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OPINIÃO OPINION 647

A Relação paciente-médico:
para uma humanização da prática médica

The patient-physician relationship:


towards humanization of medical practice

Andrea Caprara 1
Anamélia Lins e Silva Franco 2

1 Departamento de Saúde Abstract Based on a literature review, this article discusses the physician-patient relationship
Comunitária, Universidade
by presenting anthropological and communicational approaches, physicians’ experiences as pa-
Federal do Ceará.
Rua Costa Mendes 1608, tients, key concepts showing the need for humanization of the patient-physician relationship,
5 o andar, Fortaleza, CE and some theoretical-philosophical reflections relating primarily to hermeneutics. Based on this
60430-097, Brasil.
2 Instituto de Saúde
framework, one can already identify a series of possibilities for implementing humanizing pro-
Coletiva, Universidade posals. The challenge now is to classify, publish, and evaluate these proposals.
Federal da Bahia. Key words Patient-Physician Relationship; Medical Anthropology; Philosophy of Medicine
Rua Padre Feijó 29, 4 o andar,
Canela, Salvador, BA
40110-170, Brasil. Resumo A partir de uma revisão da literatura, busca-se discutir a relação médico-paciente,
anamelia@ufba.br apresentando abordagens antropológicas e comunicacionais, vivências de médicos enquanto
pacientes, concepções fundamentais da medicina que indicam a necessidade de humanização e
algumas reflexões teórico-filosóficas, principalmente relacionadas a hermenêutica. Este panora-
ma possibilita afirmar que já se observa uma série de possibilidades para execução das pro-
postas de humanização da medicina a partir de bases teórico-filosóficas. Faz-se necessário sis-
tematizá-las, publicá-las e avaliá-las.
Palavras-chave Relação Médico-Paciente; Antropologia Médica; Filosofia da Medicina

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 15(3):647-654, jul-set, 1999


