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Bo ects meu) res Roary eerie NT Prom ee utc! Caer peer ten caret meee ten esate Re ccm Cece SU Me acc Pee eee Lael gan ger act ater ise) Ei Ueiicees ns Finalmente editada em portugués, mais de setenta anos depois de .seu aparecimento, festa famosa monografia é hoje um cléssico da emologia brasileira c dos estudos da cultura Guarani. Elaborada a partir de cinco anos de convivéncia com diversos grupos Nendeva-Guarani, 4s Lendas de Criagdo ¢ Destruigdo do Mundo... € 0 primeiro tra- balho importante de Nimuendaju, trazendo 4 08 tracos caracterfsticos da qualidade € pioneirismo que marceriam toda a sua obra. Talvez 0 principal responsével por sua persistente atualidade, 0 respeito de Ni- Inuendaju pelas sociedades que estudou transparece no enfoque tigorosamente, etno- gréfico, que subordina a especulagho & des- erigdo; no esforco de caracterizago do ethos e visio de mundo do povo estudado; na prioridade concedida & palavra dos pré- prios fndios; na utilizacgo da lingua nativa Simultaneamente como condigio, inétramen- to € objeto da andlise; e, por fim, na denin- cia elogiiente das condigoes de miséria fisica € moral a que sG0 submetidos os povos indigenas no contato com a “civilizagéo"’ ‘Tratando de quest6es como migragdes, escatologia ¢ histéria — reletivamente as quais introduziu na literatura contemporé- nea o famoso tema da “Terra sem Mal’ — este livro foi capaz de situar 0 plano reli gioso como o luger do sentido nas socie~ dades Guarani e de captar com preciséo 0 “motivo” organizador de sua cultura. Por seu tigor e profundidade, assim como por ter recottado um campo’ de problematiza- gd que ainda € aquele sobre o qual se movem as atuais pesquisas, esta monografia pode ser considerada sem exagero 0 texto fundador da etnologia Guarani contempo- rfinea Foto da capa: Carla Antunha Barbosa. rl { i } 1 CIENCIAS SOCIAIS Aire de Tarnis Semeeesbayi 3 ov gritos no favor anotages 08 ONS savor wo fozer TE ene Faviata ox 2 ) EEE eu vnr eee ? j ) J ) —NeNNS SYE eee S CIENCIAS sociais ‘itulos publicados Teoria Sociolbice, Pier Biabauim & F, Chazel (Qs Herdeirs da Tera, Margarida Maria Moura Sobre o Mado Capitalisia de Penser, Jost de Souza Martins Colones do Vinko, Jost Vicente Tavares dos Santos 0 Estado ee Burocreizaed0 do Sindicato no Brasil, Meoisa Helena ‘Teixeira de Souza Martins A Mulher Operiria Jssta Martins Rodrigues ‘A Reproduséo da Desigualdade, Carmen Cinira Macedo “Amazonia no Rastra do Saque, Licio Flavio Pinto ‘Hlerorquia eSimbiose: Relardes Intertribais no Brasil, Alcide Rita Ramos Exproprigcdoe Violenia, Jost de Souza Martins A Portcipapto Social dos Excuidos, Marialice Mencarini Foracchi ‘A Mortee a: Mortos na Sociedade Brasilefe, José de Souza Martins (ore) ‘Samba Negro, Espoliacao Bronca, Ana Maria Rodrigues Formaste Industrial do Brasile Outros Estudos, Jost Cares Pereira Mao-de-Obra e Condigdes de Trabatho na Indistria Automobilstica Brasilia, Jost Sérgio R.C. Gongalves 0 Cativeir de Tera, Jost de Souza Martins (0s 45 Cavaleiros Hingaros, Oliveros. Ferreira Aniropologia Cultural e Anélize da Cultura Subalterna, Luigi M. Lombardi Satriani Obra publicada em co-edigéo. com a EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Reitor José Goldemberg Vice-Reitor: Roberto Leal Lobo e Silva Filho EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SAO PAULO Presidente: José Carneiro Comisséo Editorial: Presidente: José Cameiro, Membros: Alfredo Bosi, Antonio Brito da Cunha, José . Mindlin © Oswaldo Paulo Forattini. - wee 0 18 aie ein St CURT NIMUENDAJU UNKEL AS LENDAS DA CRIACAO E DESTRUICAO DO MUNDO COMO FUNDAMENTOS DA RELIGIAO DOS APAPOCUVA-GUARANI ‘Tradugto de \ Charlotte Emmerich ‘ & Eduardo B. Viveiros de Castro (Museu Nacional, UFRJ) EDITORA HUCITE‘ EDITORA DA UNIVERSIDADE DESAO PAULO ‘Sio Paulo, 1987 VELL EEEHLELUOEEL Direos autorais para esta edo eedidos pelo Museu Nacional, da Universidade Federal Up Rio de Janeiro, a Euditora de Humanismo, Citaca e Tesnologia, Huctee Lida., Rua Comendador Eduardo Saccab, 344 4602 Sto Paul, Bras. Telefon: (01)61-6319. (Capa de Luis Diaz, MUSEU NACIONAL DEP. DE ANTROPOLOGIA BIBLIOTECA ee Ht) Dados de Catalogagdo na Publicado (CIP) Internacional (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Nimuendaja, Curt, 1883-1946 NBIGL "As lendas da criagdo e destruigfo do mundo como fundamentos Dado fornesido pela Procuradoria Geral do Estado. Processo PPL nt 44.98268 xi protongadas. Considerado este fator, podemos apresentar 0 quadro abaixo, que dé'uma idéia aproximada da demografia Guarani, por aldeia, em 19854 ‘Aldeia Morro da Saudade 125 pessoas Crucutu . 31 pessoas M’ Boi Mirim .... 14 pessoas Jaragué : 12 pessoas Rio Branco «+. 36 pessoas. Itarici 32 pessoas, Sil 67 pessoas Boa Vista 77 pessoas Hoje, a compreensdo do que se denomina territério Guarani, que sto as varias aldeias e os caminhos que eles utilizam para ir de uma a outra, compreendendo todos os espagos utlizados que interferem no seu modo de vida, como as matas — no s6 as pertencentes aos limites das reas oficialmente demarcadas, mas as areas verdes vizinhas circun- dantes — os rios, as Aguas que também passam pelas aldeias e que nio tem nascentes nos limites das areas, extrazola, ainda hoje, 0 que se pode esperar como territério garantido pelos poderes constituidos. ‘No entretanto os Guarani tém se mantido firmes ¢ atentos a esses pontos, na esperanca de que o respeito a integridade das areas demar- cadas possa realmente proporcionar-Ihes esiabilidade e seguranga que necessitam para reproduzir sua cultura ao mesmo tempo mostrando sociedade envolvente alguns principios basicos da sociedade Guarani que nio podem ceder, sob pena de se configurar uma relagao desigual entre dois povos diferentes que devem conviver. E preciso considerar que as dreas demarcadas pelo governo Montoro t8m como caracteristica principal o fato de terem respeitado a deter- minago dos proprios Guarani no estabelecimento dos limites de seu territério, “Dados Fornecidas pelo documento do “'Censo Populacional das alias Guarani do Litoral do Estado de St0 Paulo e Periferia da Capital”, realizado pein equipe de Stik da Sudelpa e conclido em junho de 1985. iti ——— Vee ) J ) ) Vee ee Isso nao significa que esses esparos sejam considerados como fton- teiras de enclausuramento fora dos quais no se poderia reconhecet mais nenhum direito aos Guarani. A demarcagdo ovorreu por reivin- dicagdo dos indios ¢ pela necessidade conereta de garantirem espagos minimos de sobrevivencia, considerando a realidade politica atual, tanto dos Guarani como do Estado brasileiro. Sabe-se no entanto que areas muito mais extensas, por exemplo, na Serra do Mar sao utilizadas pelos Guarani. No caso especifico da Serra do Mar ha toda uma politica de regulamentacao para a preser- vaedo ¢ utilizacdo que vem sendo estabelecida no Estado de Sdo Paulo, ‘Os Guarani, neste caso, ja vem mantendo negociagBes com 0 govierno no sentido de demonstrar que seu direito territorial a esta érea também eve ser respeitado. Assim, deve-se vera luta Guarani pela defesa de seu terrtério dentro de uma perspectiva dinamica ¢ moderna que néo accita que sejam concebidos seus territérios como “‘reservas indigenas”, Isso se inscreve dentro da préxima etapa de luta Guarani pelos seus direitos territorias. Deve-se considerar que esta nopdo de dieito ter- torial mais ampla ... além da “reserva” encontra respaldo nas mais modemas reivindicagdes indigenas a nivel internacional, que contestam 4 pritica das “reservas’’, que inibem a dindmica interna da populagdo indigena ¢ nega sua verdadeira territorialidade. Este tema vem sendo claramente explicitado pelas organizacées internacionais indigenas, nos mais modemnos documentos téenicos sobre o assunto na propria oN’ Dentro da nossa perspectiva de advogados de indios, portanto enge- jados com a realidade politica atual deste grupo indigena de Sao Paulo, 4 importiincia da tradugo desta obra deve ser vista como mais um instrumento para o conhecimento da populagao brasileira em geral € ndo s6 dos especialistas attrop6logos, da historia da realidade deste povo e como mais um documento, mais uma arma na defesa e garantia de seus direitos Escrever estas linhas nesta publicacdo de trabalho cientifico e antigo tem também o objetivo de testemunhar que ela é 20 menos em parte 5 Documento — ONU — Martine: Cobo — E/CN 4 — Sub 2/1983/21/ Add. 8 p74, 6522 fruto da luta e reivindicagdo dos Guarani atuais, que esto ai, e querem continuar vivendo e existindo enquanto Guarani. Para nés, a dimenséo do presente Guarani na luta por tal publicagao é que revive a importincia do trabalho do grande Nimuendaju. ‘Nimuendaju, além de escrever cientificamente sobre os indios, inter- feriu na realidade conereta dos Guarani tentando protegé-los do “exter- mini”. Lutou pela criag&o das reservas no interior do Estado e tentou convencer 0s grupos que estavam no litoral a se localizarem todos no interior para escaparem do exterminio. Muitos mudaram-se sob esta influéneia, muitos morreram e outros permaneceram firmes em sua “obstinagiio”’ de se manterem na costa, Hoje ainda aqui esto. Vivos. Suas terras esto finalmente demar- cados pelo governo Montoro, embora aguardando 0 selo final, que um decreto do Presidente da Republica. Certamente os Guarani de hoje no sio os que Nimuendaju descreve estas paginas, pois as culturas ndo sao estaticas e ja so passadas ‘muitas décadas entre a experiéncia de Nimuendaju e a realidade atual. No entanto, trata-se do mesmo povo, que continua enfrentando 0 ‘mesmo problema em relagdo a ganancia dos brancos por suas terras, & omisséo do poder do Estado brasileiro numa politica humana e justa de permitir-Ihes a existéncia dentro de sua propria perspectiva de vida. ‘Nimuendaju, certamente, na boa intencZo de ajudar, errou quando propés que deixassem o litoral; disso ainda temos o testemunho vivo do capitao Guarani da Aldeia de Itariri, Antonio’ Branco que nos seus mais de oitenta anos se recorda de Nimuendaju, das mudaneas por ele propostas para o interior, das mortes e dos motivos porque muitos como ele insistiram em ficar e ficaram nas aldeias litoraneas. Sem nenhuma intenglo de julgar Nimuendaju referimo-nos apenas a esses fatos para dizer que no hd receitas a serem dadas de um grupo para outro, que 0 que se pode fazer, se ha intengdo de defésa e de res peito é, simplesmente, assegurar 0 direito do exercicio da prépria deci- sao do grupo humano. aw NIMUENDAJU E OS GUARANI EDUARDO B. VIVEIROS DE CASTRO ‘Museo Nacional — UFRJ I Beis eaten seem doe anos aos sua publinsto em sk, e trinta e um apés a morte do seu autor, consegue vir a luz uma exigdo em portugués de Die Sagen von der Erschaffung und Vernichtung der Welt als Grundlagen der Religion der Apapociiva-Guareni'. Assim se toma acessivel a um piblico amplo uma das monografias mais famosas da etnologia brasileira, essencial para os estudos Tupi-Gua- rani ede significado maior na obra de Nimuendaju. ‘A essa monografia e aos Apapociva, nela evocados em cores gran- diosas e sombrias, esto emblematicamente ligados 0 nome e 0 des- tino de Curt Nimuendaju, 0 alemao que chegou em 1903 a0 Brasil para se dedicar ao estudo e A causa dos povos indigenas até a sua morte, em 1945, numa aldeia Tikuna do Alto Solimdes. O'nome, antes de mais nada; pois Curt Unkel, nascido em Jena, 1883, foi ado- tado pelos Guarani em 1906 com 0 nome de Nimuendaju, que iria substituir oficialmente seu patronfmico em 1922, quando ee se natu ralizou brasileiro’. E 0 destino, enfim: pois 0 que esta renomagdo tera " Zauscheif far Ecnologle, 46, Berlin 1914, pp. 284-403 20 fimo ou significado deste nome & dado pelo proprio Nimuendaju no presente texto (p. 32}: "Mlimuendajt muendé — fer (md), inoradia (end). Niy seresento, ‘um pronome reflexivo, © sufixo Ju (dj), que talver ten 0 signiisado original de “‘amarelo” ov “brilhante”, & usado na linguagem religiosa para indicar que o jonceita a0 qual & posposto remete ao dominio do sagrado, celeste ou transcendental cle & comum nos nomes pessoas ¢ nos termos para os equivalentes dvino-celestes dos seresterrenos, Schaden (1967-8: 78, 88) assim interprets @ nome: "NEO muito fit LeEeE ELL PE EEE EEL 20 mesmo tempo exprimido ¢ antecipado foi'o abandono de toda raiz, a identificagao de seu portador com aqueles junto a quem fez sua morada — os indios em geral, os Apapociiva em primeiro lugar. Iden- tificagao tdo intensa que, como se poder ler neste livro, torna-se dificil distinguir entre a mistura de obstinagao ¢ desencanto daqueles Guarani que Nimuendaju acompanhou em suas migragbes na busca de um sonho, e o pessimismo do préprio Nimuendaju quanto a sorte final dos indios ¢ ao resultado de seus esforgos em favor deles. Atitude, alias, que ele nao viu razao para abandonar, ao longo de seus quarenta anos de carreira como etndgrafo ¢ indigenista. Se jamais recuou de sua empresa, entretanto, ¢ porque este desencanto nao era dos que se resolvessem em imobilismo ou em autonegacHo; ao contrario, ele sempre foi dobrado de uma afirmacdo insistente quanto ao valor dos proprios valores e & certeza de uma vocaco. Nisso mais que em tudo Nimuendaju se assemelhou aos seus Guarani; e por isso mesmo sua memoravel concluséo sobre a melancolia € 0 pessimismo histérico Apapociiva — que outros autores estenderam aos demais Guarani —, enquanto sintoma de que este povo perdera a vontade de viver, deve ser avaliada com olhos de hoje. Contra todos os vaticinios sobre 0 fim iminente de sua cultura, os Guarani continuam, e continvam como so: ndo apesar, mas talvez por causa de tudo, Muito ja se escreveu sobre Nimuendaju, e a aura que cerca seu nome cada vez mais transborda os limites da etnologia, ganhando foros de lenda tanto maiores quanto mais se substitui a freqilentacho de seus trabalhos por evocagbes rituais de seus méritos e por uma tradigao confusa sobre sua personalidade ¢ sua biografia. A vida-obra de Nimuendaju ainda esta a espera de um estudo que Ihe faca justica; parte alguns curtos ensaios sobre aspectos especificos de suas pes- quisas, 0 que se tem so necrologios ¢ outros textos de circunstancia, reivindicagdes totémicas e toda uma hagiologia folelorica propria do métier, exprimindo muito mais os mitos ¢ tensbes inerentes ao campo dizer 0 que significa & palavia Nimuendajt. Nimyendé quer dizer ‘atranjar para. si tum lugar. © final jou dj & wm verbo defetivo que indica o ser.” (¢ ef. sua nota, ‘op. ct. p. 88). Schaden diz ainda que J. F. Recalde glosa nimuendé por “aquele que soube abrir o sea proprio caminho no mundo ¢ conquistou seu lugar” tradugdo certs rente live ¢ algo hiperbblica, mas que, agrega Schaden, “€ interamente satisfatria oponto deviate simbolico” (oe. ct) aot antropoldgico-indigenista que qualquer outra coisa’, Circunstancial ‘como tantas outras, esta nossa apresentacdo quer apenas situar e subli- har a importancia do ensajo sobre a cosmologia Apapociiva que ora se lera: e nos perdoem os leitores se repetimos clichés biograficns ¢ eventualmente rocamos o panegirico. ‘Autodidata sem qualquer formagio académica, Nimuendaju veio enriquecer decisivamente a bibliografia etnologica sul-americana, desbra- vando conjuntos culturais até entéo ignorados, desdobrando-se em talentos de lingtista, historiador, arquedlogo e cartografo de um modo dificilmente emulavel em qualquer época. Suas 38 expedi¢Oes etno- agraficas e arqueolégicas, que se estenderam de 1905 a 1945 com uma ‘inica pausa em 1943-44, deram-lhe um vasto conhecimento em pri- meira mio das mais variadas realidades indigenas do Brasil e, junta- mente com sua erudicfo bibliografica especifica, transformarant-no nna maior autoridade em seu campo durante toda a.primeira metade deste stoulo. As Lendas da Criagdo e Destruigao do Mundo... & seu primeiro trabalho de fOlego’, marcado por uma espontaneidade e uma candéncia que tornam sua leitura inusitadamente agradavel, dada 2 monotonia burocrdtica do género “‘etnografia”, e que surpreende pela capacidade de penetrago e sintese em autor jovem e estreante. Ele é 0 resultado de uma sensibilidade inata, aplicada sobre cinco anos de convivencia (entre 1905 e 1913) com os diversos grupos Nandeva- Guarani que enti se deslocavam pelo sul do Mato Grosso, 0 norte do Parana e 0 oeste de Sao Paulo até 0 litoral. ‘Ja aqui se podem notar os tracos distintivos do estilo de Nimuendaju: © enfoque resolutamente etnogrifico, que subordina a especulaczo 2 Denite os textos sobre a vida e/ou a obra de Nimuendaju, destaquem-se: Rivet 1930, 1931; Baldus 1946; Pereira 1946; MEtreux 1950; Mattoso CAmara Jr. 1959; Lowie 1p. 9); Schaden 1966, 1967-68; Leite 1978; Maybury-Lewis,1978; Castro Faria 1981; Melati 1985. Para uma reivindicagto do ""Nimuendaju indigensta, ver 0 pre- fico do Pe, Paulo Suess ea introdupdo de Moreira Neto a Nimuendaju 1982 ‘Bm 1910, Nimuendaju publicon dais pequenos ariges para o semanirio Deutsche Zeitung, editado em Sio Paulo, um sobre 4 ceriménia Guarani do Niniongarci, outro Sobre os Coroados (ref. em Schaden 1967-68). Para uma bibliografia complets de Nimuendaju, devese consulta os t8s volumes da Bibliografia Critica da Etmologia ‘Brosleira (Baldus 1954, 1968; Hartmann 1984), xix A descrig&o; 0 esforgo de caracterizagao do ethos ¢ visio de mundo do povo estudado, guiado por uma aguda percepcao dos temas essenciais de cada cultura; a prioridade concedida palavra dos indios, que entretanto nao eclipsa os deveres da observacdo, 0 recurso as fontes documentais e a franqueza dos juizos; 0 manejo competente da lingua nativa, com 0 registro de textos verndculos comentados no detalhe; por fim, a deniincia eloquente da mistria fisica e moral a que 0s povos indigenas s40,reduzidos pelos “cristaos"’ — como o autor, seguindo nao sem sarcasmo o°uso local, chama agui os ndo-indios’. Quanto a este iltimo aspecto, paixto e razio no se distingiiam em Nimuendaju, defensor sem melas palavras dos direitos dos indios e da dignidade intrinseca de suas formas culturais. B naqueles trechos indignados, a incendiar aqui e acolé a