toque real” e astrologia.

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Os métodos diagnósticos mais utilizados eram:


• Sentidos – Observação (visão), palpação (tacto, com especial atenção para a
temperatura corporal), , audição (auscultação do paciente, muito antes da invenção
do estetoscópio, no século XIX) e olfacto (valioso método para diagnosticar infeccões).
• Esfigmologia – A avaliação do pulso (do grego, esfigmo) já era efectuada na
antiguidade, em particular por Galeno, e na medicina oriental. Avalia-se a amplitude,
o ritmo, a tensão e a simetria. Só a partir do séc XVIII, com o advento do relógio de
pulso, foi possível quantificar a frequência cardíaca.
• Uroscopia – a avaliação da urina (cor, odor, sabor, turbidez e volume) é também um
ancestral e valioso método diagnóstico.

O principal pensador a remar contra a maré do marasmo científico reinante foi Paracelso
(1493-1541). Nascido na Suíça e de seu nome verdadeiro Philippus Theophrastus Aureolus
Bombastus von Hohenheim denominou-se a ele próprio
como superior a Celso (Celsus), famoso médico da
antiguidade romana (ver p.7). Autodidacta,
preocupado fundamentalmente com a medicina (já era
médico aos 17 anos), Paracelso afirmou-se como um
radical opositor das teorias de Galeno. Para rejeitá-las,
teve necessidade de pôr em causa todo o sistema
filosófico-científico que vinha da antiguidade, com as
mais cerradas críticas ao sistema aristotélico.5
Apesar de ser um católico devoto, Paracelso provou
que não era necessário negar a Deus para se ter um
espírito crítico científico: ciência e fé eram compatíveis.
E embora fosse um adepto das ciências ocultas, refutava
o misticismo como método de cura e apregoava a prática clínica como única forma de
conhecimento. Parcelso, que possuía uma personalidade vincada e controversa, escreveu:

“Oiçam, médicos, os pêlos da minha barba sabem mais que o vosso Aristóteles e o vosso Galeno, e
os cordões dos meus sapatos são mais competentes que as vossas escolas.”

A importância de Paracelso na história da medicina está intimamente relacionada com


uma outra actividade, hermética e metafísica, chamada alquimia. Paracelso marca uma
ruptura profunda na história da alquimia: ele estava mais interessado na obtenção de drogas
que conferissem protecção contra doenças e o envelhecimento (panaceia), do que na
transformação dos metais vis em ouro (crisopeia).6
Parecelso adoptou o Princípio terapêutico da Simpatia. Ao contrário de Galeno, ele
utilizava medicamentos de qualidades semelhantes às da doença que queria curar: similia

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similibus curantur, isto é, igual cura igual.21 Assim, plantas que possuíam o formato de um rim
poderiam auxiliar no bom funcionamento deste órgão. Paracelso usava drogas, em especial
minerais, na cura de enfermidades, como sejam o mercúrio para a sífilis humana, o arsénico
para o mormo dos cavalos ou o zinco para as sarnas. É considerado o pioneiro da
Farmacologia contemporânea.

A quem se atribui a paternidade da Cirurgia é ao francês Ambroise Paré (1510-1590). Filho


de um barbeiro-cirurgião, Paré seguiu a mesma profissão e desde cedo revelou uma perícia
assinalável. O barbeiro medieval não se limitava a cortar o cabelo: cabia-lhe também a
responsabilidade de fazer sangrias, punções, cauterizações, extracção de dentes e
pequenas cirurgias. Os barbeiros-cirurgiões eram homens não instruídos, comerciantes e
desprezados pelos sábios que não os consideravam médicos. Na verdade, a profissão
médica tem uma dupla orígem: uma, escolástica, proveniente do ensino académico oficial
e outra, prática, perpetuada pelos barbeiros-cirurgiões.

Ambroise Paré, apesar de nunca ter estudado numa


Universidade, não se limitou a imitar o que os outros faziam. A
ele se deve a invenção de próteses ortopédicas e de
instrumentos cirúrgicos (p.e. fórceps). Foi o primeiro a abolir a
aplicação de óleo a ferver no tratamento de feridas por arma
de fogo, quer em soldados quer em cavalos. Em vez disso,
lavava a ferida, colocava um unguento com propriedades
anti-sépticas e cicatrizantes (panaceia à base de óleo de rosas,
terbentina e gema de ovo) e cobria a lesão com ligaduras. Era
um exímio cirurgião, preocupado em não infligir dor ao
paciente, realizando amputações em menos de 3 minutos e
laqueando os vasos sanguíneos em vez de os cauterizar com um ferro em brasa, contrariando
o que era considerado ‘boa prática clínica’ há já cinco séculos. O seu esforço foi
recompensado ao ser designado, em 1552, Cirurgião da Corte do Rei Henrique de França.

Paré desconhecia latim ou grego - únicas línguas aceites pela comunidade científica -
mas isso não o impediu de escrever um compêndio de cirurgia. Fê-lo em francês, provocando
o escândalo entre a classe médica de então. Numa acérrima discussão com um médico
escolástico afirmou:

“Como é que se atreve a ensinar-me cirurgia? Você que nunca fez nada na vida senão
consultar livros! A cirurgia aprende-se com as mãos e os olhos. E você – mon petit maitre – tudo
o que sabe é falar e ficar confortavelmente sentado”.

André Vesálio (1514-1564) no que diz respeito à anatomia humana e Carlo Ruini (1530-
1598), na anatomia veterinária, foram os primeiros a questionar as verdades anatómicas de

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Galeno. A dissecação de cadáveres era proibida pela Igreja Católica desde 1299, pela bula
papal “De Sepulturis” de Bonifácio VIII. Vesálio, um jovem flamengo de origem alemã, ignorou
essa proibição e realizou necrópsias nos teatros anatómicos da Universidade de Pádua que
finalmente desmistificaram os paradigmas galénicos, culminando em 1543 no primeiro atlas
de anatomia humana: Humani Corporus Fabrica. Só em 1560 foi de novo autorizada a
dissecação de cadáveres com um objectivo científico.

Ruini era um senador bolonhês amante dos animais e também autodidacta. Sem
conhecimentos científicos profundos, ele passou a vida a criar um livro sobre o cavalo e é só
em 1598, um mês após a sua morte, que é editado Della Anatomia et dell’ Infirmita del Cavallo,
um exaustivo e rigoroso tratado anatómico, assim como sobre as doenças até então
conhecidas.4

Não obstante estes avanços, o médico renascentista desconhece ainda conceitos


fisiológicos básicos, nomeadamente o de homeostasia. O corpo continua a ser visto como uma
representação microscópica do universo e a doença é encarada como algo externo (e estranho)
ao organismo. Pensava-se, por exemplo, que as lágrimas eram produzidas no cérebro (que era
uma glândula gigantesca), ou que todas as doenças eram transmitidas por miasmas invisíveis
(entes inanimados mas diabólicos) que empestavam o ar com mefistofélicas imanências.

A teoria miasmática (i.e. que as doenças são provocadas por miasmas) é bem ilustrada
pela forma como os médicos abordavam os surtos repetidos de peste bubónica ou peste
negra, um pouco por toda a Europa. Em Deuses e Demónios da Medicina, o médico e escritor
Fernando Namora conta-nos que:

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“Os médicos, impotentes e escarnecidos, e


eles próprios aterrados do contágio,
quedavam-se por alguns inocentes e
fantasiosos preceitos de profilaxia, incidindo
na alimentação, na atmosfera ambiente,
que se queria bem fétida, para matar a
moléstia, e no estado de espírito,
aconselhando abstinência sexual e
pensamentos ligeiros, desviados para
‘cousas agradáveis e deliciosas’. Como se
presumia que o ar estava empestado de
miasmas, as ruas eram percorridas por
ruminantes, para que o seu grosso hálito
neutralizasse o veneno, e os médicos mais
corajosos, aqueles que não abandonavam
os pacientes à sua sorte, calçavam luvas,
vestiam uma comprida opalanda talhada em marroquim do Levante e resguardavam o rosto
com uma máscara com o feitio de bico de ave, guarnecida de um respirador purificada com
ervas aromáticas."17

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Séc XVII – Idade da Revolução Científica

É no Séc XVII que se dá a primeira grande mudança no pensamento científico: em vez de


perguntarem porquê os cientistas passam a querer saber como. Até então, a doença era
vista como algo de místico e ininteligível e abordada mais do ponto de vista filosófico do que
prático; o médico procurava, acima de tudo, saber que variáveis - físicas ou metafísicas -
eram a causa da discrasia. A partir deste século assistimos ao surgimento progressivo de um
verdadeiro método científico: o clínico procura compreender como se desenvolve a doença,
recorrendo à evidência empírica que se alicerça na lógica matemática.

Esta mudança de mentalidade está relacionada com o debate em torno de duas


doutrinas filosóficas, opostas mas complementares: se por um lado com o Racionalismo de
René Descartes a linguagem científica torna-se matemática e demarca-se do campo da
mera especulação, por outro lado o Empirismo de Francis Bacon defende a experimentação
como única e verdadeira fonte de conhecimento.

A linguagem matemática aliada à experimentação formam as bases do espírito científico


moderno.

O maior entre os maiores cientistas do Séc. XVII foi o Inglês


William Harvey (1578-1657). Doutorou-se em Medicina pela
Universidade de Pádua em 1602, com 24 anos de idade, onde
foi discípulo do anatomista Fabrici d’Aquapendente (quem
primeiro descreveu as válvulas venosas) e do matemático
Galileu Galilei (professor de mecânica e astronomia). Em 1628,
no famoso Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis
in Animalibus [Exercício Anatómico do Movimento do Coração
e do Sangue nos Animais] elaborou a teoria de circulação
sanguínea, a partir das suas experiências em animais. No tempo de Harvey, ainda se pensava
que o sangue era produzido no fígado e que as artérias estavam cheias de ar (ou vapores),
pois no animal dissecado elas encontram-se vazias, ao contrário das veias que conservam o
sangue. Harvey começou por provar que o septo interventricular não permitia trocas de
sangue do coração direito para o esquerdo (contrariando Galeno) e que as artérias
transportavam sangue (confirmando Galeno). De uma forma simples, mas que revela uma
fina intuição, ele chegou à conclusão de que a quantidade de sangue bombeada pelo
coração num minuto era maior do que a quantidade total de sangue no organismo. Logo, o
sangue não podia ser continuamente criado no fígado mas antes movimenta-se de forma
circular e ininterrupta, dentro de um sistema fechado, do qual o coração é o dínamo.23

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O mais louvável no raciocínio de Harvey é ele, para


chegar a esta brilhante - e no entanto para nós óbvia -
conclusão, ter sido capaz de se abstrair de todos os
espíritos e energias vitais que faziam parte da fisiologia
galénica e, assente em critérios anatómicos objectivos,
concentrar-se somente no movimento mecânico do
sangue. Desde Galeno que se pensava que a
inspiração servia para arrefecer o coração para a
produção de espíritos vitais no ventrículo direito e a
expiração para a eliminação dos vapores produzidos
pelo coração e transportados pelas artérias. E embora
o processo de respiração ainda levasse anos a ser
desvendado, Harvey demonstrou que o sangue nos
pulmões passa de venoso a arterial.

