Subordinada ao título "Políticas de Edu- ou dominante, do ajustamento económico,
cação e Formação ao Longo da Vida", transformando-se em programas de "quali- esta intervenção assume como objectivo ficação", de "capacitação" e de "gestão de apresentar uma visão crítica das derivas recursos humanos" onde, com frequência, economicistas, gerenciais e tecnocráticas se torna difícil descobrir algum projecto da educação e formação ao longo da vida, substantivamente educativo. Trata-se, em que aqui designarei por "mão direita da tais casos, do triunfo de uma política edu- educação ao longo da vida". Socorro-me, cacional centrada em lógicas "vocaciona- em grande parte, dos argumentos que ex- listas" e de formação profissional contínua, pus no livro que acabo de publicar sobre dificilmente capaz de valorizar a educação Educação ao Longo da Vida. Entre a Mão de adultos, a educação cívica e para a ci- Direita e a Mão Esquerda de Miró (Lima, dadania democrática, e de minimamente 2007). se articular com os objectivos, as práticas A tese que apresento pode ser enunciada e as metodologias de trabalho pedagógico da seguinte forma: destas abordagens. Sem poder recusar o Na mais perfeita adaptação à estrutura confronto com os problemas da economia social, à economia e à competitividade, a e da sociedade, do trabalho e do emprego, educação ao longo da vida revela-se, no um projecto de educação ao longo da vida limite, um projecto político-educativo in- não resistirá, porém, à amputação das viável, já definitivamente em ruptura com suas responsabilidades sociais e ético- as suas raízes humanistas e críticas. Vê políticas e dos seus possíveis contributos então fortemente diluídas as suas dimen- para a criação de dinâmicas de transfor- sões propriamente educativas, para ceder mação positiva das condições da existên- protagonismo a modalidades de formação cia humana, até mesmo nos interstícios e de aprendizagem ao serviço exclusivo, das organizações sociais mais resilientes. 86 Procuro, assim, compreender as mutações o seu carácter educativo e não aliene as que vêm ocorrendo neste campo, as ambi- suas responsabilidades sociais e ético- guidades e as contradições resultantes de políticas. distintas perspectivas políticas e sociais Por esta razão admito que, em toda a sua que em torno do conceito polissémico de diversidade, e dada a sua natureza multi- educação ao longo da vida têm sido cons- forme, a educação ao longo da vida não truídas, chamando a atenção para o seu pode irresponsavelmente virar as costas potencial democrático, mas também para aos problemas da economia e da socieda- as derivas economicistas e tecnocráticas de, do trabalho e do emprego. já amplamente subordinadas à emprega- Mas parece-me igualmente inaceitável bilidade e à performatividade competitiva. que, numa posição de subordinação, i.e. Parto do pressuposto que o ideal de edu- de joelhos, vergada pela força da com- cação ao longo da vida corresponde a um petitividade económica, sucumba perante projecto político-cultural de grande ampli- objectivos de mera adaptação funcional, tude, capaz de compreender modalidades sendo transformada em programas mais de educação formal, não-formal e informal, ou menos restritos de qualificação dos re- a educação política, a formação cultural e cursos humanos e da mão-de-obra assa- para a cidadania democrática, tanto quan- lariada. to a formação profissional e a formação É precisamente para estes casos, em meu contínua. entender hoje dominantes no discurso po- Esta unidade na diversidade, porém, só lítico e nas agendas das políticas de edu- me parece possível quando, mesmo nos cação e formação, que me socorro, em ter- casos das formações mais focalizadas no mos interpretativos, da metáfora da "mão trabalho e no emprego, na reconversão direita da educação ao longo da vida". profissional ou na reciclagem, nas com- Tenho recorrido, com efeito, a um poema petências técnicas ou no desempenho em do autor brasileiro João Cabral de Melo contexto de trabalho, um projecto político- Neto (1997), intitulado: "O sim contra o educativo e cultural lhes confere sentido. sim", onde o pernambucano tematiza po- Reconheço, consequentemente, que a eticamente a situação de impasse a que o educação ao longo da vida é muito mais pintor catalão Miró teria chegado a partir do e está para além da formação profissio- momento em que a sua mão direita se tor- nal contínua, embora necessariamente a nou demasiado sábia e