massa de dados etnograficos, que se pode talvez entrever algo da personalidade do homem, pouco inclinado a transigir com suas crencas morais, incapaz de esconder seu desprezo pelos **cristaos”” ou ‘‘neobrasileiros”” que acossavam os indios, e mani- festando violenta repugndncia pela hipocrisia que enxergava-em sua civilizago de origem. Uma mistura germanicamente complexa de muito romantismo aventureiro, outro tanto de fundamentalismo ético; um impulso de renunciador hindu temperado de bastante ceticismo e comandado por uma genuina curiosidade intelectual? Talvez. O que importa € que isso foi para nbs uma via de acesso ao universo Guarani, emais tarde a muitos outros. Inovador em seu tempo, As Lendas da Criagao e Destruicao do Mundo... & hoje um trabalho classic, que segue de perto os de Karl von den Steinen na abertura de novos rumos para a investigagao etno- logica no Brasil. Teoricamente menos ambicioso, mas de maior rigor ¢ focalizacao etnograficos que os de seu eminente antecessor — e por isso sempre atual —, também cle pode ser considerado como mar- cando uma transi¢&o entre a perspectiva dos “‘naturalistas viajantes”” do século XIX e aquela da moderna antropologia®. Ele é, salvo engano, 5 Mais tarde vird a chamé-los de “neobrasleiros”, expressto que, emboca impli canda um uso anaerOnico da nocto de “Brasil”, visiva mazeac # posigfo intrusiva € invasora dos habitants de crigem européia dante doe indigenas do pals. 6 Ver Schaden 1967-68: 80. ox © primeiro trabalho monogrifico que se aproxima de (quando néo supera) os padrdes técnicos de pesquisa hoje professados, Com efeito, caberia parafrasear 0 que disse Lévi-Strauss da obra de Mauss, observando que também Nimuendaju, neste trabalho, sur- preende pela modernidade. Pois temos aqui um texto de 1914 — ano em que ainda se gestava 0 mito do “trabalho de campo" com 0 exilio trobriandés de Malinowski — que testemunha a pratica de uma demo- rada “observaco participante’” (sobredeterminada, como que para maior modernidade, por fungdes de mediacao inseridas no indige- nismo positivista que entdo nascia) integral e consciente; que demons- trao controle e 0 emprego da lingua nativa enquanto ao mesmo tempo condigao necesséria, instrumento principal ¢ objeto privilegiado de anélise; que langa mao do recurso a casos exemplares como forma de ilustrar as idéias religiosas Guarani “‘em situagao""; que permite, enfim, que se pensem a partir dele problemas como 0 da relagao entre a dina mica historiea de uma situago colonial e a concepeao de historia ine- rente as sociedades indigenas que ali se encontram, isto é, a relagao centre o devir hist6rico de uma situacdo interétnica e 0 ‘‘modo de devir”” proprio de uma dada sociedade nao-ocidental. Que julguem os leitores se & fundada nossa reivindicagao de atuali- dade para este ensaio sobre os Apapociiva, para aleém de seu evidente e celebrado valor etnografico. Muita coisa nele, naturalmente, soa “‘datada’”: certas escolhas vocabulares e escolhos conceituais, certas ideias e juizos; certo compromisso (jamais profundo, ¢ que depois desapereceria) com a etnologia alema de seu tempo, marcada pelo difusionismo ¢ a problematica dos estratos e circulos culturais’. Os ‘excursos comparativos por que o autor envereda parecem hoje ‘‘sel- vagens"”, ¢, embora caracteristicos de um estilo antropologico, atestam aqui, sobretudo, um dominio incompleto do campo e uma formacao erratica, que se socorre de toda espécie de analogias para buscar um 7 Castro Fara (1981: 20; ef. Melatt 1985: 15) chama a atenedo para 0 fato de que \Nimuendaju, embora tenha mantido um longo contato com E. NordenskiGld, nunea cchegow a seguir a linha de trabalho, colecionsta e difusionsta, do grande etn ‘sueco, que tanto influenciou Métraux. 48a orientardo de Paul Rivet na Linguistica — Coleia de vocabulisios e busea de afinidades genttcas entre as linguas amerindias — teria marcado Nimuendaju mais profundamente re undo cultural pan-americano arcaico. Isto fica mais patente no capi- tulo VI (“Os Diversos Elementos da Religiio Atual”), onde entre- tanto se véem também tentativas de comparacéo a nivel regional bas- tante pertinentes*. Certas solugdes para problemas clissicos da etno- logia Tupi-Guarani (alguns deles formulados aqui pela primeira vez) ‘parecem-nos demasiado simplistas: tal a explicagao do duatismo espi- ritual dos seres humanos em termos de uma oposi¢ao de ‘“tempera- ‘mentos”” (capitulo Il, §1); tal a etimologia sugerida para o nome do deus Tupa (p. 116), to inverossimil quanto as de Montoya ¢ Batista Caetano — 0 etimologismo, diga-se de passagem, ¢ endémico nos arraiais da tupinologia, e Nimuendaju € mais sébrio neste particular {que muitos dos que o seguiram, Em outros casos, Nimuendaju parece se equivocar, como quando, a forga de querer demonstrar que a ocupago do litoral atlantico pelos Tupi se devera a fatores exclusivamente relic giosos (a demanda do paraiso), afirma que aqueles povos costeiros dependiam muito mais da caga que da exploragfo de recursos mari- mhos(p. 107). Isto posto, 0 que ressalta & a solidez da pesquisa de Nimuendaju 0 carater verdadeiramente fundador de seus resultados. As Lendas da Criagdo e Destruicao do Mundo... inaugura a etnologia Guarani contemporénea, definindo os contornos de um campo no qual nos movemos ainda, Houve que esperar as monografias Jé do proprio Nimuendaju, décadas depois, para que surgisse algo equivalente na etnologia brasileira, ‘Nimuendaju ndo trabalhou na ignorancia de seus predecessores. Ele demonstra, neste ensaio, algum conhecimento da literatura classica sobre 05 Guarani e da produgdo etnoldgica entao existente sobre a ‘América do Sul, particularmente os trabalhos de Nordenskiold, von den Steinen, Koch-Grinberg?, Capistrano de Abreu e Ehrenreich — € ‘ Maybury-Lewis (1978; 1-2) sustenta que labor etnogrifio, lingtistco e arqueo- Togico de Nimuendaju era gulado por uma ambipio comparativa de gran tzdura: 6 estabelecimento das conexdee hstrico-culturais entre todas as numerosi Simas eulturas indigenas do Brasil, passadase presentes. Bem tal empresa gue se inse- Briam seu monumental Mapa Eimo-Histérco (1943-1944; ver Nimuendaju/IBOB 1981), os artigos pats o Handbook of South American Indians e suas tronografias Jt 90 Theodor Koch citado por Nimuendaju ¢ o mesmo Koch-Grinberg (ver Baldus 1959), inbers (ver Bald vod E através destes que ele cita a maioria dos outros autores. E nao muito ais que isso; poucos trabalhos referentes a outras regides do mundo sdo mencionados, ¢ apenas duas obras gerais sHo citadas sem o inter- medio de sua biblioteca basica: um estudo famoso de Steinmetz — mas para aludir a uma crenga Guaicuru — ¢ wm de Oskar, Peschel, autor Be quem sequer o nome me & familiar, no contexto do "*cansaco vital” (Lebensmiidigkeit) dos Guarani. Seu dominio das narrativas quinhen- tistas sobre os Tupi da costa parece limitado — 0 que nao o iimpedit de associat de modo inovador estes materiais com sua propria etno- igrafia, direcdo que Alfred Métraux, partindo por sua vez deste ensaio sobre os Apapociiva,iria em seguida trilhar. ‘Ainda assim, a monografia Apapociiva & bastante mais prolifica em referencias comparativas ou gerais que os trabalhos que Nimuendaju vitia a escrever depois, quando seu conhecimento do corpus etnolo- ico sul-americano ja era vastissimo, como a trilogia Je (Melatti 1985: 15), Mas o campo bibliografico visivel no texto de 1914 nos ensina pouca coisa, Pois, se existe uma continuidade indiscutivel entre aspec- tos do trabalho de von den Steinen ou Ehrenreich ¢ aquilo que Nimuen- aju faz aqui, 0 que chama a atengdo é justamente a singularidade da empresa de Nimuendaju, em termos de escopo ¢ de resultados. As andlises mitologicas estavam entdo na ordem do dia, fosse para que fe perscrutassem as origens da religido ou da razso, fosse para que se tragassem rotas de difusdo cultural e mapas de afinidades genéticas; mas 2 centena de paginas que Nimuendaju gasta para contextualizar, Comentar e interpretar os dois mitos que transcreve — cumpre lembrar que sua monografia se quer apenas como introduso aos mitos — teste. Giunham algo de novo e de proprio. O discurso Guarani acede aqui fo esiatuto de objeto pleno, de totalidade significante em si — ele gaa ‘adignidade de um pensamento. ‘Como observou Melatti (1985: 10,18), foi a propria “‘excentri dade” de Nimuendaju, sua inseredo marginal no campo da etnologia facadémica que, isentando-o de compromissos, tebrico-institucionais, permitiuelhe desenvolver seu principal talento: a capacidade de per- aber e de pr em foco as preocupagdes dominantes de cada cultura que estudava, endo aquelas de qualquer teoria ou escola, Esse debrux 1H que ako quer dizer — ctemos que Melati concordaria conosco — que 8 fats de forsuto académiea transforme {ps0 facto algutm em bom einografo. Muito d& voli gar-se sobre as questdes alheias & 0 que distingue a verdadeira etno- grafia de uma mera acumulagdo de “‘fatos’” (que, devidamente regis- trados, respondem a tudo — ou nada — que se thes pergunte); é isso que transforma a etnografia numa experiéncia epistemoldgica: @ busca do sentido no elemento da diferenca. Mais talvez que em suas mono- arafias J2, Nimuendaju atinge neste ensaio sobre os Apapociiva a dimensio de uma “‘descrigao densa’’, para usarmos a ja gasta expres- sto de Geertz; ele nao apenas apreende a “quest4o”” organizadora de uma cultura ou forma de vida, como explora a incidéncia de tal ques- Go ou tema sobre os comportamentos individuais ¢ coletivos, elabo- rando o seu significado vivido. Se Nimuendaju estava certo em seu diagnéstico sobre a melancolia e 0 desespero inerentes ao pensa- mento Guarani, este é um problema em aberto; talvez ele, e outros que © seguiram, tenham confundido o que nos parece ser uma concepeao tragica do mundo com seu simulacro e contrafaco, o pessimism: talvez, depois de a ter magistralmente analisado, ndo tenha Nimuen- daju percebido que a cataclismologia Guarani tem atras de si uma mis- tura muito sutil de esperanca e desanimo, paixo e aco, e que sua aparéncia negadora oculta uma poderosa forca afirmativa: em meio sua miséria, os homens so deuses. Ndo importa: aqui, a0 contrario do que fez em trabalhos posteriores, Nimuendaju nao se furtou a inter- pretar; suas descrigdes so carregadas de pathos, ele ousou pensar 0 pensamento Guarani, refletir sobre ele com simpatia ¢ emocao. Com isso, arrisca-se; mas este é um risco que vale a pena. aura romantica que envolve Nimuendaju deriva de seu famoso “‘autodidateme! mas € preciso nde exquecer que, alt de ser excerdo e nfo regra, Nimuendaju semp fot won consciencioso e interessado lelor da produgdo etnoldgica. Auto. sit, porém tidata; © allés nem 120 auto- assim: Nordenskiol, Mettaux Lowe foram perso: agent importantes para formagao de Nimuendaju. Em suma, Nimuendaju no nos parece se prestar muito ber a fungzo de santo padroeiro de qualguerteoria“‘enear- facional”" do vonhecimenta etnolézico, ou de qualgder projeto e arto polities que pense bastar muita boa vontade e um pouco de mé conseincia para dar acesso 20 “ponto de vista do outco" © garantir um alinhamento intinseeo 0 Mais celebrado do que lido, fora do eirculo de especialistas nos povos Tupi-Guarani, As Lendas da Criacdo e Destruicdo do Mundo... teve menor, influéncia e divulgago que outros trabalhos de Nimuendaju, como os artigos e mapas com que contribuiu para o Handbook of South American Indians, como os trés trabalhos publicados no Ame- rican Anthropologist sobre 03 Canela ¢ Xerente (dois deles em cola- borago com Robert Lowie), e sobretudo como as trés monografias sobre tribos de lingua J@ do Brasil Central — The Apinayé, The Serente © The Eastern Timbira — editadas por Lowie, 0 ‘“descobridor’’ de Nimuendaju ¢ dos Jé para a antropologia"’, Essas monografias abri- ram a pesquisa moderna o universo da estrutura social J@ ¢, a partir das hipéteses que Lowie e especialmente Lévi-Strauss construiram Sobre seus dados, elas deram origem ao grande movimento de estudo dos Jé, da década de 60 em diante, responsdvel por uma renovagao dos interesses tedricos da etnologia sul-americana que mudou decisi- vamente nosso campo de estudos", Se nao teve tal repercussdo, por tratar de um povo e de um tema (migragoes, escatologia, histéria) um tanto fora das preocupacdes dominantes da antropologia nas iltimas décadas, e por permanecer editado apenas em alemao até pouco tempo atras (Nimuendaju 1978), @ ensaio sobre os Apapociiva nao deixou de ter descendéncia ilustre. ‘Sua publicacdo neste momento no Brasil, sobre servir a historia dos Guarani, ¢ mais que um tributo a memoria de Nimuendaju, agora que se difunde 0 interesse por sua obra’, Pois, se 0 proprio Nimuendaju "Ver J. Steward (ed.), Handbook of South American Indians, volume I (1946) ¢ volume 11 (1948); Nimuendaju 1938; Nimuendaju & Lowi 1937, 1939; Nimmuendaj 1988 (edgdo brasileira: Nimuendaju 11956 | 1983); Nimuendaju' 1942; Nimuendaju 1946 "2 Ver LevisStcauss | 195241, | 1952b 1, | 1936 |, todos em LéviStrauss 1958; May- bbun-Lewis 1971, 1978 Wagley 1979 (& a importante coleinea que ele apresenta Maybary-Lewis, org, 1979); Melati 1983, 198, 3 Vieram & luz no Brasil, nos iltimos anol, at seguintes edigies ou reedigbes Ninwendaju 1977, 1981, 1982, 1 19561 1983; Nimuendaju/IBGE 1981, Enguanto ‘serevo estas linhas, a Revista do Patrimbnio Histérco e Aristico Nocional prepara ao ee Oe EEECEEEEEE EEE EEL est na origem do deslocamento do eixo de nossa disciplina, entre 1940 e 1970, de uma situagao de domindncia Tupi-Guarani e de corte culturalista para uma onde os J¢ ¢ o estrutural-funcionalismo (¢ 0 ‘struturalismo) vieram a imperar, hoje assistimos a uma retomada de alento da etnologia Tupi, em bases teoricamente renovadas, sendo portanto mais que oportuno divulgar a contribuicao pioneira de Nimuen- daju para este campo novamente promissor. N'As Lendas da Criacdo e Destruigéo do Mundo... encontra-se registrada uma auténtica descoberta etologica: a da persisténcia do complexo profético-migratorio Tupi-Guarani, de profundas conse- qiiéncias na historia da colonizacdo do Brasil e do Paraguai, que Nimuendaju analisa aqui em seus fundamentos mitologicos e correla- es éticas entre os Apapociva, E com este ensaio também que se intro- uz na literatura o tema da ‘“Terra sem Mal” (¢ a préptia expresséo, hoje célebre). B aqui que se encontra a primeira descricto da escato. logia Guarani, a qual articula um dualismo espiritual do ser humano (alma-palavra celeste, alma-animal terrestre) a uma logica da subli- ‘magao da corporalidade, e que gira em torno do tema de uma aniqui- lacdo cOsmica da qual € possivel escapar pelo acesso hic ef nunc 20 paraiso — uma escatologia que afirma a finitude humana mas ao mesmo tempo persegue a superacdo imediata desta condirao pela ascese ou pelo excesso. A teoria Guarani da alma — que, para usarmos palavras de Egon Schaden (| 1962 | 1974: 107), & “‘a chave do sistema religioso Guarani” — e a cataclismologia que funda toda uma filosofia da hist6ria so os aspectos mais originais e complexos da cosmologia destas sociedades. E Nimuendaju ainda quem primeiro indaga das raizes do misticismo religioso Guarani, 0 que 0 conduz a0 famoso pro- blema da influéncia jesuitica, cuja solugdo até hoje parece distante. vuma edigdo de lendas indlgenas compiladas por Nimuendajs, eujo manusrito se encontra no Museu Nacional "4 Para um balango global, posto que breve, da etnologia Tupl-Guarani, ver Viveiros de Castro 1984: cap. I. Al também te encontre uma tentative de comparasdo socio- logic entre os Guarani e demas povos Tupi-Ouarani. Para uma avaliagto da produpao sais recente, o leitor deve conslter a Revista de Antropologia vel. 27 (0 prelo hoi), ‘onde serdo publicados 0s trabalhos apresentados no 1? Encontro Tupi, que teve lugar «em Sao Paulo, novembro de 1982 ot Diante de un sistema de pensamento fundado numa visto dual da pessoa onde “verbo” e “‘carne”” se opdem, onde a nopto de divindade é concebida como um Logos eriador, onde o apocalipse — 0 apocalipse e nflo a Bénese, o futuro e no o pasado — constitui-se como pélo orientador da vida religiose, a questo: da influéncia missionéria & inevitivel. Mas Nimuendaju descarta firmemente qualquer marca jesuitica aprecifvel na religiéo dos Apapociva — como fara Leon Cadogan mais tarde para a teologia Mbyé-Guarani —, abrindo com {sso um debate que perdura, ‘Se considerarmos a fortuna que as questdes abertas por Nimiendaju iveram na produgio subseqiiente sobre os Guarani, com Alfred Metraux, ‘Egon Schaden, Leon Cadogan, Pierre e Héléne Clastres, Georg Griin- berg e tantos outros", vé-se que este seu pequeno énsaio é sem nenhum ‘exagero 0 texto que funda a etnologia Guarani contemporanea, aquela que, dentro do conjunto de estudos sobre os povos Tupi-Guarani, mais se desenvolveu até agora em quantidade e qualidade, colocando os problemas mais instigantes para os futuros pesquisadores desta ‘rea, EB assim, como j4 observava Schaden (1963: 83), nao deixa de trazer certa ironia — certamente proposital — a ressalva ou desculpa com que seu autor 0 principia: dizendo que os Guarani eram to conhecidos que pareceria supérfluo escrever algo mais sobre eles (infra, p. 3). Diante do resultado obtido, aquelas linhas servem de Tigao ‘ou de estimulo: mesmo as realidades que supomos “conhecidas” ofe- recem mundos de insuspeitada complexidade. O trabalho antropol6- ico ¢ tarefa intermindvel, de direito e de fato; as culruras‘indigenas em geral, a dos Guarani em particular, esto longe de nao mais ofere- cerem enigmas para uma etnologia digna deste nome — seja porque, vivas e ndo coisas, elas estdo a revelar faces constantemente novas do thar, seia porque este mesmo olhar se desloca, inventando ou sofrendo novas perspestivas. Tal ¢ 0 duplo movimento intrinseco a toda cincia do homem, Muito foi eserito sobre os Guarani, com efeito; uma con- sulta aos indices analiticos dos trés volumes da Bibliografia Critica "8 Melé (1977 compilou uma bibliografiaexpecifica sobre o: Guarani. As antlosias ‘organizadas por Roa Bastos (1978) e por Saguier (1980) sto valisas para o estudo dos ‘Guarani paragusios. Para uma visto atual dos Guarani de Sto Paulo, ver a recente publicagao de CPI-SP (Varios Autores 1988). awl da Etnologia Brasileira (Baldus 1954, 1968; Hartmann 1984) mostra 08 etndnimos “Guarani” e “Tupi” entre os mais tematizados, por uma literatura de toda espécie. Mas em que pese a montanha de papel que Ihes foi dedicada, os diferentes povos Guarani (Moya, Nandeva, Pai-KayowA) continuam chcios de mistério, pela complexidade de sua cultura, sua espantosa capacidade de desterritorializagaio — que sugere tum descolamento entre a sociedade e qualquer suporte morfologico estavel, apontando talvez a lingua como o locus da “*perseveragio do ser” Guarani —, e por seu poder de superacao dos infinitos obstaculos que foram postos entre eles e seu feko, seu modo de ser: o mar tera sido ‘omenor destes ‘As Lendas da Criagto e Destruigdo do Mundo... esta diretamente na origem de um célebre ensaio de Métraux (1927) sobre as migragoes histOricas dos Tupi-Guarani, onde tem inicio a discussdo sobre se 0 “‘messianismo”” Tupi foi um efeito da conquista curopéia ou se remon- tava ao periodo pré-colombiano, fundando-se na mitologia da “Terra sem Mal”, Métraux sustenta a existéncia de um componente de rea¢io A conquista nas migragoes dos séculos XVI e XVII, mas sugere que a busca do paraiso fora um possivel fator da expansdo dos povos da familia Tupi-Guarani pela costa brasileira, onde foram encontrados pelos europeus (ver também Métraux 1928a). Os dados de Nimuendaju sobre o xamanismo Apapociiva — especialmente a sua caracterizaci0 dos Paf como chefes politico-religiosos, e sua definicéo da organizacao politica Guarani como uma “teocracia’” — ocupam lugar de destaque na formulacao do tema do ‘*homem-deus"", o'xamé-profeta-chefe de varias tribos Tupi, em outros trabalhos do antropologo francés, como seu artigo sobre 0s Chiriguano (| 1931 1 1967: cap. 1), outro sobre 0 xamanismo sul-americano (| 1944 | 1967: cap. Il), ¢ 0 seu livro pio- neiro sobre a religiao dos Tupinamba dentro do horizonte Tupi-Gua- rani () 1928b | 1979), o primeiro trabalho que explora sistematicamente as possibilidades de preenchimento das lacunas das fontes quinhen- tistas mediante as etnografias contemporaneas'. O artigo de Metraux TW Meuaun, neste esforgo de sistematizacto das fontes quinhentisas, antecipe = tentativa muito mais rigorose e ambicioss de Florestan Fernandes (11949 | 1963;1 1981 | 1970) sobre os Tupinambd. Florestan, entretanto, rarissimamente menciona as eno frafis Tupl-Guareni contemporineas, preferindo aterse aos materiais dos sézulos XVie XVI. De certo modo, Alfred Métraux esté para Nimuendaju e os Guarani assim avi para o Handbook of South American Indians vol. 111 (“The Guarani”) atesta a divida de seu autor para com este texto de Nimuendaju, igualmente, Ba partir dos anos 40 que pesquisas importantes sobre os Guarani comeram a ser realizadas; seus resultados s6 seriam publicados nas décadas seguintes. Egon Schaden, o mestre brasileiro da etnologia Guarani, nao sé veio a trabalhar com os mesmos Apapociiva que Nimuendaju coniecera, como estendeu sua pesquisa aos outros grupos Guarani — Pai-Kayowd, Mbyé —, aprofundando temas que seu ‘predecessor? havia posto em evidéncia. Em 1959, Schaden publica um ensaio sobre a “'mitologia herbica”” na América do Sul e o messianismo, dedicando um capitulo ao material d’As Lendas da Criaedo... (Schaden 1959: cap, VIL; ver também o cap. IM}. Em seu trabalho de sintese sobre os Guarani, Aspectas Fundamentais da Cultura Guarani (Schaden 1 1962 | 1974), o autor dé particular énfase a vida religiosa como niicleo da resistencia cultural destes povos a0 processo de aculturagdo, e, perseguindo a questéo dos fundamentos da “extraordindria religio- sidade” Guarani, sugere que ela seja a forma especifica de reagao a situacdo colonial no caso dos Guarani. O problema da influéncia jesu- tica (crista de modo geral) sobre a cosmologia Guarani ¢ tematizado ali, e mais tarde em outros trabalhos de Schaden (| 1965 | 1969; 1982). Mas sua monografia de 1962 ainda é, sem divvida, o trabalho mais completo de que dispomos sobre os Guarani e, juntamente com este ensaio de Nimuendaju, constitui-se em introdugao obrigatoria a0 assunto, Sua inseredo na problematica da ‘“‘mudanca cultural’, entéo em voga, nao impede que traga uma etnografia valiosa, com infor- mages sobre a estrutura social Guarani mais detalhadas que o usual na literatura sobre este povow, Este € um ponto curioso. A marca deixada pelo recorte inaugural de Nimuendaju foi tao forte, que eu arriscaria observar que mesmo ‘como Lowie eta pars Nimuendaju ¢o51€(embora Lowie nunca vies a serum sul-ame: ricanista, nem tivessea esperiéncia de campo com os JE que Metra teve com 08 Oia ani): ambos foram deseobridoresedivulgadores do obscura etnberafo alma. 7 Cuja obra mute fer para divulgar, sendo responstvel pla publics dos sponta ‘mentosenotas preparatoras a presente ensaio: ver Nimlendju 1984 '8 J, Watson (1959) publicou um trabalho sobre a “aculturagso" dos Kayowd que ‘amibém trazinformaysesrazodvels sobre a orpanizagio socal axle EEE Ee eE LEE ELEY suas lacunas fizeram escola. Pois, se 0 volume da producdo etnologica sobre os Guarani é superior, provavelmente, @ tudo 0 que existe sobre todos os demais povos da mesma familia lingustica, ¢ se a qualidade dos materiais em lingua nativa publicados ndo tem comparagio com a pobreza prevalecente para 0 caso dos Tupi contempordneos, @ etno- Jogia Guarani tem-se concentrado na compilacdo e exegese de textos — mitos, cantos sagrados, tradigSes orais, como em Nimuendaju ¢ em Cadogan —, deixando até certo ponto de lado a descri¢io da morfo- logia e da estrutura social. Este relativo vacuo socioldgico se deve, «em boa medida, propria fisionomia da cultura Guarani, cujos tragos essenciais parecem se constituir no elemento da religio e do discurso cosmologico, ao passo que a organizagio social padeceria de uma fluidez ou simplicidade acentuadas. Mas isto, a ser realmente 0 que se passa, ¢ antes um problema que uma constataeao, algo a ser explo- ado ¢ meditado: quais as condigdes e implicacdes sociolbgicas de uma forma cultural onde o discurso predomina sobre o emblema ou o esquema ritual, a representagdo sobre a instituig&o, a teologia sobre a socio- logia, 0 tempo cOsmico-escatologico sobre 0 espago social? O presente ensaio de Nimuendaju sugere claramente que o plano religioso é o lugar do sentido na sociedade Guarani (enquanto seus trabalhos posteriores mostraram como 0 plano sociolégico é 0 privilegiado entre os grupos J8); mas ao mesmo tempo ele parece ter iniciado uma tradig&o de esque- ‘cimento daquilo que forma a base minima das descriedes etnograficas: sistema de parentesco, distribuigdo espacial, ciclo de vida, genealogias... Tudo isso seré pouco visivel nos estudos subseqilentes sobre povos Guarani; ¢ sem iss0 pouco se continuard sabendo sobre a inscricao sociologiea do misticismo religioso Guarani, a qual, ainda que se dé (ou exatamente por isso) sob a forma de uma negagao ou de um desco- Jamento, exige uma andlise em profundidade. Tais consideragées se aplicam, por exemplo, a obra sob todos os outros titulos admiravel de Leon Cadogan, 0 maior especialista para- ‘guaio nos Guarani, Cadogan, como Nimuendaju, no foi um antro- pélogo de formagao. Sua copiosa produedo, dispersa em varios perio- dicosis, consiste sobretudo em compilagdes, comentarios ¢ exegeses "Para uma bibliografia completa das publicapbes de Leon Cady | 1 de Leon Cedogan, ver Melié 1977, bem como os rés volumes da Bibiografa Critea da Etnologie Brasileira, sox detalhadas de textos Guarani, que formam um corpus etnolbgico fineuistico sem similar na etnologia brasileira. Sua obra principal & “Apvt Rapyta (Cadogan 1959), uma coletdnea de cantos miticos esok®- see e eutros textos Mbya, que complementam e expandem conside- Titlimente os dados de Nimuendaju sobre os Apapociwva (Nandevae ‘Guarani. O trabalho de Cadogan serviu de base para os de Pierre € Hidlene Clastres; P. Clastres (1974a)-publicou em francés uma cole- tinea de mitos ¢ cantos Guarani que traz textos colidos por Nimuen- daju, Cadogan e por ele mesmo (traduzides por Cadogan), ¢ 0 livre Geli. Clastres sobre 0 profetismo Tupi-Guarani faz uso abundante do Ayvu Rapyta, Esta obra de Cadogan & uma prova impressionante ddaguilo que 3& se podia constatar.a paxtir do ensaio de Nimuenday: Gque o pensamento Guarani atinge a, dimensto integral de uma f= aefa, gerando um discurso ontolégico poderoso que, decolando de sua eircunstancia sociol6gica — mas & desta que pouco sabemos] —» salem direedo a uma poesia e uma metafisica universais. Com Cado~ fan, ainda, fica explicitamente colocado um problema dos mals insti= antes, que também era possivel detectar nos trabalhs de Nimuendaiy ede Schaden: o da importéncia dos xamés ou lideres religiosos enquanto formuladores do discurso cosmologico, o gual, a partir de uma base sSiutural comum a todas as culturas Guarani,-reoebe uma conside- favel elaboragao especulativa individual por parte de especialistas. ‘Nimuendaju como Schaden, como Cadogan, levaram a cabo suas des- Grigoes da cosmologia Guarani a partir de uma relago intensa ¢ fora. Heada com individuos excepcionais, “informantes” que eram fil6sofos t teblogos. Por isso, seus trabalhos nao deixam de evocar (sobretudo Ge de Cadogan) as famosas conversagdes de Marcel Griaule com Ogo- femméli, o sibio cezo Dogon; eles t8m o mesmo encanto ¢ deixam as mesmas indagagdes: 0 que é fabulagdo ¢ elaboracao individual, 0 que rrecteno coletiva? Qual o espago ea fungio da criacto cosmol6gieo- filosbfica em uma dada cultura? Outras tantas questOes™, ‘Bartolomé Melié € outro estudioso dos Guarani, paraguaios que ‘vem realizando pesquisas importantes, como a consubstanciada na “Gm refloxko sobre esas questdes, no contexto da etnolGgia subamricana, ‘Krab (-Timbira; também sso disto no horizonte Tup- 2 veto artigo de Carneiro da Cunha (1981) para 0 ct30 ‘Vivecos de Casro 1986 (p. 229-30) para uma breve disco Guarani woo monografia sobre os Pai-Kayowd (Melid, G. & F. Grinberg 1976). Ele tem ainda publicado estudos eritico-hist6ricos sobre a relagdo entre os Guarani e 0s jesuitas, onde atribui peso maior que 0 consen- sual 4 influéncia missiondria sobre a religido Guarani (ver Melia 1981, onde ¢ retomada a historia da expresso Yvy MaraneJ, “Terra sem Mal"). Pierre Clastres publicou varios ensaios sobre os Guarani em suas duas conhecidas coletineas (| 1974b | 1978; | 1980 | 1982). A obra de Pierre Clastres ¢ até agora a tentativa mais ousada e sofisticada de se atingirem as implicagdes filos6ficas ¢ politicas do pensamento Tupi- Guarani. Foi com este autor, ademais, que os Guarani sairam de um certo confinamento etnogréfico a que estiveram relegados nas ultimas décadas. Mas &a Hélene Clastres, a meui ver, que se deve 0 esforgo interpretativo mais importante sobre a religiao Guarani. Seu livro Terra sem Mal: 0 Profetismo Tupi-Guarani (| 1975 | 1978), que segue diretamente a inspiracao de Métraux, no articular os materiais dos séculos XVI ¢ XVII com as etnografias contemporaneas (com a dife- renga que busca dar conta das mudangas historicas, ¢ nao apenas recompor um mosaico), éuma andlise curta e brilhante, posto que por ‘vezes pouco rigorosa no tratamento dos dados, do complexo do profe- tismo Tupi-Guarani. Ele pretende demonstrat a natureza auténoma, nfo-reativa & conquista, das crencas Guarani sobre a ‘Terra sem Mal” ¢ da ecloséo dos movimentos migratorios em demanda deste parafso, Conforme aqui ao modelo de Pierre Clastres, a autora toma 2 itrupsto do profetismo como 6 resultado de uma tensao contradi- toria entre o “politico” ¢ 0 “religioso” nas sociedades Tupi-Guarani, tensdo esta anterior a invasdo européia. A produgo iminente, nestas sociedades, de uma instncia politica exterior a0 corpo social, que 9 negava como ser autondmico — isto é, a gestagdo de uma “forma- Estado” através da concentrarao de poder nas maos dos grandes chefes guerreiros —, teria levado 03 Tupi-Guarani a contraproduzirem uma negacao simétrica, igualmente radical, da Sociedade, a saber: um movi- ‘mento religioso de desterritorializaeao, que pregava a aboligio dos fundamentos da vida social — a reciprocidade, as regras de paren- tesco, o trabalho ea vida aldea. E por isso 0 profetismo, e assim a fuga em diregdo a Terra sem Mal. O necessétrio fracasso suicida deste impul- so teria levado, por sua vez, @ interiorizacdo ascética do tema da salva- so entre os Guarani atuais, ¢ a0 individualismo radical que teste- munha a religido destes povos. : soul A analise de H. Clastres apresenta varios pontos questionaveis, alguns deles s40 os mesmos que se encontram nos ensaios de P. Clastres sobre 0s Tupi-Guarani, Assim, por exemplo, 0 recurso a um {nico € algo hipotético fator causal para o profetismo, uma explostio demo- ‘gréfica que estaria levando estas sociedades a um embrido de organi- zagao “‘estatal”, Igualmente, a intepretacdo do discurso profético ‘como “‘negador do social” esquece que 0 miicleo afirmativo que nele persistia — que ele, na verdade, exacerbava —, a guerra de vinganca € 0 canibalismo, era o proprio fundamento da sociedade Tupi-Gua- rani. Longe, portanto, de ser “‘negada”” pelo profetismo, a forma social Tupi-Guarani parece ter sido mais bem radicalizada, reduzida a sue esséncia', Por fim, o diagnéstico de desesperanca e agonia que seu livro profere sobre os Guarani contemporaneos, que ecoa aquele de Nimuendaju, est sujeito & mesma divida que j4 levantamos sobre 1s conclusbes d’As Lendas da Criacao. De toda forma, estes problemas ido nos devem levar a subestimar a importante contribuicao de Héléne Clastres para nossa compre- ensao da cosmologia Guarani. Seguindo os passos de Nimuendaju e de Cadogan, ela desenvolve hipéteses proyciamente etnolégicas sobre a concepsao Guarani da pessoa, da sociedade e da natureza. A ela devemos a consolidacao da teoria Guarani sobre 0 Homem, que 0 de como lugar de um compromisso instdvel ¢ perigoso, travado na temporalidade, entre o animal e 0 divino, essas duas formas simétricas do nio-ser social, bem como a explorago da idéia que Métraux for- mulcu, ¢ que faz a originaljdade da metatisica Tupi-Guarani: a idéia de que & possivel superar a condigéo humana de modo radical, pois a distancia entre homens e deuses é a0 mesmo tempo infinite e nula. A diferenca entre 0 céu e a terra, os deuses e os homens, nao funda © espago de um culto nem 0 movimento regressivo de uma aletheia, mas ¢ 0 momento de unt devir, cujo eixo a morte. Mas 0 segredo da filosofia Tupi-Guarani parece ser esse, exatamente: a afirmacao de ‘uma nao-necessidade da morte, a posigao de uma imanéncia do divino ‘no humano. Seres do devir, para os Guarani a destruic&o do mundo nao é um termo, mas uma linha de fuga que os arrasta para um além sempre 21 Ver Viveros de Castro & Carneiro da Cunha, em preparacto (1985). adiado — ¢ isto & 0 presente. Melancolia, ou orgulho, deste povo imperceptivel? Tal € a heranga de questoes que nos deixa Nimuendaju. Caberd 20s que continuam a dialogar com a filosofia Guarani tentar Jevé-la adiante Agosto de 1985 Bibliografia BALDUS, Herbert 45:52 1946 — Curt Nimuendajd. Sociologia, VIIL, n° 1, St0 Paulo: — 1954 — Bibliografia Critica da Etnologia Brasileira, Sto Paul: CComissio d6'1V° Centenério da Cidade de Sio Paulo. Reimpressa em 1970 por Kaus Reprint, Nendel/Liechtenstein, como volume IIT de Volkerkundliche Abhan- Alungen,editadas por Hans Becher — 1968 — Bibligrafia Critica da Etnologie Braleira, volume Il, Han- nover: Velkerkundlche Abnandlungen Bd IV (ed, Hans Becher). CADOGAN, Leon — 1959 — Ayou Ropyta textos micas de fos Moyé-Guaran! de! Guoird. 