Estas descobertas infligem o primeiro golpe na universalmente instituida teoria humoral e


tornam certos tratamentos obsoletos. Era costume, por exemplo, sangrar-se um animal no
mesmo lado ao da patologia que padecesse. A partir do momento que se sabe que o sangue
circula por todo o corpo e que não é produzido em excesso, a sangria deixa de fazer sentido.
Mas as sangrias, como tantas outras crendices, perduram no tempo. Serão ainda necessários
duzentos e trinta anos para a teoria humoral perder progressivamente os seus adeptos até ser
abolida em definitivo por Virchow (p.33).

Harvey (cognominado, como é natural, pai da Cardiologia) é considerado um


neoaristotélico, pois a sua descoberta faz ressurgir o pensamento de Aristóteles (também
designado pensamento peripatético). Aristóteles defendia que o coração era o centro do
corpo e da personalidade, que o círculo era a forma mais perfeita e o movimento circular o
tipo de movimento mais harmonioso.

Harvey tinha compreendido o conceito de veias, que transportam


o sangue para o coração, e o de artérias que o levam da bomba
cardíaca para o resto do corpo. Mas escapou-lhe a explicação para a
conversão de artérias em veias. Foi Marcello Malpighi (1628-1694),
médico e investigador italiano, quem pela primeira vez observou vasos
capilares em tecido pulmonar de rãs (descritos na Epistolae de
pulmonibus, no ano de 1661), desvendando assim o último dos grandes
mistérios da circulação sanguínea.

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Intrigado pela constituição dos organismos vivos, Malpighi dissecou, além de rãs,
porquinhos-da-índia, gatos, ovelhas e aves. É hoje considerado o pai da Anatomia
Microscópica e percursor da Histologia e da Embriologia. Usando métodos de microscopia
óptica extremamente rudimentares, ele foi capaz de observar e identificar inúmeras estruturas
celulares de órgãos e tecidos; quem nunca ouviu falar nos Glomérulos de Malpighi? É também
o caso dos glóbulos vermelhos ou hemácias corria o ano de 1684, que ele 19 anos antes
definira como sendo glóbulos de gordura...

O microscópio que Malpighi usava fora desenvolvido por Antoni van Leeuwenhoek (1632-
1723), comerciante de tecidos da cidade de Delft, na Holanda. Leeuwenhoek era um
autodidacta apaixonado pela óptica e, apesar de não possuir qualquer formação médica
nem saber latim, fez descobertas científicas importantíssimas através dos seus instrumentos
ópticos. E embora não o tenha
inventado (como vulgarmente se
afirma), a ele se deve o
aperfeiçoamento e “vulgarização” do
microscópio, conferindo-lhe a utilidade
como ferramenta biomédica que ainda
hoje perdura.

Leeuwenhoek terá sido não só um dos primeiros a observar


microorganismos (bactérias e protozoários) como também a
considerá-los seres vivos. Em 1678 publicou um artigo na Royal Society
de Londres onde dava conta da presença de espermatozóides no
sémen (animalculi seminis ou vermiculi minutissimi) mas não foi capaz
de os relacionar com a fecundação considerando-os, em vez disso,
seres contaminantes.

O maior dilema da comunidade científica deste século era a questão ontogénica isto é,
saber como surge a vida e como se processa o desenvolvimento do novo ser. Temos em
colisão duas teorias antagónicas num aceso debate que só veria resolução à luz das
descobertas de Mendel e Darwin no século XIX, sobre a origem da vida (ver adiante).

Segundo o Pré-formacionismo, o indivíduo completo está formado desde o ente inicial,


bastando adicionar matéria para surgir uma nova vida. O pré-formacionismo é uma teoria
milenar; já na antiguidade Aristóteles defendia que o macho providencia a forma (através
da energia vital do sémen) e a fêmea a matéria para o novo ser (alimentando-o com o
sangue menstrual). Os antigos sabiam da importância do líquido seminal dos machos para o
nascimento dos filhos, mas desconheciam como a fêmea participava do processo.

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De acordo com o holandês Nicolas Hartsoeker (1656-1725) o indivíduo


encontra-se plenamente formado (homúnculo) na cabeça do espermatozóide
como representado nesta figura retirada do Essai de Dioptrique de 1694. A
ignorância sobre as funções do organismo materno permaneceu mesmo após
o também holandês Reijnier de Graaf (1641-1673) ter descoberto em 1672 os
folículos maduros que formavam elevações na superfície dos ovários das
fêmeas de várias espécies de mamíferos na época reprodutiva.

Segundo a Epigénese, o indivíduo começa como uma substância primitiva,


passando por várias fases e desenvolvendo diferentes estruturas, até à
maturação final. Este desenvolvimento é sequencial e organizado. William
Harvey era apologista da teoria epigénica (ou epigenesista). Estudando a
embriogénese a partir de ovos de galinha e de fêmeas de veado caçadas na corte do Rei
Inglês Carlos I, Harvey concluiu que o ovo era a estrutura primordial, comum ao
desenvolvimento de todos os animais. Na obra Exercitationes et Generatione Animalium
[Formação e Geração dos Animais] de 1651 proclamou “ex ovo omnia” (Tudo deriva do
ovo).12 Para além disso, Harvey foi dos primeiros a refutar o papel passivo da fêmea (e em
especial da mulher) na formação do novo ser, defendendo que a substância primitiva a partir
da qual se forma uma nova vida é resultado da união de características do pai e da mãe
“igualmente imbuída pelas virtudes de ambos”. Harvey nega, portanto, que a mãe seja uma
mera portadora do infante.

A cirurgia não acompanhou o progresso alcançado pela anatomia e fisiologia; estamos


muito longe do controlo de dois princípios cirúrgicos fundamentais: a dor e a infecção pós-
operatória. Realizam-se operações mais complicadas a cataratas, cistólitos (”pedras na
bexiga”) e a hérnias, mas com muito maus resultados.
Parte do problema residia na crença na Teoria da
Geração Espontânea ou Abiogénese. Desde Aristóteles
pensava-se que a vida se originava espontaneamente
da matéria inanimada, na presença do ar. O fisiologista
flamengo Jan Baptista van Helmont (1580–1644) havia
postulado que os ratos eram gerados ao fim de 21 dias,
da mistura de roupa suja e trigo. Esta teoria só foi posta
à prova pela primeira vez no séc. XVII pelo naturalista,
médico e poeta italiano Francesco Redi (1626-1697).

Redi é considerado o pai da parasitologia moderna,


pois foi o primeiro a descrever ectoparasitas nos mais
diversos animais, como carraças e piolhos (na imagem),

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míases (larvas de mosca) e fascíola hepática no livro Esperienze Intorno alla Generazione
degl’Insetti [Experiência sobre a Geração dos Insectos], publicado em 1668. Nesse mesmo
livro, Redi descreveu os resultados de uma experiência em que manteve pedaços de carne
em três frascos: o primeiro permaneceu aberto, o segundo foi selado por uma rolha e um
terceiro foi coberto por uma gaze. Ao fim de uns dias, a carne no primeiro frasco estava
coberta de moscas e larvas, mas nos dois restantes o cenário era diferente. O frasco rolhado
permanecia inalterado ao passo que no terceiro frasco as moscas tinham depositado os seus
ovos na gaze, em vez de o fazer na carne. Além do potencial de explicar que as moscas
resultam da contaminação exterior e não provêem da própria carne, a experiência de Redi
é importante porque terá sido a primeira que recorreu a um grupo controlo. Esta
característica – hoje considerada gold standard do desenho experimental - permitiu
comparar de forma objectiva e directa o resultado nos grupos experimentais (frascos 2 e 3,
i.e. aqueles em que se introduziu uma nova variável) face àquele obtido no grupo controlo
(i.e. onde não se introduziu nenhuma variável nova). Apesar do inegável valor científico desta
experiência, teremos que esperar pelos trabalhos de Pasteur para que a Teoria da Geração
Espontânea seja definitivamente desacreditada.

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Séc XVIII – Surgimento da Profissão


Médico-Veterinária

A quem cabia tratar os animais antes de existir a figura oficial do médico veterinário? Ao
longo da história, a medicina dos animais foi sendo praticada por várias profissões,
nomeadamente ferreiros e ferradores. O ferrador (aquele que ferra os cavalos) vai
especializar-se também no tratamento das patologias destes animais. Neste sentido, o papel
dos ferradores militares (Mariscal, que deu origem ao termo Marechal) vai ser especialmente
importante. No que diz respeito às espécies pecuárias, o seu cuidado estava a cargo de
alveitares. O termo alveitar é usado na Península Ibérica, e deriva do nome árabe Ibne
Albeitar (Séc. XIII), ‘médico veterinário’ andaluz de grande reputação, autor do "Livro dos
simplices" [livro das drogas que entram na composição dos medicamentos].18 Alveitar serve
ainda hoje para designar todos aqueles que praticam medicina veterinária mas não possuem
formação académica para o fazer.

Existem teorias divergentes sobre a orígem do termo veterinário. Para alguns deriva do
temo veteranus (de vetus, velho) já que o pastor, chefe do clã e máximo responsável pelos
animais, seria alguém muitos anos de experiência (veterano). Outros afirmam que provém
do termo veterina (jumenta) ou de veterinus, animal de carga, por vezes já velho, sendo o seu
zelador apelidado de veterinarius.18 Fernando Marques afirma que terá sido o agrónomo
romano Columela (Séc. I d.C.) o primeiro a fixar o termo de "veterinaria medicina", para
designar a arte de curar cavalos e outras bestas de carga, assim como o termo "veterinarius"
para designar o autor dessa arte.18

O nascimento do ensino oficial da Ars Veterinariae só é explicado


pelo contexto histórico da França setecentista. Foi no reinado de Luís
XV (le Bien-aimé,1715-1774), que se sentiu a necessidade de formar
especialistas na arte de curar os animais. A Corte francesa era a
maior da Europa e contava com mais de 5000 cavalos, herança
deixada por Luís XIV (le Roi-Soleil), bisavô do actual monarca, e a
quem Luís XV sucede com a tenra idade de 5 anos. Impressionantes
eram também os números das epidemias no gado: estima-se que no
século XVIII uma epizootia de peste bovina tenha levado à morte de
mais de 200 milhões de animais por toda a Europa, trazendo a miséria e a fome ao velho
continente.4 Luís XV não teve um reinado feliz, aliando iniciativas políticas e militares falhadas
a uma conduta pessoal condenável e contribuiu para a crise que daria origem à Revolução
Francesa.

