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Desenvolvimento moral em formandos de um curso


de odontologia: uma avaliação construtivista

Moral development of graduates from an dentistry


course: a constructivist evaluation

Sérgio Fernando Torres de Freitas 1


Douglas Francisco Kovaleski 1
Antonio Fernando Boing 1

Abstract A debate is conducted on the moral de- Resumo O desenvolvimento moral de forman-
velopment of graduates from an odontology dos de um curso de odontologia foi analisado a
course, based on a constructivist model. A prob- partir de um modelo construtivista. Foi apresen-
lem was offered to the students, asking for the so- tado aos alunos um dilema de fundo moral a ser
lution of a morally based dilemma. By means of resolvido. Por meio de entrevistas, estabeleceu-se
interviews, it was possible to qualify the students a qualificação dos alunos em um dos cinco níveis
in one of the five levels of moral development. de desenvolvimento moral. Os resultados mos-
Main results showed that: a) about 66% of grad- tram que: a) 66% dos formandos estão nos dois
uates fit the first two stages of moral development. primeiros estágios de desenvolvimento moral, on-
At this level, there is no capacity to make situa- de não há capacidade de relativizar situações e
tions and moral dilemmas relative, or solution is dilemas morais, ou estes são resolvidos na lógica
found within a logic of personal interest; b) just a de interesse pessoal; b) o reconhecimento de que
little less than 10% of the subjects acknowledged normas e valores morais podem ser relativizados
that moral norms and values can be made rela- e devem ser orientados para o bem comum foi
tive, to be oriented towards attaining a common atingido por menos de 10% dos entrevistados; c)
good; c) law values were preferred to those of life, os valores de lei prevaleceram aos de vida para a
for the majority of subjects; d) the ensemble of maioria; d) o conjunto de valores que orientou a
values by which the choice of dilemma was guid- escolha do dilema foi majoritariamente definido
ed was in greater part defined by utilitarian and pela busca de recompensa e a preocupação com a
individualistic consequences, and by the search própria reputação. Foram discutidas as potenciais
for rewards and the concern with one’s reputa- conseqüências deste perfil de desenvolvimento
tion. Discussed next are the potential consequences moral sobre a odontologia, as relações éticas do
this moral development profile has upon den- cotidiano da prática profissional, e a incapacida-
tistry, the ethic relations of the quotidian upon de dos cursos em resolver este problema, conside-
professional practice, and the little capacity cours- rado fundamental para uma reorientação do per-
es have to solve this problem, seen as fundamen- fil de recursos humanos necessário ao País: o de
1 Departamento de Saúde
Pública, Centro de tal to rearrange the profile of human resources um dentista com boa capacidade técnica e res-
Ciências da Saúde, UFSC. necessary to the country: dentists with good tech- ponsabilidade social.
Campus Universitário, nical capacity and social responsibility. Palavras-chave Ensino odontológico, Desenvol-
Trindade, 88010-970,
Florianópolis SC. Key words Odontology teaching, Moral devel- vimento moral, Educação em saúde
torresdefreitas@terra.com.br opment, Health education
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Introdução Está baseado na obra de Aguado & Medrano


