You are on page 1of 13

A CTAS

CCO N G RFE S S O N A CIO N A L


DE ENTROS DE A E
ORMAÇÃO DE SSOCIAÇÃO DE SCOLAS

F ORMAÇÃO C ONTÍNUA E Q UALIDADE DA E SCOLA

3, 4 E 5 DE M AIO 2007

CENTRO CULTURAL VILA FLOR, GUIMARÃES


85
POLÍTICAS DE FORMAÇÃO AO LONGO DA VIDA

Licínio C. Lima
Universidade do Minho

Subordinada ao título "Políticas de Edu- ou dominante, do ajustamento económico,


cação e Formação ao Longo da Vida", transformando-se em programas de "quali-
esta intervenção assume como objectivo ficação", de "capacitação" e de "gestão de
apresentar uma visão crítica das derivas recursos humanos" onde, com frequência,
economicistas, gerenciais e tecnocráticas se torna difícil descobrir algum projecto
da educação e formação ao longo da vida, substantivamente educativo. Trata-se, em
que aqui designarei por "mão direita da tais casos, do triunfo de uma política edu-
educação ao longo da vida". Socorro-me, cacional centrada em lógicas "vocaciona-
em grande parte, dos argumentos que ex- listas" e de formação profissional contínua,
pus no livro que acabo de publicar sobre dificilmente capaz de valorizar a educação
Educação ao Longo da Vida. Entre a Mão de adultos, a educação cívica e para a ci-
Direita e a Mão Esquerda de Miró (Lima, dadania democrática, e de minimamente
2007). se articular com os objectivos, as práticas
A tese que apresento pode ser enunciada e as metodologias de trabalho pedagógico
da seguinte forma: destas abordagens. Sem poder recusar o
Na mais perfeita adaptação à estrutura confronto com os problemas da economia
social, à economia e à competitividade, a e da sociedade, do trabalho e do emprego,
educação ao longo da vida revela-se, no um projecto de educação ao longo da vida
limite, um projecto político-educativo in- não resistirá, porém, à amputação das
viável, já definitivamente em ruptura com suas responsabilidades sociais e ético-
as suas raízes humanistas e críticas. Vê políticas e dos seus possíveis contributos
então fortemente diluídas as suas dimen- para a criação de dinâmicas de transfor-
sões propriamente educativas, para ceder mação positiva das condições da existên-
protagonismo a modalidades de formação cia humana, até mesmo nos interstícios
e de aprendizagem ao serviço exclusivo, das organizações sociais mais resilientes.
86
Procuro, assim, compreender as mutações o seu carácter educativo e não aliene as
que vêm ocorrendo neste campo, as ambi- suas responsabilidades sociais e ético-
guidades e as contradições resultantes de políticas.
distintas perspectivas políticas e sociais Por esta razão admito que, em toda a sua
que em torno do conceito polissémico de diversidade, e dada a sua natureza multi-
educação ao longo da vida têm sido cons- forme, a educação ao longo da vida não
truídas, chamando a atenção para o seu pode irresponsavelmente virar as costas
potencial democrático, mas também para aos problemas da economia e da socieda-
as derivas economicistas e tecnocráticas de, do trabalho e do emprego.
já amplamente subordinadas à emprega- Mas parece-me igualmente inaceitável
bilidade e à performatividade competitiva. que, numa posição de subordinação, i.e.
Parto do pressuposto que o ideal de edu- de joelhos, vergada pela força da com-
cação ao longo da vida corresponde a um petitividade económica, sucumba perante
projecto político-cultural de grande ampli- objectivos de mera adaptação funcional,
tude, capaz de compreender modalidades sendo transformada em programas mais
de educação formal, não-formal e informal, ou menos restritos de qualificação dos re-
a educação política, a formação cultural e cursos humanos e da mão-de-obra assa-
para a cidadania democrática, tanto quan- lariada.