648 CAPRARA, A. & FRANCO, A. L. S.

Introdução Principais abordagens da relação


paciente-médico
“A tarefa da medicina no século XXI será a des-
coberta da pessoa – encontrar as origens da O repensar da atuação da medicina nesta se-
doença e do sofrimento, com este conhecimento gunda metade de século tem ocorrido dentro
desenvolver métodos para o alívio da dor, e ao de várias perspectivas. Nos anos cinqüenta, o
mesmo tempo, revelar o poder da própria pes- médico e filósofo alemão Karl Jaspers desen-
soa, assim como nos séculos XIX e XX foi revela- volveu uma serie de reflexões sobre o médico
do o poder do corpo” (Cassel, 1991:X). na idade da técnica e uma crítica muito forte
à psicanálise. Jaspers (1991) enfatiza a neces-
Ao tratar da saúde, Gadamer (1994), como uma sidade da medicina recuperar os elementos
referência ao pensamento hermenêutico, des- subjetivos da comunicação entre médico e pa-
taca os atributos da prática do médico na pro- ciente, assumidos impropriamente pela psica-
dução da saúde, profissão que há muito é defi- nálise e esquecidos pela medicina, perseguin-
nida como ciência e arte de curar. Em todo o do um caminho baseado exclusivamente na
processo diagnóstico e terapêutico, a familiari- instrumentação técnica e na objetividade dos
dade, a confiança e a colaboração estão alta- dados.
mente implicadas no resultado da arte médica. A consciência da necessidade de um desen-
Gadamer conduz a reflexão sobre a humaniza- volvimento da interação comunicativa entre
ção da medicina, em particular da relação do médico e paciente foi se ampliando nos anos
médico com o paciente, para o reconhecimen- 60 através dos estudos de psicologia médica
to da necessidade de uma maior sensibilidade (Schneider, 1994), de análises psicanalíticas da
diante do sofrimento do paciente. Esta propos- figura do médico (Groesbeck, 1983; Guggen-
ta, em relação a qual várias outras convergem, buhl-Craig, 1983), assim como da experiência
aspira pelo nascimento de uma nova imagem dos grupos Balint ao introduzir a dimensão
profissional, responsável pela efetiva promo- psicológica na relação médico-paciente e a ne-
ção da saúde, ao considerar o paciente em sua cessidade da formação psicoterapêutica para o
integridade física, psíquica e social, e não so- médico (Balint, 1988). Entre várias outras teo-
mente de um ponto de vista biológico (Cassel, rias da comunicação, recordamos a da Escola
1982; Hahn, 1995; Wulff et al., 1995). de Palo Alto e alguns dos principais membros
No momento em que nos encontramos, a do renomado “Colégio Invisível”: Gregory Ba-
medicina não está preparada para enfrentar teson, Watzlawick, Jackson (Watzlawick et al.,
este novo desafio. Trilhar este caminho impli- 1972).
caria em trabalhar sobre o objeto da medicina Nas décadas de 60 e 70, foram pioneiros na
de forma distinta de outras ciências naturais, área da sociologia da saúde os trabalhos de Tal-
superando limites de recursos convencionais cott Parsons sobre a relação médico-paciente e
e supostamente universais. Estas mudanças, o consenso intencional – atualmente, em uma
consideradas fundamentais para o nascimento outra versão, chamado de consentimento in-
de uma nova prática da medicina, resultam de formado – originado da atenção à defesa dos
uma relação complexa entre teoria e prática, direitos dos consumidores. Uma necessidade
configurada no âmbito da ciência moderna. ainda muito recente de reduzir os efeitos noci-
Este conflito fica ainda mais explícito se consi- vos de comportamentos inadequados do mé-
derarmos os fatores sócio-políticos determi- dico no contato com o paciente resultou, em
nantes do processo saúde-doença. vários países, no aumento das denúncias e
Neste artigo pretende-se analisar o tema também em aumento dos gastos com a saúde.
das relações humanas entre pacientes e médi- Buscando reduzir os gastos, têm sido desenvol-
cos, tal como vem sendo abordado na literatu- vidos diversos estudos a respeito da qualidade
ra da antropologia médica, da filosofia herme- dos serviços de saúde e das diretrizes de reor-
nêutica e de abordagens comunicacionais. A ganização do modelo assistencial, incluindo o
relevância atual desta discussão se dá em de- ponto de vista dos usuários a respeito do for-
corrência das novas bases legais da qualidade necimento do serviço prestado pelo sistema de
da assistência e dos debates em torno da for- saúde (Ardigò, 1995). A maioria destes estudos
mação do médico. fundamentam-se nas publicações de Donabe-
dian, que, no início dos anos 80, publicou vá-
rios volumes e artigos a respeito deste argu-
mento (Donabedian, 1990).
A comunicação entre o doente e o médico
esteve presente na pesquisa realizada por Bol-

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A RELAÇÃO PACIENTE-MÉDICO 649