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O primeiro incentivo para o ensino da medicina animal vem do então Presidente da


Academia de Ciências Georges-Louis Leclerc, Conde de Buffon (1707-1788). Buffon era um
eminente naturalista e autor, em 1753, da monumental
Enciclopédia de História Natural onde, 100 anos antes de Darwin,
teoriza sobre a origem comum de homens e símios. No capítulo
dedicado ao cavalo, Buffon aflora a necessidade de se formar
médicos-veterinários:

“A medicina que os antigos designaram medicina veterinária não é


conhecida que de nome. Estou convencido que se algum médico dirigisse
a sua atenção para a medicina veterinária, e dela fizesse seu objecto de
estudo, em breve se veria recompensado por amplos sucessos que não só
o enriqueceriam, como em vez de deteriorar a sua imagem o distinguiriam
muito.”20

O governo de Luís XV pretendia fazer uma reforma agrária que


permitisse prevenir as perdas gigantescas provocadas pelas epizootias,
gerir melhor os recursos agrícolas e formar agricultores. O promotor da
reforma era Henri-Léonard Bertin, Controlador Geral de Finanças. Bertin
era amigo de Claude Bourgelat (1712-1779), advogado, hipiatra e
Director da Academia de Equitação de Lyon que concebeu a ideia de
fundar uma escola “… onde seja ensinado publicamente os princípios e os métodos para
curar as doenças do gado, , de modo a conferir à agricultura do Reino o poder de conservar
o gado quando as epidemias assolam os campos.”4

Bourgelat gozava de imenso respeito entre a comunidade


científica francesa pelo seu domínio da arte equestre. Ele
considerava que as obras de hipiatria de então careciam de
suficiente rigor científico. Resolveu então aprender a arte da
dissecção com cirurgiões (de medicina humana) e usar esse
conhecimento para rever a anatomia do cavalo. Os tratados
Nouveau traité de Cavalerie (1744) e Elémens d'Hippiatrique (1750)
granjearam-lhe os maiores elogios e trouxeram-lhe a amizade de
pessoas influentes, como Bertin.

A 4 de Agosto de 1761 é emitido o édito real fundador da École Vétérinaire de Lyon,


primeira Escola de Medicina Veterinária do mundo, sob administração de Bourgelat. Os
primeiros alunos são admitidos em Fevereiro de 1762. Anatomia, botânica, ferração e cirurgia

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fazem parte do programa de ensino que era ainda muito


incipiente e direccionado para o cavalo, relegando a produção
animal e as epizootias do gado bovino para segundo plano.

A gestão minuciosa de Bourgelat, aliada à sua formação em


advogacia, impeliram-no a redigir um código de boas prácticas
onde descreve as regras a que deviam obedecer os alunos da
Escola de Medicina Veterinária. Este regulamento constitui o
documento fundador dos futuros Códigos Deontológicos
veterinários e fazem de Bourgelat o fundador da ética
profissional.

Em 1762, Bertin é escolhido para Ministro de Estado de Luís XV, o que lhe dá acesso ao
Real Conselho de Estado. Dois anos mais tarde, Bourgelat é então designado “Director e
Inspector-geral de todas as escolas que existem ou existirão no nosso Reino”. As ambições
políticas e sociais de Bourgelat - que foram determinantes para a criação da faculdade de
Lyon - quase que provocaram a sua extinção. Na verdade, Bourgelat parecia estar mais
interessado em ter um papel de relevo em Paris, do que em gerir uma Escola Veterinária na
província. É assim que em 1764, Bourgelat funda nos arredores de Paris a Escola Veterinária
de Chateau d’Alfort e aquela que seria a mais influente Escola Veterinária até ao final do
século. Preterida por esta, a Universidade de Lyon sobrevive a custo.

Detenho-me agora para falar de um homem admirável que muito contribuiu para a
ciência veterinária. Trata-se do também francês Philippe-Etienne Lafosse (1738-1820), membro
de uma célebre dinastia de mariscais que perpetuam a tradição da hipiatria e representam
a elite erudita da profissão10.
Filho de um Mariscal (do francês
Maréchal) das coudelarias reais, Lafosse
recebeu formação científica mas
também humanística e edita em 1766 o
Guide du Maréchal, um tratado
“contendo um conhecimento exacto do
cavalo e a maneira de distinguir e
combater as suas doenças”. Lafosse foi
um dos mais acérrimos defensores do
ensino universitário da Medicina
Veterinária. Bourgelat não o suportava, talvez por Lafosse ser aquilo que ele nunca fora e
impede-o de leccionar todo o seu saber nas faculdades de Medicina Veterinária de Lyon e
Alfort.

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O ensino veterinário vai-se diversificando mas


ainda com o cavalo como espécie preponderante.
Outras Escolas vão entretanto surgindo em Viena
(1768), Turim (1769), Copenhaga, (1773), Pádua
(1774), Skara (1975), Budapeste (1781), Milão (1789)
ou Londres (1791)… Portugal teria de esperar até
1830, mas disso falarei mais tarde.

O professor de anatomia Giovanni Bapttista Morgagni (1682-1771) revolucionou o


conceito de doença ao provar a importância da Anatomia Patológica. Ele realizou mais de
700 autópsias cujos achados compilou no enciclopédico De
sedibus et causis morborum per anatomen indagatis (1761) e
que lhe permitiram concluir que as doenças atingem órgãos
específicos, provocando lesões concretas. Ele foi também o
primeiro a relacionar as patologias com a história pregressa e
com os sinais clínicos apresentados. Para provar as suas teorias,
Morgagni fez uso da experimentação animal sem no entanto
saber explicar como é que uma doença actuava, isto é, a sua
patogenia. Como todos órgãos têm veias deduziu-se que fosse a inflamação das veias (ou
flebite) a causadora do mal.

É ao cirurgião do exército francês François Bichat (1771-1802) que se deve a definição de


tecido, que lhe confere o epíteto de fundador da Histologia moderna. Através do uso do
microscópio óptico, Bichat identificou 21 tecidos diferentes no organismo e caracterizou
histologicamente as alterações patológicas teciduais. O princípio da vida ultrapassa a
questão vitalista/mecanicista e passa para o elemento orgânico tecido. Juntamente com as
teorias de Morgagni, estas descobertas dão mais um forte abalo à teoria dos quatro humores,
abrindo o caminho à fisiopatologia experimental de Virchow e ao abandono da simples
especulação empírica.

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O italiano Lazzaro Spallanzani (1729-1799) chegou a abraçar a


vida religiosa e a estudar jurisprudência mas a sua paixão pela
ciência falou mais alto, tornando-se investigador e professor de
História Natural nas Universidades de Modena e Pádua.
Brilhante fisiologista, ele realizou avanços assinaláveis na
compreensão das funções vitais (digestão e respiração) e na área
da reprodução animal. Juntamente com Harvey e Haller (ver
adiante) podemos afirmar que Spallanzani foi um dos fundadores da
Fisiologia Experimental.

No tratado Opuscoli di fisicia animale e vegetabile publicado em 1776, Spallanzani refutou


a teoria da geração espontânea (o que não deixa de ser surpreendente se tivermos em conta
que se trata de um padre católico), seguindo os trabalhos de Francesco Redi e
antecedendo-se às experiências de Louis Pasteur. Um ano mais tarde ele foi capaz de
demonstrar cientificamente a reprodução sexual. Cem anos depois de Leeuwenhoeck, o
abade Spallanzani demonstrou que os espermatozóides eram essenciais para a fecundação
(embora continuasse sem saber o que eles eram) e descobriu que sobreviviam à congelação,
referindo o frio como um meio de lhes prolongar a vida. Ele é o responsável, em 1784, pela
primeira inseminação artificial realizada com sucesso em mamíferos: foi numa cadela, de
quem nasceram três cachorros saudáveis.

O séc. XVIII só estaria terminado com uma descoberta


fabulosa, a maior desde a circulação de W. Harvey, e que
antecede as revoluções científico-médicas do século seguinte.
Trata-se da primeira vacina, realizada pelo Médico inglês
Edward Jenner (1749-1823) em 1796 e que marca com toda a
propriedade o nascimento da medicina moderna.

Mas o melhor é começar do início. No século XVIII a varíola


era endémica por toda a Europa. Conhecida como SmallPox
ou “bexigas” pelas pústulas que os pacientes apresentavam,
era causa directa de pelo menos 20% da mortalidade infantil,
independentemente do estrato social do infante. Esta doença, que foi uma das principais
responsáveis pela morte de metade das populações do Novo Mundo aquando da chegada
dos descobridores (e portadores) portugueses e espanhóis, vitimava igualmente adultos.
Cinco monarcas europeus do Séc. XVIII morreram de varíola, incluindo Louis XV, de quem já
falámos.

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A SmallPox é uma doença muito semelhante à CowPox,


Ectima Contagioso Bovino ou Varíola Bovina, ambas
provocadas por Orthopoxvírus. E enquanto a primeira é
específica da espécie humana, a segunda além dos
ungulados (i.e. animais com casco) pode pontualmente
infectar o homem de forma leve a moderada, provocando
lesões de pele piogranulomatosas.

Ora já se sabia (era senso comum) que quem já tinha apanhado a varíola bovina não
desenvolvia a forma humana. Inspirado por este saber popular, Jenner retirou pús de uma
vesícula de CowPox da mão da leiteira Sarah Nelmes e inoculou-o no braço do jovem James
Phipps (filho do seu jardineiro), de 8 anos de idade. A criança desenvolveu lesões de CowPox
mas ficou imune à varíola humana.7
Posto isto, Jenner passou a desenvolver
um processo de imunização contra a varíola
a partir de lesões de varíola bovina em
humanos. Ao processo de variolação
chamou-lhe Vacinação, do latim vaccinia
(que significa varíola da vacca). O mais
extraordinário é Jenner, sem saber o que
provocava a varíola, ter sido capaz de encontrar a sua cura!

Não deixa de ser curioso que os chineses, pelo menos desde o século X, já usassem uma
técnica de variolação só que muito mais rudimentar e arriscada: inoculavam crianças, por
via nasal, com pús das feridas de doentes com varíola humana. Algumas morriam mas as que
se salvavam ficavam imunes para toda a vida.

No entanto, o método jeneriano de vacinação não encontrou aceitação entre os seus


contemporâneos. Talvez por Jenner ser um homem demasiado à frente do seu tempo,
começaram a circular rumores, aos quais a comunidade médica não foi alheia, de que os
indivíduos “vacinados” desenvolviam cornos e pêlos e passavam a mugir como o gado
vacum, entre outras idiotices do género. Jenner, farto de tanta incompreensão e ignomínia,
refugiou-se na sua terra natal, Berkeley, para tratar os pobres e doentes.

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James Gillray, “The Cow-Pock, or the Wonderful Effects Of New


Inoculation!” London 1802, National Library of Medicine

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Foi só em 1928 que a Comissão de Saúde da então Sociedade das Nações (hoje ONU)
aprovou uma vacina anti-varíola. A verdade é que a vacinação
contra a varíola humana é provavelmente o caso de maior
sucesso em toda a História da Medicina. Esta doença infecciosa
foi a primeira a ser erradicada da face do planeta pela
Organização Mundial de Saúde (OMS), a 8 de Maio de 1980, três
anos passados sobre o registo do último caso, na Somália, em
1977. Vão ser necessários mais de 30 anos para que este feito seja
repetido, desta vez com uma doença animal.