to a formação profissional e a formação É precisamente para estes casos, em meu
contínua. entender hoje dominantes no discurso po-
Esta unidade na diversidade, porém, só lítico e nas agendas das políticas de edu-
me parece possível quando, mesmo nos cação e formação, que me socorro, em ter-
casos das formações mais focalizadas no mos interpretativos, da metáfora da "mão
trabalho e no emprego, na reconversão direita da educação ao longo da vida".
profissional ou na reciclagem, nas com- Tenho recorrido, com efeito, a um poema
petências técnicas ou no desempenho em do autor brasileiro João Cabral de Melo
contexto de trabalho, um projecto político- Neto (1997), intitulado: "O sim contra o
educativo e cultural lhes confere sentido. sim", onde o pernambucano tematiza po-
Reconheço, consequentemente, que a eticamente a situação de impasse a que o
educação ao longo da vida é muito mais pintor catalão Miró teria chegado a partir do
e está para além da formação profissio- momento em que a sua mão direita se tor-
nal contínua, embora necessariamente a nou demasiado sábia e destra, de tal sorte
compreenda, sempre que esta não recuse que perdeu a capacidade de se reinventar;
pelo contrário, a sua mão esquerda, sendo
87
assenta no seu carácter pragmatista e
menos hábil e adestrada (no caso de não na tendência para a procura de soluções
ser canhoto), seria menos funcional e, por pedagogistas e individuais para enfrentar
essa razão, menos óbvia, mais criativa e problemas estruturais de manifesta mag-
com mais desejo de aprender. nitude e complexidade.
Cito um trecho do poema: Em rigor, muitos dos sectores que hoje lhe
Miró sentia a mão direita são mais típicos, como a formação profis-
demasiado sábia sional e contínua, não são dispensáveis
e que de saber tanto no âmbito de uma concepção mais ampla
já não podia inventar nada. de educação ao longo da vida que lhes
Quis então que desaprendesse possa conferir sentido educativo em ter-
o muito que aprendera, mos estratégicos e menos imediatistas e
a fim de reencontrar funcionais.
a linha ainda fresca da esquerda. Isto significa, em última análise, admitir
Pois que ela não pôde, ele pôs-se as vantagens da superação de uma lei-
a desenhar com esta tura enclausurada em termos puramen-
até que, se operando, te antinómicos – mão direita versus mão
no braço direito ele a enxerta. esquerda –, no que às políticas e práticas
A esquerda (se não se é canhoto) de educação ao longo da vida se refere,
é mão sem habilidade: a qual seria demasiado simplista e empo-
reaprende a cada linha, brecedora.
cada instante, a recomeçar-se. Daí, também, a opção pelo entre-dois e
pelas correspondentes tensões, admitindo
Idêntica seria, de resto, a situação vivida situações compósitas e um certo hibridis-
pelo pintor holandês Mondrian, segundo o mo, com a presença simultânea, eventual-
mesmo poema: mente com intensidades variadas, de am-
Mondrian,também da mão direita bas as mãos, ou seja, de uma educação
andava desgostado; ao longo da vida ambidestra.
não por ela ser sábia: Capaz, por isso, de cruzar e integrar sabe-
porque, sendo sábia, era fácil. res, de beneficiar das tensões entre, por
um lado, a destreza de uma mão direita
Como se compreende, a crítica à "mão que de tão destra se pode transformar
direita" da educação ao longo da vida num factor de puro hábito, ajustamento e
88
amestração e, por outro lado, o discrepar, E também com Adorno podemos reconhe-
aparentemente mais descentrado da tare- cer o carácter ambivalente da adaptação
fa, desajeitado e algo inábil, de uma mão em educação: por um lado necessária e,
esquerda que, menos sábia e menos com- por outro lado, absolutamente insuficiente.
petente, se assume mais livre e curiosa Escreveu o autor:
para aprender ou mesmo para desapren- "A educação seria impotente e ideológi-
der o antes aprendido, para poder apren- ca se ignorasse o objectivo de adapta-
der de novo. ção e não preparasse os homens para
Reconhece-se, em qualquer caso, que um se orientarem no mundo. Porém ela seria
certo grau de adaptação ao mundo, e de igualmente questionável se ficasse nisto,
imersão no mundo, é inerente a qualquer produzindo nada além de well adjusted
projecto de educação ao longo da vida, people, pessoas bem ajustadas, em con-
desde logo quando se confere centrali- sequência do que a situação existente se
dade à vida em toda a sua amplitude, e impõe precisamente no que tem de pior"
especialmente no caso dos adultos, à sua (Adorno, 2000: 143).
