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pans 0H o © {eo|ugzaw apepaueplios ep 0 squed @ jelo0s 0 sesuad & vyoseyew 1eyotw iosajjew [aqo1w osayew [24> CoI[oq Op cedeansijsueas, Y fy 1109 war RPOUp aan Por uma ética da estética Os anos passam ¢ este livro fica cada vez mais atual. Neste Brasil do comego do século XXI, atolado em escAndalos de corrupgao e na crise das ulopias da esquerda, Michel Maffesoli aparece como um ordculo que enfrentou os lugares-comuns da modernidade em busca de pistas interpretativas para a compreensio dos fenémenos sociais. A Transfiguragao do Politico & um libelo contra todos 0 tipos de poder, inventério implacdvel dos desca- minhos da libido dominandi, Ensaio libert muncia as estratégias milenares das estru se em beneficio préprio Fora do cartesianismo da relagdo otimisma/ essimismo, Miche! Maffesoli descreve com paixéo 8 caminhos encontrados pelos individuos e pelas massas no cotidiana para resistir a0 horror do poder. Diante da crueldade da dominagao, pintada sem complac8ncia, a genialidade dos pequenos atos que, sem produzir revolugdes, geram contrapoderes ponsaveis pela sobrevivéncia dos exclufdas, os ‘ternos excluidos da histéria, Sao eles que corajo- samente correm dos esquemas perfeitos. 0 sociéloge do cotidiana demonstra como a razdo na modernidade foi transformada em instru mento de controle, expulsando e condenando todas as manifestagies n0-racionais, afetivas, da ordem do indtil, a cultura do sentimento. Meffesoli mostra que o homem, ser simbélico, néo pode ser reduzido a Ngica do uti dimenso m ica, poética, sonhadora. Manifesto A Transfiguragao do Politico A Tribalizagio do Mundo objetivo sera nao ser repetitive. Colocar livros e autores que ainda néo esto mos a preguiga de lado. Como diria 0 filosofo, "escaneio e publico no 4shared; logo existo" Como dizem, alguns autores pesquisam anos, e merecem uma gratificagdo por tal zelo para com o conhecimento. Aqui vai minha gratificagao: MUITO OBRIGADO! Vou ler seu exemplar como forma de gratidéo por seu incrivel trabalho. "Nao tenho ouro nem prata, mas tudo que tenho te dou’: Muito obrigadol!l. A gratificagéc pecuniaria deixe pra depois, visto que os homens para pensar sua existéncia devem estar com as necessidades materiais satisfeitas, vocés nao precisam do dinheiro. Isso é um elemento acessdrio & existéncia! Ao comprar um livro, o autor recebe da editora uma micharia que nao daria nem para sobreviver. Ou seja, baixem, leiam e nao paguem nada! Essa sera sua forma de gralificagao! A Transfiguracao do Politico A Tribalizagao do Mundo Michel Maffesoli Tradugio de Juremir Machado da Silva BZ © faitions Grasset & Fasquele, 1992, © Mecdent, 1987 (Capa: itor Hugo Turuga Projte Grice: FOSFOROGRAFICO/ lode Sbardeloto eV H.Turuza Eatoragdo; Cltde Sbadelto. Revi: GabilaKaca Editor: Luis Gomes Dados interacionais de Ctalgacdo na Fuca Bibi mist Tadas as ttelts desta edigdo reservados & EDITORA MERIDIONAL LTDA. Julbo 2005, Imprsso no Ersil/Pinted in Bail ra respansdvl: Rosemarie Bianchessi dos Santos GRB 10/787 Sumario Adverténcia 1.0 politico e seu duplo : 1.A forga «imaginal» do politico - 23 2. Aaperfeigao» do Uno - 35 3..Os prapriclitios da sociedade - 44 4. A implosio da sociedade programada - 57 IL. A socialidade altemativa 2. Liberdades intersticiais - 78 3. Secessio plebis - 91 IIL A cultura do sentimento 1, Ambiéncia, ambigncia - 105 2. A forga viva do sentimento - 115 3, O supérfluo necessério - 126 TV. O ritmo social ... Y. O «nés» comunitario Abertura Apéndice 65 103 on 133 Isl 205 213, Mas os que controlem olonginguo. assistem