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Séc XIX – Nascimento da Medicina Moderna

Durante os séculos XVIII e XIX inúmeras, e não compreendidas, pragas assolavam de forma
periódica a Europa, afectando perniciosamente as espécies domésticas. Uma epidemia de
peste bovina na década de 1850, com morbilidade de 100% e mortalidade de 90%, eliminou
quase por completo o gado bovino na Europa. Esta praga estava para o gado bovino como
a Peste Negra esteve para a humanidade 500 anos antes. No imaginário popular (e não só,
no científico também) ainda eram os “miasmas pestilenciais”17 os responsáveis pela
transmissão das doenças.

As armas disponíveis pelo Médico Veterinário de então para combater tais flagelos eram
poucas: restringir a movimentação de animais, abater os infectados e compensar os donos
afectados, sempre na esperança que o surto finalmente se desvanecesse… Face a este
calamitoso cenário o Parlamento
inglês assinou em 1866 a Cattle
Disease Prevention Act, criando
assim a primeira Associação de
Defesa Sanitária (ADS), que era
responsável pelo controlo do trânsito
animal, adopção de quarentenas,
desinfecção de instalações e o
abate controlado e vigiado por
médicos veterinários dos animais
afectados.

Mas quando é que se chegou ao conceito de doença que temos hoje em dia? E ao
conceito de infecção? E quando é que se começou a relacionar o agente patogénico com
a doença por ele provocada? A resposta a estas perguntas foi um processo longo,
pluricultural e multidisciplinar que ocupou algumas das mentes mais brilhantes que a história
tem registo. Faço aqui uma breve resenha das batalhas que considero mais importantes na
guerra contra as doenças infecciosas4.

Eric Viborg, Médico Veterinário dinamarquês diplomado pela Escola Veterinária de


Copenhaga, chegou à conclusão que algumas doenças têm de ser atribuídas à invasão por
outros organismos vivos, através do estudo das duas mais terríveis doenças transmissíveis em
cavalos: em 1797, constatou que a forma aguda do mormo era transmissível através de

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inoculações de cavalos doentes para saudáveis e inclusive por contacto directo; em 1802,
concluiu o mesmo para a gurma.

O primeiro a observar um microorganismo, isolá-lo e associá-lo a uma doença animal foi


o alemão Johann Lukas Schönlein. Em 1839 ele demonstrou em galinhas que o Trichophyton
(um fungo dermatófito) era o causador da tinha, uma patologia de pele. Continuando nos
fungos, aquele que é tido como o fundador da micologia médica foi o húngaro David Gruby.
Entre 1841 e 1845 através da infecção experimental de animais provou que a tinha era
contagiosa, e descobriu outros fungos dermatófitos (Microsporum) e o agente da Candidiase
(Candida albicans).

Griffith Evans era Oficial Veterinário do Exército Britânico. Formado em Londres em 1855,
ele descobriu em equinos afectados de surra a presença de um microorganismo que se
ajustava à descrição que em 1843 fizera David Gruby de um Trypanossoma da rã, embora a
comunidade médica da época, na pessoa de Timothy Lewis continuasse a negar o papel
patogénico dos trypanossomas…

Em 1823 foi a vez de Eloi Barthelemy, Médico Veterinário de Alfort, provar a origem
infecciosa do carbúnculo hemático, gangrena infecciosa ou antrax, através de infecção de
ovelhas e cavalos saudáveis a partir de ovelhas infectadas. Distinto investigador, Barthelemy
tornou-se no 1º Médico Veterinário Presidente da Academia Francesa de Medicina. Só em
1849 se descobriu o agente causal desta terrível doença hemorrágica, o Bacillus anthracis: o
Médico francês Casimir Davaine demonstrou, através de esfregaços sanguíneos, a presença
de Bacillus anthracis no sangue de gado doente. O Veterinário alemão Frederick Brauell
provou em 1856 que a doença era transmissível ao ser humano (ao que chamamos de
zoonose ou doença zoonótica). Henri Delafond, Médico Veterinário de Alfort, em 1860 cultiva
estes bacilos e obtém esporos e embora não sabendo ao certo do que se trata consegue
associá-los à propagação da doença. Por outro lado, observa a elevada velocidade de
multiplicação da bactéria, responsável pela sua virulência e elevada mortalidade.

Friedrich Henle (1809-1885), que desvendou a estrutura tubular renal, escreveu no seu
tratado Miasmas e Contágios: “A substância de contágio não é apenas orgânica mas viva,
possuindo vida própria e relacionando-se com o corpo de forma parasítica.” Foi Henle quem
primeiro delineou os 4 critérios que serviam para provar que uma doença era provocada por
um determinado microorganismo:
1. Presença do organismo específico em todos os casos da doença;
2. O organismo terá de ser isolado e cultivado independentemente em laboratório;
3. A inoculação em indivíduos saudáveis deve induzir a mesma doença;
4. Os mesmos microorganismos têm de ser observados e isolados dos animais
experimentalmente infectados.

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Mas quem os reformulou e lhes conferiu verdadeira utilidade clínica foi o seu discípulo, um
médico alemão de nome Robert Koch (1843-1910), quando em 1876 os confirmou
relacionando o carbúnculo hemático ao bacilus anthracis. Pela primeira vez se comprovou
que uma doença era provocada por bactérias! A partir de então estes quatro aforismos
passaram a ser conhecidos como Postulados de Koch.

De extraordinária importância, quer médica quer veterinária, foi a descoberta do agente


da tuberculose. Desde sempre que esta doença acompanha o homem e a história da
humanidade: há fortes indícios em ossadas
paleolíticas de lesões tuberculosas, assim como
relatos em todas as civilizações do planeta e em
épocas tão díspares de doenças que não podem
ser outra senão a famigerada tuberculose.

A tuberculose é única na sua capacidade em


atingir praticamente todas as espécies animais. O
homem já se tinha habituado a viver com ela até
que durante o século XIX o número de casos dispara.
A tuberculose torna-se a principal doença
infecciosa na Europa, responsável por 1/7 de todas as mortes ocorridas! E como explicar este
surto pandémico da tuberculose?

A resposta pode estar na carne e no leite que consumimos todos os dias. Com o advento
da Revolução Industrial, começaram a surgir problemas com o aumento do consumo de
produtos animais associados à fraca higiene da população urbana. O regime de produção
pecuária intensivo, aliado às fracas medidas sanitárias quer no que diz respeito à origem,
transformação e conservação dos produtos de origem animal quer à promiscuidade social
parecem ter contribuído decididamente para o avanço da tuberculose. No que diz respeito
à saúde animal, estima-se que durante a primeira metade do século XX o Micobacterium
bovis tenha sido responsável por mais perdas em animais de produção do que todas as outras
doenças infecciosas juntas.13

Em 1868, Chauveau, veterinário francês, provou que a Tuberculose era transmissível. No


mesmo ano Villemin provou a transmissão inter-espécie através da infecção de coelhos a
partir de bovinos. Já em 1790 um outro veterinário francês de nome J. B. Huzard tinha proposto
a transmissibilidade da Tuberculose de animais para o homem. Só a 24 de Março de 1882 é
que o Micobacterium tuberculosis ou Bacilo de Koch é finalmente desvendado, nem é preciso
dizer por quem. Koch descobriu ainda que o bacilo desenvolvia esporos resistentes ao ar (tal
como o antrax) e que explicavam a facilidade de propagação aérogenea (transmissão
através do ar que se respira) da tuberculose.

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Koch foi também o criador da tuberculinização. Este processo consistia na inoculação na


pele dum extracto de glicerina com o bacilo da tuberculose modificado. Primeiro
apresentada em 1890 no X Congresso Internacional de Medicina em Berlim como a cura para
a doença, a verdade é que a prova da tuberculina não provou ser segura nem eficiente na
protecção contra a tuberculose mas é ainda hoje um instrumento insubstituível no seu
diagnóstico precoce, a partir de alterações introduzidas por von Pirquet.

Em 1905 o Prémio Nobel da Medicina distinguiu o trabalho de Koch. Mas no melhor pano
cai a nódoa e apesar do bacteriologista americano Theobald Smith ter comprovado em 1900
a contagiosidade do leite de vaca, o maior pecado de Koch foi de, ao contrário das
evidências, não reconhecer a tuberculose bovina (provocada pelo Micobacterium bovis)
como uma importante fonte de infecção para o homem. E desta forma o leite continuou a
ser uma avassaladora fonte de infecção vaca-homem até ao aparecimento da
pasteurização (ver adiante).

Uma vacina eficaz para o ser humano só foi conseguida em 1921 em França pelo trabalho
conjunto de um Médico, Albert Calmette, e de um Médico Veterinário, Camille Guerin, a partir
da atenuação do agente da tuberculose bovina cultivado durante 13 anos em meios próprios
(bílis bovina glicerinada). A vacina BCG (Bacilo de Calmette e Guerin) fornece, ainda hoje,
entre 50 a 80% de protecção contra a tuberculose durante 15 anos. Dado tratar-se de uma
Doença de Declaração Obrigatória, não existe vacina disponível para animais nem é
aconselhado nenhum tratamento, sendo os acometidos sujeitos a abate coercivo.

Outra união proveitosa entre veterinários e médicos é a descoberta das bactérias do


género Salmonella por Daniel Salmon e Theobald Smith em 1885. Salmon foi o primeiro Médico
Veterinário diplomado por uma Universidade norte-americana (Cornell, 1872).

A descoberta dos agentes da brucelose foi um feito impar, só vencido em importância


pela tuberculose. Foi o médico e capitão do Exército norte-americano David Bruce quem,
em 1887, isolou pela primeira vez uma bactéria do género Brucella em militares mortos pela
Febre de Malta, infectados após ingerirem leite de cabra não pasteurizado (50% das cabras
em Malta estavam infectadas e 10% transmitiam
a doença pelo leite). Tratava-se da bactéria
Micrococcus melitensis, extraída do baço dos
malogrados soldados e mais tarde rebaptizada
de Brucela melitensis. Só uma década depois,
em 1896, é que o agente do Aborto Contagioso
Bovino, a Brucella abortus, foi isolado por
Bernard Bang e pelo seu pupilo Stribolt. Bang era
um médico veterinário e microbiologista dinamarquês, muito preocupado com a saúde
pública. A brucelose bovina passou a chamar-se Doença de Bang e o próprio provou que era

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contagiosa entre bovinos, ovinos, caprinos e equinos, mas foi incapaz de a relacionar com a
Febre de Malta (da cabra maltesa), muitíssimo contagiosa para os humanos.