leitura do mundo, às suas aprendizagens É também neste sentido que, recentemen-
sociais ou experienciais. te, István Mészáros (2005: 75) reconhecia
Mas isto implica também reconhecer a que a educação, "Não pode ser vocacio-
substantividade da vida ao longo da edu- nal", dado que isso "em nossas socieda-
cação, da formação e das aprendizagens des significa o confinamento das pessoas
permanentes dos indivíduos, e não o cur- envolvidas a funções utilitaristas estreita-
so da vida reduzido a uma interminável su- mente predeterminadas, privadas de qual-
cessão de formações e de aprendizagens quer poder decisório". Uma educação para
úteis e eficazes, segundo apenas uma de- a heteronomia, portanto.
terminada racionalidade de tipo económi- No limite, a formação vocacional, ou pro-
co e gerencial, perseguindo em tal contex- fissional, ou a celebração da ideia, neste
to, e acima de quaisquer outros valores e momento dominante no discurso político
interesses, o alcance da "solução óptima", em Portugal, das qualificações ao longo da
a busca do "menor meio", um sistema que vida, arrisca-se não apenas a ser ineficaz e
amestra os seres humanos para o traba- incongruente face aos seus pressupostos
lho, "mesmo quando o sistema há muito de competitividade e aumento da produti-
deixou de precisar do seu trabalho", se- vidade, mas também a constituir-se como
gundo Theodor Adorno (2003: 139). uma acção para a subordinação e para a
alienação dos cidadãos. Exactamente por
89
treinados" (Sennett, 2006: 83).
atribuir excesso de protagonismo à mão Esta situação não se deve, ao contrário do
direita da educação ao longo da vida. que é sugerido por vários sectores, a uma
Esquecendo, por exemplo, que os "pa- súbita desadequação funcional entre a Es-
drões de utilidade" doravante exigidos a cola e a Vida, as quais se teriam eventual-
cada indivíduo são responsáveis pelo fe- mente desencontrado.
nómeno de "redundância" que é analisado Deve-se a um determinado modelo de
pelo sociólogo Zygmunt Bauman no seu desenvolvimento económico e societal tí-
livro Vidas Desperdiçadas, onde afirma: pico do novo capitalismo e, como afirma
"Ser redundante significa ser extranume- Sennett, ao seu agora imanente "fantasma
rário, desnecessário, sem uso. Os outros da inutilidade", ao desemprego como solu-
não necessitam de si. Podem passar mui- ção estrutural e racional para manter, ou
to bem, e até melhor, sem si". E isto, reco- aumentar, a competitividade no mercado
nhece Bauman, até em muitíssimos casos global.
em que o indivíduo possa corresponder Mas o economismo educacional hoje domi-
aos "padrões de utilidade" em vigor, uma nante, insiste em remeter a educação para
vez tendo sido já considerado "redundan- uma posição subalterna face à formação
te" e, como tal, "sobretudo um problema profissional e às aprendizagens e qualifi-
financeiro" (Bauman, 2005: 20). cações ao longo da vida, estas no quadro
Como se pode concluir da análise da re- da celebração, mais ou menos épica, dos
alidade que vivemos, as "qualificações", processos de individualização e das bio-
ou a "aquisição de competências para grafias hiper-racionais de aprendizagem,
competir", de acordo com a linguagem útil e eficaz.
pós-pedagógica em moda, podendo ser Daí que a lógica da aprendizagem indivi-
pré-requisitos não garantem o sucesso e a dual e das qualificações dos trabalhado-
adaptação isomórfica do indivíduo ao seu res já só muito raramente remeta para a
ambiente socioeconómico. Como lembra matriz, de raiz humanista, da educação ao
Richard Sennett, "A economia das capa- longo da vida, ou educação permanente,
citações continua a deixar a maioria para como era traduzida na década de 1970,
trás; o que é pior, o sistema educacional do francês éducation permanente. A pró-
gera grande quantidade de jovens forma- pria designação caiu no esquecimento em
dos mas impossíveis de empregar, pelo vários países, incluindo Portugal (embora
menos nos terrenos para os quais foram não em Espanha).