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VIVEIROS DE CASTRO (CHARLOTTE EMMERICH Den der Erschaffung und Vernichtung der Welt als Grundlagen der Religion der Apapociiva-Guarani permancceram inéditas em outras linguas até 1944, quando Juan Francisco Recalde pu- Dlicou em Sdo Paulo uma traducdo em espanhol, em edicdo mimeo- grafada de cem exemplares. Ela inclufa uma versio dos mitos Apapo- cava em guarani paraguaio, uma profusao de notas filologicas ¢ um ensaio lingtistico. Nao tivemos acesso a esta traducio, & qual Herbert Baldus (1954: 484-485) faz sérios reparos. Em 1978 0 Centro Amazénico de Antropologia y Aplicacién Pra- tica de Lima, Peru, publicou uma nova traduedo para o castelhano, evada a cabo por J, Barnadas ¢ editada por Juergen Riester. Ela traz, guisa de introdugo, um prefacio de J. Riester e uma versio do artigo biogrdfico sobre Nimuendaju que Egon Schaden publicou na Revista de Antropologia 15-16"; traz ainda as notas de Recalde & edigao de 1944, bem como as verses dos mitos em guarani paraguaio ¢ 0 estudo exicologico do mesmo autor. Thekla Hartmann (1984: 434) aponta discrepancias na transcrigdo dos textos miticos em Guarani, entre a edigdo alema de 1914 ¢ esta, Na verdade, ha varios outros problemas com esta edigo peruana, em que pese 2 boa qualidade, em geral, da tradugdo, Numerosos erros de impressao levaram & omissao de pala~ vias (as vezes de frases), & troca de datas e palavras**. O texto de Nimuendaju foi deliberadamente modernizado em alguns pontos — assim, ‘‘horda’” se transformou em ‘‘grupo’”, uma populacao de tantas ~ Schaden 1967-68; publicado também na Revista do Instituto de Estudos Brasltros, 21968) + Comparar as pésinas 28, 33, 121, 136 144 com suas correspondentes'apresénte digo. “cabecas” foi espiritualizada em tantas “‘almas”” —, tendo sofrido uma traduelo fortemente interpretativa, quase livre em certos tre- chos, de modo a facilitar a compreensao de passagens intricadas ou obs- curas. Com tudo isto, entretanto, esta versdo peruana tem 0 mérito do pioneirismo ¢ o da leitura agradével — e ela nos foi itil em nosso trabalho, pois adotamos algumas solugdes que ali se encontram. HA tempos circula entre os especialistas uma verséo em portugués do texto de Nimuendaju, de que no Museu Nacional existe uma copia manuscrita, sem data, assinada por F. W. Sommer. & esta tradugao de Sommer que se acha também no Museu do Indio, em cépia datilo- grafada e mimeografada. Aparentemente, ela esteve diversas vezes para ser dada a impressao; a “edicdo do ‘Apapociwva’ em portugues” era noticia que corria todo ano entre os antropélogos, ¢ assim foram pasando os anos. Era esta versio Sommer que tencionévamos publicar, apés uma revisdo do texto em cotejo com o original. Iniciamos o trabalho desta forma; muito breve, porém, isto se mostrou improdutivo, levando-nos a confecgio de uma tradugdo completamente nova, controlada por consultas a verstio Sommer ¢ & tradugdo castelhana de 1978 (Nimuen- daju 1978). O texto de Sommer & tAo fiel ao alemo que se revela de leitura dificil: o autor demonstra ndo se sentir estiisticamente & von- tade no portugues. Todavia, cabe aqui destacar o pioneirismo de Sommer que, cioso do estudo dos vigjantes alemaes no Brasil, voltou sua atencdo para dois trabalhos relevantes de Nimuendaju, ambos inéditos em portugués: “Fragmentos de religigo e tradi¢ao dos indios Sipaia””, publicado na revista Religido e Sociedade (n? 7, julho de 1981)*** e este, que ora se publica. “++ Na “Apresentagdo” a este trabalho comet o imperdotvel equivoco de decretar ue & tradugdo de Recalde era a dniea Versio nfo-tlema d's Lendas de Criesdo.. lgnorando assim © edigto peruana de 1978, Penitencio-me aqui. Estow ainda mais convencido que o manuscrito de que partmos para & edo co ensaio sobre os Shipaya, assinado F. W, Lommes, € uma tradugdo do mesmo F. W. Sommer que assina a trae ddugdo do texto sobre os Apapociva, Quando pude encontray 0 manuscito Apsporiva, uma comparagto esillstiea com a versio portuguesa do texto Shipaya fex-me duvidar menos que Lommes e Sommer fossem uma s® pessoa, Ver Nimuendaju 1981: 6.7 (Nota de E. B. Viveiros de Castro.) xl Quanto ao nosso método de trabalho, a Profa, Emmerich realizou a traduedo do texto, a partir do original alemao, para em seguida E, Viveiros de Castro proceder a uma revisio, Tal forma de trabalho se justifica, no s6 pela nevessidade de apresentarmos uma traducio JingUisticamente correta ¢ antropologicamente sensata, como pelas A escaramuga eve lugar em 22 de fevereiro de 1835. Dos 38 homens do destace- mento, dois foram feridos e um morto. Aos 11 de agosto o juiz de paz de Juquia anan- cou que se fizera 8 paz. (Ernesto Young: “Historia de Iguape”, Revista do Instituto Historica e Geoeraphico de Sao Paulo, 1X, 1908, 10 Os Oguauiva entdo retrocederam um pouco na direso oeste, até entre os rios Taquary e Ttararé, vivendo em bons termos na fazenda Pirituba, do Barto de Antonina, que solicitou ao Governo um missionario para eles. Em 1845 este chegou, na pessoa de Frei Pacifico de Montefalco, que fundou no rio Verde a miss40 S4o Joo Baptista, atual Iteporanga. (O Bardo de Antonina presenteara os indios com a ponta de ierra centre os rios Itararé e Verde; mas os documentos pertinentes desapa- receram muito @ propésito, e assim também aqui os intrusos rapida- mente prevaleceram, transformando a terra dos indios em trunfo no jogo sujo da politicagem regional. Todas as queixas por parte dos indios em Sao Paulo e Rio somente pioraram sua propria situagao; € entéo 05 Oguauiva, dizimados pelas epidemias e acossados por todos (95 lados, concordaram em setembro de 1912, embora a contragosto, com a proposta, apresentada por meu intermédio, de se transferirem para a reserva dos Guarani no Araribé‘, Ali, infelizmente, logo no comeso do ano seguinte, perderam umas cingtienta pessoas devido a ‘uma epidemia de febre, de modo que hoje perfazem apenas cem caberas. Entretanto, uma parte dos Oguauiva também conseguira, pelo menos ros anos posteriores, realizar seu plano de chegar ao mar. Por volta ‘de 1860, um grupo vindo do rio Verde alcangou as imediagdes dos ‘Taflygud; permanece desde entdo na costa, vivendo no Bananal, nas cabeceiras do rio Preto perto de Concei¢do de Itanhaém; alguns, espar- ‘sos, vivem também na nova ferrovia perto de Mongagua, outros com os Taftygua no Itariry. Mais tarde vieram a receber 0 pequeno reforgo do bando de Nimombaecaté, cujos remanescentes vivem hoje no monte Araraii no rio Preto, depois de verem fracassada, devido & emigracdo dos Oguauiva do rio Verde, sua tentativa de se estabelecer de novo naquele local em 1910. Por volta de 1870, depois que mumerosos outros bandos haviam imitado © exemplo dos Tafiygua ¢ Oguauiva, com maior ou menor sucesso, o movimento migratério propagou-se também até os Apa- “Bim 1862 comtevam-se no teririo indigena do rio Verde quatrocentos ¢ setenta ¢ cito "Cayuas"” — na sua maforia, provavelmente, Oguaulva, A partir de ent, seu fhimero decrescevrapidamente. Em 1871 chegavam a trezentas e seis eabegas em 1912, ‘quando executel sua transterénca, @centoe cinglenta. Estavam muito messiados com tlementos Apapoctiva, um pouco com Kaya. u eee EERE EYEE EE EEE EEE pociiva, ¢ os pajés Guyracambi e Nimbiarapon sugeriram-Ihes, como chefes e profetas, a marcha para o leste. Guyracambi, o iiltimo pajé verdadeiramente grande ¢ famoso dos Guarani, fez duas ventativas de seguir para o mar, fracassando ambas face & resisténcia das autoridades brasileiras, Ele viveu algum tempo no Jatahy, onde fazia oposigao aberta & catequese do missionario Timotheo de Castelnuovo; mais tarde morou no rio das Cinzas, onde o conhesi, Ele morrex muito idoso, durante uma viagem, e esté enterrado m wrana- idoso, durante uma Viagem, et eterrado numa ha onde o Parana No Jatahy uma grande parte do seu bando desligou-se, buscando voltar para o rio Verde. Este novo bando estava sob a chefia de Hond- tio Araguyrad, neto do afamado guerreiro Papay que no principio do século XIX foi o terror dos Kaingjgn. Até 0 ano de 1892 ele estava na vizinhanea dos Oguauiva, mas sem se misturar com estes, morando na parte mais setentrional do territrio indigena do rio Verde, Naquele ano, porém, acusado pelos Oguauiva de feitigaria, teve que emigrar, dirigindo-se com 0 seu bando para o sertio de Bauru, La se uniram fa ele os remanescentes de um bando que, apés ter sido levado para ‘© mar nos anos oitenta por seu principal*, José Maria, foram recon- Guzidos para o interior por Yvyrai, com a morte daquele chefe. Pré- ximo & localidade de Fortaleza, os dois chefes se encontraram com © capuchinho Frei Sabino, e se deixaram convencer por ele a fundar uma coldnie na desembocadurg do rio Dourados no Tiet®. Exatamente naguela ocasiao, Nimbiaraponj vinha subindo o Tieté com seu bando. Ele também ento foi convidado a participar da empresa planejada; recusou porém, continuando sua viagem para leste. Um outro bando, sob a chefia de Netguei, j4 nessa ép0ca morava na proximidade da foz do Dourados, depois de ter percorrido todo o sertdo, chegando att 0 territério dos Kaiapo. Este bando, contudo, era pouco nume- oso, vindo a desaparecer alguns anos mais tarde devido a uma epi- demia de febre, da qual s6 escapou o filho do chefe, meu leal amigo © companheiro José Pedro Neéguel. Um outro bando Apacociva, 0 do capitao Fortunato, vivia até o ano de 1887 perto da velha colOnia militar de Ttapura; neste ano, porém, voltaram para Mato Grosso. + Emalemao. “Haypting”™ (8.7) 12 Também a tentativa missionéria de Frei Sabino em 1892 fracassou. Mai as obras na foz do Dourados tinham comegado, © missionério fo transferido de seu posto, provavelmente devido a calinias. Os indios esperaram em vo por sua volta, até que abandonaram 0 local de novo. Na sua'retirada pelo Tiet® ¢ Batalha acima sofreram pesadas perdas com a febre palustre; 0 bando de Yvyrai voltou para 0 rio Verde, onde sucumbiu de variola até o ditimo homem em 1900. ‘Araguyrad permaneceu durante certo tempo com seu bando — ainda contando com cerca de cem cabegas — nas fazendas da regiao do Batalha, fixando-se, por fim, em 1896, no ribeirdo da Lontra, afluente da margem direita do rio Feio, ento ainda completamente inexplo- rado. Alguns anos mais tarde, contudo, quando comesaram as hosti- lidades entre os colonos 0s indios Kaingjgn daquela resiao, os Gua- rani foram expulsos de sua residéncia ¢ fugiram para Bauru. A conse- Iho do missionério Pe. Claro Monteiro retornaram ao rio Feio, onde foram obrigados a abandonar sua aldeia pela segunda vez, em 1902, depois que 0s Kaingi(gn mataram 0 missionario ¢ 0 principal Araguyrad, que 0 acompanhava numa viagem de exploragSo rio Feio absixo Depois de algum tempo de perambulacao Joguyroquy, filho de Araguyrad, fandou uma nova aldeia na foz do Avari, no médio Bata- tha. Alia febre palustre, a disenteria e 0 sarampo, bem como a incom- petincia do principal, de que os colonos vizinhos souberam se apro- veitar para explorar e desunir a horda, quase a levaram a extinea0. O avango da estrada de ferro Noroeste, cujos contingentes de trabalha- dores representavam um perigo constante para a aldeia, obrigou em 1907 o resto do bando a abandonar o Avari. A muito custo consegtt reunir algumas familias rio acima, no Arariba, onde n6s passamos tuma existéncia miserével. Em 1910, finalmente, consegui com muito esforco chamar a ateng8o do Servico de Proteeo aos Indios, a0 qual entdo eu mesmo jf pertencia, para meus irmaos de ribo, abandonados e caluniados por todo o mundo. Gracas & simpatia humanitéria ¢ @ compreenséo das necessidades dos indios — infelizmente rarissima na instancia competente — que encontrei no Inspetor dos Indios de S40 Paulo, Senhor Horta Barboza, o Arariba foi convertido em asilo para ‘0s numerosos remanescentes dispersos da tribo Guarani, formando hoje seu centro principal, A maioria dos indios desta tribo que habi- tava em Séo Paulo, bem como um grande nimero deles do Mato Grosso ¢ Parana, aceitaram minhas propostas de mudanca para esta B reserva nos anos de 1912 1913 Na velha patria dos Apapociva, no Iguatemi, existem ainda hoje duas aldeias desta horda com cerca de duzentas caberas: a aldeia do “alferes” Tacuaratj, assassinado hé poucos anos pelos Cheiru vizi- ‘hos, situada perto de Porto Lindo, e a aldeia do principal Cola (Nico- Jao), no arrow Mocoin na serra Mbaracaja. Um terceiro bando, che- fiado pelo Capitao Ruyzinho, tentando escapar dos coletores de mate paraguaios, fugiu hé alguns anos do Iguatemi para a margem esquerda Go rio Parana, estabelecendo-se na foz do Ivahy (cerca de quarenta caberas). © estado do Parana possui ainda uma outra aldeia Apapoctiva, a de Itapeva, no rio das Cinzas. Ela esta sob a lideranca do principal Mbii, e € uma das mais antigas do leste. Na mesma bacia fluvial acham-se ainda alguns indios desta horda, que se separaram do bando facima mencionado, reunindo-se perto de Jacarezinho com alguns remanescentes do bando de Tupambel. ‘Além destes encontram-se no Mato Grosso, no local chamado Potrero Giacu, entre os rios Brilhante e Dourados, trs aldeias peaue- nas com a0 todo setenta e dois indios desta horda. Sao os sobrevi- ‘yentes do bando do principal Avarecapy, que nos anos oitenta morava ho Ivinhema, onde finha frequentes escaramugas com os Ofaié-Cha- Vante. A eles se reuniram os restos do bando do “Grande Pai” do Guyrag, depois da morte deste pajé. ‘Um outro bando formou-se em 1912 dos poucos remanescentes dos bandos de Tupambei, Nimbiarapofi'e outros, que tinham fugido da escravido assalariada a que Ihes submetiam seus patrOes brasileiros de Vacaria, buscando reftigio junto ao Servigo de Protesdo-aos Indios na reserva dos Ofaié-Chavanie no Ivinhema. No ano seguinte foram transferidos para a reserva do Arariba. “Levar-nos-ia longe demais contar a triste sorte de todos os bandos {que em sua ilusio partiram do Mato Grosso, em busca do Além feliz, perecendo até o aitimo homiem nas doengas ¢ na miséria, sem qué Zlguém sequer compreendesse seus planos e intengdes. Quero apenas relatar brevemente 0 fim do bando de Nimbiarapony, que foi um dos naiores feticeiros e profetas e o sustentaculo principal da idéia de emigraeao. Enquanio seu amigo e companheiro Guyracambi seguiu rumo leste pelo Paranapanema, Nimbiarapof9-escolheu 0 Tieté como caminho, i por ali avangando devagar para o leste em 1890. Recusando, como ja foi mencionado, o convite de Frei Sabino para participar da tentativa de colonizagao no Dourados, chegou afinel ¢ felizmente, depois de longa caminhada, a meta almejada, o mar. Depois de curta perma- néncia, convenceu-se da impossibilidade de alcangar a Terra sem Mal por esta via, retornando com seu bando para o interior. Na regiao de Brotas todos seus seguidores, com excegao de dois, sucumbiram a0 sarampo. Ele proprio voltou para o Iguatemi, onde novamente reunit. adeptos, percorrendo com eles a regido-do Ivinhema e uma grande parte do estado do Parana, 4 procura daquela outra Terra sem Mal, que segundo a tradig&o devia encontrar-se no centro da terra. Nesta empresa morreu, em 1905, no alto Ivahy. Sey sucessor, 0 pajé Antonio Tangard, conduziu a maior parte dos seus adeptos de volta para oleste, primeiro para o rio Verde ¢ de ld para Piraju, de onde, em 1912, ew trouxe o bando de trinta e trés cabecas para o Araribé. Ali Tangaré morreu neste mesmo ano. (© niimero de Apapociiva monta hoje a seiscentas ¢ cingtienta cabe- cas. Deste total, duzentas esto no Iguatemi em Mato Grosso; outros tantos, ao lado dos Oguauiva e de alguns Kaygué, na reserva do Ara~ riba em Sao Paulo; cerca de cem no rio das Cinzas, no Parand; uns setenta no Potrero Guacu em Mato Grosse e uns quarenta na foz do Iwahy no Parana. Outras hordas Guarani sfo: os ja mencionados Taftygua (nove cabe- as no Itariry); os Oguauiva (cem caberas no Arariba e quarenta no Fitoral); 08 Cheirus chefiados pelo capitao Rapo, perto da foz do Igua- temi, aos quais parecem pertencer também os Guarani que moram ao lado dos Kaing{ign no Ligeiro, no Rio Grande do Sul; os Avahuguai no Dourados, os Paiguaca no Curupaynd, ambos no Mato Grosso; os Ywytyigué em frente & serra do Diabo, no estado do Parand; 05 ‘Avachiripa, na margem esquerda do Parard, ¢ ainda diversos outros bandos como 0s de Catanduva, do Jatahy etc. no mesmo estado. Os Apapociiva, Taflygué, Oguauiva e provavelmente ainda os Cheiru so considerados os verdadeiros Guarani era oposigdo aos Avahuguai, 5 Vivem também, em maior nimero, no Yearaps, er teritorio paraguaio. Is eee Se ee Eevee vee eee Paiguacu, Yvytyigué, Avachiripé, Catanduva etc., reunidos sob 0 nome de Caiud (Kaygua). Todas as hordas Guarani sio mansas; somente os estranhos Yva- paré — 05 Botocudos dos brasileiros — perambulam como cagadores esquivos ¢ inacessiveis pelas matas do baixo Ivahy ou vivem como escravos entre os Kaing(gn. Eles esto no mesmo nivel cultural dos Guayaqui do Paraguai, que também falam o Guarani. Tsto quanto aos Guarani brasileiros, cujo nlimero’total calculo em trés mil. No Paraguai chama-se indistintamente de Kaygua, a0 que parece, as diversas hordas de Guarani da mata: este termo foi transfi- gurado pelos brasileiros em Caiua, Cayudses etc. 16 a DIALETO ‘o mesmo modo como os Apapociiva, Tafiygud e Oguauiva nunca s¢ ‘autodenominam de avd, thas sempre de andé (ou oré)va, cles também no designam sua lingua pelo termo usual no Guarani antigo e paraguaio ava-fleé, mas como andé (ou oré-)ayvti. As palavras Hee ¢ ‘ayvié mudaram seu significado de forma peculiar nos dialetos em questo: fief em Guarani antigo significa ‘lingua’, enquanto 00 Apapo- cliva designa exclusivamente @ voz animal e em circunstancia nenhuma @ apliedvel a uma Iingua, Contrariamente, a palavra Apapociiva para ““ingua”, ayvii, em Guarani antigo significa “‘ruido”’. ‘A ortografia por mim adotada nos textos originais, diverge em alguns pontos do Guarani antigo de Montoyas, Restivo’ e da tradugio da "Conquista Espiritual’’*, O desejo'de evitar ambigiidades na pro- niincia motivou-me a fazer estas modificagbes. Nao ousei, porém, transcrever 0 dialeto no alfabeto padréo ou em qualquer outra forma ronética moderna; de um lado, por respeito a ortografia da literatura clissica, ja consagrada na lingua Guarani; de outro, para nao suscitar ‘a impress, através da diferenca ortogrifica, que 0 dialeto Apapo- civa diverge mais acentuadamente do Guarani antigo do que efetiva- mente ocorre. © Antonio Ruiz de Montoya, Arte Vocabulario, Tesoro » Cotecismode la Lengua Guarani, publiegdo novamente por Julio Platzmann, Leipzig, 1876. 1 Restivo, Vocebularo de la Lengua Guaran! (1722). Editado por Seybold, Stutgart, 1e93, ~ & Aba rea ycaray 69 beacue Tupliupe ybemboagulye urea hagut. Ano de 1733 pipe. 5. Nicolas pe. Annaes de Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, 1878-1879, Vi. 17 Adotei, por isto, 0 alfabeto seguinte: a: fequivalente a0 portugues. (N.T.)] : ocorre apenas junto am como fraca oclustio do mesmo m> cr tem som de k diante dea, 0, u; cua, cue, etc. devem ser pronun- ciados como kwa, kwe etc. Nos poucos casos em que as duas vogais, gue sequem 0 c se equivalem articulatoriamente, registrei sobre 0 um * cintura, eid, pronuntia-se ki-a. Mover-se, eiié, pronuncia-se ka-é, Diante dee, i, ey, ¢ se realiza como sibilante, 0 mesmo ocorrendo come diante dea, o € u. Enquanto este som no paraguaio, assim como nos dialetos dos Kaygua, soa relativamente brando, um pouco seme- Ihante ao “‘the’' do inglés, no Apapociiva ele tem um som ainda mais duro que o “‘tz’” do aleméo. Este som destaca-se de modo desagrada- velmente estridente na fala dos Apapoctiva, identificando-os to logo abrem 2 boca. O mesmo vale para 0 ch, o qual, muito mais duro que a fricativa correspondente do paraguaio, deve ser pronunciado como “tsch’? alemao, muito forte. Os Cheiru, vizinhos dos Apapoctiva, subs- tituem no seu dialeta 0 ¢ pelo ch: Apapociiva -guagd, Cheiru -guachii veado. d:: s6 ocorre em seqiléncia com e mesmo ai é audivel apenas como leve oclusto. e: tem a tonalidade do “a” alemao, quando se realiza atono em fim de palavra, sendo quase surdo, como na pelavra alema “habe”. Com excegdo do sufixo-ne do futuro, este som ¢ muito raro em posi- lo final de palavra: anjine - nao (paraguaio: aarti). Si € t€0 raro neste dialeto como em qualquer outro existente do Guarani. g: deve ser pronunciado, também diante dee, i ¢ y, como um som velar, 0% no ocorre em nenhum dialeto Guarani. Para uma prontincia correta do g cabe ressaltar que, no paraguaio, ele soa muito mais brando do que em qualquer lingua européia. Corresponde ao ng do alemio (¢ portugués) embora sem qualquer som explosivo final (7). © nome “Guarani”, por exemplo, seria transerito de forma fonética correta como Awarani. Pe. Tastevin, em sua gramatica da Lingua Geral Ama- zbnica (La Langue Tapihlya)’, fez 2 mesma observagdo € manteve esta 9 Be. C, Tastevin, La Langue Tapihiy, Kaiseriche Akademie der Wissenschaften, Sohrifien der Sprachkommission, ll, Wien, 1910. 