O maior vulto da ciência do Séc XIX terá sido o francês Louis


Pasteur (1822-1895). Pasteur não era médico, nem veterinário, nem
sequer biólogo. Era um insigne químico com uma curiosidade
indómita e duma acutilante perspicácia. O seu trabalho era, na
maior parte das vezes, solitário mas cedo contou com o apoio de
grande parte da classe médica-veterinária francesa. Outros houve,
principalmente médicos, vetustas sumidades instaladas nas suas cátedras, que não toleravam
que um químico fizesse descobertas assombrosas sobre os mecanismos de doença. E por isso
ignoraram-no. Significativas são as palavras de João Fiadeiro: “Pasteur deu à ciência, e em
concreto à Medicina Veterinária, mais do que séculos de história. Até que ponto Pasteur
considerava a ciência veterinária e reconhecia a vastidão do seu campo experimental,
demonstram-no as seguintes palavras, justas e significativas, ditas em relação à Escola
Veterinária de Alfort: Se fosse necessário recomeçar os meus estudos, seria nos bancos da
Escola de Alfort que me iria sentar”.8

Foi através dos seus trabalhos que finalmente se deu o golpe de misericórdia na Teoria da
Geração Espontânea. Pasteur provou que os germes são fonte de contaminação e que estão
por toda a parte, inclusivamente no ar que respiramos. Esta verdade assustadora fazia tremer
até as mentes mais esclarecidas. Usando balões de vidro com uma solução nutritiva e a
extremidade afilada e curva, passível de ser selada, ele provou que o ar esterilizado não é
capaz de despoletar o crescimento de microorganismos nem de putrefazer o meio de cultura.
“Só a vida pode gerar vida”, concluiu em 1864.

A ele se deve a criação de um método de conservação, através do calor (originalmente


era a 63º durante meia hora, mas foi sendo aperfeiçoado ao longo dos tempos), capaz de
eliminar os tais germes omnipresentes. Este método passou a chamar-se Pasteurização e em
1938 tornou-se obrigatório no processamento do leite para consumo humano em França.24
Pasteur é muito justamente tido como o pai da Microbiologia pois ele se deve a descoberta
de muitos agentes patogénicos tais como Pneumococcus, Staphilococcus e Pasteurellas. Mas
a sua maior façanha foi a noção de perda de virulência das estirpes de bactérias e o
consequente conceito de imunização.

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A ideia de imunização surgiu dum esquecimento fortuito. Tudo


começou quando, em 1879, o Veterinário Toussaint conseguiu
isolar o agente da cólera aviária. Não o sabendo identificar,
enviou-o a Pasteur (tratava-se duma bactéria do género
Pasteurella). Ora, uma placa de petri habitada pelas ditas
bactérias ficara esquecida numa incubadora durante as férias.
Pasteur, sempre curioso e nunca convencido, resolveu testar estas
bactérias em galinhas e constatou que já não causavam doença.
Mais compreendeu que as bactérias tinham sofrido
transformações que as fizeram perder a sua virulência, sem no entanto deixarem de estimular
o sistema imune da galinha. Pasteur questionou-se então que se fosse capaz por processos
físicos tais como temperatura, luminosidade ou simplesmente pelo passar do tempo, atenuar
os microorganismos patogénicos recentemente isolados e causadores de doença, esses
mesmos agentes podiam ser o veículo para a cura; e assim alargar o conceito de “vaccina”
que Jenner tinha dado início há 80 anos.

O primeiro ensaio clínico de imunização,


feito por Pasteur e Toussaint, teve lugar em
Pouilly-le-Fort na Primavera de 1881 com o
antrax ou carbúnculo hemático. Esta doença
letal dizimava o gado em França e colocava
em risco quem quer que estivesse em
contacto com os animais afectados. Disposto
a descobrir a cura para a doença e frente a
uma plateia de ávidos jornalistas e de jocosos
e sépticos cientistas, Pasteur isolou dois grupos de 24 ovelhas; metade foi inoculada com soro
de Bacillus anthracis atenuados pelo calor a 42ªC, enquanto a outra metade não foi
protegida. Passados 15 dias, as 48 ovelhas foram sujeitas a doses letais de bacilos: as primeiras
ovelhas, além de sobreviverem não apresentaram qualquer sinal da doença enquanto as
segundas faleceram inexoravelmente.

Embora esta seja a primeira vacinação de Pasteur não


é de forma nenhuma a mais famosa. Essa, que apresenta
contornos de lenda, ocorreu a 6 de Julho de 1885. Diz-se
que a Sra Meister veio da Alsácia a Paris para dirigir o
pedido desesperado a Pasteur de salvar o seu filho Joseph.
A criança, de 9 anos de idade, fora severamente mordida
nos membros por um cão raivoso, há dois dias atrás. Pasteur
trabalhava na obtenção da imunização contra a raiva há

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já bastante tempo. Ele seguira os trabalhos do Veterinário Victor Galtier que provara a
infecciosidade da saliva dos animais com raiva e definiu a existência de um período de
incubação para a doença. Galtier estava no bom caminho para descobrir uma vacina que
protegesse as ovelhas da raiva, mas infelizmente faleceu antes de o conseguir.

A raiva apresentava um problema igual ao da varíola - a


aparente ausência de agente causal. Não havia ainda a noção
de vírus, nem método para os observar. Veiculava-se a hipótese
de ser uma toxina a causadora do mal (virus significa ‘veneno’
em latim). Não podendo cultivar o agente, como fazia para as
outras doenças, Pasteur procurou atenuar a tal toxina através da transferência seriada de
material infeccioso medular de animal para animal (usou coelhos e cães) e atenuadas em
glicerol.

A vacina da raiva ainda estava em fase de desenvolvimento em cães e, mesmo sem


nunca a ter testado em seres humanos, Pasteur não hesitou em “vacinar” o pequeno Joseph:
durante dez dias sujeitou-o a doses crescentes de suspensões da medula espinal de coelhos
experimentalmente infectados, correndo o risco de lhe inocular a própria doença de que o
queria salvar… Ansiosamente esperou pelos terríveis sinais neurológicos da raiva que nunca
chegaram a aparecer! Mais uma vez e de forma intuitiva, os resultados ultrapassaram os
conhecimentos científicos da época. Pasteur conseguira atenuar o vírus da raiva até este
perder a virulência. Um pequeno passo para o homem, mas um passo gigantesco para a
Humanidade!

Este episódio trouxe fama a Pasteur. A vacina tornou-se um


enorme sucesso e de todos os lados apareciam pessoas mordidas
para serem inoculadas. De facto a vacina, mais do que conferir
protecção, curava a raiva. A vacina anual contra a raiva é
obrigatória no nosso país para todos os cães domésticos e desde
os anos 1980’s que não é registado nenhum caso em Portugal,
quer em animais domésticos quer em humanos. No entanto, o
risco continua bem presente já que os carnívoros selvagens
(canídeos e mustelídeos) e os morcegos são reservatórios móveis da doença por toda a
Europa.

Outras vacinas foram desenvolvidas por Pasteur como para a Diamond Skin Disease ou
Mal Rubro dos porcinos (provocada pelo bacilo Erisipelothrix rhusiopatiae). A segunda
metade do Séc. XIX foi a “Golden Age” da bacteriologia com a descoberta de várias
baciloses:

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• 1875 – Bollinger - Clostridium chauvoei (Blackleg = Edema Maligno)


• 1881 – Victor Babes – Pseudomonas mallei (Glanders = Mormo)
• 1882 – Robert Koch – Micobacterium tuberculosis (Tuberculose)
• 1886 – Theodor Escherich – Bacillus coli ou Escherichia coli (Enterotoxémias)
• 1887 – David Bruce – Brucella melitensis (Febre de Malta)
• 1889 – Shibasaburo Kitasato – Clostridium tetani (Tétano)
• 1896 – Bernard Bang – Brucella abortus (Brucelose)
• 1897 – Van Ermengen – Clostridium botulinum (Botulismo)

Mas não é só na bacteriologia que há avanços assinaláveis durante o séc. XIX. Até
meados deste século não havia qualquer noção de desinfecção (e muito menos de
esterilização). Os poucos médicos e cirurgiões que lavavam as mãos entre cada paciente
faziam-no mais por uma questão de bom senso do que por convicção científica, pois não se
relacionavam mãos sujas e instrumentos contaminados com infecções pós-operatórias.

Através de um rigoroso estudo estatístico (um dos primeiros do


género e hoje fundamental para qualquer trabalho de investigação
científica) o médico austro-húngaro Ignaz Semmelweis (1818-1865)
relacionou a falta de higiene na intervenção obstétrica com a febre
puerperal no Hospital Geral de Viena. Até então supunha-se que a
febre fatal que afligia as mães após o parto se devia a alimentos
deletérios ou até mesmo ao perfume de certas flores…17 Usando o
método hipotético-dedutivo, Semmelweis compreendeu que a taxa
de mortalidade após os partos realizados por médicos e alunos de
medicina (e que antes tinham participado em autópsias) era muito maior do que aqueles
partos realizados por parteiras. Semmelveis procurou na técnica, afluência, ambiente ou
religião o elemento que justificasse a diferença de mortalidade, mas não o encontrou. O
momento ‘eureka’ deu-se quando o
patologista e amigo Jakob Kolletschka
morreu com os mesmos sinais clínicos da
febre puerperal, depois de um aluno o cortar
com um bisturi durante uma autópsia.
Semmelveis teorizou que médicos e alunos
transportavam para a maternidade
“partículas cadavéricas” nas suas mãos, que
era preciso eliminar.

Em 1847 - e antes de Pasteur falar em germes - Semmelweis contrariou a teoria vigente de


que a infecção era provocada por etéreos vapores venenosos e incontroláveis (os miasmas

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pestilenciais), acusando os próprios médicos de transportar a doença! Às infecções


veiculadas pelos próprios serviços ou profissionais de saúde apelidamos de infecções
nosocomiais (Nosocomia eram hospitais romanos para abrigo de doentes). Desafiando a
autoridade dos cirurgiões, impôs a limpeza das mãos e a lavagem da roupa de todos os
intervenientes em procedimentos obstréticos. Ordenou o uso de cloreto de cálcio na
desinfecção das salas das parturientes.17 Estas medidas bastaram para que a taxa de
mortalidade puerperal caísse dos 13% para os 2,4%.13 Um sucesso absoluto!

O que não se compreende é o que vem a seguir: a Sociedade Médica Vienense


desprezou as suas conclusões por não encontrar explicação científica para as mesmas e a
direcção do Hospital, humilhada por esta medida, condenou-o ao ostracismo. Cientistas
conceituados, como Virchow, negavam a importância da assepsia. Vencido pela calúnia,
Semmelweis morreu poucos anos depois num asilo, alienado e vítima (triste ironia…) de uma
septicémia.

Joseph Lister (1827-1912) foi o primeiro médico a adoptar medidas


sanitárias de desinfecção ou antissépsia no Hospital de Glasgow. A ele
se deve também o início da assépsia cirúrgica.

Antes de Lister, o segredo de uma cirurgia sem complicações pós-


operatórias era a rapidez (por ser sinónimo de menor exposição ao
ambiente contaminado) mas, ainda assim, até 45% dos pacientes
amputados morriam. Estou em crer que este número assustador se
tenha mantido mais ou menos inalterado durante séculos de medicina! Lister observou que o
prognóstico de fracturas fechadas era muito melhor do que das expostas em que a infecção
concomitante quase sempre levava à amputação do membro acometido. Inspirado pela
muito recente Teoria do Germes de Pasteur, Lister especulou que os germes presentes no ar
seriam os responsável pela sepsis (termo grego introduzido por Hipócrates e que significa
putrefação) pós-cirúrgica.