90
Isto não se deve, contudo, a uma prefe- tre outras.
rência de ordem linguística. A própria ex- Com efeito, o conceito de educação per-
pressão alternativa de "educação ao longo manente ou ao longo da vida conferia cen-
da vida" (lifelong education) foi igualmente tralidade à educação enquanto objecto de
objecto de um processo de ressemantiza- políticas públicas e, portanto, à sua pro-
ção. Embora tenha, recentemente, granje- visão, organização e regulação enquanto
ado maior protagonismo relativo, tratou-se direito humano básico, responsabilizando
sobretudo de uma designação "descober- o Estado pela garantia das condições de
ta" por políticos, economistas e gestores igualdade de oportunidades. Neste sen-
que, em geral, desconheciam, ou desva- tido, a educação ao longo da vida reve-
lorizavam, a genealogia do conceito e os lou-se um dos pilares socioeducativos do
respectivos "discursos programáticos" que Estado-Providência, articulando-se com
lhes haviam conferido sentido, com a van- as políticas sociais e redistributivas típicas
tagem de optarem por privilegiar o signifi- dos diversos modelos que assumiu em
cante proveniente da língua inglesa, o que vários países, sobretudo após a segunda
favorecia um certo sentido de ruptura e ga- guerra mundial. O ideal de educação per-
rantia um certo carácter de novidade. manente ou educação ao longo da vida,
Este movimento constituiu, porém, so- conferindo sentido e integrando diversas
bretudo um processo intermediário ou de modalidades e formas de educação e for-
transição, uma vez que alguns dos mais mação, institucionalizadas ou não, assumi-
importantes pressupostos político-edu- ria frequentemente como objectivo último
cativos, inerentes aos textos fundadores a educação para a cidadania democrática
e respectivas orientações políticas, ra- e a participação livre e responsável, para o
pidamente foram objecto de revisão, ou desenvolvimento e a transformação, para
acabariam mesmo sendo denegados. A o esclarecimento e a autonomia dos cida-
expressão a sair vitoriosa deste processo dãos. Ainda quando, ao seu carácter utó-
será, curiosamente, apenas uma parte da pico e avançado, sobretudo nas versões
anterior: o sintagma "… ao longo da vida", de tipo emancipatório e humanista-radical,
libertando o eixo paradigmático para ou- tivessem correspondido, na prática, rea-
tras opções consideradas mais pertinentes lizações por vezes escolarizantes, mais
do que "educação…", como vem sendo o pragmáticas e bem menos democráticas.
caso de "formação", de "aprendizagem", Hoje, porém, uma boa parte das acima
de "qualificação" ou de "capacitação", en- referidas articulações passou a fazer-se
exactamente a partir da defesa da reforma
91
sociedade em toda a sua latitude e longi-
neoliberal do Estado-Providência, com o tude, fosse a solução, a partir de um fenó-
respectivo esbatimento do papel do Esta- meno de pedagogização quase totalitária
do na educação, a favor da lógica da pres- da esfera individual e colectiva, assente
tação de serviços de educação e formação na crença pedagogista de que os nossos
mais ou menos organizados segundo as maiores problemas se devem à crise da
regras do mercado. Dirigindo-se, assim, educação e da escola e de que só pela via
não apenas a "utentes" mas especialmen- de um novo paradigma de aprendizagem,
te a "clientes" e a "consumidores", de acor- que em primeiro lugar responsabiliza o in-
do com as suas necessidades individuais divíduo e o atomiza, poderemos finalmen-
e as suas estratégias competitivas, tendo te responder positivamente aos chamados
em vista a construção de biografias forma- "desafios" da globalização, da sociedade
tivas e de portefólios de competências con- da "informação" e do "conhecimento", e da
siderados racionais. A educação fica para "organização flexível".
