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Primavera traída.

No dia 25 de Abril de 1974, tinha 20 anos e frequentava o 2º ou 3º ano de Filosofia


na Faculdade de Letras do Porto. Fui normalmente para as aulas de bicicleta, mas notei
algo de estranho quando cheguei ao velho palacete do Campo Alegre onde funcionava o
curso de Filosofia: as portas estavam fechadas e uma colega brasileira, que também
chegara de bicicleta, disse-me que havia uma revolta militar em Lisboa e um pouco por
todo o país. Fiquei contentíssimo, pois a coisa que mais ansiava era a queda da ditadura
bolorenta e pidesca que teimosamente mantinha uma guerra colonial obscena e uma
forte repressão social num país, atrasado, medieval, “orgulhosamente só”, de costas
voltadas para a Europa e até para Espanha.
Nos Liceus, que actualmente correspondem às escolas secundárias, havia
discriminação de sexos: liceus femininos, o “Carolina” ou o “Rainha”, e masculinos, o
“D. Manuel”, agora Escola Sec. Rodrigues de Freitas, ou o “Alexandre”. As meninas
não podiam vestir calças e todos eram obrigados a frequentar as aulas de Religião e
Moral Católica e a cantar os Heróis do Mar nas aulas de Canto Coral. Eram proibidas as
associações de estudantes nos liceus e os ajuntamentos nas ruas. Não havia mais
nenhum liceu perto de Penafiel. Nesta cidade existia apenas a Escola Comercial e
Industrial, nada mais. Por isso, tive que estudar no D. Manuel onde fiz, depois, estágio
de professor de Filosofia. Tive sorte: pertencia a uma minoria de jovens do país que na
época estudava e, dentro desta minoria, pertencia à mais reduzida minoria (apenas 0,5%
dos jovens da província camponesa prosseguiam estudos!)
O dia 25 foi uma grande festa: apesar do Movimento das Forças Armadas pedir
para que os cidadãos se mantivessem em suas casas para não atrapalhar as operações,
ninguém quis resistir à tentação de viver os acontecimentos históricos da Libertação do
país da mais longa ditadura da Europa ocidental, após a 2ª Guerra Mundial.
Depressa, dentro de mim, a euforia deu lugar à desconfiança:
1º- Spínola, que tinha comandado as forças portuguesas na guerra da Guiné, foi
indigitado como Presidente da Junta de Salvação Nacional, uma espécie de governo
militar transitório até às primeiras eleições livres e constituintes e formação do 1º
Governo Provisório (Civil);
2º- Muitas pessoas que conhecia e que apoiavam o regime deposto, depressa
“viraram a casaca” e se mostraram grandes “democratas”, apressaram-se a enfileirar nos
partidos mais conhecidos, no PS, no MDP/CDE e até no PCP e, depois da sua formação,
no PPD (agora PSD). A sensação que tive e ainda mantenho é que os partidos políticos
constituíam o lugar onde existiam mais oportunistas por metro quadrado.
3º - Gente sem formação de base, sem conhecimento científico ou cultural
reconhecido, mas que, à custa do oportunismo e da retórica vazia de ideias (mas cheia
de palavras ocas como “liberdade”, “democracia”, “justiça”, “progresso social” que
empolgavam as multidões de analfabetos e embrutecidos pela cortina de fumo que
constituiu a longa ditadura), depressa subiu os escalões do poder – primeiro dentro dos
partidos e depois até dentro da hierarquia do Estado, ocupando muitos os lugares de
responsabilidade como autarcas, deputados, etc. Daí resultou todo um conjunto de
asneiras que, agora, pagamos caro: a destruição, em nome do “progresso”, do
património cultural em muitas cidades históricas de que Penafiel é também um mau
exemplo (perdemos para sempre um Mercado do séc. XVII em granito e ferro forjado
tendo sido implantado, no seu lugar e no centro da cidade, um prédio que a
descaracterizou profundamente).
4º - Pouco a pouco essa gente arregimentou-se, como camaleões, nos partidos do
poder que alternavam entre si, mas que ocupou, depois dos aparelhos partidários, o
aparelho de Estado e legislou, seguindo à letra, o velho adágio popular do mais puro
Chico-espertismo: “Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte é burro ou não
tem arte”. E, assim, fizeram: ele era reformas ao fim de 8 e, depois, 12 anos anos ao
“serviço do povo”; ele era “subsídios de reintegração” seguidos de novos “tachos”; ele
era carro do Estado com motorista com farda e boné; ele era “almoços de
confraternização”, viagens e representações, etc. Arruinaram as Finanças Públicas e
deixaram o Povo quase a pedir esmola… não fossem os subsídios da UE de que o povo
pouco se aproveitou. Mostravam-se e mostram-se muito zangados na altura das eleições
para capitalizar o descontentamento popular e vencer o opositor – o irmão gémeo – mas,
quando se tratava de legislar em proveito próprio, a coisa era sempre por grande maioria
com os votos do PS e PSD juntos!
Agora há que “reformar o Estado”, “reformar a função pública”, “combater o
défice”, mas parece que ninguém foi responsável pela situação a que se chegou! Não! O
poder tem sempre razão! Mas os grandes responsáveis mantêm-se no poder, alternando
com os votos ingénuos ou quase imbecis de quem ainda não percebeu a marosca. E,
para se manterem no poder, precisam de que o Estado possa sustentá-los. Por isso têm
que arranjar algum bode expiatório. Para esta função nada melhor que um grupo fraco,
dividido, sem força: nada mais nada menos que os funcionários públicos que, pelo que
dizem, ganham fortunas e são uns malandros! Depois os professores, outros malandros
que aturam os filhos de gente pobre porque os filhos de gente “fina”, da alta-roda da
política, não devem estar misturados com os filhos da ralé e, por isso, estudam nos mais
caros colégios privados do Porto e Lisboa. Mas estão tão preocupados com a qualidade
da escola pública que querem ocupar os professores mais na burocracia e menos na
função de ensinar de forma individual e personalizada!
Estes tiranetes, filhos patéticos do salazarismo, aprenderam bem a lição: a condição
para se manterem no poder passa pelo embrutecimento do povo que, alegremente e em
todas as eleições, lhes deposita o voto e, assim, os sustenta. Até quando?
Peço desculpa por “obrigar” a pensar, mas essa é (e sempre foi), tal como o
moscardo grego Sócrates, a função do cidadão que filosofa.

Zeferino Lopes

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