(1999), que adota a concepção construtivista
A formação odontológica brasileira tem sido de explicação do desenvolvimento moral, em
sistematicamente criticada por seu caráter ex- que princípios universais de critérios de juízo,
cessivamente técnico. Algumas dessas críticas como solidariedade, igualdade, respeito, etc.
se transformaram em trabalhos clássicos para são melhores que princípios convencionais,
a área, como o de Mendes & Marcos (1985), ao baseados em padrões culturais ou de posição
propor um novo modelo de ensino e prática, a social para a resolução de conflitos e relações
Odontologia Integral. No mesmo período, os pessoais. O trabalho destas autoras está funda-
diversos trabalhos de Cordón (1977, 1980, 1982) mentado nas teorias de Kohlberg (1958, 1984,
sobre a necessidade de simplificação e desmo- 1999), que vem desenvolvendo o tema nos últi-
nopolização do saber e práticas odontológicas, mos trinta anos, bem como de Piaget (1972).
entre outros, firmaram a concepção de que o Assim, o objetivo básico é identificar, a par-
ensino odontológico peca por excesso de tecni- tir da metodologia proposta, em que níveis de
cismo em detrimento de aspectos fundamen- desenvolvimento moral estão os futuros den-
tais, como a prevenção, uma relação paciente- tistas. Ou seja, em que níveis de aplicação de
profissional mais humanizada e a própria ética valores morais universais trabalham os estu-
do cotidiano. dantes de odontologia diante de um problema
Um reflexo desta preocupação pode ser vis- concreto. Uma discussão sobre as possíveis con-
to com clareza no estabelecimento do currícu- seqüências desta situação para a ética cotidiana
lo mínimo vigente entre 1982 e a promulgação também é sugerida, tendo como pano de fun-
da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação do a tentativa de formação desse profissional
(LDB), em 1998. O perfil desejado é o de um mais humano e sensível, ainda desejado pela
profissional “tecnicamente capaz e socialmente profissão.
sensível”. Embora existam alguns trabalhos que
dêem respaldo à necessidade de se conseguir
formar este profissional, não há muita discus- Metodologia
são ou clareza sobre o que seria e como se pro-
duz esse dentista socialmente sensível. A partir do trabalho de Aguado & Medrano
O trabalho de Paixão (1981) “O paciente co- (1999), que apresentam um mecanismo de ava-
mo objeto de ensino” dá uma boa medida do ti- liação do desenvolvimento ético e moral em es-
po de problema e das distorções inerentes à for- colares, foi aplicado um plano de entrevista pa-
mação odontológica brasileira, situação essa que ra avaliação desses níveis, em formandos de um
se mantém até os dias de hoje, pois na grande curso de odontologia. Estes foram colocados
maioria dos cursos ainda há seleção de pacien- diante de um dilema hipotético e, a partir de-
tes para tratamento cujo critério é o chamado le, foi feita uma série de perguntas aos entre-
“interesse acadêmico”. vistados.
Neste sentido, a idéia dos conteúdos trans- A) Caracterização do estudo. Para avaliar o nível
versais – conteúdos fundamentais de ensino de desenvolvimento ético e moral, a bibliogra-
que não estão incluídos em nenhuma área con- fia propõe alguns dilemas com várias situações
creta do currículo, nem definem etapas, mas em que aparecem valores em conflito. Dentre
que se estendem por todo o ciclo de formação eles optou-se pelo dilema vida/lei, por ser este
– comum à área de educação, mas ignorada na o que trabalha valores mais próximos da futura
maioria dos cursos de odontologia no Brasil, prática profissional dos alunos. Durante as duas
ganha um caráter estratégico essencial. últimas semanas de aula foram entrevistados
A partir desse conceito, o respeito à ética, 42 formandos, de ambos os sexos, com idades
nas relações com professores, colegas e princi- entre 22 e 28 anos, de uma turma de 56 alunos,
palmente com pacientes, passa a ser apreendi- voluntários esclarecidos sobre os objetivos do
do nas relações cotidianas de ensino, na prática trabalho. Os demais não foram atingidos devi-
de todos os envolvidos e com a discussão des- do à indisponibilidade de tempo ou negativa
tas relações de modo a que o futuro dentista te- em participar da pesquisa. Antes da entrevista
nha estes conceitos profundamente arraigados. foi feito um pré-teste do mecanismo de coleta
Este trabalho busca uma primeira aproxi- de dados em estudantes da fase imediatamente
mação para se trabalhar com a educação de va- anterior. As entrevistas do pré-teste foram apli-
lores morais, sob o eixo dos direitos humanos. cadas com e sem uso de gravador. Concluiu-se
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que o gravador era dispensável por não pro- 9. Deve-se fazer todo o possível para obedecer à
porcionar acréscimo relevante em riqueza de lei? 9a. Por que sim ou por que não?
