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fevereiro de 2008
Capa e Diagramação:
Autores
Denis da Cruz
Marcia Szajnbok
Pedro Faria
Autora Convidada
Elza Fraga
Textos de:
Imagem da capa:
Jean Gutemberg
www.samizdat-pt.blogspot.com
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Inclusão e Exclusão
Datilografando, mimeografando, ou
simplesmente manuscrevendo, tais au-
Nas relações humanas, sempre há tores russos disseminavam suas idéias.
uma dinâmica de inclusão e exclusão. E ao leitor era incumbida a tarefa de
continuar esta cadeia, reproduzindo tais
obras e também as passando adian-
O grupo dominante, pela própria natu- te. Este processo foi designado "sami-
reza restritiva do poder, costuma excluir ou zdat", que nada mais significa do que
ignorar tudo aquilo que não pertença a seu "autopublicado", em oposição às pu-
projeto, ou que esteja contra seus princípios. blicações oficiais do regime soviético.
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Samizdat 1 - fevereiro 2008
Enquanto que este é um trabalho di- grandes autores populares, que não per-
fícil, por outro lado, concede ao criador seguem ansiosos os 10 mais vendidos.
uma liberdade e uma autonomia total: ele
é dono de sua palavra, é o responsável
pelo que diz, o culpado por seus erros, é Os autores que compõem este projeto
quem recebe os louros por seus acertos. não fazem parte de nenhum movimen-
E, com a internet, to literário organizado,
os autores possuem “Nas relações humanas, não são modernistas,
acesso direto e ime- sempre há uma dinâmica pós-modernistas, van-
diato a seus leitores. de inclusão e exclusão”. guardistas ou qualquer
A repercussão do outra definição que
que escreve (quan- vise rotular e definir a
do há) surge em questão de minutos. orientação dum grupo. São apenas es-
critores interessados em trocar experi-
Ao serem obrigados a burlarem a in- ências e sofisticarem suas escritas. A
dústria cultural, os autores conquistaram qualidade deles não é uma orientação
algo que jamais conseguiriam de ou- de estilo, mas sim a heterogeneidade.
tro modo, o contato quase pessoal com
os leitores, o diálogo capaz de tornar a
obra melhor, a rede de contatos que, se Enfim, "Samizdat" porque a in-
não é tão influente quanto a da grande ternet é um meio de autopublicação,
mídia, faz do leitor um colaborador, um mas "Samizdat" porque também é um
co-autor da obra que lê. Não há suces- modo de contornar um processo de ex-
so, não há grandes tiragens que substi- clusão e de atingir o objetivo funda-
tua o prazer de ouvir o respaldo de lei- mental da escrita: ser lido por alguém.
tores sinceros, que não estão atrás de
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Recomendações de Leitura
Antonio Emílio Leite Couto, que assina casal de antropólogos chega em busca
suas obras como Mia Couto, nasceu em de um libelo contra a escravidão colo-
Beira, Moçambique, em 1955. Jornalista nial e de um universo nativo, represen-
e biólogo, sua primeira obra publicada foi tado pela personagem Mwadia Malunga.
Raiz de Orvalho (1983), uma coletânea O ponto de união entre as duas tramas
de poesias. A esse, seguiram-se contos, é uma imagem de Nossa Senhora que
crônicas e, a partir de 1992, romances. pertencera à nau portuguesa, identificada
pelos africanos a Kianda, uma deusa das
águas na crença local.
O primeiro deles, Terra Sonâmbula,
foi relançado no Brasil em 2007 pela
Companhia das Letras. O autor tece Nos dois romances Mia Couto nos
duas histórias aparentemente paralelas, apresenta um retrato crítico do atual Mo-
ambientadas num país devastado pela çambique, ressaltando a ambigüidade
guerra civil, retratando a profusão de im- que permeia a relação da cultura nativa
pulsos e emoções que tomam o menino com a colonização portuguesa. Nem um
Muidinga, o velho Tuhair e o personagem pouco panfletária, tal crítica é estabeleci-
morto, Kindzu, que fala através de seus da a partir do lirismo e da ironia com que
diários. Numa prosa por vezes fantástica, descreve as várias facetas de uma cultu-
outras poéticas, Mia Couto faz um elogio ra que se desenvolve a partir da relação
à própria arte de escrever e à função de colonizador-colonizado, apontando ora
alimento da alma desempenhada pela para a incorporação e miscigenação de
palavra escrita. valores, ora para o rompimento e hostili-
dade que desembocam na guerra.