tanski (1979) em diferentes regiões da França. primeiro seria o estudo desenvolvido por Su-
Este autor discute diferenças do conhecimen- cupira (1981). No momento em que foi realiza-
to médico-científico e do conhecimento médi- do o estudo, a população brasileira era atendi-
co-familiar e relaciona tais diferenças à rela- da prioritariamente por três sistemas que atua-
ção doente-médico. A relação doente-médico é vam em paralelo: previdência social, medicina
considerada como produtora de ansiedade, de grupo e centros de saúde estaduais e muni-
principalmente pelas classes populares, porque cipais. A análise feita pela autora, tendo como
não possuíam critérios objetivos de avaliação, objeto o atendimento em puericultura, indica
enfatizando as dificuldades com o padrão co- um padrão de escolha da clientela resultante
municacional, especificamente, o médico “não da avaliação do problema desencadeador da
ser franco”. Este texto foi base para muitos tra- necessidade de busca do serviço em confronto
balhos realizados no Brasil. com as características dos sistemas de atenção
Uma outra perspectiva representada por disponíveis. Esta avaliação considerava condi-
autores como Arthur Kleinman, Byron Good, ções físicas, acessibilidade, eficácia, disponibi-
Cecil Helman, Gilles Bibeau e Allan Young lidade de profissionais e de medicamentos. Por
(Kleinman, 1980, 1988, 1991; Bibeau, 1992; exemplo, foi observado que a puericultura era
Good, 1994; Helman, 1994) analisa a relação considerada melhor no Inamps (Instituto Na-
médico-paciente sob o ponto de vista da antro- cional de Assistência Médica e Previdência So-
pologia, tentando analisar não somente o com- cial) do que na unidade de saúde do estado,
ponente cultural da doença, mas também a ex- porque no Inamps era possível consultar sem-
periência e o ponto de vista do doente e dos fa- pre o mesmo médico. Isto nos indica que os
miliares, as interpretações e as práticas popu- três grandes prestadores possuíam três mode-
lares e suas influências sobre a prevenção, o los assistenciais diferentes e que a população
diagnóstico e o tratamento. O trabalho destes reconhecia e optava pelo mais adequado às ne-
autores tem influenciado em boa parte a reali- cessidades geradoras da busca do atendimen-
zação do curso a respeito da comunicação mé- to, incluindo aspectos da dimensão relacional.
dico-paciente que ocorre na Faculdade de Me- Particularmente relevante na análise dessa
dicina da Universidade de Harvard (Branch et nova conjuntura é o estudo de Schraiber (1993),
al., 1991), assim como outros programas de que analisa, a partir de entrevistas realizadas
formação (Seppilli & Caprara, 1997), constituin- com médicos com longa prática clínica, a in-
do-se como um componente-chave de forma- corporação da tecnologia no exercício da pro-
ção na graduação e pós-graduação na área mé- fissão. A análise marcada pela perspectiva his-
dica (Craig, 1992; Usherwood, 1993). tórico-estrutural evidencia que o médico, dife-
Contemporaneamente, a relação médico- rente das outras profissões, não perdeu a pro-
paciente tem sido focalizada como um aspec- priedade do saber e do fazer com a consolida-
to-chave para a melhoria da qualidade do ser- ção do modelo capitalista. Entretanto, parale-
viço de saúde e desdobra-se em diversos com- lamente a esta transformação da sociedade,
ponentes, como a personalização da assistên- observa-se a valorização da ciência e, assim, a
cia, a humanização do atendimento e o direito intelectualização dos saberes. A medicina teria
à informação (Ardigò, 1995), tratados através passado pela universalização de seus atos, ten-
de temas como o grau de satisfação do usuário do como objeto da sua ciência o doente que,
do serviço de saúde (Atkinson, 1993; Williams, nesta condição, perdeu suas diferenças sociais
1994; Gattinara et al., 1995; Dunfield, 1996; Ro- para ser objeto do saber reconhecido cientifi-
senthal & Shannon, 1997), o counselling – o camente. Nessa condição, o ato médico se con-
aconselhamento (Bert & Quadrino, 1989), a co- figura como ato repetidor dos conhecimentos
municação médico-paciente (Branch et al., habilitados pela ciência, tendo, assim, entrado
1991; WHO, 1993), o sofrimento do paciente e a no universo das séries de produção, aquelas
finalidade da biomedicina (Cassel, 1982, 1991) que marcam a sociedade industrial-tecnológi-
e o consentimento informado (Santosuosso, ca (Schraiber, 1993).
1996).
No que diz respeito aos autores brasileiros,
pode-se observar uma reativação das discus- Médicos como pacientes
sões vinculadas a este tema; entretanto, isto
tem sido apresentado principalmente sob a Tem sido freqüentemente abordadas as dife-
forma de ensaios apresentando opiniões ou renças de referencial do paciente e do médico
declarando inspirações teóricas. Dois traba- (Boltanski, 1979; Kleinman, 1980; Helman,
lhos destacam-se, por estarem baseados em 1994). Os casos de médicos que enquanto pa-
análises sistematizadas de grande extensão. O cientes tiveram a iniciativa de refletir e relatar