trás face à insistência na formação (profis- Como lembrava Paulo Freire, a educação
sional e contínua, especialmente da popu- pode, de facto, alguma coisa, mas não
lação activa) e na sua maior capacidade pode tudo; mesmo quando já reconceptu-
de modernização e adaptação funcional alizada como formação vocacional (como
à economia. Porém, a responsabilização no caso português, com direito a uma di-
individual, a racionalidade económica, o recção-geral no ME), ou como qualificação
"ethos" mercantil e a competitividade for- (agora também com direito a uma Agência
çaram não apenas a uma deslocação da Nacional para a Qualificação).
educação para a formação, mas também Insistimos em ignorar que o problema edu-
desta para a aprendizagem. A "aprendiza- cativo português, herdado de décadas (e
gem ao longo da vida" e suas expressões mesmo séculos) de descomprometimento
derivadas ("qualificações", "capacitações", das elites face à educação dos seus con-
etc.) surgem como máximas político-edu- cidadãos, dificilmente poderia conhecer
cativas decorrentes da declaração de "fa- solução através da promoção de qualifica-
lência" do Estado-Providência, predomi- ções para a população activa.
nantemente orientadas para o reforço das A formação vocacional ou profissional, por
vantagens competitivas dos indivíduos, mais relevante que seja, é por si só inca-
das empresas e das nações. Como se uma paz de afrontar os problemas socioeduca-
espécie de re-escolarização extensiva da tivos dos portugueses. Sem verdadeira re-
92
taguarda educativa e cultural não há, seja papel da educação e da formação (sobre-
do ponto de vista teórico seja do ponto de tudo desta) enquanto motores da mudan-
vista empírico, qualquer evidência de que ça social.
a formação profissional e contínua repre- Temos, em Portugal, uma tradição de rela-
sentem o elemento nuclear. ção hiperbólica com a Educação. Tanto no
O discurso político, contudo, insiste (de- sentido do seu interesse limitado, quanto,
signadamente através das palavras do pri- mais tarde, no sentido das suas capacida-
meiro ministro): des ilimitadas.
– na "qualificação para o crescimento eco- Exageros que provêm da falta de políticas
nómico"; educativas consistentes, estáveis, respon-
– em que o nosso atraso resulta do insu- sáveis e humildes.
ficiente nível de qualificação da população Políticas Educativas capazes de contra-
portuguesa; riar lógicas de campanha, de tipo exten-
– em atribuir prioridade aos cursos téc- sionista, conduzidas por vanguardas, pois
nicos e profissionais, dado o insuficiente educação não é endoutrinamento, nem
número de cursos profissionalmente qua- consiste em incutir alguma coisa nos ou-
lificantes. tros, simplesmente treinar ou formatar os
No texto do "Acordo para a Reforma da For- outros.
mação Profissional" é afirmado: "A aposta Como pertinentemente observou Paulo
estratégica na qualificação da população Freire, "formar" não é acção pela qual um
portuguesa é opção central para o cresci- sujeito criador dá forma, estilo ou alma a
mento económico e para a promoção da um corpo indeciso e acomodado, a um for-
coesão social e territorial, assegurando o mando entendido como um objecto, como
aumento da competitividade e a moderni- um paciente da formação.
zação das empresas, da qualidade e pro- Nem o formador é um "treinador, transferi-
dutividade do trabalho, a par da promoção dor de saberes, exercitador de destrezas",
da empregabilidade, do desenvolvimento como sucede, segundo o pedagogo bra-
pessoal e de uma cidadania plena". sileiro, na "educação friamente tecnicista"
Ou seja, a qualificação profissional parece (Freire, 1997: 162).