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Samizdat 1 - fevereiro 2008
Quem não fala (ou não lê) outro idio- Quem já teve a oportunidade de ler al-
ma, tem momentos difíceis no Brasil guma obra deste romancista, seja no ori-
quando se trata de ter acesso a grandes ginal inglês, seja em traduções (Machado
clássicos da Literatura. de Assis chegou a traduzir algumas obras
de Dickens), está familiarizado com sua
escrita brilhante, precisa e irretocável.
A lista de autores e obras ignoradas
por tradutores e por editoras é enorme,
como se não houvesse interesse em Dickens é daquela estirpe de gênios
olhar para o passado, como se o sim- literários que se destaca pela legião de
ples fato de mencionar o título da obra personagens memoráveis que criou, ao
nos prescindisse de lê-la. Quanto maior a lado de Shakespeare, de Cervantes ou
antigüidade do texto, mais esquecida ela de Balzac, que invadem o imaginário co-
se encontra. No entanto, isto não implica letivo e se destacam de suas obras. Da-
em olvidar apenas alguns mestres gre- vid Copperfield é o arquétipo dum jovem
gos ou latinos, ou autores bizantinos, ou idealista e puro, noções sustentadas pelo
clássicos medievais. Há muito a ser feito próprio Dickens, que via em sua escrita
no campo da tradução, e isto inclui até um caminho para mudar o mundo e insti-
autores inquestionáveis, tal qual Charles gar esperança numa nação ainda estupe-
Dickens, cujas obras serviram de inspira- fata diante das maravilhas e mazelas da
ção ao maior expoente do romance brasi- Revolução Industrial. Outro grande talen-
leiro, Machado de Assis. to de Dickens é a sua capacidade de al-
ternar momentos dramáticos e cômicos,
às vezes num breve intervalo de página,
David Copperfield é um romance de brincando com as emoções dos leitores,
maturidade do autor e o que possui maior chegando até a arrancar lágrimas ou ri-
elementos autobiográficos. Acompanha- sos durante a leitura.
mos o protagonista, David Copperfield,
desde seu nascimento até a idade adul-
ta, quando, após muitas desventuras - a Infelizmente, nenhum tradutor brasi-
morte do pai, o segundo casamento da leiro se aventurou no universo de David
mãe, um padrasto opressor, o falecimen- Copperfield; há resumos, talvez mais
to da mãe, um mergulho na mendicância, mutilações, com 100 ou 50 páginas, mas
o trabalho árduo na indústria -, ele se tor- certamente bem distantes do deslumbra-
na um autor bem-sucedido, quase uma mento existente nas mil páginas do origi-
símile da vida de Charles Dickens. nal em inglês.
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Alberto Caeiro
XLVIII
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CÍRCULO VICIOSO
Pouco tempo depois, Uéslei abriu um comércio com o dinheiro do roubo. Contra-
tou um funcionário para ajudá-lo. Porém, quando sumiram três reais do caixa, Uéslei
despediu o bandidinho incompetente.
Na tarde seguinte, um assaltante armado apareceu, ordenando-o que entregasse
o dinheiro, inclusive o que havia no cofre. No entanto, o rapaz parecia ser conheci-
do.
— Ademar, é você?
A três palavras mais estúpidas que Uéslei proferiu na vida (ou no que restava
dela).
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Elza Fraga
Ela foi uma criança criativa, uma ado- dez que criava mentiras novas pra
lescente perigosa. colocar no lugar das vomitadas... Era
a ânsia de prender a vida, que lhe
Virou uma adulta mentirosa. escapava
Tinha duas escolhas na vida: pelas paredes da garganta, nos de-
Escrever livros, contando as histórias dos.
que inventava Moribundou jovem, coitada! Mas con-
da vida de amigos, parentes, vizinhos tinuou a andar
e afins, e fazer uso das suas menti- por aí, a se encher de ar e de inven-
ras próprias; ou virar atriz e cionices, sofregamente.
viver as mentiras alheias, sem ter O corpo ainda se locomovia, feio,
que sair curvado ao peso
machucando Deus e o mundo e mais das mentiras,
um pedaço, melhor de tudo, sem
sentir culpa no cartório. olhos fundos na face cadavérica...
