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UNIVERSIDADE DE BRASILIA IWSTETUTO DE CIENCIAS HUMANAS PARTANENTO DE ANTROPOLUGIA FONES.: 273.3264 (direto) 274.0022 - ramal 266 SERIE ANTROPOLOGIA Ne 92 © ANTROPGLOGO: ATOR POLITIce, FIGURA JURIDICA ALCIDA RITA RAMOS 1990 NOTA SXPLICATIVA Est&o aqui reunidos dois trabalhos sobre o papel do an tropéloge frente A sua responsabtiidade social enquanto agente da hago que engloba sorindaries indigenas. 0 primeiro travalho, “0 awtsopAloge como Ator Politico", foi primeiro apresentade no Se~ min sobre “Desenvols mento © Direi tos Humanos: a Responsabilidade de Antropdlogo", dentro do Pai- nel "A Responsabilidade do Antropélogo Frente aos Frogramas de esenvolvimento: Estado, o Capital Privado e os Crupos Afeta - dos, realizado em Campinas a 6 de auril de 1990, Foi também ex- posto dois dias mais tarde, na seco de aberture da 173 Reuniio da AUA, em Ylorianépolis. © segundo trabalho, “0 Antropdlogo no Papel de Teste ~ munha", foi apresentado no Simposio “Laudos Periciais antrepol6- gicos", organizado e coordenado por haria Hilda Paraiso, no dia de abril, também durante a i7* reuniao da AzA, quanto no pri meiro permiti © imprimir um tom algo contessional, no segundo , ® preocupacao € muito mais analitica, voltada para uma reflexfo eminentemente antropologica. Entre o ativisi No Brasil, como en fe Latina, fa ato politico, Atores sociais com um zer antropologia € u certs visibilidade, os antropologos urasileiros nao podem se dar so 1 xo de uma torre ‘nem de ébano, sov pena de enfrenta~ rem a pecha de issos® vinaa da opinigo pivlica, da comunidade acadfmica ¢, em maitos casos, dos pr ries poves que estudam. fo da publica nao é o Unico ou prinei- rst pal notor desse engajauento politico. 4 tradic¢%o da antropoloai neste pais sempre ssteve assoctada A preoeuy de atuar em deve 88 dos direitos prineipalnence daqueles que tém sido a ge con te de inspiracdo antropeiésica ~ os povos indi por sermes una nacho colonizada tennatios desenvolvide esse pendor sti vista, reconhecendo nas populacSes dominadas do pais a nossa pro- pria condiglo face ae mundo o: 3 b for, o fate € que o envo: nto Seja co ge seus profissionai: imprime uma marca, registrada ou n&o, ta commicagao denuneia clarenente a minha nosigao de prox dade dos eventos que téin envelvido os indies Yenomami, no apenas nos Gitiros: dois anos, mas desde meados da década de 70. 0 toni quase jormalistieo & inten- cional e reflete um desejo de tug tendéneia de busear na lin em distan- © fria da razSo académica um ponto de apoio JA pronto e facil que proteja do dominio piblice sentimentos de perplexidace e impoténeia por parte co an pélogo envolvido na politica do contato. Agradego a Luis Soberto Cardoso de OLiveira e Bruce. Alvert a gen- tileza de ler © comentar sovre este trabalho, Sou grata a Xlaus teortwann por sua sinceridade, exigencia e Limpido espirito critico. ¥2. 2 = antropolozia nacional’. A comsinaglo de academia-commati ra reflexdo tedrica © as linhas de pe: ba por conduz: minhos gue exploram mais a dinémica de forcus sociais en embate je sistemas homeostaticos. “esmo © ebulicZo do que a continuidade assim, 0 olhar atento dos nossos antropélogos n&o tem sido gil bastante para acompanhar 6 intensidade e rapides com que — essas forgas se desenrolam. 