destra, de tal sorte compreenda, sempre que esta não recuse que perdeu a capacidade de se reinventar; pelo contrário, a sua mão esquerda, sendo 87 assenta no seu carácter pragmatista e menos hábil e adestrada (no caso de não na tendência para a procura de soluções ser canhoto), seria menos funcional e, por pedagogistas e individuais para enfrentar essa razão, menos óbvia, mais criativa e problemas estruturais de manifesta mag- com mais desejo de aprender. nitude e complexidade. Cito um trecho do poema: Em rigor, muitos dos sectores que hoje lhe Miró sentia a mão direita são mais típicos, como a formação profis- demasiado sábia sional e contínua, não são dispensáveis e que de saber tanto no âmbito de uma concepção mais ampla já não podia inventar nada. de educação ao longo da vida que lhes Quis então que desaprendesse possa conferir sentido educativo em ter- o muito que aprendera, mos estratégicos e menos imediatistas e a fim de reencontrar funcionais. a linha ainda fresca da esquerda. Isto significa, em última análise, admitir Pois que ela não pôde, ele pôs-se as vantagens da superação de uma lei- a desenhar com esta tura enclausurada em termos puramen- até que, se operando, te antinómicos – mão direita versus mão no braço direito ele a enxerta. esquerda –, no que às políticas e práticas A esquerda (se não se é canhoto) de educação ao longo da vida se refere, é mão sem habilidade: a qual seria demasiado simplista e empo- reaprende a cada linha, brecedora. cada instante, a recomeçar-se. Daí, também, a opção pelo entre-dois e pelas correspondentes tensões, admitindo Idêntica seria, de resto, a situação vivida situações compósitas e um certo hibridis- pelo pintor holandês Mondrian, segundo o mo, com a presença simultânea, eventual- mesmo poema: mente com intensidades variadas, de am- Mondrian,também da mão direita bas as mãos, ou seja, de uma educação andava desgostado; ao longo da vida ambidestra. não por ela ser sábia: Capaz, por isso, de cruzar e integrar sabe- porque, sendo sábia, era fácil. res, de beneficiar das tensões entre, por um lado, a destreza de uma mão direita Como se compreende, a crítica à "mão que de tão destra se pode transformar direita" da educação ao longo da vida num factor de puro hábito, ajustamento e 88 amestração e, por outro lado, o discrepar, E também com Adorno podemos reconhe- aparentemente mais descentrado da tare- cer o carácter ambivalente da adaptação fa, desajeitado e algo inábil, de uma mão em educação: por um lado necessária e, esquerda que, menos sábia e menos com- por outro lado, absolutamente insuficiente. petente, se assume mais livre e curiosa Escreveu o autor: para aprender ou mesmo para desapren- "A educação seria impotente e ideológi- der o antes aprendido, para poder apren- ca se ignorasse o objectivo de adapta- der de novo. ção e não preparasse os homens para Reconhece-se, em qualquer caso, que um se orientarem no mundo. Porém ela seria certo grau de adaptação ao mundo, e de igualmente questionável se ficasse nisto, imersão no mundo, é inerente a qualquer produzindo nada além de well adjusted projecto de educação ao longo da vida, people, pessoas bem ajustadas, em con- desde logo quando se confere centrali- sequência do que a situação existente se dade à vida em toda a sua amplitude, e impõe precisamente no que tem de pior" especialmente no caso dos adultos, à sua (Adorno, 2000: 143). leitura do mundo, às suas aprendizagens É também neste sentido que, recentemen- sociais ou experienciais. te, István Mészáros (2005: 75) reconhecia Mas isto implica também reconhecer a que a educação, "Não pode ser vocacio- substantividade da vida ao longo da edu- nal", dado que isso "em nossas socieda- cação, da formação e das aprendizagens des significa o confinamento das pessoas permanentes dos indivíduos, e não o cur- envolvidas a funções utilitaristas estreita- so da vida reduzido a uma interminável su- mente predeterminadas, privadas de qual- cessão de formações e de aprendizagens quer poder decisório". Uma educação para úteis e eficazes, segundo apenas uma de- a heteronomia, portanto. terminada racionalidade de tipo económi- No limite, a formação vocacional, ou pro- co e gerencial, perseguindo em tal contex- fissional, ou a celebração da ideia, neste to, e acima de quaisquer outros valores e momento dominante no discurso político interesses, o alcance da "solução óptima", em Portugal, das qualificações ao longo da a busca do "menor meio", um