Talento pouco na arte de escrevedora Mais se arrastava do que caminhava,
e de intérprete, e muito pra invencio- mas ia em frente.
nices oralmente fantasiosas,
Até que num dia chuvoso uma men-
nem escreveu o livro, tira, das grandes, se lhe entalou na
garganta, não conseguia descer goe-
nem virou atriz. la abaixo nem por decreto...
Virou foi uma bulímica da melhor Ficou roxa , perdeu o ar, esverdeou-
qualidade. se, se foi de vez!
Vomitava as mentiras mal digeridas Até hoje perguntam de que partiu a
como tal moça, nessa mania que o povo
quem vomita a folha de alface do tem de achar que todo cadáver
almoço. tem que ter causa mortis.
Ficou anoréxica a bichinha...Não lhe Respondo que morreu de mentira
parava mais grande demais
nem uma mentirinha, das pequenas pra ser engolida.
sequer, no estômago!
Sabe que ninguém me acredita?!
E definhava a olhos vistos sem que
se pudesse fazer nadica por ela.
Todos se surpreendiam com a rapi-
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Denis da Cruz
Algo que sempre me deixou enca- Tem coisa que é simplesmente impos-
bulado foi o tal "quem sou eu" do orkut sível descobrir ou desvendar.
- aquele campo para descrever a si mes-
mo. Não fico muito à vontade de falar de
mim (modéstia, claro). Portanto, simplesmente desista de
Pensei em várias soluções para meu tentar entender ou encontrar a resposta
impasse, até, finalmente, imaginar um para uma questão tão simples: "Quem
texto que mesclasse um pouco de mim Sou Eu?"
e do meu passatempo preferido: a litera-
tura.
Outra coisa importante: Não confun-
Eis que surgiu o ensaio: da.
"Autodescritiobiografia para um perfil de
orkut"
Não confundir o que? Não confundir
as palavras com o caráter. Não confundir
Apropriado para a capa com o conteúdo.
um post deste blog? “Tem coisa que é sim- Não confundir o brilho de
Por que não? Além plesmente impossível uma única estrela com a
de o blog ser um es- descobrir ou desvendar”. imensidão do Universo.
paço amplo para a
arte da escrita, creio
que todo fã gosta de conhecer um pouco
Não me confunda. Não sou nenhuma
mais do autor.
de minhas personagens, mas sou todas
Portanto, o texto abaixo é uma home- elas vivendo ao mesmo tempo.
nagem aos meus incontáveis fãs (olha a
modéstia aqui de novo). Poderão, através
dele, saber um pouco mais de mim; ou Minhas personagens são transparen-
não. tes e misteriosas; espertas e fáceis de en-
ganar; malévolas e benévolas; místicas e
Com vocês:
tradicionalmente sacras; não se importam
com o mundo e caridosas; inteligentes e
ignorantes; crêem no destino e, às vezes,
"Autodescritiobiografia para um perfil na simples e pura coincidência e, até mes-
de orkut" mo, na providência; se apaixonam fácil e
nunca encontram amor; são fortes e são
frágeis; choram quando querem rir e gar-
Desista. Comece entendendo apenas galham diante do pranto; são heroínas,
esta palavra: desista. são vilãs; são deusas e pobres mortais;
são mártires e carrascas; informatizadas
que empunham espadas e escudos; en-
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tregariam seu próprio corpo em sacrifício uma face marcada pela experiência. Em
e sacrificariam um mundo inteiro. São cada lágrima contida, aquela que deita
artistas, intelectuais, leitoras que nunca sobre o rosto uma única gota como um
abriram um único escrito; são organiza- cristal. Ali estou eu. Ali sou eu. Numa lá-
doramente desleixadas. Caminham pela grima e, também, num sorriso.
chuva esperando en-
contrar um raio de sol “Onde estou entre
ou procuram nas gotas tantas personagens?”.