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a experiência da sua própria doença são bons responder à doença degenerativa. Ele, como mé-
exemplos e formam bases para uma reflexão. dico experiente da área, mostrou-se atencioso,
Através da experiência da doença, os médicos preocupado, somente no momento em que me
reavaliaram o modelo biomédico que adota- apresentou a curva da mortalidade da esclerose
vam e/ou estavam acostumados? O que dizem amiotrófica” (Rabin & Rabin, 1982, apud Hahn,
essa experiência sobre a vivência de paciente, 1995:245).
em relação ao sofrimento, à cura, ao conheci- Alguns meses depois desse contato decep-
mento de si mesmo? cionante, Rabin, lendo um artigo desse mesmo
Um desses relatos é do neurologista Oliver médico, ficou surpreso diante da importância
Sacks (1991). Ele conta que, em certa ocasião, que o mesmo atribuía ao papel do suporte mo-
quando estava passeando por caminhos mon- ral e psicológico no tratamento de pacientes
tanhosos da Noruega, defrontou-se com um com esclerose lateral amiotrófica.
touro. Tomado pelo pânico, começou a correr e Os médicos que escreveram sobre a expe-
caiu, fraturando uma das pernas. Transformar- riência da doença que viveram, embora pou-
se de médico em paciente significou: “... a sis- cos, revelam como a formação médica é inten-
temática despersonalização que se vive quando samente orientada para aspectos que se refe-
se é paciente. As próprias vestes são substituídas rem à anatomia, à fisiologia, à patologia, à clí-
por roupas brancas padronizadas e, como iden- nica, desconsiderando a história da pessoa
tificação, um simples número. A pessoa fica to- doente, o apoio moral e psicológico.
talmente dependente das regras da instituição, Face a essa realidade, o primeiro ponto a
se perde muitos dos seus direitos, não se é mais ser colocado para reflexão é relativo ao com-
livre” (Sacks, 1991:28). portamento profissional do médico que deve
Um outro médico, Geiger, clínico geral, con- incorporar cuidados ao sofrimento do pacien-
ta como a experiência da doença modificou a te, possivelmente divergente do modelo clíni-
sua maneira de ver a biomedicina: “No espaço co. Isto não significa que os profissionais de
de uma a duas horas, transformei-me, de um saúde tenham que se transformar em psicólo-
estado saudável, a uma condição de dor, de in- gos ou psicanalistas, mas que, além do suporte
capacidade física. Fui internado. Eu era consi- técnico-diagnóstico, se faz necessário uma sen-
derado um médico tecnicamente preparado e sibilidade para conhecer a realidade do pacien-
respeitado pelos colegas, no entanto, como pa- te, ouvir suas queixas e encontrar, junto com o
ciente, tornei-me dependente dos outros e an- paciente, estratégias que facilitem sua adapta-
sioso. Ofereciam-me um suporte técnico à me- ção ao estilo de vida exigido pela doença.
dida em que eu me submetia a um considerável Esta demanda exige a implementação de
nível de dependência” (Geiger, 1975, apud Hahn, mudanças visando à aquisição de competên-
1995:238). cias na formação dos médicos que, enquanto
São muito significativos, nesses relatos de restrita ao modelo biomédico, encontra-se im-
experiências de doenças, a atitude e as respos- possibilitada de considerar a experiência do
tas de outros médicos em relação aos colegas sofrimento como integrante da sua relação
que se encontravam na condição de pacientes. profissional. Deste modo, é importante consi-
O caso de Rabin, um endocrinologista com derar criticamente o desenvolvimento do mo-
diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica, é delo biomédico como contexto no qual se con-
emblemático. No início da doença, procurou figuram formas de relação médico-paciente e,
escondê-la dos colegas, receoso de que a sua assim, ter uma posição ativa e crítica na busca
carreira pudesse vir a ser destruída. Com o de uma nova prática.
agravamento da doença, muitos colegas se dis-
tanciaram. Para ter um diagnóstico definitivo,
Rabin procurou um importante especialista A humanização da prática médica
em esclerose lateral amiotrófica. Sobre este
contato, ele expressou: Faz-se necessário refletir um pouco sobre as
“...fiquei desiludido com a maneira impes- concepções que fundamentam o modelo bio-
soal de se comunicar com os pacientes. Não de- médico, considerando, inclusive, que este é o
monstrou, em momento nenhum, interesse por principal modelo financiado pelo recurso pú-
mim como pessoa que estava sofrendo. Não me blico.
fez nenhuma pergunta sobre meu trabalho. Não A doença é interpretada pela concepção
me aconselhou nada a respeito do que tinha biomédica como um desvio de variáveis bioló-
que fazer ou do que considerava importante gicas em relação à norma. Este modelo, funda-
psicologicamente, para facilitar o enfrentamen- mentado em uma perspectiva mecanicista, con-
to das minhas reações, a fim de me adaptar e sidera os fenômenos complexos como consti-