capaz de operar um verdadeiro milagre. Uma política educativa séria e competente
A esta crença, ingénua ou não, nos im- não pode: prometer o que não é capaz
pactos da formação sobre a sociedade, de cumprir (por exemplo, o pleno empre-
chama-se "pedagogismo". O exagero do go); limitar-se a uma estratégia acelerada
de certificação escolar e profissional sem
93
contaminação pela cultura letrada. Agora,
substância, pois não há truques, em edu- em sinal subitamente inverso, face ao seu
cação; insistir na promoção de uma forma- carácter salvífico, mesmo quando já não
ção profissional estreita, sem retaguarda é exactamente de educação que se fala,
educativa, cultural, cívica, política; ignorar mas antes de formação para a qualifica-
que a maior força da educação consiste na ção. Em todo o caso, como se a educação
sua aparente fragilidade, nos seus ritmos e pudesse tudo e servisse para tudo, ou para
tempos lentos, na falta de resultados ime- resolver todos os problemas, e sobretudo
diatos e espectaculares, nos processos de os económicos.
diálogo e de convivialidade, recusando o Mesmo no caso de profissões exigentes
autoritarismo, pois ninguém educa ou for- e que requerem formações de nível su-
ma ninguém à força, ou de uma hora para perior, como acontece com educadores e
a outra. professores, a educação dos educadores
Também é claramente inconsequente pro- não se reduz à formação profissional, ini-
curar valorizar, reconhecer e certificar os cial e contínua.
adquiridos dos adultos a partir de uma con- A educação dos educadores, de que não
cepção fortemente desvalorizadora e pejo- se fala a não ser em círculos académicos,
rativa, presente no mesmo discurso oficial, geralmente para invocar a terceira tese de
em torno das "debilidades", dos "défices", Karl Marx sobre o filósofo Feuerbach, a
das "lacunas" da população portuguesa… qual invoca exactamente a ideia de que o
Ou da profunda desvalorização social de próprio educador tem necessidade de ser
certas profissões, ou ocupações, como na educado, tendo em vista a transformação
campanha recente das Novas Oportunida- das suas circunstâncias (cf. Marx,1971:
des, em que se assegura que "aprender 22), compreende a ideia de formação pro-
compensa", por forma a libertar-nos de fissional contínua e supera-a não apenas
certas profissões subordinadas que serão alargando política e culturalmente o seu
o destino daqueles que tiveram "falta de âmbito, mas também cuidando da indis-
estudos". pensável formação ética do educador, pre-
Voltamos aos discursos hiperbólicos face parando-o para lidar com a politicidade da
à educação, durante boa parte do Estado educação, com a liberdade e a autoridade
Novo fortemente desvalorizada e restringi- (uma e outra indispensáveis à educação),
da, face aos perigos da mobilidade social, para lutar pela sua autonomia e pela au-
de consciência crítica dos cidadãos, de tonomia dos educandos, para aprender
94
a decidir através da prática da decisão, formação contínua destina-se a assegu-
de acordo com as propostas de Freire rar a actualização, o aperfeiçoamento, a
(1997). reconversão e o apoio à actividade profis-
No limite, já não se trata apenas de forma- sional do pessoal docente, visando ainda
ção profissional contínua, mas de um pro- objectivos de desenvolvimento na carreira
jecto mais amplo e ambicioso de educação e de mobilidade nos termos do presente
cultural e ético-política dos professores. Estatuto".
Difícil, mas certamente não impossível de Deste ponto de vista, também o Preâm-
realizar, num contexto fortemente marcado bulo do Regime Jurídico da Habilitação
pela mão direita da educação ao longo da Profissional para a Docência (Dec.-Lei n.º
vida e suas correspondentes obsessões 43/2007) é bastante pobre e apresenta
pela promoção de qualificações de carác- uma retórica pouco substantiva, repetindo
ter mais restrito e técnico-profissional; as em combinações várias as palavras (ago-
quais, no limite, e paradoxalmente, são fre- ra mágicas) qualidade e qualificação:
quentemente responsáveis pela alienação "O desafio da qualificação dos portugue-
e desprofissionalização dos professores, ses exige um corpo docente de qualidade,
despolitizando a sua acção e remetendo- cada vez mais qualificado, e com garan-
os para o estatuto de simples executores tias de estabilidade, estando a qualidade
qualificados. do ensino e dos resultados de aprendiza-
A própria definição do que se entende por gem estreitamente articulados com a qua-
"actividade profissional do pessoal docen- lidade da qualificação dos educadores e
te" fica muito dependente do protagonismo professores".
atribuído à mão direita ou à mão esquerda A situação na União Europeia, embora
da educação ao longo da vida, em termos muito variável, apresenta contudo tendên-
de formação contínua. cias semelhantes.