sistema que vida, arrisca-se não apenas a ser ineficaz e amestra os seres humanos para o traba- incongruente face aos seus pressupostos lho, "mesmo quando o sistema há muito de competitividade e aumento da produti- deixou de precisar do seu trabalho", se- vidade, mas também a constituir-se como gundo Theodor Adorno (2003: 139). uma acção para a subordinação e para a alienação dos cidadãos. Exactamente por 89 treinados" (Sennett, 2006: 83). atribuir excesso de protagonismo à mão Esta situação não se deve, ao contrário do direita da educação ao longo da vida. que é sugerido por vários sectores, a uma Esquecendo, por exemplo, que os "pa- súbita desadequação funcional entre a Es- drões de utilidade" doravante exigidos a cola e a Vida, as quais se teriam eventual- cada indivíduo são responsáveis pelo fe- mente desencontrado. nómeno de "redundância" que é analisado Deve-se a um determinado modelo de pelo sociólogo Zygmunt Bauman no seu desenvolvimento económico e societal tí- livro Vidas Desperdiçadas, onde afirma: pico do novo capitalismo e, como afirma "Ser redundante significa ser extranume- Sennett, ao seu agora imanente "fantasma rário, desnecessário, sem uso. Os outros da inutilidade", ao desemprego como solu- não necessitam de si. Podem passar mui- ção estrutural e racional para manter, ou to bem, e até melhor, sem si". E isto, reco- aumentar, a competitividade no mercado nhece Bauman, até em muitíssimos casos global. em que o indivíduo possa corresponder Mas o economismo educacional hoje domi- aos "padrões de utilidade" em vigor, uma nante, insiste em remeter a educação para vez tendo sido já considerado "redundan- uma posição subalterna face à formação te" e, como tal, "sobretudo um problema profissional e às aprendizagens e qualifi- financeiro" (Bauman, 2005: 20). cações ao longo da vida, estas no quadro Como se pode concluir da análise da re- da celebração, mais ou menos épica, dos alidade que vivemos, as "qualificações", processos de individualização e das bio- ou a "aquisição de competências para grafias hiper-racionais de aprendizagem, competir", de acordo com a linguagem útil e eficaz. pós-pedagógica em moda, podendo ser Daí que a lógica da aprendizagem indivi- pré-requisitos não garantem o sucesso e a dual e das qualificações dos trabalhado- adaptação isomórfica do indivíduo ao seu res já só muito raramente remeta para a ambiente socioeconómico. Como lembra matriz, de raiz humanista, da educação ao Richard Sennett, "A economia das capa- longo da vida, ou educação permanente, citações continua a deixar a maioria para como era traduzida na década de 1970, trás; o que é pior, o sistema educacional do francês éducation permanente. A pró- gera grande quantidade de jovens forma- pria designação caiu no esquecimento em dos mas impossíveis de empregar, pelo vários países, incluindo Portugal (embora menos nos terrenos para os quais foram não em Espanha). 90 Isto não se deve, contudo, a uma prefe- tre outras. rência de ordem linguística. A própria ex- Com efeito, o conceito de educação per- pressão alternativa de "educação ao longo manente ou ao longo da vida conferia cen- da vida" (lifelong education) foi igualmente tralidade à educação enquanto objecto de objecto de um processo de ressemantiza- políticas públicas e, portanto, à sua pro- ção. Embora tenha, recentemente, granje- visão, organização e regulação enquanto ado maior protagonismo relativo, tratou-se direito humano básico, responsabilizando sobretudo de uma designação "descober- o Estado pela garantia das condições de ta" por políticos, economistas e gestores igualdade de oportunidades. Neste sen- que, em geral, desconheciam, ou desva- tido, a educação ao longo da vida reve- lorizavam, a genealogia do conceito e os lou-se um dos pilares socioeducativos do respectivos "discursos programáticos" que Estado-Providência, articulando-se com lhes haviam conferido sentido, com a van- as políticas sociais e redistributivas típicas tagem de optarem por privilegiar o signifi- dos diversos modelos que assumiu em cante proveniente da língua inglesa, o que vários países, sobretudo após a segunda favorecia um certo sentido de ruptura e ga- guerra mundial. O ideal de educação per- rantia um certo carácter de novidade. manente ou educação ao longo da vida, Este movimento constituiu, porém, so- conferindo sentido e integrando diversas bretudo um processo intermediário ou de modalidades e formas de educação e for- transição, uma