sortindo docemente a todas as batalhas, como monges ‘que puseram em seguranga © tesouro do convento. thes resta vigiar. RM Rilke Diério florentino ADVERTENCIA Surpreendev-me muitas vezes que a grande gldria de Balzac fosse de passar por observador; ‘sempre me parecera que 0 seu principal mérito era de visionrio, ¢ visionario apaixonado, Charles Baudelaire Inventa-se um mundo cada vez que se escreve. Trata-se, na realidade, indo ao encontro da etimologia, invenire, de fazer vir a luz do dia 0 que jé existe, vivido amplamente na experiéneia cotidiana, ‘embora os habitos de pensar impegam-nos de vé-lo. Nesse sentido, uum livro nada ensina que ja nfo se saiba, ou que ja ndo se deveria saber. Basta que dé a pensar, sirva de acompanhamento a reflexio, favorega a ruminagdo face ao mundo misterioso circundante. Efe~ tivamente, éfatigante querer sempre dizer a verdade sobre uma épo- cca, Por que nio enumerar, de preferéneia, os enigmas postos e assim fazer um livro em congruéncia com ela? Em alguns dos seus traba- Thos, Sigmund Freud destaca «o clemento de ctivida que comportam» suas andlises, E precisa: «Fiz disso a minha di momento em que 0 frivolo encontra acolhida nada despre: no seja intl ser essa dangarina da teoria sabendo pres De resto, numerosos so os que ndo hesitam mais em analisar asociedade do ponto de vista estético, acentuando as emogdes comuns im, no prolongamento de um livro anterior, € tasche, direi que esta obra prossegue, para a pés- modemidade, 0 mesmo objetive artista, mas a arte na da vida».? Tal plique, 20 menos dar conta de uma vi paraa busca da Verdade, no que est universal; els toma consciéncia do cidade de verdades parciais e sucess a adapta, Ha relativismo no ar, Convém a partir dai, na ordem do 3 igualmente o relativismo em pratica c isso nos iveis do termo: o que tempera o dogmatismo, seja qual for, eo que pe em relacio, por vezes conflitual, essas verdades parciais, Excesso vir-nos, a0 cont luz.escureee. Esse aforismo pascaliano pode ser- io, para aceitar o claro-escuro induzido pela am- bigneia emocional eas contradigdes que Ihe sio inerentes. Esse clima ‘emocional ¢ particularmente perceptivel na implosio, em cadeia, que atinge o Estado-nago ¢ 0s grandes impérios ideolbgicos. Uns e ‘outros esto cedendo lugar a confederagdes que, de maneira mais eve, cimentam comunidades, de proporgdes diversas, repousando ‘mais sobre um sentimento de vinculacdo que sobre a moderna no- ¢¢80 de contrato social, a0 qual se atrela uma conotagdio racional ou voluntéria. Darmesma forma, 0 individuo no é mais uma entidade estavel provida de identidade intangivel ecapaz de fazer sua propria historia, antes de sc associar com outros individuos, auténomos, para fazer Histéria do mundo, Movido por uma pulsdo gregitia, 6, também, 0 protagonista de uma ambiéncia afetual” que 0 faz aderir, participar ‘magicamente desses pequenos conjuntos escorregadios que propus chamar de iribos (O Tempo das tribos, 1988). Numerosos 520 0s indicios que, nacional ou intemacionalmen- te, exprimem esse sentimento de vinculago comunitéria ou tribal. Regides, cidades, departamentos, levantam-se contra 0 centralismo jacobino, em torno de um heréi epGnimo: prefeito, notivel local, estrela esportiva ou personalidade de renome afirmam um imaginario que 6s constitu como tal. O mesmo vale nos quatro cantos do mundo, a partir de uma reivindicasdo étaica, de uma especificidade cultural 0 afetual, implicam para rednico dos fendmenos ou ‘Go, no € mais possivel pensar nessas pequenas sociedades frag- ‘mentadas com os conceitos de instituigao, de