detalhes, optando-se, então, pela anotação di- Em suas respostas, o entrevistado deveria
reta dos dados. optar por um dos valores (vida ou lei), sendo
B) Apresentação do problema. A seguinte situa- tencionado a explicar sua posição e seu modo
ção foi apresentada aos entrevistados, para lei- de pensar e agir. A partir dessa opção e pela ca-
tura direta, de modo que não houvesse qual- pacidade de sustentar sua posição é possível
quer influência por parte do entrevistador: analisar o desenvolvimento ético e moral do
Na Europa, uma mulher estava a ponto de entrevistado. O fluxograma representado na fi-
morrer de um tipo de câncer muito especial. Ha- gura 1 descreve sucintamente os passos do ins-
via um medicamento que, segundo os médicos, trumento até a classificação final de cada en-
poderia salvá-la. Era um tipo de remédio que o trevistado.
farmacêutico da mesma cidade havia descoberto C) Análise das respostas. O conteúdo do dilema
recentemente. O medicamento era caro para ser exposto divide-se nas categorias valores, normas
produzido, mas o farmacêutico cobrava dez ve- e elementos (ou critério de juízo). A interação
zes mais do que lhe havia custado elaborá-lo. Ele destas categorias irá qualificar o entrevistado em
pagou duzentos reais, mas cobrava dois mil por um estágio determinado. Para a correta análise
uma pequena dose. O marido da enferma, Hen- do estágio é necessário avaliar as explicações do
rique, recorreu a todo o mundo que conhecia pa- aluno para a sua escolha por determinado dile-
ra pedir o dinheiro emprestado, e tentou todos os ma. Daí a importância do entrevistado susten-
meios legais, mas só pôde conseguir mil reais, a tar e argumentar a favor desta escolha.
metade do que custava. Henrique disse ao far- Temos, portanto, o conteúdo da entrevista
macêutico que sua mulher estava morrendo e pe- dividido nessas três categorias (valores, normas
diu que lhe vendesse o remédio mais barato ou e elementos) para avaliação dos estágios e su-
que lhe deixasse pagar mais adiante. Entretanto bestágios. Este é importante para definição da
o farmacêutico disse. “Não, eu descobri o medi- existência ou não de coerência entre raciocínio
camento e tenho que ganhar dinheiro com ele”. e ação moral por parte do entrevistado. O su-
Então, Henrique entrou desesperado na farmá- bestágio B assume maior maturidade de racio-
cia e roubou o remédio para sua mulher. cínio e apresenta características de respeito mú-
Em seguida, foram feitas as perguntas: tuo, autonomia e reversibilidade. Já o subestá-
1. Devia Henrique roubar o remédio? 1a. Por gio A, caracteriza-se fortemente por uma orien-
que sim ou por que não? tação heterônoma, demonstrando pouca coe-
2. (A pergunta 2 é elaborada para conhecer o ti- rência nas respostas do entrevistado.
po de moral do sujeito e é opcional). É bom ou Inicialmente foi observado para qual valor
mau que ele roube o remédio? 2a. Por que é bom – vida ou lei – o sujeito se inclinava. Caso ele
ou mau? não optasse por nenhum, era tencionado a se
3. Henrique tem o dever ou a obrigação de rou- posicionar. Quando mudava de valor durante
bar o remédio? 3a. Por que sim ou por que não? as respostas, considerou-se o último escolhido.
4. Se Henrique não quisesse bem sua mulher, A partir do valor assumido, ele teve de ex-
deveria roubar o remédio? Se o sujeito é a favor plicar sua posição e defendê-la através de argu-
de não roubar, perguntar: Existe alguma dife- mentações, configurando as normas. Baseado
rença com respeito ao que deve Henrique fazer se nelas o sujeito sustenta sua opção. Essas nor-
quer bem sua mulher ou se não quer? mas classificam-se como apresentadas no qua-
5. Imagine que a pessoa que está morrendo não dro 1.
fosse sua mulher, mas um estranho; deveria Hen- Já os elementos configuram-se como as
rique roubar o remédio para um estranho? 5a. Por motivações éticas que guiaram a justificativa
que sim ou por que não? (Se o sujeito é a favor de das respostas do sujeito e se referem mais à es-
roubar o remédio para um desconhecido) trutura do raciocínio (Quadro 2).
6. Imagine que é um animal que quer muito Após as entrevistas, as respostas foram clas-
bem; deveria Henrique roubar para salvar a vida sificadas, sendo definidos os valores (vida ou
de um animal? 6a. Por que sim ou por que não? lei) de opção dos entrevistados e os subestágios
7. É importante fazer todo o possível para sal- A ou B. Para cada valor foram identificados as
var outra vida? 7a. Por que sim ou por que não? normas e os elementos, que formam um critério
8. Está Henrique contrário à lei por roubar o de juízo, ou CJ. Embora a técnica adotada no
remédio? 8a. Por que sim ou por que não? trabalho permita uma pontuação quantitativa,
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Figura 1
Fluxograma de coleta e definição do estágio de desenvolvimento moral.

