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ROLAND BARTHES SADE, FOURIER, LOYOLA Siva is Fontes Marti +. 182 - 183 187 -. 187 +. 188 AS CORES eee Cena, maquina, escritura A linguagem ¢ 0 crime . A homonimia. . Striptease, © pornograma . we vee ees 189 A linguagem de Augustin . seer eee 190 Complacéncia da frase. oo... ee... se 191 Porem ordem. eee. eevee ceeee eee 192 Auoca » 193 Oditado . - 195 Acadeia.. 197 A gramética ., 198 Osiléncio, . 199 O pé da pagina. . 200 O ritual 201 Nomes préprios . 201 O roubo, a prosti = 202 Costura . + 203 A linha vermelha, 204 O desejo de cabega + 204 Sadismo oo... eee eee : ++ 205 O principio de delicadeza ...... fee eee 205 VIDAS o.oo eee cee e cee eeee es 207 De Sade. veces 209 De Fourier. ++ 223 vu | Preféicio | De Sade a Fourier, 0 que fica de fora é 0 sadismo; de Loyola a Sade, éa interlocugio divina, No mais,.a mesma escri: _ ‘ura: mesma vollipia de classificacio, mesma fiiria em recortar mesma voldpia de classific Fria « coipo eristico,o corpo vitimal, a alma humana), mesma ob-, sessio numerativa (contar os pecados, os suplicios, as paixdes -a da imagem (da i 2°05 pidprios erros da conta), mesma pri tagio, do quadro, da sessio), urdidura do sistemersacial,exdtico, fantasistico, Nenhumn desses trés autores ¢ respiravel;odos poem QLprazes Felicidade, a comunicagao na dependéncia de uma orem inflexivel ou, para ser ainda mais ofensivo, de uma som- binatéria. Af estio os trés reunidos, o escritor ma! utopista € © santo jesuita. Nenhura provocacio intenci ha nessa reunio (se provocagio houvesse, antes estaria em tratar Sade, Fourier e Loyola como se no tivessem tido fé: em Deus, —> | Relond Barthes | ‘no Fuvuro, na Natureza), nenhuma transcendéne}a (0 sédico, © contestarario ¢ 9 mistico nao sio recuperados pelo sadismo, pela revolusio, pela religiio) e, acrescento (é 0 sentido desse preficio), nada de arbi io: cada um destes estudos, embora jd publicado (em parte) separadamente, foi sado para juntar-se aos vizinhos neste livro: tetas, dos fundadores de linguas. A lingua que fundam nao é, evidentemente, uma lingua lingiiistica, uma lingua de comunicagio. E uma lingua nova, atravessada pela lingua natural (ou que a atravessa), mas que 56 pode oferecer-se & definigio semiolégica do Texto. Isto nao impede essa lingua arti (talvez por ser ela, neste caso, fuan- dada por autores antigos, tomada numa duiplice estructura clis- sica, a da representagio e do e , diiplice caprura a que ten- ‘a escapar a produgio moderna, de Lautréamont a Guyorat) de seguir em parte as vias de constituigao da lingua natural; ¢, em sua atividade de logoteras, os nossos trés autores, parece, recor- reram &s mesmas operacées. A primeira é isolar-se, A lingua nova deve surgir de um va- /2io materials um espago anterior deve separi-la das outras lin- guas comuns, ociosas, ultrapassadas, cujo “rufdo” poderia per- curbé-lar nenhuma interferéncia de signos, para claborar a lingu com cuja ajuda o exercitante poderé interrogar a divindade, Loyola exige o retiro: nenhum rufdo, pouca lu, a solidéo; Sade fecha os seus libertinos em lugares invioliveis (Castelo de Silling, convento de Sainte-Marie-des-Bois); Fourier decreta a deca- déncia das bibliotecas, seiscentos mil volumes de filosofia, eco- | Pepsi | nomia, moral, censurados, degradados, relegados a um burlesco museu de arqueologia, servindo para discrair criangas (da mes- ma maneira, Sade, 20 levar Juliette e Clairwil para o quarto do léudio, cancela com um trago de desprezo todos os carmelica exéticos anteriores que formam a biblioteca vulgar do monge). A segunda operagio ¢ articular. Nao ha Ifngua sem signos ,S7 distintos. Fourier divide o homem em 1.620 paixdes fixas, com- bindveis mas néo transforméveis: Sade distribui 0 goz0 como as palavras de uma frase (poscuras, figuras, episédios, sessbes)s Loyola parcela o corpo (vivido sucessivamente por cada um dos cinco sentidos), como recorta a narrativa cristica (repartida em 08", no sentido teatral da palavra). Nem tampouco hé linguas em que esses signos recortados sejam retomados em uma combinatéri tam, produzem continuamente regu criagao pela sintaxe, pela composigao (cermo retérico e inaciano): Sendo os erés fetichistas, apegados a0 corpo, parceladi constituigéo de uma.coralidade niopode ser para