18 ortografia coerentemente; gua, gue etc., seqiiéncias extremamente fre- aqtientes nesta lingua, so pronunciadas como gwa, gwe etc. ¢ quando som € articulatoriamente semelhante a vogal seguinte eu 0 assinalei or *: “pilao”, angid, pronuncia-se angi-a; “sua flecha”, géj, pro” anuncia-se g0-J. fh; este € tH0 fortemente aspirado no paraguaio € nos dialetos Kaygua ue é as vezes reproduzido como 0 do espanhol, no primeiro: falta nosso dialeto. Os possiveis enganos dai decorrentes dao ensejo as outras hordas de zombar dos Apapocitva: ad, ‘eu caio” eahd, “eu ando” soam, por exemplo, em Apapociiva ambos comoad. i tem sempre o mesmo som simples do aleméo (¢ portugués). Tanto ‘no Guarani antigo como no paraguaio, ora ¢ escrito como i, ora como 'y, sem que haja diferenga na proniincia. Quando o i forma ditongo com a vogal precedente, naqueles dialetos ele & registrado como F: abrigo de caga — tocaf. No presente dialeto, este acento cai porque a vogal tonica das palavras é sempre marcada pelo acento ‘:tocdi. J: € pronunciado como 0 dj alemdo. Este som também costuma-se reproduzir no paraguaio por y, faltando-lhe, no entanto, od inicial. ik: niio usei; € reproduzido por ¢ diante de a, 0 €u; diante de e, ie J porgu. : Falta no Guarani im: fequivalente ao portuguts. (N.T)]. zn: fi como no espanhol (#)* (0: & muito aberto, tendendo para a, ao contririo do o paraguaio que soa mais fechado. : [equivalent ao portugués. (N.T.)}. (qu: utilizei para a reprodugto do som k antes de i, € € y, sendo ou sempre mudo. Quando ow é audivel, transerevi cu. ‘rt Emuito brando e freqilentemente nao distinguivel do n. s: falta. [equivalente ao portugués. (N.T.)} xu: & mudo depois de q; soa como um w inglés apos ¢ € g, exceto quando é assinalado por ~, sendo entao vogal plenamente articulada. = Aparentemente hi aqui um equivoco do autor. Falta no texto original a definito do n, empregado, aliés,absndantemente e que deve equivalee ao m do portugués: @ corresponde no mh do portuguts,(N.T.) 19 i 4 i i eee eee YEE LY’ ¥: soa como 0 w inflés. No paraguaio soa menos vocélico, aproxi- madamente como 0 w alemao; no Guarani antigo costuma-se substi tutto por 6. w: falta, x: falta, € 0 gutural*, que no Guarani antigo é transcrito como’ ¢ P. e, Tastevin escrevel; Platzmann 1 z: falta. No paraguaio escreve-se z em lugar de ¢. O verdadeiro z sonoro ocorre em apenas um tinico dialeto da lingua geral, pelo que eu saiba: no dos Tembé que habitam o extremo leste do estado do Par © dialeto Guajajara (Tatgtghéra) do alto rio Mearim no estado do Maranhao, bastante semelhante a0 dos Tembé, utiliza tim de Lua: Apapociva: jacf —Tembé: zahy Guajajara: dzahé Boca: 0 uni > arti oy deura Mulheres: ” cua” kuaé ” kdeé Talvez ocorra também um z no dialeto dos ‘‘Canoeiros”” de Goids que se autodenominam, a semelhanga dos Chitiguanos ¢ Guarani paraguaios e de Corrientes, como Avd. Pelo menos Couto de Maga- Ihaes d& como nome proprio do sew entao capitao “‘Ipaze”. Em Tembé ipazé significa ‘‘ele ¢ pajé” (cf. C. de Magalhtes, Viagem ao Araguava, Sao Paulo, 1912, p. 119). [Nos seguintes casos nota-se uma mudanga fonética do dialeto dos Apapociiva para 0 Guarani antigo: Oe do prefixo pronominal che ¢ dos prefixos relativos fe ¢ ye do Guarani antigo transforma-se em i: G.a.: cheroga minha casa ‘Ape.t chirdy »” femboyere —circundar nimbojeré >, yequaa descobrir-se ” jieuaé Num grande niimero de casos os Apapociiva transformam ob do ‘Guarani antigo em m: *Trate-se da vosal posterior alta, porém ndo-arredondade, refada como y nos textos da lingua gral do Brasil. (N.T.. 20 : hobaits encontrar ‘Ape.t omai 2 é aypitibs ajudar Ihe ” aiaytymé Nas posposigdes pe e-be assim como no supino em-bo do Guarani antigo, as vogais se transformam em y atono: Ga tatipe ao fogo Ape.t tatépy chebe me, para mim "chevy ” ohubo vindo, para vir ” otvy ‘A particula ativa* mo- soa como mu- quando verbo comera por vogal: Ape.:muends (tata) G.a.: mohendi (tatd) —_atigar (0 fogo) 0 dialeto dos Oguauiva tem a particularidade de apresentar a alter nancia entre o eu também em outros casos: Oguauiva: cxivae Ga: cobae este midmnit pa? »” mam6 panga onde? Or do Guarani antigo passa, principalmente diante de nasais, para m: futuro do participio Ape. vaéna G.a.: baerd | %” ge ramf assim, desta forma =” aénami por bom, bonito ” pond O dialeto Apapociva s6 permite a nasalizagao final de vogais ténicas; no primeiro e segundo exemplo, No entanto, a nasal existente no Cua- ran antigo provocou o abrandamento dor para. ‘Além destas diferencas motivadas por mudanga fonética, deve-se também destacar aquelas que decorrem da tendéncia muito acentuada. deste daleto a desgastare reduzir posposioes, sufixos ésilabas finals ftonas, Enquanto nos dialetos setentrionais da lingua geral, aqueles *Trate-se do eausativo Tupi-guarani (NT). 2 denominados “Tupi”, os mencionados elementos permaneceram relativamente completos, j& no Guarani antigo grande nimero deles caiu, O Apapoctiva ¢ o dialeto da lingua geral que mais avangou nesta diresao. ‘A silaba final -ca, -nga, muito freqente no Tupi, ainda se encontra no Guarani antigo em certas palavras, seja na ultima forma, seja i& reduzida a-ng. Sem exceeo, ela sofre no nosso dialeto uma mudanga adicional paray étono: Gat oga casa Ape.t ” eoga 75a a ” aflang “diabo”” a ” coang agora a ‘As silabas finais atonas -ba, -ma e-ra dos participios, verbos, nega- g0es, etc. do Guarani antigo desaparecem, sem exceydo, no n05s0 dialeto: G.a.; mocaaighara aquele que mata Apc.:mocafiié +” mocaiivharera —-aquele quematava"” mocafif aré ndeyucabaeranguera aqueles que deverias matar —”—ndejucdé vaenangué negagio, sem " § O--re-, que no Guarani antigo deve ser obrigetoriamente inserido, ‘em certos nomes, entre a raiz e o prefixo pronominal, ¢ omitido pelos Guarani na maioria dos casos; onde aparece, ocorre na forma -ry- Também neste caso o participio pasado é reduzido de tembi- para chimbi. ema, Sma G.a.: cherembireco minha mulher ‘Ape.: chimbirecd >” cheremjmba meu animal doméstico " chimymbd % Fanderequét nosso irmao mais velho Aanderyques Evidentemente, -no deste dialeto, que ocorre como sufixo, nada mais & do que a particula do subjuntivo ramé, desfigurada pela t déncia acima mencionada. Esta particula ocorre, além da forma antiga comum a toda a lingua geral, também como namo, mano. Assim, por exemplo, as formas yvy yttino — como escora da terra ([.1.4.), caartino — de noitinha (I-X1.4.), eoéno — de manhi (ILXXIV.4.), oaé jevjno — quando eles voltaram (I.XXV.7.) ete. 2 Caracteristico deste dialeto é ainda o uso abundante do supino dos verbos 0, “ir"” eu, “vir’’ na produgdo de formas verbais compostas. Na traducdo, parafraseei-as no mais das vezes como oragOes subordi- nadas introduzidas por “quando” ou “enquanto’’, 0 gue, embora no reproduza exatamente a forma gramatical, da o sentido mais cor- eto: Ojapé ma odvy — enguanto ele ia ¢ a fazia (I.IV.1.); op6 yw dno otivy — enquanto ela vinha pulando para a terra (I.XXV.5.); apd ody — quando ela atravessou (I.XXV.6.); oguejy onivy — quando ele vinha descendo (I.XXX13.). ‘Também peculiar ao dialeto Apapociva é a particula afirmativa ‘ma. Ao passo que no Guarani antigo ela é usada, quando muito, para expressar desejo ou pesar, em nosso dialeto se a emprega muito liberal- mente (inclusive quanto A sua colocaeéo), em quase toda oragio afir~ mativa. Ela representa @ contrapartida da particula obrigatéria pa (Guarani antigo: panga) das sentencas interrogativas. Originalmente ela deve ter servido para enfatizar afirmativamente a parte da oracdo & qual € posposta, mas hé indios que gostam de sublinhar continua damente todo o seu discurso desta maneira; neles, sem exagero, cada quinta palavra € ma, E quando Ihes foge o fio da conversa, repetem tantas vezes ma-ma, até que conseguem lembrar-se da continuacao. ‘Uma forma superlativa propria dos Apapoctiva € a que se constr6i comeé, Ela ocorre, por exemplo, em I. VIII.4: ndijaracuaapondi edvae — os que so extremamente bravos. Este ef talvez seja um participio do verbo e, “dizer”, torneio que possivelmente corresponde a ‘‘disse"” ou “como foi dito”. Cf. Baptista Caetano de Almeida Nogueira: Vocabulario das palavras guaranis usadas pelo traductor da “Conquista Espiritual”” do Pe. A. Ruiz de Montoya, Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, VM, 1879-1880, p. 114. hab. ‘Alem da negaso do Guarani antigo, nd-f usam os Apapoctva ‘também muito freqllentemente nd-iri, n-i G. ndipordt no bom ‘Ape.: napondini dialeto Apapociiva desconhece, tanto quanto 0 Guarani antigo, ‘uma conjungdo ‘“e’” para ligar conceitos da mesma ordem: ‘Ape.: mosquitos e bariguis — Aatiii, mbarigui avé (I,XXXIX.4.) significa literalmente: “mosquitos, bariguis também”. Nos textos ‘empregam-se com muita frequéncia as conjung¥es aépy ¢ aégui, Ambas 2B ) ) J ) eee significam propriamente “entdo, em segulda’’. Porém, por serem usadas exatamente onde no alemao — e no portugues — se diria “‘e”, e como absolutamente ndo se trata de enfatizar a sequéncia temporal mas apenas de uma conjun¢ao da argo anterior com a seguinte, traduai ‘ambas sempre por “e” A afirmagao com fa, como no Guarani antigo, & usada pelos Apa~ pociiva hoje apenas no ritual; enef'€ um exortativo “sim, pois sim’, e munca pode ser usado como resposta a uma pergunta. Neste caso, pare obter uma afirmativa, a pergunta ¢ repetida substituindo-se a particula pa peloma acima tratado. Em contrapartida, anyiine — ‘‘nao”, ¢ utlizado nas respostas, mesmo ‘em situagdes onde em linguas européias nao seria prOprio. “O que clamas, meu sobrinho?”” — ‘*Nao, estou chamando estas caudas listradas’” etc, (ILXXX.6,). Ou: “O que mataste, pai?” — “Nao, nao vas lé ver.” (LXXXIV.2,) ‘A énfase e 0 reforeo, semelhantes as formas do alemao “certo, bem, entao, pois” etc., so obtidos em Apapociiva através de ean. Aépy atti foi traduzido simplesmente por “‘e entao”’. Encontramos ainda: famendé cant — casemos entdo (LXXVIIL.), Tyvyryteatl ocambul ma — 0 iemdozinho mamou pois (.XLLR.), uupé cati jad ma upivé _ — vamos entdo com ele (I.XLIV.3.), tayreté catt oagd yo rupi — os discipulos vao entéo pela terra, LIV), ejipepoyupi teat — abre teus bragos pois (G.XL3,). [Nos textos anexos no se encontra nenhum empréstimo do: portu- gués, espanhol ou paraguaio, Mesmo a eruz, que agora é geralmente denominada pelo empréstimo curued (-cruz), tem o nome antigo yvyrd (paus) joagd (que se cruzam). i — meu pai (1.XXXIV.1,3 e XXXVI. 2,1) € olaii — ele desapareceu (I.XXXIV.S.) s80 expressOes que em outro contexto no se emprega. Os indios dizem que estas palavras so da lingua dos afidy. A ultima express%io tem uma conotac&o algo Omica, razdo pela qual ev a traduzi por “ele se evaporou””. ‘A lingua dos Apapociiva cada vez mais se mescla com empréstimos, Nao s6 denominam objetos de origem européia com nomes portu- gueses, como vai se impondo o vieio de conjugar verbos portugueses com particulas Guarani ¢ colsas semelhantes, especialmente entre os Guarani da reserva Araribé e do litoral paulista, Os bandos do sul 24 de Mato Grosso, por sua vez, incorporam elementos estranhos & sua lingua através do paraguaio. ree ranygua © Oguauve falam exatamente 0 mesmo dialeto que os “Apapoctiva. A tinica diferenga, quase imperceptivel, entre os dialetos estas trés hordas esté na cadéncia, Assim a entoardo da frase G.X.1 ‘em Tafiygua seria mais ou menos a seguinte: ‘I18j} pérd, canbd tjapéri, agitejy Ggita. Em Oguauiva: Tedj§ piri, cdindis iidpbtt, digubss Agua. rma cadéncia parece ter 0 dileto Chirguano, segundo o& excinplos interidos no tabaho de Erland Nordenskiold Indianer leben (Leipzig, 1913). O dialeto dos Canoeiros de Goias (C. de Maga- eae pay ao contri se earasterza por colocer 0 acento nas sibes nas gue so tonas naling gral: Dia: lingua geral: dra Canoeiros: ard (sol) Casa: nr bg ee coin Roupa’ abba » aobé (Os Oguauiva talvez articulem 0 ¢ e ch de modo fevemente mais duro que os Apapociva. Estas diferengas, em si jé insignificantes, sto atualmente, devido & completa mescla das diversas hordas, muito taramente perceptiveis; terZo desaparecido dentro de uma geracao até 0 tiltimo vestigio. 25 M1 RELIGIAO «¢ neste. capftulo vejo-me ocasionalmente obrigado a falar em “cistios, no estou com isto me referindo aos poucos missionérios que vieram ter com os indios, mas Aquela classe do povo brasileiro com. quem os Guarani mantém um comato quase exclusive. Essa gente afirma de si ser crst&; por isso, assim a chamare. A estipida presuncao religiosa destes cristdos chega a tal ponto, que 0 reconhecem como seres humanos seus correligionérios, consideran- do o assassinato de um indio pagdo to pouco criminoso quanto a matanga de um animal. Nao somente ouvi esta frase inimeras vezes pronunciada no Brasil, do Amazonas a fronteira do Paraguai, como: também, infelizmente, fui obrigado a assistir 4 sua consecugao. Em ‘margo deste ano*, os facinoras que trucidaram covardemente os indios Canela estabelecidos em Travessia, no estado do Maranhio, foram absolvidos pela justia, a despeitd dos esforgos do Inspetor de Indios daquele estado em thes aplicar a bem merecida punigao. Por isso néo se pode absolutamente condenar, nos Guarani, que procurem esconder sua religiao ao maximo, fazendo com que todos os ataques dirigidos contra ela resvalem no escudo de um cristianismo simulado. Assim como Heine se fez cristo para poder continuar sendo judku em paz, também o Guarani, sempre que possivel, deixa-se batizar. Ele ndo revelaré seu nome original, intimamente vinculado 4 religiéio paga, a um crist4o, por prego algum; serve-se de um nome portugués ou espanhol, afirmando obstinadamente jamais ter tido outro, Um segundo e muito eficaz mei de rechacar os ataques cristos + 191377.) a7 EEL’ weve V EE EYE EEL sua velha religido ¢ a exibiedo da cruz, imponentemente fincada, as ‘vezes em varios exemplares, diante, dentro e em cima da casa de danca, e com freqléncia também sobre os timulos. Ele apresénta ainda a0 cristo curioso as imagens dos gemeos Nanderyquey e Tyvyry como sendo “santos”; quando © visitante espirra, ele diz: “Deus Ihe ajudel””*; antes de cada frase ele exclama: ‘Nossa Senhora’’*; de tal forma que, envergonhada, a visita € obrigada enfim a reconhecer que estes animais desgracados tém feito progressos notaveis no tornar-se gente. Embora naturalmente o Guarani, em seu intimo, esteja to conven- cido da verdade da sua religizo quanto o cristao mais fervoroso, ele nunea é intolerante. Ele considera perfeitamente natural que pessoas com outra lingua e outros costumes tenham outra religido: tecé siginifica ao mesmo tempo religiao e costume; quando o Guarani fala portugues, traduz com muita propriedade orereed, ‘nosso costume ¢ religiéo”, por ‘“‘nosso:sistema”. Esta profissio de fé de tolerancia & comum & todos os indios. Falei muitas vezes aos Guarani do “sistema’’ dos Kaingjgn e Ofaié e vice-versa; todos sempre ficavam satisfeitos ao constatar alguma convergéncia. Discorria certa vez para 05 Guarani sobre a mitologia dos Kaingjgn, quando um dos ouvintes se permitiu um aparte algo desairoso; Neenguei, o pajé, repreendeu-o: “Nada disso, a estoria deve ter seu fundamento!”” Muito caracteristico também é ainda 0 arrazoado desenvolvido por meu pai adotivo indio, © pajé-chefe Joguyroqug, quando foi apresentado em Sao Paulo ao presidente do estado, em 1902: ““Entio vem o padre (cat6lico) visitar-me na aldeia; eu o recebo Go bem quanto posso, mando matar uma galinha para ele ¢, a noite, preparar sua cama. Na outra manha ele conta 0 que sabe, isto e aquilo; quando ele termina, digo eu: “Sim, Senhor" ele fica satisfeito € vai embora e diz: ‘Este capitéo sim, este € um bom capitdo!’ — Ai quando vem o ministro (protestante), também para ele mando matar uma galinha (quando tenho), e buscar mel no mato, porque nao temos acticar; ele me conta * Em portuguésno orginal. (N-T:) 28 também a sua estoria e eu ougo e respondo: ‘Sim Senhor, Sr. Ministro,’ E entdo ele fica satisfeito e diz: ‘Este sim, este & tum capitiéo de verdade!’ E assim os vou tratando a todos”. ‘Ao falar assim, 0 Guarani ndo quis absolutamente ridicularizar os esforeos catequéticos dos cristdos; ele o fez para, por seus principios, set digno do elogio do Grande Pai. Compare-se com Longfellow, o liltimo canto de The Song of Hiawatha, em que os Chippewa recebem ‘0s missionérios. Quando os Guarani estabelecem a sua aldeia na virinhanga de moradores brasileiros, como é usual, naturalmente jamais conseguem ocultar de todo a sua velha religifo. Pode-se ouvir nitidamente a mais, de meia légua de distancia, dentro do siléncio noturno da mata, os sons estridentes dos cantos de pajelanca, que evocam clarins, ¢ as pancadas retumbantes da taquara de danca. O cristo ai é acometido de certo pavor, diante desta prética misteriosa ¢ incompreensivel: afinal ndo se pode saber se estes sujeitos sinistros possuem mais conhe- cimentos de feitigaria do que admitem; e muito cristio fervoroso ja se confiow, em sua afligéo, a um pajé indio, quando nenhum santo mais The queria valer. 1. Almae nome Os Apapociiva nfo chamam a alms de ang, como fazem as demais tribos da lingua geral, mas de ayvucué. Nesta palivra nao me é com- pletamente claro o significado da silaba inicial ay: € possivel que corresponda ao ang: vu significa “‘brotar’”, e eué é a forma do pretérito. Ayvi significa no dialeto Apapociva, como ja referi “\ingua””, ¢ em Guarani antigo “‘ruldo™’. Ayvucué significaria algo ‘como ‘‘o sopro brotada (da boca)""". ‘Ao nascer uma crianga, poucos dias depois o bando se reitne em maior nitmero possivel, € 0 pajé encarregado da inicio’ ceriménia "6 Ela também pode se interpretada da manera sepuinte: ang — alma (Guarani antigo) que muda foneticamente em 4y no Apapociva: mu —~ sure; eué — pret Portanto: alma surgida (do corpo). 