Quem sou eu? De-
da tempestade o per- sista e, por favor, não
feito disfarce para suas lágrimas. me confunda. Não sou ninguém que você
conheça e mesmo que você olhe dentro
dos meus olhos, ali eu não estarei. Ali, tal-
Onde estou entre tantas persona- vez, não serei eu.
gens? Em nenhum lugar e, ao mesmo
tempo, em todas as linhas que as des-
crevo. Cada traço de caráter expressado
num rosto jovem ou nas marcas fortes de
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O DESENHO
No início de tudo, antes do raiar do dia e nascer do meu primeiro segundo, an-
tes do principio dos principios, eu era nada. Ausência, vazio de barriga incómodo e
inquietante, falta mesmo de falta de movimento. Pensamentos vagos e fugidios, fixa-
ções em entes não presentes: o que já se foi e o que ainda não chegou.
Ao final do primeiro dia era mais: a espera. E nada sabia de mim. Vestido de bran-
co em folha de papel, olhava para o fundo de meu próprio e estava a ficar verdadei-
ramente aborrecido, farto de ser nada. Então ele chegou. Instrumento de escrita, deu
origem ao toque e à continuidade de pontos que se uniram aparecendo em sequên-
cia: um, dois, três traços, a boca, dois olhos, um chapéu, o nariz.
Ao fim do terceiro dia considerei-me muito sábio e ajuizei que, de repente, tinha
certezas e era necessário impor a ordem no mundo. Começei a estabelecer regras
para seguir. Que seriam óptimas para os outros. A primeira delas foi que a partir desse
momento, todos os dias ao início da manhã e final da tarde, todos os dias sem falta,
virar-me ia para Este e adoraria ao meu Deus e senhor criador - o lápis.
espiando
Era um voyeur.
Brincava sozinho, vendo a vizinha trocar de roupa.
Numa noite, ela abriu toda a cortina, acenou para ele e se despiu.
Brochou.
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RETALHOS
VIDE BULA
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Charles Bukowski
Trad.: Manuel Domingos
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Pedro Faria
Ainda não sei se sou louco ou ape- suavidade de sua alva tez, certo?
nas idiota, mas isso não importa. O que Nada disso.
importa é que essa história não é sobre Stella era bem mais baixa do que eu
loucura ou idiotice, ou mais nada desse (ele tinha 1,60, eu 1,90), sua pele era mo-
tipo. rena, e ela tinha várias cicatrizes no bra-
Essa história é sobre Stella. ço, além de algumas espinhas no rosto.
Preciso começar dizendo que não Seus cabelos eram castanhos, e alisados
acreditava no sobrenatural. Eu era um artificialmente. Não sei porque eu perce-
cético, e adorava isso. Porém, os últimos bi isso na hora, só sei que percebi. Seus
quinze anos da minha me dizem que deve olhos eram negros, e devo lhes dizer que
existir alguma coisa que não compreen- foram eles que me fizeram parar no ato
demos, por que senão tenho que me incli- de abrir a porta do carro.
nar à hipótese de minha própria loucura. Meu Deus, aqueles olhos! Eles eram
Eu sei que dizem que aqueles que são as únicas partes incríveis em um corpo
realmente loucos nunca se reconhecem que nada mais tinha de especial. Nada
como tal, mas não tenho como saber se mais mesmo. Eu a vi de longe, e nem
isso é provado, ou se é apenas aceito por pensei duas vezes nela. Porém, ao ver
todos. O que, ironicamente, nega um pou- seus olhos eu parei e a encarei, talvez
co a tese que apresento neste parágrafo, por uns vinte segundos.
sobre minha queda do ceticismo. Ela percebeu meu olhar, e sorriu.
No dia em que a conheci, meu estado - Olá, tudo bem?
de espírito era o pior possível. Eu tinha A voz dela vinha de algum lugar muito
vinte anos e estava saindo de uma escola distante. Ela teve que repetir a pergunta
(não lembro bem qual) na qual tinha feito mais duas vezes (ainda com o mesmo
uma prova para um cargo público (nem sorriso divertido no rosto) antes que eu
isso consigo lembrar direito). Tinha aca- desviasse meu olhar dos olhos dela.
bado de ter me ferrado na prova, que já - Ah, sim, desculpe, eu estava pen-
fiz de mau humor pelo fato de minha na- sando em alguma coisa, perdão... – Eu
morada, cujo nome também não lembro, me atrapalhava cada vez mais, mas de-
ter terminado comigo na noite anterior, e pois de alguns segundos consegui me re-
fui um dos primeiros a sair do prédio. Pas- compor e fui ter com ela.