cles senfio.a somagio de inteligiveis; nao ha indiatvel, nao ha qualidade ir- redativel do gozo, da felicidade, da comunicagao: nada hd que iio sea falado para Sade para Fouts, Brose Psiqué devem ser articulados, exatamence como para Bossuet (que retoma Inicio contra os misticos do inefivel, $0 Joao da Cruz e Fénelon), a aga; substieuem a oragiio deve passar obrigatoriamente pela linguagem. SN A terceira operagio & ordenar: jf ndo s6 combinar signos(s* celementatesy fia submmerer a grande seqiiéncia erdtica, eudemo- nista ou mistica a uma ordem superior que jé nao ¢ a da sin- C3 x | Roland Barthes 4 ‘taxe,mas a da métricaj o discurso novo é dotado de um Ordena- dor, de um Mestre-de-Cerimonias, de um Retérico: em Inicio, € 0 diretor do retiro; em Fourier, algum pacrio ou patroa; em Sade, éalgum libertino que, sem nenhuma preeminéncia que nao a de uma responsabilidade passageira e meramente pritica, es- tabelece posturas ¢ ditige o andamento geral da operagio eré- XS ica; hé sempre alguém para regular (mas ndo: regulamentar) ja, mas esse alguém nao é um sujeito; regente do episddio, ¢.apenas um de seus momentos, no pas- “-SdeGm morfema de recgdo, um operador de frase, Assim, 0 Tito postulado por nossos trés autores ndo é sendo uma forma de planejamento; é2 ordem necesséria a0 prazer, 3 Felicidade, & So exercicio, a sesso, a o1 ina (da mesma maneira, coda forma do texto incerlocugio nunca é mais do que o ritual que ordena seu prazer); mas essa economia nao € apropriativa, permanece “louea’, diz unica- mente que a perda incondicional nfo & a perda descontrolada: & necessério justamente que a perda seja ordenada para que pos- sa tornar-se incondicional; a vacdncia final, que éa negagio de toda economia de receptagio, s6 se obtém mediante uma eco- nomia: o éxtase sadiano, o jibilo fourierista, a indiferenca ina- ciana nunca excedem a lingua que 0s constitui; nao é um tito materialista aquele para além do qual nada ha? Sea logothésis se ativesse a um ritual..isto é, a uma retérica, afindl, o fundador de lingua nada mais seria do que 0 autor de uum sistema (aquilo a que se chama coniumente um Aildsofo, ou _-—sibbio, ow pénsados). Sade, Fourier, Loyola sGo outra coisa: so formuladores (a que se chama comumente escritores). E preciso, | Pfc na verdade, para fundar até o fim uma lingua nova, uma quar- ta operagio, que ¢ eairalizay® que & wetaliza? Nao é enfeiar a representagio, é ilimitar a linguagem, Embora engajados os a representagio, ¢ilimiar 2 linguagen G5 por sua posigio historica, numa ideologia da representagzo € do signo, o que os nossos logotetas produzem jé é, mesmo as- sim, texto: quer dizer que ao estilo cho (cal como se pode en- contrar nos “grandes” escritores) souberam substituir o volume da escritura, O estilo supée e pratica a oposi¢io entre fundo € Torma; €0 compensado de uma subscrug > rece no momento em que se dé um escalonamento de significan- 1 6 iA a escritura acon- tes tal que nenhum fundo de linguagem mais possa ser iden- tificado: por ser pensado como uma “forma”, o estilo implica jana, 86 conhece “insistncias”) E 6 isso que fazem os = nossos trés classificadores, COffi6 quer que se julgue o estilo de- les, bom, mau ou neutro, pouco importa: eles insistem, e, nes 2/% sa operagéo de pesagem e de pressfo, no param em parte al guia; 3 medida que o estilo se absorve em escritura, o sistema s¢ desfaz em sistemitica, o romance em romanesco, a medita-“~>, glo em fantasistica: Sade j4 ndo é um erético, Fourier um uropista e Loyola jé nfo é um sant no resta senfo um cendgrafo: aquele que se dispersa através dos bastidores que planta ¢ escalona até o infinito. Se entio Sade, Foutier ¢ Loyola sao fundadores de lingua, 10 mais ), € justament i emo mals que isso, €j ne para nada dizer, para observar uma vacincia (se quisessem dizer alguma coisa, a lingua ling! tica, a lingua da comunicasio e da filosofia bastaria: poder-se-ia xu resumi-los,0 que no é 0 caso de nenhum deles). A lingua, cam podo consistén nificante, poe em cena relagées de insisténcia, néo de dispensa-se 0 centro, 0 peso, o sentido. A Logo- shésis menos centtada € certamente a de Fourier (as paixdes ¢ 0s astros estio incessantemente dispersos, ventilados), e & sem diivida por isso que &2 mais euférica, Para Loyola, claro, vere- mos adiante, Deus ¢ mesmo a Marea, o acento interno, 0 vin- co profundo, ¢ nao sc dispurard esse santo a Igreja; entretanco, tomado pelo fogo da escritura, essa marca, esse acento, esse vinco finalmence faltam: um sistema logotético de extrema sutileza, & forga de chicanas, produz ou quer produzit a indi- ferenga semantica, a igualdade da intertogagao, uma mantica em que a auséncia de resposta toca & ausénck de respondedor. E para Sade hé certamente algo que pondera a lingua e faz dela uma metonimia centrada, mas esse algo € a porra (“Todas as imoralidades se encadeiam, e quanto maior niimero delas reu- quer dizer, literalmente dlsseminacio. \ Nada mais deprimente do que imaginar o Texto como um objeto intelectual (de reflexo, de andlise, de comparacio, de teflexo etc.). O Texto & um objeto de prazet. O goz0 do Texto muitas veres é apenas estilistico: ha felicidades de expressio, ¢ clas no falram nem em Sade nem em Fourier. Por vezes, en tretanto, o prazer do Texto se realiza de maneira mais profunda (¢ € entéo que se pode realmente dizer que hé Texto): quando © texto “literério” (0 Livro) transmigra para dentro de nossa xv | Pfc | vida, quando outra escritura (a escritura do Outro) chega a es- crever fragmentos da nossa prépria cotidianidade, enfim, quan- do se produz uma co-existéncia. O indicio do prazer do Texto!! €entéo podermos viver com Fourier, com Sade. Viver com um vida o autor néo significa necessariamente cumprir em nos programa cragado nos livros desse autor (essa conjungio nao seria, no encanto, insignificance, pois que constitui o argumen- to de Dom Quixote; é verdade que Dom Quixote é ainda criatura de livro); nfo se trata de operar o que foi representado, 10 com Sade, ste niio se trata de tornar-se sddico ou orgi riano com Fourier, orante com Loyola; trata-se de fazer pasar ara nossa cotidianidade fragmentos_ de “inte rovindas « cexto admirdo (edmirado justamente por- | que se difunde bem); trata-se de falar esse texto, nao de 0 se) deixando-lhe a distancia de uma citagio, a forca de inrupgao| de uma palavra bem cunhada, de uma verdade de linguage: nossa prépria vida cotidiana passa a ser entio um teatro que tem. por cendrio © nosso proprio hébirar social; viver com Sade é, em dados momentos, falar sadiano; viver com Fourier ¢ falar fourierisca (viver com Loyola? — Por que nao? Mais uma vez, nao se trata de transportar para 0 nosso interior contetidos, convic~ ses, uma fé, uma Causa, nem sequer imagens: trata-se de re- ceber do texto uma espécie de ordem fantasistica: saborear com Loyola a vohipia dé organizar um retiro, de forrar-lhe o tem- po interior, distribuir os seus momentos de linguagem a serie- dade das representagées inacianas mal conseguem abafir 0 goz0 da escritura). 1 Ralond Barth | O prazer do Texto comporta também uma volta amigivel do autor. O autor que volta nfo é por cerco aquele que foi iden- tificado por nossas instituig6es (histéria ¢ ensino da literaeura, da Filosofia, discurso da Igreja); nem mesmo o heréi de uma biografia ele é O autor que vem do seu texto e vai para dentro da nossa vida no tem unidade; € um simples plural de “en- cantos”, o lugar de alguns pormenores rénues, fonte, entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto descontinuo de ama- bilidades, em que lemos apesar de tudo a morte com muito ‘mais certeza do que na epopéia de um destino; nao é uma pes- soa (civil, moral) € um corpo. Num desprendimento de qualquer valor produzido pelo prazer do Texto, o que me ver da vida de Sade nfo € 0 espetéculo, embora grandioso, de um homem optimido por uma sociedade em razio do Fogo que cle carte- 88, ndo é a grave contemplagio de um destino, é, entre outras coisas, essa maneira provengal com que Sade chamava “ill:” (senhorita) Rousset, ou milli Henriette, ou mill! Lépinai, é seu xegalo branco quando abordou Rose Kelle, seus tiltimos jogos com a pequena roupeira de Charencon (na roupeira é a roupa que me encanta); 0 que me vem da vida de Fourier & seu gos- t0 pelos “mirlions” (bolinhos pasisienses com aromaticantes), sua simpatia tardia pelas lés as, sua morte entre os vasos de « flores; o que me vem de Loyola nao sio as peregrinagées, as vi- 80s, as macerag6es ¢ as constituicées do santo, mas somente “os seus belos olhos, sempre um pouco marejados de kigrimas”.