0 tempo da antropologia, em contraste com o tempo do jornalismo, por exemplo, exige um periodo de maturacte de idéias cue acaba gerando ums defasagem entre reflexdo antropo- lggica © impulso histérico. Quando ainda estamos digerinde a déca Ga passada, 4 esta nos assola com fatos novos conjunturas mui tas vezes inesperadas. Se pouco podemos fazer para superar esse passo de tempos, nada impede -- a0 contrério, tudo indi - cue tentemos r nossos insirumentos de auto-andlise , de modo a nZo sermos levados de roldic pola pressa da historia neste pal o Hosea posigio de atores politicos dentro da academia termos de » assim, relativamente cémoda ¢ pouc> desyastante e energias éticas e morais, ias, o que acontece quando somos cl dos pelos poderes estavelecidos a pSr o conhecimento que acumule~ mos a servigo daguile que geralmente eriticamos 7 até onde node rar a lange, nao raro quixotesca, do relativisno cul s empu: ite absoluto mosa alteridade ral € do respi Quando nossas su gestdes pisam nos calos dos interesses desenvolvimentistas, somos vsados de querer guarder os indios em oolégicos. quando aceita nas Gialogar com esses interesses, correnos o risco de acusacées de cooptagde ou ue sernos francanente cooptades o que nao é inédi to entre nde, Resta entéo peeguntar: serd possivel cue 0 etios an tropoldgico é irremediavelmente incompativel com uma participagio + Em outra ocasio, tive oportunidade de expor mirtas idéias so. bre essa marca registrada da etnologia brasileira: Ethnology Brazilian Style artigo a ser publicado na revista Cultural Antnropolog’, logical Association. A ee a pmerican Antiwopo- negociagdes com (usu sistenaticanente nega es agsessorias antrepolégicas bone 9 seu sabor gue @ oficialnente stado nacional seria suvicientemer gadora da antropole- ra scatar a vocagSo relati iversamente, cue antropologia seria suficientenente des pojada de relativismo vara suportar compromissos “cealistas com con a velhs = formula 9 Estado ? Ser& cue temos cue nos conforr dos males © menor® ou entie as sumir e des! oneertante parcel do ov c4 para ouvridos moucos © ainda c& Por sues toes esses sindrowe do ave: elas nao justi: nal, imodilisne confuns 6, encuante vostura pois tica, @ omissio em contradicSes € a sietta pesses pro- slemas gem i mw niilisio paralisante, An~ tes de tudo, manter um estado permanente de alerta e de auto-reflex3o, de modo a nao sermos naades de si junturas adversas © nem alimentarnos ilusoes sobre o cécia -- simbdlica ou pratics ~- do nosso modo de pensar © fazer. Consideremos um case conereto == 0 caso Yanoment =~ co mo exemplo das complexicades cue 0 antropdlogo pode enfrentar trajetoria académico-stivist A crénica de uma invasio_denunciads A saga Yanomami n&o comegou nestes dltimos meses, ape sar da imensa cobertura de imprensa sobre o impacto de mais de 40 mil garimpeiros invasores. Ela tonou corpo no inicio dos anos 79, com a construgo da rodovia Perimetral Norte e como levantamen- to mineral da AmazGnia empreendide pelo Projeto Radam Brasil.Pedes nanciesos com ma sadde, garimpeiros despreparados e empresarios ¢ fizeram em quatro anos mais estrago entre os Yanomami das Ssacias trimani e da Serra de Surucucus em Roraima do que do Ajarani e tudo que os indios tém na memoria, mesmo considerando os tempos de guerra com outros grupos indigenas da regido. lio primeiro ano da construgSo da Perimetral sorte, deenzas contagiosas —mataran ldeias, das pelas 22% da populagdo de cuatro primeivas ati obras, € depois, em 1977, mais 50x dos lavitantes de outras qua- tro comunidades sucumoir uma epidemia de sarampa. S, em meio ao regime militer, abre-se una peque na brecha no controle autoritério suficiente para, com um aceno da 4 disposig&o para clasorar FUNAT, varios antropédlovos se pore dirigir projetos de assisténcia a populacdes indigenas, Um desses fol © Plano Yanoama, dirigido por Ken