estrutura e de relago entre eles, conceitos elaborados em trés séculos de modernidade homogeneizadors, Talvez seja até mesmo necessétio pensar fora da Histéria, pois o que tende a predominar € da ordem das pequenas histérias locais, dos acontecimentos, do que acontece, de mancira ‘mais ou menos efervescente, em estado puro. Certamente ndo se pode silenciar sobre o que provoca inc6- ‘modo ¢ incompreensdo. Alguns tratam disso com sucesso e, com freqiéncia, universitérios, jomalistas, politicos preferem dissertar ou tagarclar, de acordo com as cireunstincias, sobre assuntos preesta- belecidos com idéias prontas. A realidade empirica, porém, conti- ua ali, incontornével,¢ deixa estupefatos os que no souberam mudar a tempo de idéias. Quanto aos outros, to préximos da farsa e da hipocrisia, empregam-se, com constincia, a deturpar 0 sentido do acontecimento para fazé-lo entrar, pela forea, no prét-d-porter de uma verdade dogmitica elaborada para a circunsténcia. E, contudo, agora, trata-se de um segredo de polichinelo, 0 rei esti nu: passou o tempo da politica. No miximo, ela pode seduzir ‘com exibigdes @ americana ou ser objeto de derrisio em espetdicu- los de variedades. A adistingdo entre inteligéncia e politica», tio cara.a Paul ingiu um ponto sem retorno. E essa separagiio que se precisa inteligentemente pensar. Nao basta mais, em reali- dade, incriminar os jogos politicos, as receitas elcitorais e outras «anaracutaiag» do mesmo saco. Pois se a politica torna-se objeto de desconfianga geral, 0 politico nao parcce mais capacitado para enfrentar os desafios do momento, Se, no século XIX, num eco a0 «Deus esté morto» (Nietzsche), respondia a forma substitutiva da atualmente 0 Bssas duas entidades perderam a forga de atragio, pois nfo dé mais resultado 0 adiamento do gozo: a espera mossifinica do paraiso celeste ou a ago ‘ou outras formas de sociedades faturas reformadas, revolu ‘ou mudadas. Somente o presente vivido, aqui e agora, com outros, importa 15 Presente, um pouco pugo, que se exprime a eada dia através de uma religiosi nas sociedades, das das que ostentam 0 continuzm ainda ensar que, além ou aquém das diversas $8es politicas, hé, no fundamento de todo merado de emogdes ou de sentimentos partithado retomaruma Lemiética clissica: a Einfthlung, a empatia, a fusdo, opondo-se & abstrago da ordem mecdnica, Ainda que seja una banalidade dizé- é lembrar que 0 direto se constitui a partir dos costa, fonada ¢ sem ‘firma com forea a vinculagdo comunitéraeaireprimavel inémica de um nés que funde. Busco desezever esse processo nas piginas seguintes, fazendo, antes de tudo, uma genezlogia do pol ‘italy que Ihe serve de suporte ( 1) 6, de qualquer modo, Ho, um recurso utlizvel quando o instituidatende, em de, ana, Lentliccer-se, Assim, na marcha em espiral das historias ins manas, quando ional tende a triunfar, ea sociedade te-se A sua implosto (capitulo 1, 23.4), causa eefeite de um: Cotidiana, © que proponho designar Como a procura das liberdades interstici ‘io plebis de consequéacias incalculd E-apastirdisso que tent analisaraemergénei do sentimento (capitulo 11) na qual predominan » Cidade das emogdes comuns e a necesséria abundin que parece: “Otbreender a transfiguracao do politico em esbogo sob os nossos 16 jo que me liga, ou separa, atureza normativo, tendendo sempre para o es nao pode compreender, a fortis to Nao é mais dec '0 que devem sera sociedade 0 individuo que se consegue entendé-los ou conhecer, em realidade, ‘suds transformasdes. De onde o despertar brutal de alguns fendmenos, st 8 pela afirmacao da identidade