Em 12 de Agosto de 1865, Lister


recorreu pela primeira vez ao ácido
carbólico, ácido fénico ou fenol
(C6H5OH), pulverizado durante a
cirurgia para manter a região livre de
germes. Ele também ensaiou a
lavagem das mãos, a esterilização de
instrumentos e o uso de compressas
impregnadas em fenol. De forma cabotina mas concertada, a comunidade médica e
científica foi-se convencendo da importância da desinfecção (antissépsia) e da esterilização

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(assépsia). As cirurgias passaram a realizar-se em salas próprias, o pessoal tinha de obedecer


a regras higiénicas rigorosas e a usar vestimenta apropriada e os instrumentos tornaram-se
funcionais em vez de bonitos. Só em 1890 é que se começaram a usar luvas de borracha
esterilizadas durante as operações e o seu uso só se vulgarizou no século seguinte com
materiais mais finos e resistentes já que até então os cirurgiões preferiam trabalhar de mãos
nuas.

Prosseguindo no tema cirúrgico, não deixa de ser espantoso que só há 160 anos é que a
anestesia (palavra de origem grega que significa insensibilidade) faça parte de qualquer
intervenção cirúrgica. Até então os cirurgiões dependiam do grau de tolerância à dor do
paciente e do uso de drogas mais ou menos perigosas como os opiácios naturais (cocaína,
láudano ou tintura de ópio), ou ineficientes como a mandrágora ou o álcool, para
embebedar o paciente…

Em 1823, o cirugião inglês Henry Hickman (1800-1830) terá sido o primeiro a amputar
animais insensibilizados através da inalação de dióxido de carbono. Hickman apresentou as
suas observações à Royal Society de Londres e ao Rei Carlos X de França, mas não obteve
resposta. De facto, a dor era vista como um elemento natural e benéfico, essencial para a
cura, e Hickman morreu de tuberculose antes de ver os seus créditos reconhecidos.25

A primeira demonstração pública de anestesia geral deu-se a 16 de Outubro de 1846 no


Hospital Geral de Massachussets, em Boston. A droga usada foi o éter. Sob o controlo
anestésico do dentista William Morton, o Sr. Edward Abott referiu estar inconsciente e não ter
sentido dor quando lhe removeram um tumor do pescoço. Um ano depois, o Royal Veterinary
College de Londres foi capaz de estipular o tempo de inalação necessário para anestesiar

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diferentes animais domésticos com éter, além da


realização da primeira anestesia regional epidural. O
clorofórmio, descoberto em 1831, foi utilizado pela primeira
vez em 1847 pelo obstreta James Simpson, em Edimburgo,
para a analgesia de um parto. Outras drogas se seguiram
mas à excepção do Óxido Nitroso, ou gás hilariante, estes
compostos não são usados hoje em dia, substituídos por
outros capazes de conferir melhor sedação, analgesia e
relaxamento muscular e com menos efeitos secundários.

Rudolph Virchow (1821-1922) foi o maior vulto da medicina


do século XIX até ao aparecimento de Pasteur. Foi o tratado
Die Cellularpathologie [A Patologia Celular], publicado em 1858
por este patologista alemão, que infligiu definitivamente o golpe
de misericórdia na vetusta teoria dos quatro humores,
substituindo-a pela moderna patologia celular como
explicação para a doença.
Virchow estabelece o princípio fundamental de que
qualquer célula viva provém de outra preexistente (Omnis
cellula a cellula) e descreve a nível celular as alterações
patológicas decorrentes de tumores, inflamações, tromboses,
hiperplasias entre muitas outras. Se Morgagni falava em órgãos e Bichat em tecidos, Virchow
foi o primeiro a compreender que as doenças atacavam células. Foi Virchow quem deu
origem ao conceito de ‘Uma Medicina’ ao afirmar que “não há – nem devem existir - linhas
divisórias entre as medicinas animal e humana”. Entretanto, o conceito de ‘Uma Medicina’
expandiu-se e deu origem ao movimento ‘Uma só Saúde’ (One Health), como veremos mais
adiante.

E se as doenças começavam a fazer sentido, quer porque se descobriam novos agentes


patogénicos, quer por se desvendar o seu mecanismo de acção e quais os tecidos afectados,
ainda faltava compreender como é que os seres vivos (animais mas também vegetais),
perpetuando a sua herança biológica, sobreviviam a tudo isto. Daqui chegamos às Teorias
Evolucionistas:

O zoólogo francês Jean-Baptiste Lamarck (1744-1829), colega de


Buffon, desenvolveu um trabalho notável na compreensão e
classificação sistemática dos animais invertebrados, considerados até
então seres inferiores e não dignos de estudo. Embora ignorado pelos
seus contemporâneos (acabou por morrer cego e na miséria), a ele se

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deve a noção de transmissão dos caracteres adquiridos. Segundo a teoria evolucionista de


Lamarck, desenvolvida em 1801, um indivíduo, estimulado pelo ambiente, adquire
características evolutivas favoráveis que são transmitidas de geração em geração: um
exemplo crasso é o da girafa que foi “esticando” o pescoço ao longo do tempo por força da
altura a que estão as folhas de acácia, seu alimento dilecto. O Lamarckismo foi uma pedrada
no charco no pensamento científico da época pois pela primeira vez se equaciona o papel
activo dos animais na sua relação com o ambiente: o uso de um órgão leva ao seu
desenvolvimento enquanto o desuso à atrofia. Esta é a 1ª Lei de Lamarck apresentada no
livro Philosophie Zoologique. A 2ª lei defende que estas alterações são hereditárias. O
resultado é uma contínua e gradual adaptação ao meio ambiente.

Lamarck tocou num ponto importante: a transmissão das novas


características à progenitura. Mas como? E o quê? Este enigma foi
magistralmente desvendado pelo monge e botânico austríaco Gregor
Johann Mendel (1822-1884). Através da selecção e cruzamento de
ervilheiras de modo a produzir híbridos, trabalho fastidioso e metódico
iniciado em 1856, ele estabeleceu as bases da genética clássica e sem
saber o que eram genes descobriu os “factores invisíveis” transmitidos para a descendência.
Se para Lamarck o ambiente é que estimula a evolução, para Mendel a evolução era
herdada e independente do meio exterior. E assim surgiu a Teoria da Hereditariedade, que
de tão avassaladora demorou 34 anos a ser aceite e reconhecida pela comunidade
científica internacional, mas cujos princípios fundamentais permanecem inquestionáveis.

Charles Darwin (1809-1882) dispensa apresentações. Este naturalista inglês é o pai do


conceito moderno de Selecção Natural através do livro On the Origin of Species by Means of
Natural Selection, escrito em 1859 após a viagem de 5 anos no veleiro Beagle pela América
do Sul e Oceânia.
Segundo a Teoria da Evolução das Espécies, a evolução
dá-se através da sobrevivência dos indivíduos mais aptos e
que melhor se adaptam à mudança, transmindo as suas
características à descendência. Conceitos como selecção
natural, deriva genética, nicho ecológico, adaptação ao
meio, pressão ambiental tornam-se aceites no léxico científico.
De especial interesse foram os tentilhões e as tartarugas das
Ilhas Galápagos, um verdadeiro santuário da história do
planeta e da evolução das espécies. Para Darwin, todos os
animais estão interligados por uma origem comum e sujeitos a
esta contínua selecção, incluindo o ser humano. Mas se o mecanismo Darwiniano é diferente
do Lamarckismo, o resultado final é o mesmo: a evolução das espécies.

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Ernst Haeckel (1834-1919) era médico mas terá desistido da sua


carreira depois de ler “A Origem das Espécies”. Estudou anatomia,
biologia e zoologia e, em estilo de conclusão, estabelece em 1891
a Teoria da Recapitulação cuja ideia central é “a ontogenia
recapitula a filogenia”. Mas o que quer dizer esta enigmática
frase? Leiamos com atenção o que ele escreve em “O Mistério do
Universo no Final do Século XIX”:

“Estabeleci a visão oposta, de que a história do embrião (ontogenia)


tem de ser completada por um outro, igualmente valioso e intimamente
relacionado ramo do conhecimento – a história da raça (filogenia). Ambos os ramos da ciência
evolutiva estão, na minha opinião, na mais íntima ligação causal; isto surge da acção recíproca das leis
da hereditariedade e adaptação… a ontogénese é uma breve e rápida recapitulação da filogénese
determinada pelas funções fisiológicas da hereditariedade (geração) e adaptação (manutenção)”

Desenhos de Haeckel (1874) que


representam a anatomia comparada
de diversos embriões de vertebrados,
em fase equivalente do seu
desenvolvimento ontogénico. A fila
superior representa a visão de
Haekel de um estadio no qual todas
as espécies parecem, virtualmente,
idênticas.
Legenda:
- Peixe
- Salamandra
- Tartaruga
- Pintainho
- Leitão
- Vitelo
- Coelho
- Homem

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Segundo a teoria evolucionista de Haeckel o desenvolvimento do indivíduo desde a sua


concepção até à idade adulta (ontogénese) não é mais do que o resumo ou a visão
acelerada das alterações evolutivas ocorridas na própria espécie (filogénese). Nesta
acepção, um mamífero em desenvolvimento ontogénico seria primeiro um peixe, depois um
anfíbio, seguidamente um réptil e finalmente um mamífero; por outros termos passaria
sucessivamente pelos estádios adultos de formas ancestrais da escala filogenética. Em suma,
Haeckel acreditava que cada estádio sucessivo no desenvolvimento do indivíduo
representava uma das formas adultas que apareciam na história da evolução. 14

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A Medicina Veterinária em Portugal

A implementação do ensino da Medicina Veterinária em Portugal é uma história


conturbada e difícil. Estávamos na primeira metade do Séc. XIX e o país atravessa um período
de enorme perturbação política e social com as invasões francesas, a guerra civil entre
absolutistas e liberais e a nova Carta Constitucional Portuguesa.

Substituído por outros mais urgentes, o projecto da Escola de Veterinária ia sendo


sucessivamente adiado. Até que o Marquês de Marialva, nosso embaixador em Paris
destacou, em 1819, seis bolseiros para estudarem medicina veterinária em Alfort. Quatro
terminaram o curso e regressaram para se tornarem os primeiros mestres de uma escola de
que ainda não existia. Eram eles Vianna de Resende, Carvalho Villa, Francisco de Jesus
Figueiredo e António Filipe Soares. Mas o projecto, mais uma vez, não avança e eles
dispersam-se noutras actividades.18

Por determinação do Rei D. Miguel, a Real Escola Veterinária Militar foi finalmente fundada
em Lisboa, anexa à Escola do Exército, a 29 de Março de
1830. A sua vocação inicial era de natureza militar e
hipiátrica. Mas os tempos eram de mudança e além de
prestar serviço clínico e cirúrgico aos cavalos do Exército,
a Escola também pretendia formar profissionais capazes
de desempenhar funções “para utilidade pública, na
conservação e criação de toda a espécie de gado
cavalar, vacum e lanígero”8.

O curso tinha a duração de quatro anos e incluía as seguintes disciplinas: Anatomia Geral
e Descritiva, Fisiologia e Exterior; Farmácia e Matéria Médica; Higiene, Terapêutica e Doenças
Epizoóticas; Patologia Externa e Interna, Medicina Operatória e Clínica. 18 Os primeiros
licenciados saíram a 1836, mas a guerra civil impediu que exercessem as funções para que
foram treinados.