Taylor, ria época profes - sor na Universidade de Brasilia, e do qual tamuém cu participei. Henos de um ano depois de haver coweado, 9 projete era encerrado pela desvontade explicita dos militares de ver um estrangeiro atu inpiicitas for: par- ar na fronteira. Na época, as razoe apene: cialmente desvendagas. '6 em meados aa década de 80, novos elemen tos, como 0 Projeto Caiha Werte, permitiram, em retrospecte, en- tender melhor aquela reay&o que, alias, atingiu nao s6.0 Plano a. ficou mui~ Yanoama, mas todos os outros cinco que entdo existia Lever to claro, 11 anos depois, que os militares no querian eoncorréncia no controle dos destinos da Amazénia e seu tes. Una das grandes preocupagdes do Plano Yanoama era promover a demarcagao das terras indige: iitigios sobre elas © antes que es sues tomadas de assalto por garimpei neradoras. Hada foi feito, além de uma ter da FUNAI, na época trustrada, de re talnar a drea cm 22 lotes pequenos ¢ descontinuos. ) ao menos nos B1ti Gs anes 80 viram 4 maior campat mon tempos, em defese de um pove indivena orasileire, tanto a ni vel nj ional, como internacional, InstAneias como & foram acionadas para pressionar 0 governo uresileiro no sentido Yanonami. Durante dois ou mtos, essa nie ecia 2 ponto de se reali yo depois diluir-se na eter procrastina: chegou @ seal a, em 1993, pars um Parque Yenomami com miindes de enearregade 4a ssessoranento da Areas cescontinuas, sor duas flo- restas nacionais © pelo Par cional do Fico da Nedlina. territério promoveran & am = © gue se tor invas&o yarimpeira que comesou em avoste d pouco se soube em primeira m&o go cue ocorria na rea, sho de eq sent is, de principalmente catélico a taxativa proipipo da e tropdlovos em toda a extensZo da te. nguaNnto & etnolo; ja vegiao era totalmente Yano: mi passaram a viver @ cerco surdo de massas mo formigas em marcha ceya pela floresta, deixando etrés deserto de fauna, rios mortos, grandes viveiros de maiiri tr volateis Veio a desnutrisdo, talidade, principalmente infantil, a desagregacao econdmica e, po ue no podenos peesenciar, 0 caos existencs ale simbdlico def um pove tomado de assalto pele pior dos desas - tres que lhes poderia ocorrer. Novamente entra o antropélogo em seu duplo papel de académico-stivista, desta vex como autor de um laude pericial so- licitado pela Procuradoria Geral da Nepiiylica e que, somado au volunoso dossié, iria fundamentar a Agao Cautelar apresentada 40 J 2 da ‘a. vara do Distrito Federal, demonstrando a necessida’ de preteclo das vidas e ds fo tempo recorde de 4 dias, a 20 de outubro de i9ds, veio a liminar que estabelecia a ignovando as 1 interdigdo da érea proclamada pela TJMAT em 1925, dreas © suas circundantes florestas nacionais, e a orden para ex pulsde dos @ cssas alturas, j& andavam por perto de anomam4 A reagao nemativa 4 liminar veio rapida e ousad. presirios, donos de evises © outros agentes de yarinpo conegaram 3 despejar dezenas de indios doentes nos hospitais e na Cas dio em Boa Vista, transferindo 7 IAT as atengdes acus ras de opinifo pablica. Zn novenbro, mais de 200 Yanonamt se anon toavan na Casa do fndfo, praticanente sen a médicomsand suticiente, assistindo 4 téria, ¢ mintos pela Salta de alimentag’ morte continua de ert tores vitimas desse desastre. moar, & in on Em outra frente, o sovernador de koraim! ero Jucé, tenta) a neutralizer os efeitos da liminar, pressionando 0 gover ne federal a aprovar seu Projeto fieridiano 62 que tenta legalisar a atividade garimpeira em Area indiyena. 