Sem querer entrar em detalhes, que o âm- Num relatório publicado em Janeiro passa-
bito que escolhi para esta conferência não do pela EURYDICE, pretende-se valorizar
aconselha, registo apenas que os objec- as realizações da Educação de Adultos
tivos definidos para a formação contínua que não sucumbiram ainda à formação vo-
pelo Regime Jurídico instituído pelo Dec.- cacional. Portugal quase não consta, es-
Lei n.º 207/96 são consideravelmente pecialmente em termos de educação não
mais amplos do que aqueles que o Artigo formal de adultos. O que é interessante é
15º do ECD inclui, ao estabelecer que "A o título do Relatório. Como a formação vo-
cacional, ou profissional, é hoje dominante
95
talismo, por mais que nos digam que este
também na Educação de Adultos, foi preci- debate está fora da agenda (anti-intelec-
so encontrar um título novo, e rebuscado, tualista, diria eu), ou que reconheça que a
que ainda há uma década atrás pareceria solução não reside em buscar definições
ridículo face à tradição humanista e crítica essencialistas ou pretensamente consen-
da Educação de Adultos europeia: "Educa- suais.
ção de Adultos Não Vocacional", é o título Ao contrário do que insinua a pintura de
e o conceito usado neste Relatório. Fragonard, a educação não faz tudo, é
Concluo convocando de novo a pintura. preciso reconhecê-lo.
No Museu de Arte de São Paulo, no Brasil, Mas talvez mais importante ainda seja re-
encontrei há tempos um pequeno quadro conhecer que a educação, enquanto direi-
do pintor francês, nascido na Provença em to humano básico, não pode ser confun-
1732, Jean-Honoré Fragonard, que me in- dida com amestração, endoutrinamento,
teressou muito. simples treinamento ou qualificação para
Fragonard é conhecido sobretudo por um o trabalho.
quadro intitulado o "Baloiço", cuja fama Se nos contextos de educação e forma-
o tem remetido para inúmeras caixas de ção, inicial e contínua, de professores,
chocolates, mas também intitulou muitos não temos minimamente esclarecidas es-
trabalhos em torno da educação – "A Lição tas questões, que são o âmago do nosso
de Música", "O Estudo", "A Leitora", entre ofício e o objecto nuclear das nossas re-
outros. flexões, então seria, em tal caso, urgente
Mas no MASP, no Brasil, encontrei o qua- que nos decidíssemos e que iniciássemos
dro "A Educação Faz Tudo", no qual um as discussões.
grupo de crianças observa e dirige dificí-
limas habilidades desempenhadas por Referências bibliográficas
ADORNO, T. W. (2000). Educação e emancipação.
duas personagens centrais, as únicas
Rio de Janeiro: Paz e Terra.
que, de resto, se encontram de frente para ADORNO, T. W. (2003). Sobre a indústria da cultura.
o observador do quadro: trata-se de dois Coimbra: Angelus Novus.
BAUMAN, Z. (2005). Vidas desperdiçadas. Rio de
cãezinhos! Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Não pude, amargamente, deixar de reflec- FREIRE, P. (1996). Pedagogia da autonomia. Sabe-
tir sobre a situação de confusão e sincre- res necessários à prática educativa.
São Paulo: Paz e Terra.
tismo ao redor das políticas, dos conceitos LIMA, L. C. (2007). Educação ao longo da vida. Entre
e das práticas de educação no novo capi- a mão direita e a mão esquerda de Miró. São Paulo:
Cortez.
96
MARX, K. (1971). Antologia filosófica. Lisboa: Estam-
pa.
MÉSZÁROS, I. (2005). A educação para além do ca-
pital. São Paulo: Boitempo.
NETO, J. C. M. (1997). O sim contra o sim. In Serial
e antes. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, pp. 286-291.
SENNETT, R. (2006). A cultura do novo capitalismo.
Rio de Janeiro: Editora Record.

You might also like