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tuídos por princípios simples, isto é, relação de movimentos a favor dos direitos dos pacien-
causa-efeito, distinção cartesiana entre mente tes e também pela política de mercado, ao
e corpo, análise do corpo como máquina, mi- considerar que o médico é um prestador de
nimizando os aspectos sociais, psicológicos e serviço e o paciente um consumidor, tentou-
comportamentais. Se, por um lado, baseados se superar este tipo de postura paternalista
nestes princípios, foram conquistadas impor- dos médicos por outro modelo chamado in-
tantes transformações, a partir do século XIX, formativo. Neste modelo, o paciente é infor-
como o nascimento da clínica, a teoria dos ger- mado do diagnóstico da própria doença, as
mes de Pasteur e até os recentes sucessos nos dificuldades de cura, e cabe a ele, a partir des-
estudos de genética, imunologia, biotecnolo- ta informação, a decisão final sobre o trata-
gia; por outro têm sido desprezadas as dimen- mento (Emanuel & Emanuel, 1992). Com esse
sões humana, vivencial, psicológica e cultural padrão comunicacional, estão de acordo ju-
da doença. Em se tratando dos padrões de co- ristas, docentes de bioética e alguns médicos,
municação verbal e não-verbal, assim como a por admitirem que o paciente tenha direito a
variedade de padrões comunicacionais, são uma informação correta e a decidir-se pelo
muitos os problemas que surgem na relação próprio tratamento.
médico-paciente: a) a incompreensão por par- Entretanto, neste modelo informativo, o
te do médico das palavras utilizadas pelo pa- médico funciona como simples técnico, forne-
ciente para expressar a dor, o sofrimento; b) a cedor de informações corretas para o paciente.
falta ou a dificuldade de transmitir informa- A superação dos modelos paternalista e infor-
ções adequadas ao paciente; c) a dificuldade mativo significa a necessidade de assumir um
do paciente na adesão ao tratamento (Helman, processo de comunicação que implique na pas-
1994). sagem de um modelo de comunicação unidire-
Kleinman et al. (1989) relatam que 50% dos cional a um bidirecional, que vai além do direi-
pacientes que consultam um clínico geral nos to à informação. Esse terceiro modelo, intitula-
Estados Unidos descrevem uma série de sinto- do comunicacional, exige mudança de atitude
mas identificados por eles, mas que não são do médico, no intuito de estabelecer uma rela-
considerados pelo médico para a definição do ção empática e participativa que ofereça ao pa-
quadro diagnóstico da doença. Diante de uma ciente a possibilidade de decidir na escolha do
informação como esta, torna-se mais com- tratamento.
preensível que a maioria dos pacientes prefira
procurar um médico de confiança, mesmo que
para isto tenham que dedicar mais tempo de A possibilidade da abordagem
deslocamento e espera. Para superar estas difi- Hermenêutica
culdades, Kleinman sugere que o médico pro-
cure, primeiramente, compreender o modo de Os relatos apresentados na primeira parte des-
vida do paciente e de seus familiares e, em se- se artigo mostram mudanças de valores, não
gundo lugar, observe como interpretam a doen- em função de um enquadramento teórico-cien-
ça. O processo de estabelecimento de relações tífico, mas das experiências dos médicos en-
humanas com os pacientes concorre para de- quanto pacientes. Esta vivência da condição
senvolver o sentimento de responsabilidade do oposta à que caracteriza seu cotidiano tem sido
médico, bem como melhorar os resultados e a atualmente valorizada, já que é produtora de
adesão ao tratamento, aumentando o grau de um conhecimento que nasce de uma experiên-
satisfação do paciente. cia pessoal, contrária ao conhecimento científi-
A continuidade do vínculo estabelecido é co, não sendo replicável, não sendo controlável
outro aspecto a ser considerado dentro desse e, por vezes, até mesmo explicitada como difícil
processo. O médico que acompanha por bas- de ser relatada. A concepção proposta pode ser
tante tempo os mesmos pacientes conhecerá dirigida ao médico, a quem se tem incentivado
melhor uma determinada comunidade e a his- e até exigido uma sensibilidade, freqüentemen-
tória das famílias (Buetow, 1995). te pouco definida ou explicitada, mas que pode
Em muitos países, ainda hoje, os médicos ser referida como a sensibilidade daquele que
informam muito pouco aos pacientes sobre o já ocupou o lugar de doente.
seu estado de saúde e sobre as possibilidades Em um passado próximo, com uma tradi-
de tratamento, tendo um relacionamento de ção de valorização exagerada da ciência, se
tipo paternalista, no qual o paciente é depen- menosprezava a experiência pessoal. As fontes
dente do julgamento e das idéias do médico. de paixão explícitas do profissional eram a
Nos Estados Unidos, Canadá e em alguns paí- ciência e a arte. Assim, não se poderia reconhe-
ses europeus, a partir das reivindicações dos cer uma trajetória de ferido, do doente que ti-