Vianna de Resende é então encarregado de elaborar a reforma


do ensino veterinário. Pretendia-se retirar a tutela militar e reforçar as
componentes zootécnica e agrária. A mudança de rumo só
acontecerá em 1855 quando o ensino veterinário é incorporado no
Instituto Agrícola. É extinta a Escola Veterinária Militar e cria-se a Real
Escola de Medicina Veterinária. Os diplomados passam a designar-se
veterinários-lavradores e não é raro aquele que junta ao curso de
veterinário a formação em agronomia. Estes jovens licenciados

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desenvolvem um trabalho inovador na assistência clínica aos agricultores, na inspecção


sanitária em matadouros, na profilaxia e controlo sanitários de efectivos, na orientação de
serviços zootécnicos e de fomento pecuário.8 Uma das obras mais importantes deste período
é o Recenseamento Geral dos Gados no Continente do Reino de Portugal (1870), sob a
direcção do Prof. Silvestre Bernardo Lima, que junta ao primeiro inventário do gado doméstico
existente em Portugal, o estudo zootécnico das raças autóctones.

O Sindicato Nacional dos Médicos Veterinários (SNMV) foi criado a 21


de Abril de 1944 para mediar conflictos de natureza laboral e defender
os interesses da profissão veterinária, tendo em vista a posterior criação
de uma Ordem. Foi por iniciativa do SNMV que se realizou em 1952 o I
Congresso Nacional de Ciências Veterinárias.

Para melhor salvaguardar interesses da Classe Médico-Veterinária, é


fundada, em 1991, a Ordem dos Médicos Veterinários (OMV). O primeiro
Bastonário foi o colega Fernando Cardoso Paisana
(1926-2009). Os objectivos da OMV são “a defesa do exercício da
profissão veterinária, contribuindo para a sua melhoria e progresso nos
domínios científico, técnico e profissional, o apoio aos interesses
profissionais dos seus membros e a salvaguarda dos princípios
deontológicos que se impõem em toda a actividade veterinária”19. A
OMV conta, hoje, com mais de 6500 membros.

Hoje a diversidade de áreas de actuação do Médico Veterinário é enorme: Clínica de


Espécies Pecuárias, Clínica de Animais Companhia, Inspecção Sanitária, Sanidade Animal,
Ensino e investigação, Produção Animal, Qualidade Alimentar e Serviço Técnico em
Organismos Oficias (Direcção Geral de Veterinária, Ministério da Agricultura, Estações
Zootécnicas), só para referir as principais.

A Direcção Geral de Alimentação e Veterinária é o organismo estatal responsável por


definir o Programa Nacional de Saúde Animal (PNSA). Actualmente existem Planos de
Erradicação para a Brucelose nos pequenos ruminantes e para a Brucelose, Tuberculose e
Leucose Enzoótica nos bovinos. Cabe às OPP – Organizações de Produtores Pecuários,
anteriormente designadas por ADS – Agrupamentos de Defesa Sanitária, executar os
programas de erradicação e vigilância de doenças dos animais e acções de controlo para
a prevenção das doenças constantes do PNSA nos ruminantes (bovinos, ovinos e caprinos).27

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Sécs. XX e XXI – Uma Só Saúde

Enquanto que o século dezanove é pródigo em descobertas de agentes patogénicos, o


século seguinte será prolífico na descoberta dos fármacos capazes de os combaterem.
William Feldman, licenciado em Veterinária pela Universidade do Colorado em 1917, foi o
primeiro a aplicar a estreptomicina para combater a tuberculose. O feito ocorreu em 1944 na
afamada Clínica Mayo, na Universidade do Minnesota. Este antibiótico foi descoberto
acidentalmente por um outro Veterinário, de nome Beaudette, a partir de um fungo
encontrado nos meios de cultura dos bacilos da tuberculose aviária e que os eliminava. O
fungo, Streptomyces griseus, foi posteriormente isolado por Selman Waksman e a partir dele
sintetizada a estreptomicina.

É a Sir Alexander Fleming que se deve a descoberta do antibiótico


mais importante da história da medicina, que permitiu curas antes
inimagináveis e que provavelmente já salvou a vida a quem me lê…
Trata-se da penicilina, extraída do fungo Penicilium notatum. Fleming
já sabia da cura das feridas dos cães de caça através da aplicação
local de broa bolorenta e identificou a penicilina como o agente
bactericida do bolor. As suas conclusões foram publicadas em 1929,
no British Journal Of Experimental Pathology mas infelizmente não
havia forma de cultivar em larga escala o fungo nem de extrair uma
forma pura da penicilina1. Só em 1940 é que Howard Florey e Ernst Chain, em Oxford, isolaram
a penicilina e permitiram a síntese industrial do precioso antibiótico. Embora
já testada em animais, o ensaio clínico decisivo não tardaria já que o planeta
estava em guerra global. A Penicilina permitiu a recuperação de milhares de
soldados que de outra forma morreriam ou ficariam mutilados. Desde o fim
da 2ª Grande Guerra que o seu uso se estendeu e existem hoje diversos
antibióticos do grupo das penicilinas com propriedades diferentes.

A virologia, que tinha tido raros avanços no século XIX, só no século XX se desenvolveu
como ciência com a identificação e isolamento de agentes virais pela microscopia
electrónica (a partir de 1939) e com inovadores métodos laboratoriais que desvendaram o
seu papel patogénico. Ainda assim, muito está por fazer em termos terapêuticos (o 1º agente
antiviral a ser desenvolvido foi o Aciclovir na década de 80) e a maior defesa continua a ser
a imunização, quando disponível.

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Em 1924, após uma nova incursão do vírus da peste bovina na Europa, através do porto
de Antuérpia, na Bélgica, um grupo de veterinários visionários decidiu fundar uma
organização internacional que pudesse informar os países membros sobre as epizootias e
fornecer-lhes a informação científica de que necessitavam para melhorar as suas medidas de
controlo das doenças animais: assim nasceu o Office International des Epizooties (OIE),
internacionalmente reconhecida como Organização
Mundial para a Saúde Animal. As recomendações iniciais da
OIE para promover um esforço internacional coordenado
para o controlo da peste bovina e de outras epizootias
(febre aftosa, antraz, varíola ovina e caprina, raiva, mormo,
peste suína clássica) lançaram as bases para as políticas
internacionais de saúde animal que se seguiram.

A actuação do médico veterinário assenta em três pilares: a


protecção da saúde pública, a promoção da saúde animal e a defesa
do bem-estar animal. Na esteira do conceito de ‘One Medicine’ de
Virchow, o veterinário americano Calvin W. Schwabe cunhou o termo
‘One Health’ na obra Veterinary Medicine and Human Health, de 1964.
Schwabe defende uma visão holística da medicina, assente num
tronco comum de conhecimento científico para todas a ciências
médicas. O Ano Mundial da Medicina Veterinária, que se comemorou
em 2011 (www.Vet2011.org), foi também pretexto para se dar ênfase
ao conceito de Uma Só Saúde em que se reconhece a ligação indissolúvel entre medicina
humana e veterinária e que o combate às suas doenças é uma
batalha conjunta e interdisciplinar. O movimento ‘One Health’
(www.onehealthinitiative.com) pretende alcançar uma
consideração mais abrangente de “todos os aspectos de cuidados
de saúde para os seres humanos, os animais e o ambiente''.

A 25 de Maio de 2011, a OIE anunciou oficialmente na sua sede em


Paris a erradicação da peste bovina, 31 anos passados sobre a erradicação da varíola
humana. A extinção na natureza do vírus da peste bovina é mais do que o fim de uma
doença animal. Como vimos anteriormente, a peste bovina era uma enfermidade
devastadora e esteve na génese do decreto assinado pelo Rei de França Luís XV, que
autorizava a criação do ensino oficial da medicina veterinária.

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A erradicação da peste bovina terá produzido


benefícios socioeconómicos que superam os
de praticamente todos os outros programas de
desenvolvimento agropecuário, benefícios
esses que perdurarão no futuro; calcula-se que
cada dólar gasto na erradicação da peste
bovina tenha produzido um benefício de, pelo
menos, 16 US dólares. A experiência adquirida
no combate de doenças como a peste bovina
– com sistemas internacionais de vigilância
epidemiológica e campanhas globais de
vacinação - forneceu um conhecimento valioso
sobre a progressão e o controlo de epidemias.
O fim desta doença animal abre assim
esperança de, ainda esta década, se conseguir erradicar outras doenças humanas como o
sarampo (cujo vírus é muito semelhante ao da peste bovina) e a poliomielite.

Anteriormente ignorados pela classe médico-veterinária, os cães e os gatos serão alvo das
maiores atenções na segunda metade do século XX, acompanhando a procura de animais
de companhia nas sociedades urbanas. Os avanços desde então realizados não têm
paralelo na história da medicina veterinária.

A esgana canina, provocada por um morbilivirus


(família que inclui também o vírus do sarampo e da peste
bovina), é uma virose devastadora: contagiosa e mortal,
alastra de forma rápida, provocando a morte de
cachorros e sequelas em todos os animais que
sobrevivem à infecção imunossupressora. A vacinação
(desenvolvida nos anos 60) precoce e periódica confere
protecção muito eficaz.

William Hardy, Veterinário americano, provou nos


anos 70 que a leucemia felina, doença infecciosa
crónica e incurável, era provocada por um retrovírus
(Feline Leucemia Vírus) e uma vacina eficaz foi também
desenvolvida.

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Os avanços em traumatologia realizados por


médicos veterinários são vários: Ellis Leonard
da Universidade de Cornell foi o pioneiro da
aplicacão do encavilhamento intramedular
de ossos fracturados, em 1935. Emerson Ehmer
de Seattle desenvolveu a técnica de
cerclage para fracturas em cães. O suíço
Jacques Jenny criou uma técnica de gessos
moldáveis removíveis em metades para se
adequarem perfeitamente ao contorno do
joelho e foi um dos pioneiros em próteses ósseas.

De então para cá, a especialização em diferentes áreas clínicas e a contínua


investigação biomédica fazem a Medicina Veterinária avançar inexoravelmente, embora de
forma menos espectacular do que em épocas anteriores. Refiro somente os avanços na luta
contra o cancro, a invenção de novos métodos de diagnóstico, especialmente imagiológicos
(Ecografia, Tomografia Axial Computorizada e Ressonância Magnética) e as técnicas de
manipulação genética.