étnica, pela semethanca de Familia, as quais est atxelada a classe politica em seu conjunto, : Acontece de, como € freqtiente 0 caso quando se assiste & saturazao de determinada civilizagdo, tal uma contaminasio viral, celerar brutalmente. A episteme do burguesis. epresentages e de modos de organizagz0 im, na totalidade do mundo ocidental l0c0s inteiros. O que dé novo taro, no qual 0 stacatio, & se declina ao infinito a atr a0 outro, do outro, rio, por vezes cacofénico, engendrando sintonias parciais que conseguem, mal ou bem, se ajustar num conjunto fractal pertinente ao cspirito do tempo, Apesar da auséneia de unidade rigida, fechada, id , como a da inst tal ritmo idade flexivel que agrega numa harmonia con- ibos mais di imagem do barroco, estabelecendo uma diferentes, _ziosa, da origem do «corpo» politica (V, 2,3), tudo isso desembocan- do na identificagao estétiea (V, 4), que parece ser # marca da pés- modemidade. A estética, enquanto aisthésie, isto é, vivido emocio- nal comum, parece ser de fato a forma alternativa ou a realizagao acabada da transfigurasao do politico. A guisa de abertura, pode-se assinalar que, mesmo em status nascendi, a \égica societal em implantagio esté agora suficiente- ‘mente plasmada nela mesma, o que permite falar dela. Talvez nfo a explicar, mas ao menos descrever-lhe os contomos ¢ constatar as suas caracteristcas fundamentais. Dito isso, cabe indicar que, em fungio do aspecto nebuloso da constelagdo da qual atitude do observador social deve ser das mais modestas: 86 se pode pro- por um conjunto de hipéteses, esperando que sejam pertinentes ¢ prospectivas. Lembrarei, entretanto, a fim de relativizar meu propé- sito, o que o coloca em relagto e serve-lhe de nuanga, que se € mais pensado por uma época do que se é capaz de pensi-la. E preciso certa empatia com 0 objeto de estudo. Ao mesmo tempo, no pretendo exprimir uma conviogio pessoal, um juizo de valor, mas me conten- tar com uma anilise de fato, traindo o menos possivel 0 tempo. Hi, portanto, na epreciagio a ser feita deste, subjeti ‘Ao fundamenti-la com base num vasto corpo tedrico — sociol6gico, filoséfico, histéria das religides -, ilustrando-a com pesquisas em. andamento ou ja elaboradas, enraizando-a nas constatagées de bom senso fornecidas pela atualidade, pode-se esperar, sem descartar totalmente o risco, que apreciagio ndo seja um simples sonhar acordado. Em todo caso, emprego-me ao longo desta reflexo para {que a subjetividade em obra esieja o mais préximo da «tipicalida- menos indique uma tendéncia importante, Assim, espero participar da elaboragio do que chamarei de «empirismo especulativon, cuja ambigSo consiste na produgdo de uma razo sensivel, capaz de ‘considerar os elementos mais diversos da prética social. Tudo isso exige que se saiba exercitar um pensamento arro- Jado capaz de correr riscos. Mas o interesse do conhecimento me- rece-o, Tal sensibilidade tedrica adapta-se mal as abordagens con- vencionais que, de maneira geral, dominam a producao intelectual, De onde 0 aspecto por vezes insdlito do procedimento e das vias escolhidas aqui Estas podem chocer ou desencorajar. Mas, afinal d= contas, @ mesmo acontece com os fatos que tento descrever. audacia, sacodem as certezas e ndio se dobram aos clichés doy cos de qualquer ordem, Como esses fatos, & preciso saber ser moso, perseverar, andar, caso necesséri histérias humanas nos ensinam que os pensamentos inatuais esto mais aptos a dar conte ¢ a compreender 0 que as teorias estabele- cidas pereebemn com dificuldade. ‘num sistema de verdades proctabeecida Proporei, na