Dilema

V V

Lei Vida

V V

Decisão

Opção do entrevistado
V

Valores
(de vida e de lei)

V
Normas
(vida, lei, autoridade,
contrato, direitos civis, etc)

Definidos pelo pesquisador


V
Conjunto de valores
(consequências egoístas,
utilitaristas, ideais, de justiça)

Qualificação do entrevistado Definida pelo pesquisador


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optou-se por uma análise exclusivamente qua- de normas ou regras de forma absoluta ou lite-
litativa, por meio das decisões assumidas pelos ral respondem suficientemente a essas situa-
entrevistados. Então os alunos foram classifica- ções. Não leva em conta as circunstâncias que
dos em um dos cinco estágios de desenvolvi- rodeiam a situação nem mediações fora das
mento moral, descritos a seguir. normas. Neste estágio, a orientação ao castigo
O ESTÁGIO 1 caracteriza-se pela unilate- é bastante presente, com ações condicionadas
ralidade. Define justiça em função de poder e pelo medo. Outra característica é a incapacida-
status. Regras morais são aplicadas de forma de de diferenciar perspectivas sócio-morais.
absoluta e/ou literal, sem levar em conta as cir- Não percebe o conflito de interesses entre as
cunstâncias, pois é incapaz de diferenciar pers- partes envolvidas no dilema. Este indivíduo é
pectivas. O ESTÁGIO 2 apresenta conflitos re- incapaz de avaliar justiça em função de poder e
solvidos através de intercâmbios diretos, tra- status, o que o leva a considerar correta a sub-
tando os interesses do indivíduo de forma in- missão do forte ao fraco, sem a preocupação de
diferenciada, sem relativizar contextos ou si- alterar ou intercambiar estes papéis.
tuações. Com uma reciprocidade simples e con- O primeiro estágio é incompatível com o
creta conta também com orientação individua- desenvolvimento almejado para profissionais
lista e hedonista. Já o ESTÁGIO 3 adota a pers- de saúde, ainda mais na proporção observada
pectiva de uma terceira pessoa, superando o in- de 16,66% dos entrevistados.
dividualismo instrumental, assumindo um con- A maior parte dos entrevistados, 21 alunos
junto de normas compartilhadas. Caminha no (ou 50% da amostra), foi enquadrada no está-
sentido de “faça com os outros o que gostaria gio dois de desenvolvimento moral. Um pouco
que fizessem contigo”. O ESTÁGIO 4 adota a além do primeiro estágio, o segundo estágio
perspectiva de um membro da sociedade, em descobre interesses em conflito, porém coloca
que um sistema social tem procedimentos que uma moralidade individualista e instrumental
se aplicam imparcialmente a todos. Aqui, deve- regulando esses interesses. Agora se percebe
res e direitos têm de ser correlativos, relativiza- que as soluções unilaterais, baseadas na obe-
dos em função da situação em que ocorrem. O diência a regras ou normas externas de manei-
ESTÁGIO 5 julga a validade das leis e sistemas ra absoluta são inadequadas para resolver pro-
sociais segundo o grau em que garantem os di- blemas do dia-a-dia. O sujeito no estágio dois
reitos humanos universais. Permite o reconhe- percebe interesses próprios a cada indivíduo
cimento dos direitos universais e o estabeleci- que podem não coincidir com os interesses de
mento de uma hierarquia de prioridades. outros. Para resolver conflitos estas pessoas
partem para um individualismo instrumental,
ou seja, preconiza a troca de favores como ex-
Resultados e discussão plicação de suas ações (presta um favor a al-