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nha se tornado médico, e, com esta marca, se O processo hermenêutico é composto de


aproximava mais daquele que lhe procurava. compreensão e explicação como duas fases re-
Esta negação pode estar vinculada a uma certa correntes e complementares. Analisando estas
necessidade de superioridade, de diferencia- fases na relação médico-paciente do modo co-
ção; observa-se, porém, que algumas forma- mo Gadamer tem discutido, pode-se afirmar
ções exigem que o profissional passe pela con- que estas não são propriedades de uma das
dição de usuário. partes. Tanto o médico como o paciente en-
Várias abordagens, principalmente psicote- contram-se na condição de explicar e com-
rapêuticas, consideram como parte do proces- preender a si mesmos e ao outro. Na medida
so de formação a experiência enquanto usuá- em que o médico assimila e assume esta com-
rio da técnica, o lugar de paciente, de cliente. preensão, se aproxima do paciente, recorre às
Um exemplo muito conhecido trata-se da psi- várias fontes de explicação e compreensão da
canálise. O psicanalista passa por um processo situação, inclusive a sua própria história.
terapêutico motivado por uma angústia seme- Nesta mesma perspectiva, Bibeau (1997)
lhante àquela que leva um cliente ao consultó- considera que a interpretação pressupõe um
rio. O psicanalista experimentou a trajetória campo semântico partilhado: vive-se um exer-
da cura que ele acompanha nos seus pacien- cício de partilha e aquele que interpreta a si
tes. Ao falar dessa semelhança entre psicana- mesmo pode ser um ponto de vista possível
lista e psicanalisado, Lacan (1998) usa a ima- para o campo semântico. Portanto, a interpre-
gem bíblica de que ambos são feitos do mes- tação não está acima do seu interpretado; an-
mo barro. tes, cada expressão concorre com sua interpre-
Esta imagem usada por Lacan liga-se à Mi- tação. Esta consideração inclui uma chave para
tologia Grega pela figura de Chiron, o centauro uma nova proposta para a relação paciente-
que ensinou a arte médica a Esculápio, doente médico: o médico interpreta a queixa trazida
com chagas incuráveis, um arquétipo da figura inicialmente pelo paciente, mas experimenta
do médico-ferido. Groesbeck (1983) ao realizar um exercício de partilha do seu saber com a
um re-exame do conceito de cura, orientado queixa daquele que busca ajuda, e sua inter-
pelos referenciais da psicologia analítica, refe- pretação tanto é influenciada pelo paciente co-
re-se aos costumes da era clássica, especial- mo influencia a queixa. As perguntas feitas pe-
mente a imagem arquetípica do médico-feri- lo médico modelam a queixa, visando a identi-
do. Este médico, por estar afetado e assim ser ficação de um caminho terapêutico.
também um paciente, conhecia o caminho da Talvez possamos dizer, a partir de Gadamer,
cura. A figura da serpente passou a ser associa- que para o médico atender, ouvir realmente
da a Esculápio pela capacidade de rejuvenes- aquele que o procura com uma queixa, faz-se
cer a si própria mediante a troca periódica da necessária a experiência da condição de sub-
pele, que simbolizaria o libertar-se da doença. metido ao conhecimento científico e não so-
Para que a cura ocorresse, os pacientes eram mente de conhecedor. Este argumento, entre-
levados para a parte mais interna do templo, tanto, também pode produzir uma exigência
permanecendo ali a espera de um sonho de cu- quase artificial: experiências pessoais para a
ra, no qual o médico tocava na parte doente compreensão das situações de saúde nas quais
com as mãos. A cura estaria vinculada a uma se encontram os pacientes. Uma perspectiva
condição pessoal de doente, mas, além disso, a mais concreta e produtiva é a utilização de al-
uma ação, a uma prática do médico ao tocar o ternativas pedagógicas suficientemente sensí-
paciente, ao agir sobre ele. veis à incorporação das várias fontes de conhe-
Esta compreensão da possibilidade de cons- cimento, de forma a possibilitar ao profissional
trução de um conhecimento a partir de uma o conhecimento baseado não somente na au-
prática nos faz retornar aos pressupostos her- toridade proveniente da ciência, mas uma no-
menêuticos (Gadamer, 1994; Wulff et al., 1995). va concepção de conhecimento médico articu-
Para Ricoeur (1994), o mundo em que vivemos lado com uma postura de autoridade-submis-
está lingüisticamente construído e historica- sa daquele que identifica na condição de pa-
mente dado. Ao assumir a construção do mun- ciente, cliente, usuário um saber decorrente da
do vinculado à língua, à lingüística, aos signifi- prática ou da experiência.
cados, aos signos, estamos tratando dos pro- E, nesta progressão de perspectivas, se es-
cessos de comunicação que diferenciam e uni- tabelece um círculo hermenêutico de explica-
ficam os grupos. Este processo se dá pela com- ções, tomando uma compreensão da experiên-
preensão de uma linguagem que não se res- cia de doente, instaurado enquanto exercício
tringe à linguagem verbal, mas inclui a lingua- de partilha e fortemente vinculada às relações
gem corporal e gestual. interpessoais constituídas na unidade ambula-