mina ética formista, apenas algumas «formasy, isto 6, quadros de andlise tendo por tinica ambigdo fazer a epifania do que é, surge e nfo pretende impor nenhum tipo de dever-ser. Serei el jente quanto 20s princf- das numerosas and- sos discursos bem- lises de circunstancia ¢ aos néo menos intencionados, prefiro ficar nos principi conforme suas luz: slo dos «anistérios» que, como indica 2 etimologia do termo, unem 68 iniciados, protagonistas da vida social. Nesse sentido, de acordo com 0 desafio deste livro, deveremos compreender que em deter- minados momentos, em todos os dominios, politico, intelectual, religioso, catidiano, do instituinte sacode, sem dificuldade, todos os poderes es : - O POLITICO E SEU DUPLO mas se podria dizer que $6 o fizeram para dela extrair arte de reconst 1 A forga «imaginal» do politico As «coisas» eternas, 0 amor, a morte, a sociedade, sofrem as ‘modificagdes mais importantes. O politico pertence & categoria das ‘que perduram em todas as épocas sendo, 30 mesmo tempo, sempre diferentes. Da mesma forma que para essas «coisas otemas», no é certo que possamos analisi-lo com originalidade. Nessa matéria, a brar algumas banalidades bisicas como ponto de apoio sélide para ajudara pensar o aspecto passivel de tomar a politica em nossos dias. Nao se trata de ser itil. Essa preocupacdo nao diz respeito ao erudito. ‘Mas diante de tanta incompreensio, de més interpretagées, de con- tradigdes de todas as ordens, & importante dizer, aos que podem compreender, qual € 0 drama dessa «forma» chamada politico, nem que seja para mostrar suas evolugdes. Pois se trata mesmo de uma forma, pelo que tem de envol- vente ¢ também de necessétio, isto 6,0 mais proximo do ensinamento de Simmel, uma configuracdo anterior as existéncias individuai -mais preciso, que Ihes serve de condigio d como a morte € necessiria vida, dando-I forte, determina a vida social, ou seja, limita-a, constrange-a c per- mite-the existir? Talves isso dade do que La Bost E € verdade que no slo que forga a subm «, conforme a necessi as expressies da su fascinantes. Pode-se dizer quanto 2 isso que ha um efeito de estru- ‘ura ou uma lei natural e inexordvel que incita a dobrar a espinha ea aceitar de alguém ou de alguns a ei: o bem, o verdadeiro,o desejavel, © ocontritio disso tudo, evidentemente. Eis 0 alfa 0 6mega do politico. Ao menos, ¢ isso que @ cons- fitui quando reina absoluto (pois, como mostrarei, nem sempre acon- tece assim). Mas para o imediato, reconhegamos que a coeredo é ‘mesmo a sua marca essencial. Coergo que de resto nem sempre & fisica. Pode-se mesmo afirmar que, com mais freqlncia, é moral ou simbélica. Durkheim vé um problema essencial na investigacio, «eatravés das diversas formas de coergao exterior, dos diferentes ti- pos de autoridade moral correspondentes». Problema essencial, pois para ele & «pressio social» & uma das caracteristicas maiores dos fentmenos sociolégicos.* Existe portanto uma forga, em muitos aspectos imaterial, dei ‘imaginal, que funda o politico, serve-Ihe de garantia e de legitimagaio 0 longo das hist6rias humanas, Depois de Max Weber, apareceram snumerosas andlises sobre 0 tema da «dominago legitima», seja cla carismatica, tradicional ou racional, Trata-se de uma boa tipologia, passivel de resto de ser completada, com a vantagem de destecar a ddimensdo mental do politico, E importante insistir sobre isso, pois se trata de uma dimensio, urpreendente longevi- srvidao voluntéria te essa curiosa pul- do, a «entregar-sen ao Outro; aceitar chefes Acrescentarei que essa dimer diferentes fascs da