29 Favor no fazor anotardes on grifog 2 tinta ou a lapis nesta publicapdo para determinar que alma veio ter conosco". A alma pode ter vindo do zinite, onde vive o herbi nacional Nanderyquey, ou da “Nossa Mae” no Oriente, ou entéo dos dominios do devs do trovao Tupd no Ocidente, La, ela hé muito que existia pronta, ea tnica tarefa do paié comsiste em sua correta identificasio, no momento e lugar de sua chegada a terra, Ele o faz dirigindo-se &s diversas poténcias celestiais mediante cantos apropriados a cada uma delas, indagando-Ihes da procedéncia da alma e o seu nome, Isto exige sempre um tremendo esforeo da parte do pajé, até que consiga entrar em contato com os seres celestes, coisa als que 6 ¢ possivel em estado de extase, Assim, habitualmente logo apés 0 cair da noite, ele se acomoda e comega a cantar, sacudindo o maraca. No principio, s6 0 acompanham sua ‘mulher ou filha, a cantar e a marcar 0 compasso, batendo com a faquara de danga no cho. Pouco a pouco, porém, vao-se chegando todas as mulheres e moses para partiipar; sentam-se em linha, ao longo da parede, com 0 rosto voltado para o leste, enquanto os homens se ‘mantém distantes, E assim prossegue o canto, horas a fio. Entretanto 0 pajé vai recebendo, vez por outra, forgas magicas sobrenaturais das poténcias a que dirige o seu canto, que transmite a crianca. Parece que tles concebem estas forgas de modo bastante substantivo, algume coisa como um tecido, apenas invisivel aos mortais. O pajé como que apanha no ar com as mfos esta matéria, por cima de sua cabera, enrola-a centio a desdobra sobre a crianga. Ele também transmite sua propria forca magica a crianea: seja tirando-a como se desveste uma amisa, suspendendo-a pelas costes, seja tirando-a do seu peito, com tm movimento circular da mao sobre ele ¢ estendendo-e entto cuidadosamente sobre a crianga. ‘Ate aqui, @ ceriménia da nominago € uma ago mégica ge- nuinamente americana, sem neahuma intrusao de elementos estrangei- ros, Segue-se a ela, todavia, outro procedimento cuja origem ¢ indu- bitavelmente crista. O motivo cristZo que Ihe serve de base est de tal forma recoberto de antigos temas indigenas, que sua introduclo deve remontar a séculos, & epoca jesultica. Em primeiro lugar, dois padrinhos sao designados para a crianga, pelos pais ou pelo pajé; trata-se em geral de um casal. Ao passo que 0 pai da crianca se mantém alheio a ceriménia e se deita na rede a um canto da casa, praticando a “‘couvade" costumeira, € a mae, desvian- do 0 rosto, chora discretamente, a madrinka (chyangé) senta-se 30 deffonte a0 pajé com a crianga no colo, enquanto o padrinho (tuvyangd) segura com ambas as maos uma gamela em formade canoa com cerca de S0em de comprimento, 12cm de largura e Scm de profun- didade, Em sua borda esto coladas duas ou quatro velas de cera silvestre (fataendj); cla contém agua perfumada com tires de en- trecasca de cedro (yearaf), Para esta vasilha ergue-se na parte oriental da cabana, onde tem lugar 0 batizado, uma armacdo de forquilhas recobertas com a casca negra do cipé uembé; dispostos & sue direita e esquerda esto alguns bastOes alinhados na direcdo norte-sul, com cer- ca de I mde comprimento e grossura de 2-3 dedos, descascados em sua metade superior, sustentando velas nas extremidades (yvyrat), ‘Ao nascer do sol, o pajé comeca a cantar de modo particularmente solene, muito alto, muito devagar e sem cadéncia, completamente tomado pelo éxtase. Ninguém’o acompanha com cantos ou com as batidas da taquara, como ¢ costume nos outros cantos; apenas dle, sozinho, agita tremulamente o maraca, cujo som'ja morre num sussurro chiante, j4 recrudesce, alto e penetrante, numa demons- tragtio impressionante da excitagao que o possui. Este ¢ 0 feéngarat, que constitui 0 ponto culminante de toda danca de pajelanga (Cf. G.XIL1). ‘Assim cantando, 0 pajé “dé alguimas voltas dentro de cabana, seguido pelo padrinno com a pia batismal e este pela madritha com a crianca nos bracos. O percurso parte do oeste, passa pelo sul, 0 leste e co norte para retornar ao oeste. Quando todos retornam a sua posicao inicial, voltados para lest, o pajé umedece a palma de ambas as maos na agua da pia, aflorando com 0 dedo a crianca no alto da cebeca e 10 peito. O padrinho, em seguida, repde a vasilha na jé mencionada armacao, diante da qual o pajé executa alguns saltos, com as mios sobre a cabeca, & maneira de uma danga czarda. Uma cerimOnia chamada Jirojp cncerra este canto de pajelanca (como todos 0s outros): todos 0s presentes, dispostos em linha, com as maos levantadas, irclinam-ic perante o sol nascente, enquanto dobram levemente os joelhs. ‘© nome determinado deste modo tem para o Guarani uma significagao muito superior ao de um simples agregado sonoro usado para chamar seu possuidor. O nome, a seus olhos, & a bem dizer um pedaco do seu portador, ou mesmo quase idéntico a ele, inseparével dda pessoa, O Guarani ni “se chama” fulano de tal, mas el “8” este 31 ) ) wey Ee ENE EEE EY nome. O fato de malbaratar 0 nome pode prejudicar gravemente seu portador!! E por este motivo que pais cautelosos, especialmente quando vive com seu filho entre estranhos, guardam segtedo sobre 0 verdadeiro nome da crianga, atribuindo a esta um apelido qualquer. Conliego varios indios que nao sabiam seus proprios nomes, porque seus pais ‘morreram cedo sem havé-los confiado a ninguém, Nao conferem a minima importancia, porém, a seus nomes cristios, trocando com freqiiéncia aquele recebido no batismo catélico. Eles acham profundamente ridiculo que o sacerdote cristo, que sempre se jjulga superior ao pajé pagao, pergunte aos pais da crianga como esta se deveria chamar. Pretende que & padre sequer & capaz de saber deter- minar 0 nome certo da crianga! Dai o menosprezo do Guarani ao batismo cristo ¢ aos nomes portugueses. Entre os nomes Guarani, os mais freqiientes so os que se referem 2 pessoas, objetos ou agdes da mitologia ¢ do ritual. A estes radicais, apdem, ademais, avd para os nomes masculinos e cwfid para os femininos (nos Apapociva reduzido em fia-); aparecem ainda com freqiiéncia algumas outras particulas nesta posigao, tais como oguyro- Jie nis, cujo significado me € obscuro. A primeira encontra-se sobretudo nos nomes dos Guarani costeiros, as duas iltimas entre os Apapociiva. Pode-se acrescentar ainda ao nome o sufixo -jid. No uso didrio, as silabas prefixadas sio freqtientemente omitidas, as finais mais raramente. Nomes masculinos: Tupdjit: tupd — deus do trovao. Mbaracambet: mbaraedé — chovalho, mbe — pequeno, i — diminutivo, Jiguacapongjt: jiguacd — diadema de plumas, poriy — rastejar. Avapoty: pots — flor, borla de pluma. Poyijit: pots — micanga. Avajupid: jupt — subir,a — participio. ‘Nimuendajti: muendé — fazer (md), moradia (end). 1 Koch-Gritnberg fez exatamente a mesma observagio para os Siust do élo Igana (wei Jahre unter den Indianern, Berlin, 1909, 1. p. 184) e para os Kobéua (i. p. 147) 32 Entre os nomes femininos ha muitos compostos com zacud — taqua- ra, nome do instrumento de danea proprio das mulheres: Tacuapii: pu — roar. Tacuaverd: verd — brilhar. Tacuayvé: yvdy — cb. Napyed (cwhé-apyed): apyed — banco, Os nomes femininos Kaygui comecam frequentemente com cha- ‘mink, um composto de guachd, ““moga”, € 0 diminutivo mint. Os Apapociiva desconhecem tanto a denominacao guaché quanto esta forma do diminutivo, Os pajés sto capazes de reconhecer, pelo nome, se a alma de seu portador veio do oriente, do zénite ou do ocidente; eu s6 0 posso fazer nos pouguissimos casos em que o nome se relaciona direta- ‘mente com coisas proprias as divindades ali residentes. Tapejii se refere a0 caminho para leste (cf. LXLIV.). Napyed ver do oeste, pois apyed €0 banco em forma de canoa em que o deus ocidental do trovio Tupd Viaja pelos céus provocando as trovoadas (I.XLIII.). Estas criangas de Tupé se distinguem ainda por seu cabelo menos liso que 0 usual, tendendo a ser ondulado. A alma de tais criancas esta téo habituada 0 uso do apyed que se deve, agui na terra, fabricar-Ihes um 0 quanto antes, no qual possam sentar; ndo o fazendo, & impossivel que a.alma se acostume aqui: ela retorna a Tupd ea crianga morre, Para avaliar a imensa importincia que o Guarani confere a seu nome considere-se 0 seguinte procedimento. Quando todos 0s esforcos para salvar um doente'sio baldados, o iltimo recurso € a troca de nome: 0 pajé “‘acha”” um outro nome para o doente, e freqtiente que a isto se siga um batismo com 4gua da forma anteriormente descrita. A idéia € que 0 doente, ao tomar um novo nome, torna-se um novo ser, € que a doenca fica presa ao seu ser anterior (seu nome anterior), separando-se assim do re-nominado, que deste modo sara. Daquele momento em diante, o nome antigo no volta a ser pronunciado; deixa-se-0 cair no esquecimento 0 mais depressa possivel. Pouco depois do nascimento vem juntar-se a0 ayvucué um novo elemento, que completa a alma humana: 0 aeyigud. A palavra'€ um participio de acf, que significa como substantivo ‘‘dor”, e como adje- tivo e advérbio “vivaz, violento, vigoroso”. O acyigud € uma alma animal. Os Apapociva atribuem as disposigOes boas e brandas do 8 homem ao seu ayvucué, as mas ¢ violentas ao seu aeyigud, A calma é uma manifestagao do ayvucué, o desassossego, do acyigud. O apetite por alimentos vegetais e leves provém do ayvucué, por carne, do aeyigud, As qualidades do animal que contribuiram como aeyigud para a formagio da alma humana determinam o temperamento da 28508 em quest&0. PeScourayts a ima de meu finado padinho Ponoei, que desde os seus dezoitd anos esté paralitica dos membros inferiores, sempre afirme que seu acyigud & uma borboleta, Como cla suporta sua triste sina com perfeita calma e brandura, todos que a conhecem concordam com ela; também do ponto de vista europeu nao é possivel imaginar animal menos feroz que uma borboleta, Por outro lado, conheco uma Jovem, do bando Oguauiva, chamada Potd; ela é vivaz ¢ um pouco tnaldosa, © se tem por certo que seu aeyigud é 0 de um macaco-capt chino. Quando Poté ainda era bem pequena uma velha mulher paj ‘muito competente nestes assuntos, ouviu, certo dia, sair da nuca da ‘menina 0 assovio caracteristico desta espécie de macaco; a nuca é @ sede do acyigud. (© caso € naturalmente mais grave quando alguém possul o aeyigud de um animal predador. Os aguerridos KaingYga, inimigos dos Gua- rani, possuem invariavelmente um acyigud de jaguar* ou de gato do mato. O acyigud de predador predomina totalmente sobre 0 ayvucués por isso, os Kaingggn nfo séo “‘como” jaguares ou compardveis jaguares, ou simbolizados pelo jaguar: ndo, eles so intrinsecamente jaguares, apenas em forma humana. ‘No que diz respeito as experiéncias da alma durante os sonhos, 0s ‘Apapociva concordam com todos 0 outros indios em sustentarem {que se tratam de acontecimentos reais, capazes de interferir de modo decisivo no rumo da vida das pessoas. Ainda que os sonhos no pro- dduzam resultados imediatamente palpéveis, eles so experiéncias de onde provém seber e poder. Quem sonha sabe ¢ pode muito mais que laquele que nd soma; por isto, os pajés cultivam o sonhar como wma das fontes mais importantes de sua sabedoria e poder. Voltarei adiante a isto; aqui, quero apenas ilustrar com um exemplo o modo pelo qual ‘9 Guarani interpreta os seus sonlios,e se deixa guiar por eles. + Tiger no original eata-seevidentemente da onga ou jaguer.(N.T), 34 Certa noite, fui despertado por Joguyroquy,, meu pai adotivo, que chorava amargamente no outro quarto do rancho que dividiamos. Ontvi em seguida como ele sussurrava a sua mulher uma longa historia; finalmente entoou um canto profundamente triste, que terminou meia hora depois em meio @ choro e solucos; sua mulher também chorava alto, Assim cantando e chorando, Joguyroqui velou até o amanhecer. ‘Ja antes que surgisse o dia, numerosos Guarani dirigiram-se & cabana, atraidos pelo estranho canto ¢ @ espera de uma explicagdo. Com & discrigao que thes é peculiar, acocoravam-se junto a parede, mudos € quietos, aguardando paciente e humildemente que Joguyroquy fizesse ‘outra pausa e comegasse espontancamente a narrar: Ele teria visto, de noite, como os homens do seu bando se desavieram, pelejardo com armas; portando as insignias de capitio, ele surgira no meio deles para ‘os apartar; de repente, porém, recebera um golpe mortal de foice que © atirou ao cho. Os outros entdo teriam-no erguido e carregado até seu rancho, onde todo o povo ¢ os pajés se juntaram a sua volta enquanto agonizava; ai cantaram assim: — ¢ Joguyroquy novamente entoava a melodia fiinebre. Todos ouviram com aten¢o respeitosa ait que 0 canto mais uma vez se interrompeu, e Joguyroquy se dirigiu a mim, ue estava sentado com os outros, em tom desesperado: ‘“Voct mesmo v8, Twié, nao podemos continuar morando aqui, temos que ir para a Fazenda Boa Vista!” Voltando-se para sua mulher, que atrés dele quedava-se com olhos chorosos, disse: “Escuta, Nimdé, arvuma as coisas que € melhor irmos jé!”” Naquela época eu acabara de conse- guir convencer, a muito custo, Joguyroquy e mais quatro familias que fossem fundar a atual reserva de Arariba (cf. p. 13); eis que tudo parecia ir outra vez.dgua abaixo, Custou-me muito trabalho con- seguir, primeiro adiar e, enfim, impedir a fuga planejada por Joguy- roquy. Muitas vezes os indios tomam resolugdes inexplicaveis ¢ absur- das para um estranho, ¢ de cuja execucdo nao hé logica, por mais convincente, que 0s possa demover. Tal fenémeno se manifesta princi- palmente no desaparecimento misterioso de familias inteiras de indios, que habitavam em calma e em paz um lugar; ele quase sempre tem rigem em semelhantes sonhos. © Guarani fem muito mais metlo dos mortos que da morte. Quando se convencem que seu fim esta realmente prOximo, eles so, como todos os indios, de um sangue frio admiravel. Esta atitude der-va prin- cipalmente do temperamento dos indios © & consideravelmen:e refor- 35 ; P VuEcecus sada pelas suas conviegdes religiosas. © Guarani nao teme nenhum purgatério e menhum inferno, e esté absolutamente seguro quanto 0 destino péstumo de sua alma, O moribundo dé aos seus as dltimas ordens, com a maxima objetividade, que so rigorosamente executadas; até que Ihe falte a voz, canta seu canto ritual, se o possui, repudiando qualquer consolo, como o de que ainda ndo é chegada a sua hora, bem como qualquer remédio que se Ihe oferera. Ele ndo s6 tem que morrer, como também quer morrer — ¢ 0 mais depressa possivel. A separa¢do de’ seus entes queridos tampouco Ihe pesa muito, pois a fé no renas- cimento abre a perspectiva de em breve estar de novo entre eles, — E assim, infelizmente, a tantos vi morrer, com essa altivez que contrasta com a morte de muitos cristaos, que na sua ditima hora imploram 0 auxilio de todos os santos, Enguanto o moribundo aguarda seu fim com toda dignidade, os demais presentes se comportam de modo muito mais apaixonado. Logo que se tem a morte por iminente, reime-se, a5 pressas, todos quantos for possivel do bando. Os pajés comecam os seus caztos acom- panhados pelos demais, especialmente pelas mulheres, que os entre- cortam com choros ¢ solugos. E comum que diversos pajés cantem ‘a0 mesmo tempo, um deles junto ao enfermo ¢ os outros a distancia. AAs diferentes melodias ressoam de modo estridente e ca6tico, ¢ 0 cho- calhar compassado dos maracas esbate-se num silvo mondtono. Assim que 0 pajé, sentado face ao doente, constata que a morte sobreveio, muda seu canto, da melodia yryraijé, acelerada e com forte marcacao ritmica, para o solene fieéngarai (cf. p. 31), 0 que desencadeia uma confustio medonha. Os parentes se atiram uns nos bracos dos outros, chorando alto, ou se jogam no chio de brugos; outros correm para fora da casa e, pulando para lé e para cd, soltam uivos ritmados como latidos, para atrair os companheiros acaso ainda ausentes. No meio de todo esse barulho, soa clara ¢ solene a melodia do feéngarat, com ‘que o pajé acompanha a alma recém-partida para o Além. Em seguida procede-se 4 preparagdo do ataiide, Escolhe-se no mato um tronco Ge cedro da grossura necesséria, abate-se-o ¢ tira-se dele uma tora de dois metros de comprimento, de preferéncia cilindrica, Nesta se escava uma concavidade do tamanho exato do corpo. Coloca-se 0 caixo na casa do finado sobre duas forquilhas; deita-se nele o morto, vestido ‘com suas melhores roupas € com seus colares, ¢ se 0 tampa com um ppedaco de casca de rvore adrede preparado. Em seguida, amarra-se 36 firmemente 0 atatide com cipé nas duas extremidades. O morto & velado, entre prantos, pelo resto do dia e a noite seguinte; no outro dia & enterrado no cemitério préximo, com o rosto voltado para 0 leste. Ao lado do timulo fechado, o pajé canta ¢ faz com o maracé ou com as maos movimentos ascendentes em espiral. Sobre o timulo, os Guarani plantam em geral uma pequena cruz de madeira, que nos bandos do litoral muitas vezes é belamente entalhada e enfeitada nas extremidades com borlas de penas. Nos Guarani do planalto paulista, por outro lado, vi diversas vezes 0 pajé cortar uma vara da grossura de 1-2 dedos e de 1,50 cm de comprimento; media sobre ela o compri- mento do colar do falecido, descascando-a até aquele ponto; entéo fazia um entalhe na extremidade superior da vara, ali prendendo o colar, e a fincava na cabeceira do timulo. Colocava-se também uma cabaca com agua sobre o tamulo. Na reserva de Arariba nada disso mais ocorre. Os mortos Guarani dali t@m que ser enterrados, como todo mundo, no cemitério de Jacutinga, 212 km de distancia. Nao é brincadeira carregar um defunto por 12 km; além disso, os indios s&o da opini&o que num caso de morte a ordem & ‘suspensa temporariamente; € assim nos enterros acontecem excessos ocasionais, pois os Guarani, chegando cansados ¢ famintos a Jacutinga, abusam do alcool que lhes é solicitamente oferecido pelos comerciantes. Numia dessas ocasides, em 1912, o Guarani Avaretey foi esfaqueado Por seu proprio cunhado tomado pela embriaguez. Este tipo de‘ coisa jamais ocorria quando vigoravam os antigos costumes indigenas. A lamentagdo pelos mortos igualmente s6 se realiza de forma muito ate- nuada, pois um funciondrio do governo esté geralmente por perto ou pode surgir a qualquer momento; isto perturba os indios, que entao reprimem 0 quanto podem quaisquer manifestag6es de sentimento. Logo apos @ morte a alma torna a se fracionar em seus dois compo- nentes, 0 ayvucué ¢ 0 aeyigud, Tratemos inicialmente do primeiro, O ayvueué de criangas pequenas, nas quais ainda nao se havia obser- vado nenhuma disposicéo atribuivel a0 acyigud, e que portanto néo havia tido nenhuma relagdo com a alma animal, retorna incontinenti para a Terra sem Mal, Ivy mardeg. Neste percurso, a alma deve apenas Drestar ateneto para que, ao chegar ao Andy, no 0 acorde, Este deménio, de que falarei adiante, pendura sua rede de través no ca- minho, ¢ ali deitado, dorme, A alma tem que passar por cima dele 37 com todo cuidado, pois x ele acorda, agarra-a ea devora. Em seguida, tla chega até a coruja Yrucured; mas esta deixa passar as almas das Griangas sem as molestar. Atinge finalmente a Terra sem Mal, Yvy marde}.