vez que alguns dos mais mação, institucionalizadas ou não, assumi- importantes pressupostos político-edu- ria frequentemente como objectivo último cativos, inerentes aos textos fundadores a educação para a cidadania democrática e respectivas orientações políticas, ra- e a participação livre e responsável, para o pidamente foram objecto de revisão, ou desenvolvimento e a transformação, para acabariam mesmo sendo denegados. A o esclarecimento e a autonomia dos cida- expressão a sair vitoriosa deste processo dãos. Ainda quando, ao seu carácter utó- será, curiosamente, apenas uma parte da pico e avançado, sobretudo nas versões anterior: o sintagma "… ao longo da vida", de tipo emancipatório e humanista-radical, libertando o eixo paradigmático para ou- tivessem correspondido, na prática, rea- tras opções consideradas mais pertinentes lizações por vezes escolarizantes, mais do que "educação…", como vem sendo o pragmáticas e bem menos democráticas. caso de "formação", de "aprendizagem", Hoje, porém, uma boa parte das acima de "qualificação" ou de "capacitação", en- referidas articulações passou a fazer-se exactamente a partir da defesa da reforma 91 sociedade em toda a sua latitude e longi- neoliberal do Estado-Providência, com o tude, fosse a solução, a partir de um fenó- respectivo esbatimento do papel do Esta- meno de pedagogização quase totalitária do na educação, a favor da lógica da pres- da esfera individual e colectiva, assente tação de serviços de educação e formação na crença pedagogista de que os nossos mais ou menos organizados segundo as maiores problemas se devem à crise da regras do mercado. Dirigindo-se, assim, educação e da escola e de que só pela via não apenas a "utentes" mas especialmen- de um novo paradigma de aprendizagem, te a "clientes" e a "consumidores", de acor- que em primeiro lugar responsabiliza o in- do com as suas necessidades individuais divíduo e o atomiza, poderemos finalmen- e as suas estratégias competitivas, tendo te responder positivamente aos chamados em vista a construção de biografias forma- "desafios" da globalização, da sociedade tivas e de portefólios de competências con- da "informação" e do "conhecimento", e da siderados racionais. A educação fica para "organização flexível". trás face à insistência na formação (profis- Como lembrava Paulo Freire, a educação sional e contínua, especialmente da popu- pode, de facto, alguma coisa, mas não lação activa) e na sua maior capacidade pode tudo; mesmo quando já reconceptu- de modernização e adaptação funcional alizada como formação vocacional (como à economia. Porém, a responsabilização no caso português, com direito a uma di- individual, a racionalidade económica, o recção-geral no ME), ou como qualificação "ethos" mercantil e a competitividade for- (agora também com direito a uma Agência çaram não apenas a uma deslocação da Nacional para a Qualificação). educação para a formação, mas também Insistimos em ignorar que o problema edu- desta para a aprendizagem. A "aprendiza- cativo português, herdado de décadas (e gem ao longo da vida" e suas expressões mesmo séculos) de descomprometimento derivadas ("qualificações", "capacitações", das elites face à educação dos seus con- etc.) surgem como máximas político-edu- cidadãos, dificilmente poderia conhecer cativas decorrentes da declaração de "fa- solução através da promoção de qualifica- lência" do Estado-Providência, predomi- ções para a população activa. nantemente orientadas para o reforço das A formação vocacional ou profissional, por vantagens competitivas dos indivíduos, mais relevante que seja, é por si só inca- das empresas e das nações. Como se uma paz de afrontar os problemas socioeduca- espécie de re-escolarização extensiva da tivos dos portugueses. Sem verdadeira re- 92 taguarda educativa e cultural não há, seja papel da educação e da formação (sobre- do ponto de vista teórico seja do ponto de tudo desta) enquanto motores da mudan- vista empírico, qualquer evidência de que ça social. a formação profissional e contínua repre- Temos, em Portugal, uma tradição de rela- sentem o elemento nuclear. ção hiperbólica com a Educação. Tanto no O discurso político, contudo, insiste (de- sentido do seu interesse limitado, quanto, signadamente através das palavras do pri- mais tarde, no sentido das suas capacida- meiro ministro): des ilimitadas. – na "qualificação para o crescimento eco- Exageros que provêm da falta de políticas nómico"; educativas