humanidade, cessas estratificagdes sejam os «estados medievais, a tri ou qua- gurar proteydo, de permitir do crescimento social, A De resto, ¢ isso que engendra a submi sividade da massa que, conforme gagdo tomaré formas bastant nia totalitéria, passando pela acei natureza, porém, ¢ idéntica: aguele 68 outros, na harmonia natural ou so servidio, Ao retomar a expressio de La Botte, indicada acima, € preciso contudo ter em mente que se trata mesmo de «si comum ou o enraizamento eésmico utilizados por el efeito da forca imaginal necessaria a toda vida em forma profana da religio», de Marx; certo & que toda vida em sociedade repousa sobre uma nec: fatal, a do descomprome- tentregar-$0) 20s outros. fundado sobre o maravilhoso». & verdade que 0 sagrado ocupa um lugar relevante na estrutura politica, como se pode verificar em dois polos essenciais. Antes de tudo, do lado do lider. Centro da unitf, disse, assegura. ligagdo entre 0 meio social ¢ 0 meio natural, o macrocosmo ‘© omicrocosmo. Féceis sio os exemplos nesse sentido. Assim, entre os Alurs, de Uganda, «o dominio das forcas vitais.. justifica o dominio sobre os homens» (G. Balandier). Vale precisar imediatamente que o campo do sagrado domina igualmente os depositérios do poder, que no podem dele dispor, mas devem exercé-lo enquanto marionetes de forcas que os ultrapassam. O olhar atento revela que tal fatalidade pesa sobre todas as formas de poder. Quem assume um poder se transforma, tomando-se Outro para os outros, porque participa, mais ou menos, quetendo ou no, da érbita do sagrado, Essa dimensto se encontra igualmente na mistica do Graal ou na idéia imperial gibelina. Quem se sente, se cré ou 6 investido pela vvocagaio iraperial, no se possui mais. Det mnder a essa vocagio © cumprir seu ministério e missdo, De Frederico I Hoheuzollem a Frederico, o Eleitor palatino, vé-se a sbnegacio de si naquele que aceita o encargo. Certamente se pode ver nessa abnegagéo uma jus- tificativa a posteriori para a libido dominanai, mas os historiadores ¢ 0s antropélogos concordam em destacar 0 aspecto propriamente religioso desse ministério do poder.'* De toda maneira, do ponto de iolégico, oaspecto paroxistico ¢ propriamente caricatural de tal «anission ndio deixa de ser esclarecedor de todas as manifestagdes ‘menos marcadas do poder politico. ‘86 tardiamente, als, as fungdes do tecnoerata, burocrata, etc.; de outro, cardeal, intelectual, sébio, cien- tista, médico, ete.; a estrutura permanece imutivel: assegurar a mediag4o entre a realidade visivel do mundo social e a invisivel ou imaterial do fluxo vital que permite Aquele perdurar." © fluxo pode sero de uma iia ou de um mito fundador, o da comunicagao ou da, imagem oniprescnte; em todas as situagées, toma forma no campo* de forsa do religioso.. ‘Talvez por isso todos os politicos notéveis sejam antes de tudo grandes conguistadores de almas. Do mesmo modo, a poténcia de um império depende menos, pense-se o que quiser, da forga dos que da admirago inspirada por ele, Fustel de Coulan- ges bem 0 indica quanto ao império romano, que no teria dominar e perdurar se ndo tivesse suscitado o sentimento «religioso» de pertencer coletivamente ao imperium mundi. Ser cidadao romano, desse ponto de vista, significava pertencer & comunidade humana ¢ da construgto simbélica dessa reali- icagdo dos altares erguidos a gléria dos imperadores, que eram naturalmente adorados como divindades. Menos pelo que eram enquanto individuos e mais porque personi- ficavam a grandeza romana. Com dois outros exemplos hi anilise semelhante em icos, seria possivel fazer , porque conseguiram sus- citar um temor religioso e substituir as imagens adoradas localmente ‘por outras que se mostraram mais eficazes. Ainda ai, a conquista foi a das almas. A edificagtio da cruz ou da Virgem Maria no Zemplo Major do México foi nesse sentido mais eficaz do que uma multi- 8 cusias, vendo, para o mel visdes blindadas, triunfar sub-repticiamente co Armmadas vermelhas reunidas, No comego, o marxismo havia imposto seu império sobre os 3, fazendo teologicar de uma mistica, de santos, de martires, as massas modemnas. Foi Justamente por ter esquecido @ efervescéncia suscitada com eficécia que, com a mestna rapidez, seu império desabou. Em cada uma dessas situages, indicadas aqui de maneira bastante répida, pode-se observar a necessidade de organizagiio em tomo de uma imagem comum. Em fungao de sua capacidade de in- fluéncia, seré avaliada a durabilidade, ou nao, de determinado con- Jjunto social. De fato, encontra o segundo pélo do aspecto religioso do politico, um lider s6 pode suscitar adestio em tomo de éia, de uma imagem, de uma emogdo, porque 0 povo tem ne- cessidade de colocar-sc om estado de religagdo.” Trata-se, claro, de uma necessidade que nao ¢ forgosamente consciente, com freatién- cia sentida de modo confuso, mas nem por isso menos eficaz. co estudado, a melhor teoria dessa Durkheim que, em As formas 8a, aprescata numerosos exemplos nos Escrevi religago trata-se da surpre- gem do outro ao Outro. F isso, claro, num movimento de reversi- bilidade; ao mesmo tempo, a perda no outro cria o Outro, ¢ 0 des- pojamento nesse Outro cria o «outro» que € a sociedade. HA nesse processo uma espécie de criagdo continua que o lider carismético, a exemplo da divindade, captard em seu beneficio. Talvez pudésse- ‘mos encontrar af a chave para explicar o sucesso popular dos fascis+ mos do meio deste século, Parece-me que tal esquema é dos mais ade~ quados para apreciar o desenvolvimento dos populismos extremos ou de outros ressurgimentos de extrema-direita em nossos dias. O desejo de efervescéncia, particularmente perceptivel em periodos de mudanca de valores, serd, de fato, 0 que possibilitard uma idéia, uma sociedade, uma imagem ou um fantasma, tomnar-se coisa sagrada e «objeto de verdadeiro culto» (p. 306); talvez seja ‘uma criagdo «inteiramente nova» (p. 304) ou o reinvestimento numa, antiga figura que se acreditava ultrapassada. Nos dois casos, trata- se mesmo de uma criago continua que regenera uma sociedade. E 0 que Durkheim chama de «atitude da sociedade a erigir-se um Deus ouacriar deuses» (p. 305). Nesses momentos (revolugSes, re- voltas, festas, comemoragdes, insurreig8es...), oentusiasmo é tal, a paixdo partihada de tal impetuosidade, que eles no «se deixam conter por nada» (p. 309). Seria possivel continuar a andlise nesse sentido ou aplicé-la 2 outros fendmenos, o que fiz em relagao & or- gia em 4 sombra de Dionisio (1982) ou a confusto em O Tempo ); basta indicar, no quadro de nosso propésito, que ivo, a exaltagdo geral, momentos nos quais © que em periodo de des- iinteragdes sociais»." ico parece perder todo sentido, & dade dessa férmula. Ou, ao menos, quanto ao fito de que hi urn constante vaivém entre esses termos, ou entre o que eles designam. Vaivém que bem delimita a 6rbita de toda vida social, a qual, confor- me os momentos, acentuard a socialidade, com a conotagiio emocional correspondente, ou a sociedade, com suas conseqiéncias mais ra- ais, Por causa do excessivo esquecimento de um ou outro desses pélos, corremos 0 risco de nada compreender da unicidade, una ¢ diversa ao mesmo tempo, do