- Maré & palavra que ndo mais se utliza no dialeto Apapo- “rava; em Guarani antigo significa ““doenca”, “‘maldade”, “‘caltinia’’, Sjutoetristeza”, etc. Yvp significa “terra”, e ef € a negagdo “‘sem"’. Lé vivem estas almas, de acordo com a sua indole natural, alimen- tando-se quando muito de eaguijy' (cerveja de milho) ¢ de hidromel. ‘Sucede diferentemente com a alma dos adultos; elas no podem aicangar o Yo mardef, seu destino fica aquém deste: Mesmo que tenham pasado com sucesso pela rede do Andy, 20 chegarem a coruja tata, gritando, faz acudirem as almas dos jf falecidos, que acorrem fm multidao, cercam o Tectm-chegado e, saudando o parente ou velho amigo, nao o deixam seguir adiante. Ele é obrigado a permanecer entre les, ela vive mais ou menos como cé na terra. Os Apapoctiva chamam Ss zimas desta dltima categoria de tavyeués a palavra é um pretérito de tay — perder, extraviar-se. ‘ras ents ame que aana nfo consegue chega fo fasmente ‘a0 Além; este € 0 caso sobretudo quando a pessoa falece dle morte reperitina e violenta. Sua elma entdo fica perambulando pelos lugares em que morava ¢ andava em vida, especialmente & noite, e se cons- titui em grave perigo para os viventes por sua Ansia de se aproximar tdeles e com eles se comunicar. Maxime quando morre um membro Ge um casal ou de um par de noivos, 0 outro esta exposto 20 perigo dde que a alma lhe aparega de noite para abracé-lo, 0 que, naturalmente, acarretaria a morte “Assim, a alma de Avarete), cujo assassinato seferi a p. 37, desen- cadeou medo e panico em todos Apapociiva do Araribé, em 1912, Fla vagava a volta da casa da mora com quem Avaretey deveria casar-se, varias vezes surgiu diante da casa do assassino, cuja mulher, irm& de ‘Avaretey, via-a aparecer e desaparecer no umbral. Meu proprio cama- ‘ada, o indio Gudi dos Kayoua, quase me fuzilou certa vez, tomando-me pela alma de Avarete) ao topar comigo no mato noite fechada, A casa Eo assassino — que era entdo, no s6 a melhor, mas a unica boa casa TEE. Nordenskiold apresenta, ds pp. 256257, tes exemplos da mesma consepyEo para of Chane. 38 de toda a reserva — foi abandonada; ninguém a queria nem de pre- sente, até que se incendiou de modo misteroso. Em suma, toda popu- lapdo estava mum sobressalio que nfo cessava de crescer. Vendo que 0 medo de espectros poderia levar a desastres ainda mais graves, ¢ senio completamente initil querer chamar os indios&razto, fui entfo pessoalmente ter com’os dois pajés que naguela ocasifo estayam na reserva, e indaguei prudentemente o que eles achavam necessario fazer neste caso. Mas tanto meu pai adotivo Toguyzoqu como meu par- ticular amigo Neénguei hesitavam em enfrentar 0 caso. Afinal, aquele fltimo dispOs-se a tentar conjurar a assombracdo. ‘A questio era, antes de mais nada, a de saber se o fantasma era o doayvucué ou doacyigud do assassinado. No primeiro caso ele deveria ser capturado pela danca de jaagde entregue 20 deus do trovo Tupé, que o conduzitia a tera dos tayyeué, Netnguei, por diversos motivos, considerava certo tratar-se do ayvucué,, e conformemente iniciou seus preparativos, Dias mais tarde, 0 bando quase todo se reuniu na casa de dancas, comegando os cantos de pajelanca. Enquanto alguns reci- favam seus cantos, Netngueljazia na reds, sonhava; © que nos disse em seguida foi pouco animador: estivera com o nosso grande pai Nan- deruvued, do outro lado do céu, lb encontrara a alma de Avaretef; escutara como ela, perante o criador, elzmava por vinganca contra o assassino e seu bando. Nanderuvued esiava prestes a dar ouvido as aueinas, Os Apapoctiva entfo erguerame para a danga de pajelanca, Neénguei formou dois grupos, cada um com trés homens, postan- do-os na parte dianteira da casa. Num desses grupos estava eu, no outro meu “‘irmao mais novo"? Guyrapeja. Dias antes, Neénguei havia confeccionado seis bonitas miniaturas de arco e flecha; agora, ele as firava de sua armagao e as repartia entre nés, Formamos dvas linhas de rts, uma face & outra, ea danga foagd comecou. A palavra joaed se compée da raiz aed, “‘cruzar’’, e do prefixo reciproco jo, signifi- cando assim “‘entrecruzar’’. Netnguef, entiio, entoou com voz forte e desafiante um canto ao deus do trovdo, na toada do yvyrai jd, com forte marcacio ritmica, Arcoe flecha ra mio esquerds, maracé na direita, nossos dois grupos, partindo das extremidades da casa, come- garam a se aproximar, trotando no compasso (cf. Fig. 2). Chegados 20 meio, os dois grupos se entreeruzaram cortendo pata os cantos da casa, onde rapidamente fzeram mein volla para de novo carregar um contra 0 outro. Os trés dangarinos de cada grupo deviam correr exata- 39. VeEvev vi bl oi ee EEE E EEE EVEL HEE EES Dancadores dej Fig. 2. Danpaoapa dos Guarani-Apapocuve mente em linha (¢ ndo um atrés do outro); como 0 espavo no local do encontro era relativamente exiguo, era preciso considerdvel destreza para cruzer 0 outro grupo sem esbarrdes; tal sb era possvel realizan- do-se uma torgio do corpo no momento exato, de umm quarto de volta, dde modo a passar com 0 ombro direito por entre dois dancarinos do ‘outro grupo, Os Apapociiva realizam este movimento corporal com lua consumada elegincia. A medida que Netnguei ia conduzindo 0 canto cada vez mais depressa e selvagemente, a danca ficava mais dif- cil e mais extenuante, Ele convocou entao espectto; e se via literal- mente como Nesnguel o forgava com o maracé a ir para o nosso meio, indicando-lhe passo a passo o caminho. No torvelinho da danga 0 espectro perde, por assim dizer, a orientago, quedando abil ali, até que Tupd, ouvindo o canto que Ihe édirigido, tem 2 atencto des- pertada ¢ o conduz ao seu local de destino. ‘Para que o espectro respeite os dancarinos de joaed e nao Ihes faca voléncia, estes vao armados de arco e flecha. A danga tornava-se agora to répida que entonteciamos; 0 mais moco dos dangarins, desorien- tado, foi jogado como uma bola de um lado para o outro, entre nds, durante alguns segundos. Curvados, o brago com 0 maracé esticado para cima, atiravamo-nos ofegantes uns pelo meio dos outros, envo! tos numa nuvem amarela de posira. Haviam-nos dado antes, solen mente, hidromel para beber; assim, sudvamos de dar d6, embora vestis- semos 0 minimo possivel além dos adornos de pena. Quando Neéngues interrompeu afinal a danga, e 0s grupos se apartaram, meu irm&o ‘mais mojo Guyrapefit desabou completamente exausto n0 cho, vor- tando com violéncia. — Se a0 menos nosso esforco tivesse produzido 0 resultado desejado! Mas a coisa iria se tornar ainda mais louca, ‘A assombragio niio apenas néo desapareceu, como passou a se comportar de modo ainda mais terrivel nas noites seguintes, e a ficou claro: esta nfo era o relativamente inofensivo ayvueué do assassinado, que ja devia estar ha muito tempo em paz entre os tavycué; ela era 0 petigoso anguéry, em que se transforma postumamente 0 acyisud, a alma animal. Os Apapociva tém um pavor indizivel do anguéry. A palavra ¢ composta de ang (Guarani antigo), “‘alma’’, ¢ do pretérito cuera (Guarani antigo), que foneticamente se transforma em cuéry, zuéry. Os Apapociiva atuais, afora este caso, nao usam a forma ndo- Teduaida do pretérito, como tampouco a palavra ang para “alma” Renguci, assim, dera-se mal com sua danca joard ¢ Joguyrogus, al intrigante que era, para quem aquele rival orgulhoso sempre havia sido uma pedra no sapato, riu-se a socapa. Poucos dias depois, noite alta, cle havia chegado da estagto de Jacutinga com alguns compa- theiros; todos estavam excitadissimos; Joguyroquy jogou-se na rede fe comecou a cantar. Os outros contaram que no caminho de volta, tendo ele ficado para trés na passagem do ribeirdo Monjolinho, fora atacado pelo anguéry, na forma de um grande céo. Seus companheiros, embora ouvissem 0 barulho da luta, tiveram medo de se aproximar; Joguyroquy finalmente conseguiu, gragas aos seus extraordindrios conhecimentos magicos, libertar-se do agressor ¢ alcangar os demais. Sua roupa trazia os vestigios da peleja. So sei de uma coisa: meu vene- rado pai adotivo Joguyroquy, toda vez, que ia & estagtio, costumava tomar um desjejum tardio mas “reforgado”; no ribeirao Monjolinho, bem junto a estrada, morava o alemao Friedrich Wingers, dono de muitos ees ferozes. Outrossim, Joguyroquy jé havia mostrado em outra ocasio 0 enorme pavor que tinha do anguéry: um grito longin- quo, repetido e enexplicavel, na mata noturna, fizera-o levantar ime- diatamente seu acampamento de caga ¢ correr de volta & aldeia*. Nap h4 porque supor que ele tivesse inventado a estoria-da luta com 0 anguéry; creio firmemente que, no seu pileque, ele tomou de fato 0 bicho de Friedrich Wingers pelo espectro. Uma coisa ele mesmo réco- nheceu: era mister pér fim na estoria, ¢ imediatamente encarregou-se disto. ‘Com um anguéry, porém, procede-se muito menos delicadamente que com um ayyucué. Ninguém tenta corrigir seus desvios de modo amigavel, ao contrario: procura-se elimind-lo como a um animal peri- 12050 — isto é, se se ousa tanto, se alguém tem coragem de embarcar em to perigosa aventura. Se no, prefere-se simplesmente abandonar o lugar. Também no Arariba, naquela ocasiao, havia um bom nimero dos que opinavam ser muito melhor largar tudo e partir depressa para Mato Grosso, para o litoral ou para qualquer outro lugar. A eliminaca0 propriamente dita do anguéry ao é tarefa propria do pajé principal, reca- indo sobre um ajudante especialmente designado por ele para tal (oyvyrai + alta’ no vexto original. (N-T). a 44). Para escolher um yvyrai jd, Joguyroquy encontrou as maiores dificuldades, pois ninguém queria assumir 0 perigoso encargo. Con- venci afinal um rapaz afeigoado a mim, mas Joguyroquy declarou ‘nao ter confianga nele e que seria melhor eu mesmo ir. Era s6 isso que eu estava esperando, e concordei imediatamente. Joguyroquy, con- tudo, logo encheu-se de dividas, temendo que a coisa acabasse mal para mim, seu “filho"’. Mas fiquei firme, e os preparativos se rea- lizaram, Minha mée adotiva NimOa teceu-me uma faixa larga, com longas borlas nas pontas e bordada por um rico enfeite de penas. Joguyroquy, entrementes, fez trés flechas comuns de caca, de cana de cambaiiva, ponta dentada de madeira e penas de jacu como guias. Ele convocou entéo mais dois homens e, como parecia ser necessdria a presenca de uma mulher, também minha madrinha. Esta veio com sua melhor amiga, trouxe-me ainda uma testeira, e me pintou com urucu para a luta iminente, Joguyroqu tomou seu maraca, um dos homens o max chado, 0 outro uma foice, O pajé mandou-me carregar e levar minha carabina Winchester; testeira acrescentou a faixa, comps meus Jiagad (colares), pendurando em mim (para seguranga adicional) um que Ihe pertencia; entdo, ao anoitecer, pusemo-nos a caminho da casa abandonada do assassino, onde o anguéry tinha sido observado com mais freqiléncia. Esta casa distava cerca de 1/km da aldeia de cima, na encruzilhada de duas trilhas: uma, pela qual vinhamos, descia o céorrego do Arariba; a outra saia da estacdo de trem, cortando a pri- meira em Angulo reto. Naquela época a casa ainda nfo houvera sido queimada, O pajé, a passo solene, seguia a frente, cantando em voz alta para dencro da mata. Vez por outra, voltava-se para os homens mandando-thes bater com suas ferramentas nos troncos das arvores, para que resscassem e assim atraissem oanguéry. ‘Tomamos posicao no pequeno pasto defronte a casa, ¢ Joguyroquy comecou a cantar em voz alta, girando ameagadoramente em circulo seu maraca. Logo notei por seu comportamento que o espectro devia estar proximo, pois cle visivelmente fazia os maiores esforgos para atrai-lo, com a forga magica do seu maracd, da mata para a clareira. Sua excitago aumentou consideravelmente quando pareceu notar que, com a plena instalagdo da noite, o espectro realmente se aproximava cada vez mais. Logo que 0 soube em lugar aberto, mandou imediata- ‘mente os dois homens para os pontos em que as j4 mencionadas trilhas a Ve Ueevurvre emergiam do mato, fazendo plantar uma flecha em cada um deles. ‘Como havia, porém, quatro saidas, ¢ ele tinha feito apenas trés flechas, ‘mandou fincar no quarto caminho ‘a foice, impedindo assim ao anguéry qualquer escapatoria. © medonho visitante aproximava-se lenta e inexoravelmente; ao menos, era o que gemia Joguyroquy em meio a seu canto: “Ojaré ma curt, anguéry! Nderechdi pa, Tujd? Oti raé!”” — “Ele j4 chegou mais perto, 0 anguéry! Nao o vés, Tujé? Ele real- ‘mente esta vindo!””. Mandou que eu avancasse, e pulava como se qui- sesse pegar 0 anguéry pelos flancos com seu maraca. Pelo modo como cle 0 defrontava, saltando a esquerda e a direita, pude deduzir 0 Iugar exato onde 0 espectro deveria estar — perigosamente perto, alias. De repente, Joguyroquy saltou para o meu lado, agarrou-me pelos combros por tras e, gritando com uma voz esganicada pela emocio, estendeu a mao com 0 maracé & nossa frente, para dentro da escuridao notuma: “Upépy! Upépy! Embopi voi, Nimuendajti” — “Para 18, para la! Atire rapido, Nimuendaji!” — Trovejante, o tiro partiu na diregdo indicada: mas eu obviamente havia mirado mal; Joguyroquy sgritou com maior desespero ainda: ““Upépy, Tupd, embopti jevs catt”” — “Para lé, Tujé, atire mais uma vez!” — Mirei, entdo, com todo cuidado no ponto exato indicado pelo maracé, e de novo um tiro ecoou no universo. Quando baixei a arma, o pajé suspirou aliviado: ‘‘Aipd cati!” — “Agora sim!” — Ele estava quase chorando, Os outros, exceto minha corajosa madrinha, tinham-se valentemente afastado, no momento critico, uns trinta passos. Quando voltamos triunfantes a aldeia, onde entrementes o pessoal havia suado sangue de medo, foram exatamente tais her6is que com ‘mais detalhes narraram a forma curiosa com que oanguéry se compor- tara ao levar o primeiro tiro, “‘na perna”; ele quase me pegara, no ‘© houvesse Joguyroquy detido com seu poderoso maracé até que eu atirasse pela segunda vez; contaram, ent&o, como no segunds tro ele se desintegrou para sempre. O mais importante, enfim, foi que a hist6- ria da assombracdo havia sido resolvida para a satisfacao geral. Acconcepso Apapociva da composictio da alma em ayvueué ¢ aciy- ‘gud parece, & primeira vista, muito peculiar. Ela seria altamente sus- peita de ter uma origem estrangeira, se se a pudesse compreender como forma de explicacao para as boas ¢ mds disposigoes do homem. £ 4“ Obvio que nao se trata aqui de um contraste entre o Bem ¢ 0 Mal, mas do contraste entre os diferentes temperamentos humanos: ao fleumé- tico-melaneélico se contrape 0 sanguineo-colérico. Na divisao clanica da tribo dos Kaigygn encontrei a mesma tendéncia a explicar as dife- rengas-de temperamento. Os membros do cla Kamé representa apa- rentemente 0 temperamento fleumético-melancolico, 0s do cla Kafiert 6 sanguineo-colérico, diferenca que aliés se manifesta nos dois pais- ancestrais ep6nimos, na lenda Kaingjgn dos gémeos. Compare-se a isto a lenda Bakairi dos gémeos em Karl von den Steinen, ou qual- quer outra que nos tenha sido transmitida em detalhe: a diferenga de temperamento dos gémeos sempre se expressa do modo acima referido. Falarei agora do renascimento ou reencarnaao (olcové jevs), que constitui um dos mais peculiares artigos de f& dos Apapociiva, O que pode ser reencarnado é oayvucué. As circunstancias que podem causar © renascimento so, em primeiro lugar, o proprio desejo do moribundo, sua “vontade de viver” Quando algutm morte tendo deixado um ardente desejo sem rea- lizar, ou se ficaram na terra pessoas que amou muito vivamente, seu ayvucué no empreende a viagem para o Além, sobretudo se a morte {oi sibita e violenta, sem que nenhum canto de pajé tenha conduzido a0 reto caminho a alma que partia. Neste caso, ela perambula em desassossego nas proximidades de seus entes queridos, até que seja capturada pela danca de joacd e entregue a0 deus do trovao; ou é reencamada no corpo de uma crianca, através de uma mulher de sua parentela. ‘Uma tristeza demasiado intensa dos parentes também impede que © ayvucué tome seu caminho para o Além, o que determina sua reen- carnagdo. O pajé encarregado da identificagdo ou busca do nome reconhece logo um ayvueué renascido, e seus parentes se alegram 20 saber que aquele pelo qual choravam encontra-se de novo entre eles. Devido 4 alta mortalidade infantil entre 0s Apapoctiva,- ouve-se com freaiiéncia, quando uma crianga morte logo apés nascer: fulando 86 voltou para nos ver, porque choramos muito por sua causa; mas niio pOde mais se acostumar aqui ¢ por isso voltou a nos abandonar. ‘Acontece por veses que a alma dos pais de uma pessoa renasce nos filhos desta, Tais criangas, que dessa forma se tornam, por assim 4 dizer, seus proprios avés, so chamados tujé — ‘‘velho"". Nao apenas conhego varios desses