consistentes, estáveis, respon- – em que o nosso atraso resulta do insu- sáveis e humildes. ficiente nível de qualificação da população Políticas Educativas capazes de contra- portuguesa; riar lógicas de campanha, de tipo exten- – em atribuir prioridade aos cursos téc- sionista, conduzidas por vanguardas, pois nicos e profissionais, dado o insuficiente educação não é endoutrinamento, nem número de cursos profissionalmente qua- consiste em incutir alguma coisa nos ou- lificantes. tros, simplesmente treinar ou formatar os No texto do "Acordo para a Reforma da For- outros. mação Profissional" é afirmado: "A aposta Como pertinentemente observou Paulo estratégica na qualificação da população Freire, "formar" não é acção pela qual um portuguesa é opção central para o cresci- sujeito criador dá forma, estilo ou alma a mento económico e para a promoção da um corpo indeciso e acomodado, a um for- coesão social e territorial, assegurando o mando entendido como um objecto, como aumento da competitividade e a moderni- um paciente da formação. zação das empresas, da qualidade e pro- Nem o formador é um "treinador, transferi- dutividade do trabalho, a par da promoção dor de saberes, exercitador de destrezas", da empregabilidade, do desenvolvimento como sucede, segundo o pedagogo bra- pessoal e de uma cidadania plena". sileiro, na "educação friamente tecnicista" Ou seja, a qualificação profissional parece (Freire, 1997: 162). capaz de operar um verdadeiro milagre. Uma política educativa séria e competente A esta crença, ingénua ou não, nos im- não pode: prometer o que não é capaz pactos da formação sobre a sociedade, de cumprir (por exemplo, o pleno empre- chama-se "pedagogismo". O exagero do go); limitar-se a uma estratégia acelerada de certificação escolar e profissional sem 93 contaminação pela cultura letrada. Agora, substância, pois não há truques, em edu- em sinal subitamente inverso, face ao seu cação; insistir na promoção de uma forma- carácter salvífico, mesmo quando já não ção profissional estreita, sem retaguarda é exactamente de educação que se fala, educativa, cultural, cívica, política; ignorar mas antes de formação para a qualifica- que a maior força da educação consiste na ção. Em todo o caso, como se a educação sua aparente fragilidade, nos seus ritmos e pudesse tudo e servisse para tudo, ou para tempos lentos, na falta de resultados ime- resolver todos os problemas, e sobretudo diatos e espectaculares, nos processos de os económicos. diálogo e de convivialidade, recusando o Mesmo no caso de profissões exigentes autoritarismo, pois ninguém educa ou for- e que requerem formações de nível su- ma ninguém à força, ou de uma hora para perior, como acontece com educadores e a outra. professores, a educação dos educadores Também é claramente inconsequente pro- não se reduz à formação profissional, ini- curar valorizar, reconhecer e certificar os cial e contínua. adquiridos dos adultos a partir de uma con- A educação dos educadores, de que não cepção fortemente desvalorizadora e pejo- se fala a não ser em círculos académicos, rativa, presente no mesmo discurso oficial, geralmente para invocar a terceira tese de em torno das "debilidades", dos "défices", Karl Marx sobre o filósofo Feuerbach, a das "lacunas" da população portuguesa… qual invoca exactamente a ideia de que o Ou da profunda desvalorização social de próprio educador tem necessidade de ser certas profissões, ou ocupações, como na educado, tendo em vista a transformação campanha recente das Novas Oportunida- das suas circunstâncias (cf. Marx,1971: des, em que se assegura que "aprender 22), compreende a ideia de formação pro- compensa", por forma a libertar-nos de fissional contínua e supera-a não apenas certas profissões subordinadas que serão alargando política e culturalmente o seu o destino daqueles que tiveram "falta de âmbito, mas também cuidando da indis- estudos". pensável formação ética do educador, pre- Voltamos aos discursos hiperbólicos face parando-o para lidar com a politicidade da à educação, durante boa parte do Estado educação, com a liberdade e a autoridade Novo fortemente desvalorizada e restringi- (uma e outra indispensáveis à educação), da, face aos perigos da mobilidade social, para lutar pela sua autonomia e pela au- de consciência crítica dos cidadãos, de tonomia dos educandos, para aprender 94 a decidir através da prática da decisão, formação contínua destina-se a assegu- de acordo com as propostas de Freire rar a actualização, o aperfeiçoamento, a (1997). reconversão e o apoio à actividade profis- No limite, já não se trata apenas de forma- sional do pessoal docente, visando ainda ção profissional contínua, mas de um pro- objectivos de desenvolvimento na carreira jecto mais amplo e ambicioso de educação e de mobilidade nos termos do presente cultural e ético-política dos professores. Estatuto". Difícil, mas certamente não impossível de Deste ponto de vista, também o Preâm- realizar, num contexto fortemente marcado bulo do Regime Jurídico da Habilitação pela mão direita da educação ao longo da Profissional para a Docência (Dec.