A tabela 1 apresenta os resultados gerais de


classificação do nível de desenvolvimento mo-
Quadro 1
ral dos entrevistados. Classificação das normas.
O estágio 1, com menor nível de desenvol-
vimento moral, é geralmente percebido em cri- A) Vida E) Amor Erótico/Sexo I) Direitos Civis
anças por volta de 7 a 8 anos de idade. Essa B) Propriedade F) Autoridade J) Religião
C) Verdade G) Lei K) Consciência
condição estabelece que juízos morais não ne-
D) Afiliação H) Contrato L) Castigo
cessitam de justificativa, e a simples aplicação

Quadro 2
Classificação dos elementos para classificação dos níveis de desenvolvimento moral.
A) Conseqüências egoístas B) Conseqüências utilitaristas C) Conseqüências ideais D) Justiça
Boa reputação Boas conseqüências individuais Proteger o caráter Equilibrar perspectivas
Busca de recompensa Boas conseqüências de grupo Proteger o auto-respeito Reciprocidade
Ajudar o ideal social Manutenção da eqüidade
Ajudar a dignidade humana Contrato social
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Tabela 1 dade, integrando expectativas interpessoais e


Classificação do nível de desenvolvimento as normas compartilhadas em um sistema mais
moral de formandos do curso de Odontologia amplo. Neste estágio, o sujeito considera o sis-
da UFSC, 2000. tema social um conjunto coerente de códigos e
Nível Freqüência procedimentos que se aplicam imparcialmen-
Absoluta % te a todos os seus membros. A busca de interes-
ses individuais só se legitima se for coerente
1 7 16,66
com a manutenção do sistema sócio-moral em
2 21 50,00
3 10 23,80 seu conjunto. A estrutura social composta de
4 4 9,52 um conjunto de relações e instituições tem o
5 – – papel de mediar conflitos e promover o bem co-
Total 42 100,00 mum. A preocupação pela coerência e impar-
cialidade é bastante marcante nesse indivíduo,
e sua prioridade é a manutenção do sistema so-
cial estabelecido e codificado por leis e práticas
guém porque amanhã pode receber outro fa- institucionalizadas mesmo que isso não coinci-
vor em troca) ou trata a todos de forma indife- da com os direitos humanos.
renciada. Apesar de o estágio quatro não abordar os
É necessário lembrar que esse estágio de de- conflitos do dia-a-dia a partir da moralidade
senvolvimento moral caracteriza crianças por dos direitos humanos e bem-estar social, de
volta de 10 ou 11 anos, e foi encontrado em me- uma forma desvinculada de leis, regras, padrões
tade dos formandos, que deverão cumprir pa- e costumes – como propõe o estágio cinco de
drões éticos e morais essenciais no seu traba- Aguado & Medrano (1999) e no qual nenhum
lho, mas que o farão na medida de seu interes- entrevistado foi classificado –, mostra-se como
se individual. um estágio aceitável para dentistas.
Dez acadêmicos, ou 23,8% da amostra, fo- Destaca-se que 90,46% dos entrevistados
ram classificados no estágio três, mostrando foram classificados em estágio menor ou igual
maior capacidade de articular interesses indivi- a três. Este desenvolvimento moral está aquém
duais com uma perspectiva de terceiros. Supe- do esperado para o pleno exercício da prática
ra-se assim o individualismo instrumental pa- da saúde, pois os entrevistados se enquadram
ra construir um conjunto de normas ou expec- em um nível que não reconhece direitos e deve-
tativas morais compartilhadas que se espera res recíprocos em um sistema social e não tem
que todos cumpram. Com isso, pode-se formar preocupações pela coerência e imparcialidade
uma base para o estabelecimento de relações de de suas ações.
confiança mútua que transcendem os interes- O estágio de desenvolvimento moral mais
ses particulares. O sujeito nesse estágio está es- encontrado em adolescentes e adultos na popu-
pecialmente preocupado com relações inter- lação em geral é o estágio 3, segundo Aguado e
pessoais como forma de manter a confiança e a Medrano (1999). No entanto, no grupo pesqui-
aprovação social. Impera um paradigma de ser sado o estágio mais freqüente foi o segundo, o
bom e ajudar o próximo acima de tudo, em que que permite concluir que dois terços dos for-
o mais importante é cumprir as expectativas mandos têm um nível de desenvolvimento éti-