fujé, como meu prdprio pai adotivo Joguyroquy chama-me de preferéncia assim. Quando, certa vez, indaguei cautelo- sathente por quem ele me tomava, afinal, ele retrucou, esquivo ¢ de mé vontade: “E voc nao sabe?” Com esta, nunca mais o perguntei, ¢ fiquei sem sabé-lo até hoje. Quero ilustrar a crenga na reencarnacdo por meio da desericAo de um acontecimento; isto esclarece, melhor que formulacdes gerais, constantemente & mere® de excecdes, a concepgiio dos Apapociva quanto a este aspecto. Como j mencionei a p. 13, 0 missiondrio Pe. Claro Monteiro rea lizou em 1902 uma tentativa de exploracéo do rio Feio, para o que obteve a participaco dos Apapociva — principalmente do principal Araguyraa —, que naquela época residiam neste rio. Entre os expedi- ciondrios encontrava-se também Avajoguyroa, genro daquele lider. Ele nao queria abandonar seu sogro em téo perigosa empresa, e embora fosse muito apegado & sua jovem esposa, entao prestes a dar a luz, acompanhou 0 missionario em sua aventurosa expedicao. Muito antes de chegarem a seu objetivo, a escassez de viveres os obrigou a voltar; mas, j4 no primeiro dia de volta, a primeira das duas canoas caiu numa emboscada dos indios Kaingjgn, que da margem do rio a cobriram de flechas. O missionério tombou morto na canoa, © 0 capitao na margem, trespassado por uma flecha. Avajoguyrod defendia-se desesperadamente. Atingido por uma flecha no ombro, disparou contra os agressores sua garrucha de dois canos, jinica arma que os Guarani possuiam, e se atirou ao rio, nadando para a margem. Quando estava subindo 0 barranco, outa flecha Ihe acertou 0 qua~ dril; arrancou a haste, mas a larga ponta de ferro ficou presa. Assim fo encontraram, na margem, seus companheiros em fuga. Esforca- ram-se em vao para extrair a ponta da flecha que impedia 0 ferido de andar. Afinal um dos indios, chamado Rapa, pegou 0 ferro com os ddentes ¢ conseguiu retiré-lo com um forte arranco. Com isto, ele prova~ velmente arrebentou o 0ss0, pois Avajoguyrod nao foi mais capaz de qualquer movimento. Os companheiros decidiram carregé-lo consigo em sua fuga pelo mato; mas 0 ferido implorou que o deixassem ali Geitado, visto que ndo agttentaria 0 transporte naquele estado — quem sabe a dor, mais tarde, diminuisse sozinha, permitindo-Ihe segui-los devagar. Deixaram-no entaéo num esconderijo ¢ fugiram a pé para a 46 aldeia, perseguidos pelos Kainggn; 1 chegaram, mais mortos que vvivos, com as terriveis novas. Nunca mais se achou vestigio de Avajo- guyrod. Em 1906 a ima daquele infeliz, minha mae adotiva Nim6a, teve um filho, Dias apés o nascimento, levaram a crianga para 0 rancho de meu padrinho Poftochi, no Avari, onde se dariam a descoberta do nome ¢ 0 batismo, Para este acontecimento reuniu-se no rancho todo bando de Joguyroquy, aquela época morando disperso; la estava também 0 j@ mencionado Rapa, aquele que arrancara a ponta da flecha do quadril de Avajoguyroa. Ele tomou 0 pequeno nu em seus bragos, observando-o, sorridente, por todos os lados. De siiito, porém, devolveu-o & sua mie ¢ escondeu 0 rosto nas mios, correido para trés do rancho, onde sentou-se a chorar amargamente com 0 rosto virado para a parede. Passou um bom tempo até que, dominando-se, pOde informar 20s companheiros que o cercavam 0 motivo de sua excitagdo. Mandou que trouxessem 0 pequeno, e chamou a atengio de todos para o sinal vermelho escuro que ele tinha no ombro € 10 quadril, Iugares em que Avajoguyrod recebera as flechadas. Nao havia o que duvidar: Avajoguyrod voltara a terra pelo ventre de sua inma Nimoé, para rever sua mulher e conhecer a filha que s6 viera a0 mundo apés a sua morte! 2, Deuses, Demdnios, Herdis e grandes Pajés Estas quatro classes de poténcias nao se distinguem muito nitidamente entre si; contudo, néo tenho dividas de que 2 religizo dos Apapociva conhece representantes de cada uma deles. O que poderia causar admiracdo, ai, € a existéncia de deuses. A mitologia dos Apapociva, todavia, tem pelo menos uma figura que por sua posigio ¢ atuagao exige o titulo de um deus: Nanderuvugd, *‘Nosso Grande Pai”. Nanderuvyuci surge como primeiro, ¢ 0 faz de modo verdadeira- mente imponente: com uma luz resplandescente no peito ele se des- cobre, sozinho, em meio as trevas. Meu informante ditou-me cuaray — “sol”, em lugar de ends — “Tuz!"; mas que isto ndo se referia a0 sol propriamente dito, ¢ sim a uma outra luz, depreende-se do fato de que Nanderuvugdi carrega ainda hoje tal luz em seu peito, ao passo que 0 sol surge independentemente, Sobre um suporte em forma de cruz, ‘ele dé a terra o seu principio” € a prové com agua. Entiio 0 a d ) ) Eevee erervebereevvcny Fee een ener nner ere eSe Terraaee Pee EEE LS criador “‘acha’” de repente a seu lado seu auxiliar Nanderti Mbaecuad (LIL). © papel que este personagem desempenha na solugao do pro- blema da criagdo da mulher j4 demonstra que ele tem muito menos poder e importincia que Nanderuvugti: ““Achemos uma mulher!” exige o criador, e Mbaecuaé nao sabe fazer nada sendo outra per- guna: “Como podemos achar uma mulher?” — ‘*Na panela!”” decide Nanderuvugti. Ele faz uma panela, cobre-a, ¢ passado algum tempo ordena aMbaecuad que v4 verificar. Este encontra de fato uma mulher eatraz consigo. “Assim, hé agora trés pessoas sobre a terra: Nanderuvucti, Nanderii Mbaecuad ¢ a mulher Nandees (Nossa Mae)*. Mas Nandecs, a prin- cipio, ndo € em absoluto uma divindade, e sim uma mulher comple- tamente terrena. Mbaecuad a deflora por ordem de Nanderuvued, mas ela 6 esposa de ambos: sempre que um se ocupava da criac&o, cla ficava com 0 outro, “assim como ainda hoje as vezes acontece"” (como ouvi certa ver. um narrador acrescentar a guisa de explicacao). Ainda que ambos possam uma s6 esposa em comum, querem ter pelo menos um filho proprio: por isso Nandecy fica gravida de gémeos Lu ‘Dai em diante Nandeni Mbaecuad sai de cena para nunca mais voltar. 'Nko sei para onde foi, nem que papel hoje desempenha. Dizem que no foi para t4o longe como Nanderuvugt. Diante de seu pomposo nome, “Nosso Pai, 0 Conhecedor das Coisas”, sua trajetéria € bastante modesta. Por vezes, seu papel na criaco me pareceu concebido como se a ele coubesse mais a elaboracdo dos detalles, enquanto a Nande- ruvupli cabia a criago dos fundamentos. Seu papel na génese da mulher** n8o contradiz este ponto de vista. | Nanderuvusi esti agora sozintio com Nandees. Mas, por causa da incompreensao desta, tal convivéncia nao dura muito. O criador havia exgiido sua casa no centro da terra, ¢ perto dali iniciou sua plantagao. A medida que Nanderuvusti avangava, derrubando a mata, a ropa atras dele plantava-se sozinha, brotava, ¢ quando ele retornou do trabalho jé havia milho verde. Ele mandou que Nandeey fosse buscar © termo para “mulher” aqui nao &a forma usual “Frew”, mas “Weib™, forme raicae de conotagdes bibles. (N.T.. + Brau" no original. (N.T.) 8 rilho roga, mas esta, nao querendo crer que ja houvesse frutos, ¢ jrritada por uma solicitagdo que the parecia insensata, acrescentou rmaldosamente: ‘Nao estou gravida de ti, mas de Mbaecuad” (L.1V.). "Ai Nanderuyugit se revela um verdadeiro Guarani: ndo responde, ¢ muito menos castiga diretamente a desobeditncia; mas quando ‘Nandeo§ afinal apanha seu cesto € vai A roga, ele poe seu enfeite de ppenas, toma 0 matacé e a cruz e se vai, para nunca mais voltar de ‘modo duradouro. Ali onde seu caminho para o ctu se separa daquele que conduz & morada do Jaguar Originatio, finca no chao a cruz, torcendo 0s bragos desta de modo a fechar o caminho que tomou € a deixar aberto 0 que leva ao Jaguar ([.V.). De acordo com uma outta Versdo, que anos atras me foi contada pelo velho Oguauiva Pataf, cle teria fechado a trilha para o céu por meio de duas penas de arara fincadas & maneira de uma cruz de Santo André*, Esta € provavel- mente a versio mais antiga do mito. "A mulher fica completamente entregue a sua sorte, ¢ quando pro- cura seguir a pista do marido, & devorada pelos jaguares; os sémeos, porém, s0 milagrosamente salvos. Nanderyquey, 0 gémeo filho de ‘Randeravued, esforga-se em vao para reconsttuir 0 corpo de sua mie ‘com os restos que encontra (ILXVLL), mas seu préprio pai leva a alma dela consigo e "a torna forte de novo para si”” (:XLIIL); ¢ assim ela vive ainda hoje no Tonginquo Oriente, além do mar, na “Terra sem Mal” ‘Nanderyques, 0 filho de Nanderuvuctt, ria ehtzo a danga de paje- langa para se comunicar com 0 pai desaparecido (I.XLI.). Este surge eleva consigo 0 filho. A pedido deste, o pai Ihe entrega suas armas ¢ os objetos de pajelanga, ¢ a0 fazt-lo delegavthe 0 cuidado da terra, Por este motivo Nanderyquey toma seu assento fandedno, isto & no znite (XLIL). Nanderusucti, por sua vez, retira-se para as mais istantes lonjuras, onde reinam as trevas eternas, “‘para deter a per- digo” — como Joguyrovyjit me ditou (I-XLI.), Isto quer dizer que cle ndo governa sobre a terra, mas que, assim como foi seu criador, sera também seu destruidor; os meios para a aniquila¢lo, as varias desgracas (mibaemegud), esto em suas maos: basta que assim decida, * Cruzem °X". (NT). 9 ¢ tudo terminard. Sua casa esté envolta na noite eterna, mas ele, dei- tado em sua rede, ainda tem no peito aquela luz resplandecente que Ja lhe brilhava no trabalho da génese ¢ que agora the ilumina os arredores. © Morcego Originario, Mbopt recoypy, que devoraré o sol, pende da cumicira da casa; 0 destruidor dos homens Jaguarovs, o Jaguar Aaul, esté deitado debaixo da rede; e uma grande serpente est na entrada da casa. Isto me conduziu naturalmente até os deménios da mitologia Gua- rani. Sempre tive a impressio — no se pode indagar sobre estas coisas — que ao menos alguns deles erain coevos do criador Nanderuvucti, quando nao mais velhos que ele. Assim, meu texto I menciona logo na segunda frase.do primeiro capitulo os Morcegos Eternos (Mbopi recoyp§), imediatamente ap6s o aparecimento de Nanderuvugii, ¢ alids, no plural: ojeguerod — “‘brigavam entre si'” Jo — reciproco) Como as trevas, € provavel que estes morcegos-deménios tenham existido antes de Nanderuvugi. Enquanto animais noturnos, sho inimigos dos astros luminosos, ¢ 0s devorariam se Nanderuvucti ndo 0s detivesse mantendo-os em sua casa (ef. acima). Ainda assim, as vezes, eles se atiram sobre o sol ou a lua, causando os eclipses. Até hoje, Nanderuvugti 05 t8m chamado de volta gracas 4 apresentagio dos pajés; no entanto, quando ele tiver decidido a ‘aniquilagao do mundo, ele préprio despacharé os morcegos-deménios, dando inicio & perdigto pela destruigso do sol ¢ a “queda da noite” (ppt 04, cf. LLXLIL). Também nas lendas Bakairi de Von den Steinen 0 morcego- deménio Semimo & um dos mais antigos®. Ao lado dos morcegos-dem@nios aparecem os Jaguares Originarios, Jaguareté recoyps (LLV.f.), a saber: Jaguareté Jarfi, a Avo-Onga, com sua turba indomavel de netos (imembyretd), no meio da qual se des- taca a Onga Prenhe, Jaguareté curd ipuruivae. Néo so, a rigor, dem6- nios verdadeiros, mas apenas os antepassados dos jaguares atuais; les ndo so nem imortais, nem se destacam por terem forcas magicas. Ao contrério, sto-lhes proprias somente uma selvageria e uma estu- pidez. brutas, ocasionalmente revestidas de um matiz de bondade. A Av6-Onea, no comeco, mostra compaixao pela Nandeey extraviada; "9 V. 4. Steinen, Durch Zentratbrasitin, Leipag, 1886, p. 282. 50 ‘mas seus netos a matam, ¢.ela mesma reserva os gémeos ainda nao nascidos como petisco tenfo para sua boca desdentada (I.IX.). Mas contra a esséncia sobrenatural das criangas divinas os jaguares nada podem, ¢ todas as tentativas de maté-las fracassam (I.X.). S40 0s gémeos que, to logo os passaros Ihes dao a conhever a verdadeira storia, vingam 0 assassinato da mae em toda a estirpe dos jaguares. Eles os atraem para um mundéu (I.XXIII.) ou para dentro de uma extensao de agua, cuja mergem fazem recuar diante dos nadadores mediante 0 cabresto yrymomé, de modo que os jaguares caem vitimas dos animais aquaticos (I.XXIV). Somente a Onea Prenhe consegue alcangar a margem, onde pare dois filhotes, dos quais descendem todos os jaguares hoje existentes, Jaguarovs, o Jaguar Azul, & contudo um demOaio legitimo, um ser completamente sobrenatural ¢ imortal. Seu lugar, hoje em dia, @ debaixo da rede de Nanderuvued, onde aguarda o comando do deus para se arremessar contra a humanidade (I.XLI.). Ble teria a aparéncia de um belo co, grande mas nfo gigantesco, e seu pélo seria de um maravilhoso azul-celeste, Quando ele descer um dia do ctu, cantando, nem 0 guerreiro mais destemido escapara de sua voracidade. Certa vez ouvi contar que ele j& havia descido ¢ eliminado quase toda es- pécie humana, numa ocasiao. Sé restou um menino, sentado a chorar em meio as ossadas de seus pais e irmaos; diante dele estava o monstro, prestes a se langar sobre a rresa. Af o menino pds no fogo a ponta de uma langa e, quando Jaguarovy deu o bote, enfiou-Ihe a ponta incan- descente da arma goela acentro. Enquanto o corpo caia morto, a alma do deménio subiu cantando ao céu novamente, Erland Nordenskidld menciona que os Chiriguano the indicaram “Yahuarohui" © 05 Chané “Yahuéte”” como causadores dos eclipses do sol ¢ da lua'*; Montoya narra o mesmo dos antigos Guarani das Missbes (Yagud ot Quaragi}. Parece que, de todas as hordas Guarani, somente 0s Apapociiva e seus parentes prOximos atribuem os eclipses 20 Morcego. Apenas no capitulo XXX da lenda da criacdo aparece uma figura cujo nome veio a ganhar popularidade absolutamente imerecida, pois "4 Erland Nordenskiold, mdianrleben, Leipz 1913, 294, eee ds EEEEEE EEE EE EVELYNE eu’ | {oi aplicailo pelos vethos missionérios como denominagao do diabo em todo o Brasil: Aridy, 0 ““Anhanga”” dos Tupi. Os Aridy certamente ja existiam antes dos gémeos, visto que nunca ouvi falar que tivessem sido “‘achados” (ojo) por alguém — isto &, criados do nada. Eles so, pelo menos no comego, mortais como os jaguares, e no s6 S80 desprovidos de qualquer forea magica excepcional, como carevem de qualquer esperteza humana. S40 brutais, mas no téo selvagens a pponto que se deva temé-los como aos jaguares. O papel que a mito- logia Apapoctiva thes reserva ¢ de um burlesco tal que no encontrei equivalente em nenhuma outra lenda indigena. Eles s4o vitimas fre- tientes do humor maldoso dos gémeos, que, alias, expressamente reconhecem os Aftdy como seus semelhantes: ‘‘Oied (Kia) e) (no) vaé (que sA0), vot (ent&o) pa (se) Randé (nossos) vaé (que sao) co (14) uy Gerra) re (sobre), isto é: "Ser que ndo ha alguém semelhante a nds sobre a terra?” pergunta Tywiry a seu irmio gémeo Nanderyquey € este responde: “ied (ha) vaé (que sio)”, isto & “Hi-os”, etc. (XXX). ‘Nanderyques faz entao os Quatf (quatis) e convida os “‘tios” a virem matarem os “rabos listrados” (0 quati tem na cauda varias listras escuras): pejued vaenangué (0s que deveis matar). S6 um aparece, € ‘manda que seus “‘sobrinhos”’ subam a arvore e sacudam os Quati para baixo; ele, furiosamente, mata-os a pauladas até o ultimo, Nanderyques, observando desconfiado 0 comportamento feroz de seu ‘‘tio”, adver- te-O; “Cuida que tu nfo me mates também!"’. O Andi, apesar de lhe as- segurar que no 0 faria, mata Nanderyguey quando este vinha descendo a arvore, e Ihe mete 0 corpo no fundo do cesto, debaixo dos Quatt, para levé-lo consigo. Como 0 mato espesso nao 0 deixa passar com a pesada carga, ela pousa o cesto para poder abrir uma picada. Neste momento, 0 irmaozinho de Nanderyquey aproveita e tira o morto do cesto e, soprando-Ihe no alto da cabeca, ressuscita-o. Nanderyquey entio vinga-se com malicia, pondo uma pesada petra no fundo do cesto em seu lugar. Em seguida os gémeos se escondem em cima de uma drvore (I.XXXI até XXXII). Ardy carrega sua suposta presa para casa; 1a chegando, atira-se exausto na rede e, gemendo arfante: “piry-piry”, abana-se com uma ventarola de atigar fogo. Profbe as suas duas curiosas filhas que inspe- cionem o eesto, dizendo que tinha trazido uma cabega-preta (por causa 52 dos eabelos negros de Nanderyquey)), A reduplicagao lacdu-cdu* tem ‘um sabor cOmico; em geral, o texto atribui aos Afidy expressdes que soam grotescas aos Apapociiva (ef. p. 24 sobre a expressdo oiai!) ‘As meninas, ndo obstante a proibigdo, examinam o cesto ¢ s6 encon- tram a pedra (I.XXXIV.). Afidy retorna entao a cata do desaparecido,, achando em seu lugar um veado, que os gémeos haviam feitols. Perse- gue-o com a sanha costumeira, mata-o e volta para casa satisfeito, (LXXXV.) (Os gmeos o seguem e, através de magia, fazem nascer flores sobre suas respectivas cabecas, soprando; assim enfeitados, sio recebidos alegremente pelas filhas do Afidy. Apesar da hipécrita relutfncia de Nanderyquey, as meninas insistem para que eles também adornem seu pai com uma flor no alto da cabeca. Os gémeos 0 escalpam e esfre- gam urucu e pimenta na ferida, mandando-o sentar 20 sol. "“Tente aguentar, pail”, pedem-lhe as meninas. Mas 0 A/idy se levanta ¢ corre, e corre, até que seu ¢ranio estoura, surgindo do seu cérebro maruins e mutucas (ILXXXVI-XXXVI). ‘As duas meninas sdo desposadas pelos gémeos. Quando estes, portm, fazem a queimada do campo, as longas cabelecas das filhas do Ady, (80 compridas que se arrastam pelo cho, incendetam-se. Flas fogem em diregZo a uma lagoa, mas antes que a alcancem suas caberas estou ram, pondo com isto um limite & praga de mosquitos © mutucas (LXXXVIIL-XXXIX).** Imediatamente em seguida outro Afy cai vitima das brincadeiras de mau gosto dos g8meos, como castigo por t-10s perturbado quando cagavam passarinhos. Conta-se que este Ady trazia seu pénis preso a0 corpo por um longo cordao dé cintura, ¢ que ocasionalmente o tifava a margem de uma lagoa, para ali lavé-lo, sacudindo-o. Entao 0s gmeos maceraram pimenta na gua da iagoa; quanto mais 0 Ady + *'Cabega preta”.(N.T.) "5 Da madeita de um cedro2ee0; por iso até hoje um veado nunce engords, ** Coma jd notara Recalde ne versio castelhana (NimuendajG, 1978: 73) este res tado do estouro das cabegus d8s menines effy & um canto contradiério com © que precede. (NT) 3B

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