fato social na sua globalidade. A aperfeigaion do Uno 0 politico, no seu aspecto religioso, assegura de uma parte, pelo vies da lideranga, a ligacdo com o meio natural; reforga, de ou- tra parte, pelo sentimento coletivo ¢ pela emogio partilhada, o estar- Junto necessario a toda vida social. Mas, em ambos os casos, esse politico-religioso ¢ estruturalmente plural. O historiador Huizinga relat uma etimologia fantasista do termo «pollitico» (sic), que auto- +e franceses da Idade Média faziam derivar de polus e da pretensa palavra grega icos, guardifo. O «poliftico» era entdo o wguardi8o da pluralidaden..” Tal fantasia merece alguma atengdo, tanto é verdade que est profundamente enraizada a percepeao politeista da relago com a natureza, ¢ da relagdo com o préximo, Max Weber bem demonstrou imagem do pantedo grego, traduz.a ‘Num momento em que o importante lembrar 0 seu princt 1¢ as modulagdes contemporaneas. Principio rel repousa sobre a coergio admitida a partir da ps carismitico ou reconhecendo. podemos lembrar que, de maneira mais ou menos con: mite compreender 0 sair de si que politeismo é uma maneira de limitar o poder. Contra a oni Se & verdade que «tudo comega no mistico e tudo termina no politico» um Deus tinico, a mul idade, de limitagdo mitua. Enquanto os deuses guerreiam entre tra o Uno, Enganar o tinico ¢ dificil iormente que se tratava de um «saber incor- 1poradon: 0 que se pode chamar de sabedoria das nagdes ou de bom senso popular, 0 senso comum que tanto apavora os detentores do saber. Nao 0 caso de se analisé-lo aqui em sua especificidade, mas vale ter em mente algumas caracteristicas do politeismo, ‘mais no seja para melhor compreender aquilo que lhe sucedera. De faio, antes do triunfo do imaginirio totalitério, antes da elaboragio da realidade do Estado-nagto, sua transcrig&o politica, prevalecia o io conflitual numa realidade de miltiplas facetas. Sejamos Nao quero dizer que houve progressivamente passagem do vezes, a énfase recai sobre a pluralidade, a relago complementar das, formas ¢ das forgas; por vezes, ao contritio, valoriza-se 0 unificado, mesmo que ¢ essencialmente antropolégico, Deleuze, « unidade harmdnica, para Leibniz, repot plicidade, «Cada ménada apresenta acordes», desde que por de se entenda a «relagao de um estado com os seus diferenciai Aplicada a0 barroco, essa metéfora musical convém muito bem, mas € paradigmsitica de uma perspectiva menos preocupada com o un{ssono do que com a polifonia vocal e, logo, existencial. A mesma pers ‘antiga e em numeros; ‘como funciona essa quadrip do poder. Cabe noter que pi corporagdes ¢ outras associagdes eclesidsticas, ‘ménico tratado aqui encontrou ram uma maneira suavizada de viver a pluralidade dos deuses ea ase equilibrio idéatico na deserigfo feita por Ma- quiavel de Florenga: apogeu. A virtu, cimento através do qual a Sociedade se estabelece ¢ reforca, s6 pode existir se hd harmonia dos ‘contririos. Néo se trata de igualdade ou de negagiio das difereneas, ‘mas de «acorde» de qualidades diversas que, pela luta, a negago ou ‘compromisso, chegam a compor umas com as outras. O painel que ‘constréi da histéria de Floreaga, comparando-a em certos momentos com Roma, € nesse sentido esclarecedor: quando a cidade sabe fazer ‘essa composicdo, toma-se mais potente; a decadéncia, mais ou menos Tonga, sobrevém quando ocorte o triunfo de uma parte sobre a outra, Ainda ai, de maneira eufemistica, trata-se da guerra dos deuses que, mesmo se opondo por vezes com energia (e com a esperanga secreta de

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