dos outros. co e moral não apenas aquém do almejado, mas
O estágio três começa a se construir em tor- aquém do nível da população em geral.
no de 12 ou 13 anos de idade e caracteriza o ra- Some-se a isto o fato de se ter trabalhado o
ciocínio da maioria dos adolescentes e adultos. dilema mais diretamente relacionado aos pro-
Entretanto, ainda é um comportamento aquém fissionais da saúde, dentre diversos modelos
do que se poderia esperar em profissionais de propostos pelas autoras: o conflito vida x lei.
saúde por condizer com uma construção ainda É questionável a atuação de um profissio-
estereotipada de conduta, podendo empobre- nal da saúde que sustente sua conduta em ações
cer em muito a relação do profissional de saú- individualistas, que age motivado pela troca de
de com a comunidade. favores e não relativize as situações do cotidia-
O maior estágio alcançado no estudo foi o no, características que se encaixam para 50%
quarto, com quatro indivíduos, o correspon- dos formandos.
dente a 9,52% da amostra. Agora o indivíduo Tal constatação sugere – pressupondo que
se percebe na qualidade de membro da socie- o perfil encontrado neste curso não seja essen-
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cialmente diferente de outros cursos no Brasil – como conteúdo transversal, os programas dos
uma evidente inadequação da maior parte dos cursos universitários, de modo que o profissio-
cirurgiões-dentistas para a prática da profissão nal “socialmente sensível” desejado pela profis-
pautada por valores morais, em termos éticos e são não se torne uma abstração. (Tabela 2)
de responsabilidade social. Dos 42 acadêmicos entrevistados, doze es-
Identifica que um formando no nível 2 não colheram o valor vida, enquanto 27 escolhe-
está preparado para atuar no mercado de tra- ram o valor lei e três ficaram indefinidos. Es-
balho como profissional de saúde. Sua constru- ses 64,27% que se direcionaram para o valor lei
ção de valores encontra-se muito abaixo daqui- apresentam, portanto, uma percepção de mo-
lo que a sociedade espera ou necessita. ral que valoriza prioritariamente a lei como
As conseqüências dessa debilidade na for- elemento maior de posicionamento diante da
mação podem ser desastrosas. Ocorre uma in- vida.
versão de valores: a vida passa a ser secundária A partir do momento que estudantes, em
em relação ao interesse particular do indiví- especial da área da saúde, posicionam-se, em
duo. Cotidianamente, o profissional encontra- sua grande maioria, pelo cumprimento da lei
se diante de dilemas envolvendo os mais diver- em detrimento da vida humana, é preciso re-
sos valores. Lidar com as contradições postas pensar profundamente quem estamos forman-
por eles e regular os interesses antagônicos sus- do e se é este o recurso humano que se preten-
tentado pelo individualismo instrumental de- de integrar na sociedade.
rivado da formação universitária torna-se po- É importante observar, também, que o so-
tencialmente perigoso para a sociedade. Será matório de indecisos e dos que apresentaram
que ele atenderá, em seu consultório, um pa- opção por um dilema apenas como tendência
ciente com dor, mesmo que este não possa pa- resulta em 57% dos entrevistados, mostran-
gar? Terá imparcialidade na fila, caso atue no do que há muitas dúvidas e indefinições nas
SUS, ou priorizará seus “conhecidos”? Cumpri- suas decisões; a falta de uma formação moral
rá seu horário no serviço público? Deixará de transparece de maneira mais clara neste aspec-
executar um procedimento mais demorado em to. Mais da metade dos alunos ingressará no
um paciente por estar próximo do final de seu mercado de trabalho sem ter muita certeza de
turno de trabalho? As respostas a estes e tantos como pautar suas decisões profissionais a par-
outros apontamentos só poderão ser dadas, efe- tir de valores morais.
tivamente, na prática dos entrevistados. No en- A escolha das normas foi justificada majo-
tanto, o estudo aponta para comportamentos ritariamente sobre as normas de vida e lei. Nas
preocupantes, com conseqüências que podem argumentações daqueles que já haviam escolhi-
ser graves para a sociedade. do a vida no dilema apresentado, em 12 vezes a