-Lei n.º vida e suas correspondentes obsessões 43/2007) é bastante pobre e apresenta pela promoção de qualificações de carác- uma retórica pouco substantiva, repetindo ter mais restrito e técnico-profissional; as em combinações várias as palavras (ago- quais, no limite, e paradoxalmente, são fre- ra mágicas) qualidade e qualificação: quentemente responsáveis pela alienação "O desafio da qualificação dos portugue- e desprofissionalização dos professores, ses exige um corpo docente de qualidade, despolitizando a sua acção e remetendo- cada vez mais qualificado, e com garan- os para o estatuto de simples executores tias de estabilidade, estando a qualidade qualificados. do ensino e dos resultados de aprendiza- A própria definição do que se entende por gem estreitamente articulados com a qua- "actividade profissional do pessoal docen- lidade da qualificação dos educadores e te" fica muito dependente do protagonismo professores". atribuído à mão direita ou à mão esquerda A situação na União Europeia, embora da educação ao longo da vida, em termos muito variável, apresenta contudo tendên- de formação contínua. cias semelhantes. Sem querer entrar em detalhes, que o âm- Num relatório publicado em Janeiro passa- bito que escolhi para esta conferência não do pela EURYDICE, pretende-se valorizar aconselha, registo apenas que os objec- as realizações da Educação de Adultos tivos definidos para a formação contínua que não sucumbiram ainda à formação vo- pelo Regime Jurídico instituído pelo Dec.- cacional. Portugal quase não consta, es- Lei n.º 207/96 são consideravelmente pecialmente em termos de educação não mais amplos do que aqueles que o Artigo formal de adultos. O que é interessante é 15º do ECD inclui, ao estabelecer que "A o título do Relatório. Como a formação vo- cacional, ou profissional, é hoje dominante 95 talismo, por mais que nos digam que este também na Educação de Adultos, foi preci- debate está fora da agenda (anti-intelec- so encontrar um título novo, e rebuscado, tualista, diria eu), ou que reconheça que a que ainda há uma década atrás pareceria solução não reside em buscar definições ridículo face à tradição humanista e crítica essencialistas ou pretensamente consen- da Educação de Adultos europeia: "Educa- suais. ção de Adultos Não Vocacional", é o título Ao contrário do que insinua a pintura de e o conceito usado neste Relatório. Fragonard, a educação não faz tudo, é Concluo convocando de novo a pintura. preciso reconhecê-lo. No Museu de Arte de São Paulo, no Brasil, Mas talvez mais importante ainda seja re- encontrei há tempos um pequeno quadro conhecer que a educação, enquanto direi- do pintor francês, nascido na Provença em to humano básico, não pode ser confun- 1732, Jean-Honoré Fragonard, que me in- dida com amestração, endoutrinamento, teressou muito. simples treinamento ou qualificação para Fragonard é conhecido sobretudo por um o trabalho. quadro intitulado o "Baloiço", cuja fama Se nos contextos de educação e forma- o tem remetido para inúmeras caixas de ção, inicial e contínua, de professores, chocolates, mas também intitulou muitos não temos minimamente esclarecidas es- trabalhos em torno da educação – "A Lição tas questões, que são o âmago do nosso de Música", "O Estudo", "A Leitora", entre ofício e o objecto nuclear das nossas re- outros. flexões, então seria, em tal caso, urgente Mas no MASP, no Brasil, encontrei o qua- que nos decidíssemos e que iniciássemos dro "A Educação Faz Tudo", no qual um as discussões. grupo de crianças observa e dirige dificí- limas habilidades desempenhadas por Referências bibliográficas ADORNO, T. 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(2006). A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Editora Record.
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