sei resmungando por alguns carros esta- Não lembro muito daquela nossa pri-
cionados mais próximos do local, e fui em meira conversa. Só lembro que nos apre-
direção ao meu, um Maverick, hoje nada sentamos, e então ela me disse que esta-
mais do que um pedaço de sucata. Foi va esperando alguém que estava fazendo
no carro ao lado do meu que ela estava a prova. Lembro que conversamos por
apoiada, olhando na direção do caminho alguns minutos, até que, do nada, senti
do qual eu vinha. E quando eu olhei para um súbito impulso de beijá-la. Logo me
ela, algo dentro de mim mudou. censurei por isso. Ela esperava alguém,
Eu acho que esse seria o momento no mais do que provavelmente um namora-
qual eu descreveria para você, que está do, e além do mais, seria irracional tentar
lendo isso, a beleza inigualável dela, a roubar um beijo de uma garota que, fran-
qualidade angelical de sua voz, a cândida camente, não era nem assim tão bonita.
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Ela resolveu o assunto por nós dois. que eu não sabia. Até hoje eu não sei, e
- Você quer ir fazer alguma coisa? Pe- por incrível que pareça, eu nunca pensei
gar um cinema, talvez? em lhe perguntar. Estou lhes dizendo isso
Admito que aquilo fora estranho. Mais agora para que vocês possam compilar
estranho ainda foi o fato de que meu sen- uma lista mental de tudo de estranho so-
timento predominante naquela hora não bre Stella. Não estou dizendo que pára
era de surpresa, e sim de felicidade. por aí, só estou tentando fazer um resu-
Concordei na hora em ir ao cinema. mo.
Para falar a verdade, disse a ela que sa- Depois que ela acordou, ela me per-
bia de um filme muito bom que estava guntou o que eu achava da casa.
passando. O que eu não disse foi que eu - Bonita. Só achei estranho não terem
já tinha visto o filme. fotos em lugar nenhum.
Ele era realmente muito bom. Quando eu disse isso, notei que seu
Você, Suposto Leitor, deve estar es- sorriso sumira pela primeira vez desde
tranhando a velocidade com a qual as que nos conhecemos mais cedo.
coisas aconteceram. Eu não os culpo. Foi - É que eu acabei de me mudar. Só
tudo realmente muito estranho, e muito isso. Ainda não desempacotei tudo.
rápido. Do momento em que eu a vi pela Como eu disse antes, tinha que exis-
primeira vez até o convite dela para um tir alguma coisa a mais agindo, pois isso
cinema, deve ter passado uns cinco mi- que ela tinha dito era uma mentira tão
nutos. deslavada, que chegava a ser ridículo.
Não tinha passado muito do filme Não haviam fotos, porém haviam vários
que víamos quando ela começou a me quadros pendurados, além de eu não ter
agarrar. Devo dizer que não sou nenhum visto nenhuma caixa, nem no quarto dela,
puritano, mas em condições normais eu nem na cozinha ou no banheiro, nem na
classificaria aquela garota como uma va- dispensa.
gabunda, me aproveitaria, e nunca mais Só que eu acreditei.
procuraria vê-la, dadas as coisas que fi- Acreditei, por que logo depois dela ter
zemos naquela sala. Porém, como eu já mentido bem na minha cara, seu sorri-
disse antes, Stella não era uma garota so voltara e seus olhos me hipnotizaram
normal, e, portanto, saímos do meio do de novo. Não contestei o que ela havia
filme e fomos para sua casa, aonde fize- dito, mesmo sabendo, no fundo de minha
mos amor, e dormimos. mente, que algo estava errado. Apenas a
Quando eu acordei, ela ainda dor- abracei, a beijei, e fizemos amor de novo.
mia. Eram quase sete da noite. Resolvi E, mesmo sendo mentira, aquela fora a úl-
olhar um pouco a casa, já que admito que tima informação pessoal que ela me deu.
quando entramos, eu não prestei muita E ficamos juntos por um ano e meio.
atenção na decoração, se é que me en- “Espera aí”, vocês devem estar pen-
tendem. sando. “Como ele namorou uma mulher
A casa era normal, pequena, bem por um ano e meio sem saber mais nada
condizente com uma pessoa solteira. O sobre ela, fora o nome (e mesmo assim
bizarro era o fato de não haverem fotos só o primeiro) e onde ela vivia?”.