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Ética Da Experimentação Animal

A ética animal, apesar de diferir do conceito humanista da ética clássica, pretende


alargar o raciocínio moral a outras espécies sem nunca se afastar da dimensão da pessoa
humana. Aliás, só faz sentido falar em ética se nos referirmos ao género humano, pois nas
relações entre animais não-humanos não se colocam questões éticas, pelo menos até onde
somos capazes de compreender.
Aristóteles foi um dos primeiros pensadores a
tomar os animais em consideração na sua
concepção do Universo, a que chamamos
Perfeccionismo. A teoria perfeccionista
determina que todos os seres vivos estão
organizados numa pirâmide biológica (ou
escada da natureza, como representado na
figura) cuja hierarquia natural se encontra
ordenada partindo das formas de vida mais
simples até às mais complexas. A base da
pirâmide é ocupada pelas plantas (inferiores e
superiores), passando pelos vermes e insectos,
pelos moluscos e peixes, subindo para os répteis
e aves até chegar aos mamíferos, com o ser
humano a ocupar o vértice. As plantas
encontram-se ao serviço dos animais (porque
ao contrário destes não são capazes de experiências conscientes como sensações ou
desejos), tal como os animais existem para usufruto do ser humano. Para Aristóteles, os animais
existem em função do homem. E o mesmo se aplicava aos escravos… e às mulheres.

Já vimos anteriormente que Galeno usava a dissecção e em particular a vivissecção de


animais (porcos, macacos e cães). E embora não lhe fosse indiferente os gritos e convulsões
do animal agonizante, o seu interesse estava nos efeitos da experiência e não no animal em
si, que era só uma ferramenta, um meio para atingir um fim.12 Na Roma Antiga, os animais não
eram alvo de considerações morais. Nos coliseus e bestiários, a crueldade em animais era
usada como forma de entreter os cidadãos.
Mas será o pensamento Judaico-Cristão que dominará o mundo ocidental, até à
modernidade. Para S. Tomás de Aquino (1225-1274) os animais são seres inferiores desprovidos
de razão e de alma imortal e criados para o bem do homem. Na Summa Theologica declarou

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que embora infligir sofrimento a animais não seja um mal por si só, um acto de crueldade para
com animais podia levar a actos cruéis para com humanos.
Segundo a visão dogmática do mundo há duas abordagens principais no que diz respeito
à relação Homem-Animal:9
• Despotismo: Os animais foram criados por Deus para servir o Homem. Como nada fora
da humanidade tem valor per si, aos animais não podem nem devem ser conferidos
direitos (mas também não lhes são exigidos deveres ou obrigações);
• Custódia: Cabe ao Homem usar a sua superioridade e racionalidade para cuidar e
proteger tudo aquilo que Deus criou, nomeadamente os animais.
Durante séculos a Humanidade pendeu entre estas duas visões, com predomínio da
primeira, e só com o surgimento do Racionalismo Cartesiano no Séc. XVII se voltou a teorizar
sobre o assunto.
René Descartes (1596-1650), que no famoso Discours de
la Méthode (1637) ensaiou que a realidade é o resultado de
uma gigantesca e organizada fórmula matemática,
considerava os animais meros autómatos biológicos,
incapazes de sentir dor ou prazer. A esta visão da vida
animal chamamos mecanicismo. Descartes é considerado
o maior vilão da história por parte dos actuais movimentos
de libertação animal. Segundo ele, um cão gane não
porque tenha dores mas porque está programado, qual
relógio, para tal. Apesar de não ser cientista (era filósofo) e
de raras vezes ter realizado vivissecções para provar as suas
teorias mecanicistas, consta que terá usado o cão da sua
própria mulher para esse triste fim…9
Vesálio, por seu turno, fazia das suas demonstrações no
anfiteatro da Universidade de Pádua autênticos
espectáculos macabros e mediáticos, misturando autópsias de criminosos com vivissecções
de macacos e cães. A experiência deixava de ser um espaço de descoberta para passar a
ser um modo de provar repetidamente as mesmas teorias. Ainda estamos longe de considerar
o bem-estar animal propriamente dito como parte integrante do viver humanamente.
O suíço Albrecht von Haller (1708-1777) conseguiu ultrapassar uma infância dolente para
se tornar num médico prodigioso. Haller foi um dos fundadores da Fisiologia Experimental e a
ele se deve a instauração das p.p.m. (pulsações por minuto). Publicou artigos de fisiologia,
anatomia, botânica, cirurgia, prática clínica, teologia e também romances e poemas. Mas
mais importante do que o seu extraordinário currículo é o facto de ter sido talvez o primeiro
cientista a pôr em causa o sofrimento perpetrado aos animais com as suas próprias

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experiências e a procurar alternativas menos dolorosas e


agressivas. Pasteur, como já vimos, usou abundantemente
a experimentação animal para desenvolver as suas
vacinas como em cães, coelhos, porquinhos-da-índia e
macacos. A compreensão de patologias como a diabetes
mellitus e a descoberta de fármacos como a insulina são
fruto de experiências científicas em animais. Desde então,
o número de animais usados em investigação aumentou
imenso mas não se compara ao aumento exponencial de
animais criados para consumo humano.

Na actualidade, há a considerar três movimentos zooéticos que definem até onde


devemor ir na nossa relação com os animais, ou sendo mais rigoroso, com os animais não-
humanos: 9
• Abolicionista – Determina o fim de toda e qualquer prática que utilize animais quer seja
para alimentação como para vestuário, desporto ou investigação. Um dos princípio
subjacentes a este movimento é o especismo11 (exploração de uma espécie por outra,
para benefício da segunda) ser eticamente inaceitável. Esta é a opinião da maior parte
dos activistas dos direitos dos animais.
• Reformista – Teoria que aceita as práticas com animais mas impõe reformas que os
protejam e salvaguardem os seus interesses. É a opinião maioritária na nossa sociedade:
a maior parte de nós aceita que os animais sejam utilizados para nosso benefício mas
exige que sejam colocadas regras nesse exercício.
• Status quo – Aceita a experimentação e exploração animal sem considerar necessárias
melhorias, partindo do pressuposto de que alargar o nosso raciocínio ético aos animais é
desumanizar o próprio pensamento. Segundo os seus defensores, só o homem é sujeito
moral e só o homem é portador de direitos.

Qual desta teorias prevalecerá no futuro? O debate continua mas cabe à sociedade
criar mecanismos reguladores de forma a abolir preconceitos e evitar abusos na
utilização que fazemos dos animais. A legislação nacional estabelece regras específicas
sobre protecção e bem-estar e que englobam animais nos locais de criação
(explorações pecuárias), no transporte e abate; animais de companhia e animais
utilizados para fins experimentais ou científicos. Mas serão estas medidas suficientes para
evitar actos de crueldade contra animais ou de simples desrespeito pela sua condição?
No sentido de se estabelecerem princípios basilares partilhados por todos os povos, foi
elaborada pela UNESCO, em 1978, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais que
nunca mereceu reconhecimento oficial.

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“Na medida em que as pessoas agem de


acordo com as suas crenças, o modo como
os humanos tratarão os outros animais
dependerá daquilo que acreditarmos que
eles são e de como pensarmos que deveriam
ser tratados” 9
Tom Regan,
Department of Philosophy & Religion,
NCSU, EUA

Quer isto dizer que relação entre homens e animais depende na mesma medida de
imperativos sociais, económicos e religiosos como de razões de ética pessoal. Os cientistas
que vivissecavam animais para comprovarem as suas teorias não eram bárbaros desprovidos
de sentimentos; a sua forma de pensar a animalidade é que era diferente da nossa. Muito
mudou desde então, de tal forma que actualmente é conferida dimensão moral, não só aos
animais, mas também ao meio ambiente.

E assim termino, não sem antes deixar a seguinte reflexão que o médico e escritor sueco
Axel Munthe (1857-1949) escreveu em “Homens e Bichos”:

“Considera o homem civilizado que lhe incumbem deveres para com os animais, porque eles se lhe
afiguram correlativos do estado de servidão a que os tem sujeitos. Ora, matar animais por simples gozo
é coisa incompatível com tais deveres. A extensão da simpatia humana para além dos limites da
humanidade – quer dizer, a atitude de bondade para com os animais – é uma das últimas qualidades
morais que foram adquiridas pela nossa espécie; e quanto mais desenvolvida for ela num homem, maior
a distância que separa tal homem do estado primitivo de selvajaria. Quem quer que a não tenha, por
consequência, deve ser encarado como um tipo intermédio entre o homem civilizado e o selvagem;
representa um elo de transição entre a pura bestialidade e a cultura.” 16

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Bibliografia
(1) Lyons, A. S. e Petrucelli R. J; Medicine – An Illustrated History, Abradale Press, 1987
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Thompson. http://classics.mit.edu/Aristotle/history_anim.html
(3) Centro de Estudos e Divulgação do Islão. http://www.islam.org.br/grandes_cientistas_muculmanos.htm
(4) Dunlop, R. H. e Williams, D. J; Veterinary Medicine – An Illustrated History, Mosby, 1996
(5) Amorim da Costa, A. M. “Paracelso: Alquimia, Medicina e Química Moderna” in Alquimia, Um Discurso
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(6) Laszlo, Pierre, Qu’est-ce l’alchimie?, Hachette Livre, Paris, 1996
(7) Margotta, Roberto, História Ilustrada da Medicina, Livros e Livros, 1996
(8) Fiadeiro, João, Conceito actual da Medicina Veterinária, Edições Cosmos, 1945
(9) Regan, Tom, “Animal Welfare and Rights: Ethical Perspectives on the Treatment and Status of Nonhuman
Animals”, The Encyclopedia of Bioethics, Warren T. Reich (ed.), New York: MacMillan, 1993
(10) Hubscher, Ronald, Les Maîtres des Bêtes – Les Vétérinaires dans la Société Française (XVIII-XX Siècle),
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(11) Singer, Peter, Libertação Animal, Porto: Via Óptima, Oficina Editorial Lda, 2000
(12) Guerrin, Anita, Experimenting with Humans and Animals – From Galen to Animal Rights, The Jonhs Hopkins
University Press, 2003
(13) Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Verbo, 1973
(14) Monteiro, Rogério, Preâmbulo Histórico ao estudo da embriologia - Histologia e Embriologia Humana,
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(15) Tolstoi, Leon, Polikuchka, Publicações Europa América, 1972
(16) Munthe, Axel, Homens e Bichos, Edição Livros do Brasil Lisboa, s.d.
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(18) Marques, Fernando, História da Medicina Veterinária DRABL, 2002
http://www.vetbiblios.pt/NO_PASSADO/Apontamentos_Historicos/Historia_da_Medicina_Veterinaria.pdf
(19) Ordem dos Médicos Veterinários, Estatuto da Ordem dos Médicos Veterinários, 1991
http://www.omv.pt/estatuto-e-codigo-deontologico/estatuto
(20) Robin, Daniel, Bourgelat et les Ecoles Veterinaires – Le contexte historique, 1999
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(21) Gracia Guillen, Diego, et al. História del medicamento. Merck Sharp & Dohme, 1984
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(23) Martins e Silva, J. Da descoberta da circulação sanguínea aos primeiros factos hemorreológicos (1ª Parte),
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(24) Fanica, Pierre-Olivier (2008) Le lait, la vache et le citadin: Du XVIIe au XXe siècle. Paris : Éditions Quae
(25) Eger II, Edmond I., Saidman, Lawrence, Westhorpe Rod (Eds.) (2014) The Half Century Before Ether Day.
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(26) Frantz, L. A. F. (2016) Genomic and archaeological evidence suggest a dual origin of domestic dogs.
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(27) http://www.agrocamprest.pt/conteudos.php?id=28

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