Não há como resolver questões de caráter justificativa dessa opção foi pela norma vida. As
coletivo ou individual quando a conduta moral normas afiliação e consciência foram citadas
do profissional é guiada por interesses particu- apenas uma vez cada. Entre aqueles que opta-
lares e visões unilaterais. ram pela lei no dilema apresentado, a norma
Esta inadequação deve servir de questiona- vida foi citada em 13 oportunidades, a norma
mento às práticas da universidade por não ter
viabilizado que o acadêmico alcance um nível
de desenvolvimento moral aceitável no final de
seu curso. Mais grave ainda é o questionamen- Tabela 2
to da responsabilidade que a universidade tem Opção dos formandos do curso de Odontologia da UFSC,
2000, entre os dilemas lei/vida.
quando confere o título de cirurgião-dentista a
alguém que jura cumprir padrões éticos e mo- Dilema Envolvimento Freqüência
rais, mas não transcende o interesse individual Absoluta %
envolvendo a vida humana. vida claramente 7 16,67
Desse modo coloca-se em dúvida a existên- tendência 5 11,90
cia, tanto no curso quanto na universidade, da
real preocupação com a formação integral do lei claramente 11 26,19
tendência 16 38,10
aluno universitário, não apenas para o merca-
do, mas como membro de uma sociedade, um indefinido 3 7,14
cidadão com a responsabilidade social de pro-
Total 42 100,00
mover saúde. A formação ética deve integrar,
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lei 14 vezes e outras normas mais sete vezes, co- mos classificar o grau de desenvolvimento mo-
mo pode ser visto na tabela 3. ral. No grupo que optou pelo dilema lei, o cri-
Tal constatação demonstrou que os entre- tério de juízo da conseqüência utilitarista in-
vistados atribuem à preservação da vida uma dividual foi o mais citado, com 33,33%. Muito
grande importância. O primeiro grupo (o que citados também foram: busca de recompensa,
optou vida/vida) demonstrou coerência em suas com 23,81%; e a preservação da reputação, com
justificativas, o que não necessariamente repre- 21,43%.
senta um bom nível de desenvolvimento mo- No grupo que escolheu o dilema vida, os
ral, pois não foi citada a qualidade dessa vida critérios mais citados não se alteraram, ape-
ou a defesa da mesma como direito inalienável nas sua distribuição. O CJ8 teve 64,29% das ci-
das pessoas acima dos interesses comerciais ou tações, o CJ6 teve 11,9 % e o CJ7 teve 7,14%.
individuais, mas pura e simplesmente a vida pe- Constata-se que as ações que os entrevistados
la vida ou por interesses utilitaristas. Já no se- julgam corretas para o caso são motivadas por
gundo grupo (os que optaram pelo dilema lei) conseqüências utilitaristas e egoístas, não prio-
há 14 citações da norma lei, ou seja, a vida deve rizando a justiça ou a harmonia social.
ser preservada, porém a defesa dela deve limi- Esse elemento de análise torna-se preocu-
tar-se ao permitido pela lei. (Tabela 4) pante, pois tal resultado mostra o despreparo
Verificar quais as motivações éticas que le- do profissional de saúde em assumir seu papel
varam o sujeito à sua opção por determinado de agente modificador da sociedade. Limita-
dilema é de grande importância para poder- se a ações individualistas, por medo de prejuí-
zo pessoal ou de abalar sua reputação, carac-
terizando um profissional com uma atuação
sem compromisso social, sem tentar fazer valer
Tabela 3
Opção dos formandos do curso de Odontologia da UFSC,
eqüidade e justiça.
2000, entre as diferentes normas. Assim, na formação do indivíduo, essa con-
cepção do bem-estar de todos e da necessida-
Normas Freqüência de de promoção de saúde coletiva é substituída
Lei Vida Indecisos
por interesses que se limitam a restituir o bem-
(A) vida 13 12 3 estar do indivíduo apenas daqueles que podem
(B) propriedade 2 – – pagar. Este momento, que possivelmente é an-
(D) afiliação 3 1 – terior a entrada do aluno no curso de odonto-
(F) autoridade 1 – 1 logia, não é revertido pela formação odontoló-
(G) lei 14 – 1 gica, permitindo a manutenção de um modo de
(K) consciência 1 1 –
compreender a profissão e a própria vida com
Obs: As normas não constantes na tabela acima não foram citadas. conseqüências prejudiciais à sociedade.