em lugar nenhum que eu tenha visto. Cla- Fácil. Resumo para vocês em duas
ro que eu não fucei no armário nem nas palavras:
gavetas dela. Estou falando dos lugares Olhos e sexo.
visíveis a qualquer um que entrasse lá. Estranho, não é? Eu praticamente
Acho que vocês já perceberam que eu morei na casa dela durante esse período,
não disse a idade de Stella. Isso é por- e mesmo assim não me causou nenhum
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identificação por DNA. Ainda fui conside- subia as escadas. Nesse momento eu
rado suspeito, mas fui liberado por falta poderia ter ido embora. Poderia ter virado
de provas e pela minha reação: Acharam as costas à porta e ter ido embora. Mas
que eu teria que ser um ator muito bom não fui.
para fingir aquele tipo de tristeza. Stella estava lá.
E lhes digo: Eu caí em depressão. Não sei por qual motivo, só sei que
Continuei no emprego, mas fazendo me- precisava vê-la. Precisava de resposta.
nos, me importando menos. Só não fui Aquele pequeno momento de racionali-
demitido por causa da estabilidade em si dade, no qual eu poderia ter pensado em
do trabalho. Passei seis anos como um como ela estava viva tendo perdido tanto
robô. Continuei morando na casa dela sangue, porque ela tinha ido embora da-
(que já tínhamos passado para o nome quela maneira, o que ela estava fazendo
de nós dois), só que havia perdido com- numa espelunca como aquela, foi para o
pletamente a vontade de viver. espaço quando lembrei de uma coisa.
Até o dia que o telefone tocou, e era Nosso bebê. Meu filho poderia estar
ela. vivo.
Tenho que dizer que, como vários ou- Nem bati na porta. Dei-lhe um chute e
tros momentos de minha vida associados a arrombei.
à Stella, deste eu não me lembro total- A sala do apartamento 19 era quase
mente. Lembro de ter quase pulado do igual ao corredor de onde saí, com a di-
sofá ao ouvir a voz dela. Lembro de ou- ferença de estar mais escuro, pelo fato
vi-la chorando, implorando que eu fosse das lâmpadas estarem apagadas e as
ajudá-la, que ela estava com problemas. cortinas fechadas. Era tão suja quanto, e
Assim como o olhar dela me enchia de emanava um cheiro horrível. E estava tão
alegria, o som do choro dela me enchia vazia quanto.
de ódio. Ódio por qualquer coisa maligna Gritei o nome de Stella. Ela gritou que
que a fizesse chorar daquela maneira. estava no quarto.
Perguntei onde ela estava. Ela me Saí correndo na direção da voz dela.
deu um endereço. Ficava a dez minutos O quarto ficava à minha esquerda.
de distância de nossa casa. Disse que Abri a porta.
chegaria em dois. Lá, estava Stella, agora loira, mas fora
Acabou sendo mentira. Cheguei em isso exatamente igual ao que era, e tinha
três. Em minha defesa, eram onze e meia um homem deitado na cama. Ele estava
da noite e ainda tinham alguns carros na com os braços e pernas amarrados, e em
rua, que me impediram de passar de 120 sua boca estava um grande pedaço de
por hora. silver tape. Ele me encarava.
Ao chegar até o local, que era um pré- Não pude dizer nada. Ela correu e me
dio velho, toquei a campainha do aparta- abraçou, e me beijou. Olhou diretamente
mento que ela me dera. nos meus olhos.
Ninguém atendeu. Toquei de novo. Não preciso dizer a vocês o que isso
Uma campainha me avisou que a por- fez.
ta fora aberta. Entrei, e subi. Enquanto me beijava, ela destilou sua
Defronte à porta do apartamento 19, história.
parei pela primeira vez para olhar ao meu Aparentemente, aquele homem a co-
redor. O prédio era sujo, tinha ratos cor- nhecera num bar, a drogara, e a levara
rendo pelo corredor, poças de urina e não para esse apartamento para violentá-la.
tenho certeza, mas acho que passei por Ao acordar, ela achara um bastão e o
uma pilha de fezes humanas enquanto usara para derrubar o homem, e o amar-
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MANHÃ
Marcia Szajnbok
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