- Porque, se ¢ necessério que, por uma dialética arrevesad, haja no Texto, deser de todo sujeito, um sujeito para amas tal x 1 Peco | sujeito ¢ disperso,.um_pouco.como as cinzas que se atiram 20, vento apés a morte (go tema da urna. da estela, objetos fortes, fechados, instituidores de destino, opor-se-iam os estithagas de lembranga, a erosio que s6 deixa da vida passada alguns vin- 0); se eu fosse escritor, j4 morto, como gostaria que a minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biégrafo amigo de- senvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas infle- 66s, digamos|"biogralemas] cuja distingao c mobilidade pode- riam viajar fora de qualquer destino e vir tocar, 8 maneira dos 4tomos epicurianos, algum corpo futuro, prometido & mesma dispersio; uma vida esburacada, em suma, como Proust soube escrever a sua na sua obra, ou entio um filme & moda antiga, de que estd ausente toda palavra € cuja vaga de imagens (esse flumen orationisem que talvex.consista “o lado porco” da escritu- ra) é entrecortada, & moda de solugos salutares, pelo negro apenas escrito do intertitulo, pela irrupgao desenvolta de outro signifi- cante: 0 regalo branco de Sade, os vasos de flores de Fourier, os olhos espanhéis de Indcio. “S6 as pessoas que se enfadam precisam de ilusées”, dizia Brecht. O prazer de uma leitura garance-Ihe a verdade. Lendo textos nfo obras, exercendo sobre eles uma vidéncia que nao nteiido", a filosofia, mas tio~ somente a sua felicidade de escritura, posso, esperar arrancar Sade, Fourier ¢ Loyola de suas caugées (a religito, a utopia, 0 Ihes vai procurar 0 segredo, 0 sadismo); tento dispersar ou eludir o discurso moral com que se tratou de cada um deles; sé trabalhando, como fizeram eles proprios, sobreas linguagens, descolo o texto da sua moo de | Rol Barthes | garantia: 0 socialismo, a fé, 0 mal. Por isso mesmo obrigo (pelo menos ¢ a intengio tedrica destes estudos) a deslocar (mas nao a supri ir calvez até a acentuat) a sesponsabilidade social do ‘texto, Alguns acreditam que podem, com toda segurangay se “tuar o lugar dessa responsabilidade: seria 0 autor, a insersio des- se autor em seu cempo, sux historia, sua classe, Eneretanto, ou tro lugar permanece enigmatico, escapa, por ora, a qualquer esclarecimento: Esse obscurecimento se dé justamence no momento em que mais se vitupera a ideologia burguesa sem nunca perguntar de que lugar se fala dela ou contra ela: seria o espaco do nio-discurso (“nao falemos, ndo escrevamos; militemos")? Seria © de um contradiscurso (“dis- cursemos contra a cultura de classe”), mas constituido entao de que tragos, de que figuras, de que argumentagGes, de que residuos culturais? Fazer como se um discurso inocente pudesse ser mantido contta a ideologia equivale a continuar acreditando que a linguagem pode nio ser mais do que o instrumento neu- tro de um contetido triunfante. Na verdade, nfo hé hoje Shum lugar de linguagem.ext Tingaagem vem dela, a ela retorna, nela fica fechada. A tinica res- 2 ideologia burguesa: nossa posta posstyel,ndo ¢ nem o enfrentamento nem a destruigio, ‘mas somente 0 roubo: fragmentar o texto antigo da cultura, da iéncia, da literatura e disseminar-Ihe os tragos segundo for “mulas irreconhect s, da mesma maneira que se disfarga uma — mercadoria roubada, Diante do antigo texto, tento encio apagar a falsa eflorescéncia sociolégica, histérica ou subjetiva das de- terminagées, visbes, projecbes; escuto o arrebatamento da men- xv 1 Peficio 1 sagem, no a mensagem, vejo na obra triplice o desdobramen- 10 vitorioso do texto significante, do texto rerrorista, deixando soltar-se, como uma pel repressivo (liberal) que quer sempre encobri-lo. A intervengao Social de um fexto (que nao se realiza necessariamente no tem- po em que se publica esse cexto) nao se mede nem pela popu Jaridade da sua audiéncia, nem pela fidelidade do reflexo eco- ndmico-social que nele se inscreve ou que ele projera para al- guns socidlogos avidos de recolhé-lo, mas antes pe que lhe permite exceder as leis que uma sociedade, uma ideo- Jogia, uma Boson Gio pata por-se de acordo consige mesons num belo movimento de inceligéncia hist6rica. Esse.excessoem, nome; escriturs ” Ce iim, 0 sentido recebido, o.discurso Junho de 1971. xix

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