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torial ou hospitalar como um todo, mas, prin- Observa-se que a abordagem teórica do te-
cipalmente, na relação com o médico, repre- ma, enquanto objeto de estudo, carece ainda de
sentante do saber intelectualizado, tecnologi- um volume expressivo de publicações que reu-
zado e detentor da cura. nam e articulem de modo abrangente aspectos
Ao fim deste texto, espera-se que este tenha teóricos, análises de dados empíricos e avalia-
possibilitado a retomada da discussão da rela- ções de propostas de intervenção ou de análise.
ção paciente-médico tanto na prática profis- Retomando o título, entendemos que, em
sional, quanto como elemento fundamental na torno do tema relação médico-paciente, aque-
formação do médico. Buscou-se principalmen- les que o têm como objeto podem repensá-lo,
te apresentar essa temática de forma ampla, colocando o paciente em um posição tão ativa
referindo alguns dos principais autores, dentro quanto a do médico, na medida em que a quei-
de alternativas que não necessariamente se xa do paciente guia o momento clínico, e este
complementam. A abordagem hermenêutica repensar do lugar do paciente indica um dos
apresentada por Gadamer (1994) foi tomada alvos do projeto de humanização da medicina.
como um eixo, na medida em que denuncia a Este projeto, entretanto, deve prioritaria-
relação conflituosa existente na medicina entre mente ser contexto para uma prática apoiada
o saber e o fazer. No que diz respeito à relação pela aprendizagem, pela reflexão, sem negar
paciente–médico, a contribuição da hermenêu- ou menosprezar os recursos tecnológicos pre-
tica mostra que nem o modelo paternalista sentes no cotidiano da profissão, mas utilizan-
nem o modelo informativo assimilam a riqueza do-os como recurso e não como finalidade da
do momento clínico quando terapêutico. intervenção na saúde.

Agradecimentos

Agradecemos a Profa. Eurides Pitombeira de Freitas


pela leitura e comentário de uma primeira versão
deste texto. Nosso carinho à Profa. Ana Cecília Bas-
tos, que tem acompanhado estas discussões e cola-
borou profundamente na versão final deste texto. Ao
Prof. Tullio Seppilli pelo constante estímulo teórico e
pelo afeto e disponibilidade, como também à Silvia
Mamede Studart, Jorge Montenegro Braga e Naomar
de Almeida Filho pelo apoio fornecido no desenvol-
vimento deste trabalho.

Referências

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