Tabela 4
Opção dos formandos do curso de Odontologia da UFSC – 2000, entre os diferentes critérios de juízo.
CJ Lei Vida
Freqüência Freqüência
absoluta relativa absoluta relativa
(6) boa reputação 9 21,43 5 11,90
(7) busca de recompensa 10 23,81 3 7,14
(8) boas conseqüências individuais 14 33,33 27 64,29
(9) boas conseqüências de grupo 3 7,14 – –
(10) proteger o caráter 1 2,38 1 2,38
(11) proteger o auto-respeito – – 1 2,38
(12) ajudar a harmonia ou ideal social – – 1 2,38
(14) equilibrar perspectivas 1 2,38 – –
ou adoção de caracteres
indecisos 4 9,52 4 9,52
Obs: Os valores não constantes acima não foram citados.
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Adotamos o pressuposto da OPS (Andrade, saúde, num distanciamento cada vez maior da
1979), de que o marco conceitual da formação odontologia tradicional e assumindo um obje-
médica é definido por relações externas ao pro- to de trabalho coletivo.
cesso pedagógico, em que a influência da estru- Em um modelo em que prevalecem a técni-
tura socioeconômica do país, sua estrutura de ca, a atenção individual e a ideologia liberal da
prática médica e a ideologia profissional são pe- profissão, o desenvolvimento moral encontra-
ças fundamentais para compreender este pro- do não é surpreendente, mas esperado. Os con-
cesso. No Brasil, o projeto pedagógico hegemô- ceitos que os estudantes de odontologia trazem
nico para o ensino odontológico é fundamen- podem ser mantidos ou reforçados durante o
tado no modelo flexneriano, e classificado co- desenvolvimento do curso, mas dificilmente se-
mo científico ou tradicional por Mendes & Mar- rão reformulados. É esta discussão que deve ser
cos (1985). reaberta para os projetos pedagógicos que pre-
Este modelo tradicional é o existente no cur- tendam reformular a formação odontológica
so de odontologia pesquisado e é criticado por em busca do profissional que já é tecnicamente
diversos autores desde a década de 1980. Padi- capaz, mas nunca foi socialmente sensível.
lha (1998) fez uma síntese destas críticas e clas-
sifica este modelo como ineficiente, ineficaz,
iatrogênico e sem eqüidade. Conclusões
Diversos modelos alternativos foram pro-
postos, dos quais destaca-se o de Pires Filho 1. O nível de desenvolvimento moral encon-
(1995), que identifica três outros modelos de trado entre os formandos é baixo, e menor do
prática para além deste: o Inovado, o Preventi- que o esperado para adultos;
vista e o Integral, dos quais o último explicita a 2. este nível é inadequado para o exercício da
necessidade de um dentista mais humanizado profissão, pois interfere nas relações éticas do
e tendo como objetivo a promoção da saúde, cotidiano;
conforme proposta original de Mendes & Mar- 3. o curso de odontologia não consegue viabi-
cos (1985). E o de Botazzo et al. (1988) que, sob lizar este desenvolvimento moral desejável;
outro enfoque, indicam o modelo de Saúde Bu- 4. este nível pode acarretar conseqüências da-
cal Coletiva, com a politização das causas da nosas para o futuro profissional, para os pa-
doença e sua vinculação às práticas coletivas de cientes e para a sociedade.

Colaboradores

SFT Freitas propôs o tema, orientou o estudo e foi res-


ponsável pela redação final do texto. DF Kovaleski e AF
Boing aplicaram as entrevistas, analisaram os resultados e
redigiram o artigo
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