4 partir dai, comecou um nfuso jogo ge pingue-pongue envoivendo o governo estadual verno federal e o poder judiciario, onde a peca oscilante er: governo federal, enquante o Congres crossanto de fim de ano, aparecia cone Os antropélocos especialistas tiveram a medir para atender jornalistas estrangeiros © s, vidos jcas de fltima hora, tentando fazer senti- sentido. Acabei participando inesperacamen © Presidente Sarney, colocande~1i 2 apre ite & manu- mi i todos 03 que se preoenpam com os Yano: vorioe indigena, para acabar ou~ tenglo dos garimpes en pleno torr sitado coment4rio: “A senhora pede ficar do do Presidente o is wila, gerque eu sinto a me trans que 4 sénhorai peiros vao sair perto dos indios semanas seu Kinistro da Justiga, Saulo Ramos, vai a Sorsina corde de pernitir a ve varinpetres na & neal nossa buscar uma interlocugao com agentes do noder coupronstides com in Atiea bastante roti ~ teresses opostos acs dos indio: neira © provevar declavacdes pitvlicas S usios indigenistas: a Ses, ainda que retoricamente va ~ desses agentes sob 3 as posi alas, ¢ criar visibilidade nos metos de comunteacie pa 20 proble m neni iro no mé que nes ceups. omento dacue: +5) Palacio do Planalto tive qualvuer divida sobr muém em nenhum momento 1. de ent&e presidente da aepiolica. nas t 5 ao vento. mentei ter perdico neu tempo ouvinde palay A situagZo Yanomani, transformada em cause oi até uma fala cionel © estrangeira, merece esidencial, ei deia nacional de radio e televiedo no horério mais novre brasileira: antes da novela das &. #1 possivel que o pingue-rongu continue nos proximos $ anos, talvez com novos jogadores oi Be 3 algunas denonstragies coloridas de pirotecnia 0 caso Yanomam regar numa mesma avena politica um numero insélite © inesperado de person tradas com posturas © interesses os mais antagénicos: 9 capital selvagem dos empresérios de garimpo, as mas petros desenra nic sua terna, o go erno local avertamente a iuvor do jariuyo, 0 dederal numa oscil, vo de péneuio er re atencer acs interesses pri, os ¢ manter uma dmazen de cemocracia, o poder judietario local vico os poderes econdmicos, o porier judiciario federal a do de direito o, ¢ meio a tedo esse en aranhado de es antropélozos, asseciades a outros militantes da causa indigena. O que pode fazer 9 antropdle situagdes como essa Que eficdcia pode ter o sev treinamento teéries ° y 6 8 & 9 . pdlouos om agées potencialmente dené~ ©, portanto, louvdvess tog nfo parece muite afetaco por elas, xo caso especifice Ysnoma- mi, 96 Ge pode dizer até acui que o sastre Soi vretels duran, te elguns anos e muito pouco mais do yue isso. " Wo Gis 24 de siargo de 1980, 9 presidente Femando Collor foi a sovaina ver de perto os estragos ecologicos decorrentes da zarimpagem, “endow inediatamente una ordem a0 Diretor ga Policia 1, Romou Tuna, paca fosset dinanitadas as uais de 100 pistas de pouso clandestinas em terri oman. ligde do ni desnuda em toda sua crueza as plurigtnica, mas nfo o quer adni- contradicoes de uma nas cir, que é regida pele autoritarismo, mas se disfarga de democra- ela, A liclo Yanomemt a descoverto 0 dilema do antropd o da academia ¢ o ter nado entre o te: Sono conciliar -- se € que S40 conciliaveis ~~ ritmos tao diferen e temos cue fazer, sop pena de sernos atropelados pelo imediatismo pouco dade a reflexes mais detidas e, portanto, su- jeito a agées precipitadas de conseqiiéncias nen sempre reparé - veis. © ativi inal, © do antropologo é distingufvel do de ou troe persona ter sua ens politicamente en; Jados, ele dev prépria, Essa marca no pode ser outra coisa sendo a sua dade profissional, Sujeito ativo da sua propria sociedade, 9 antropoldgo »rasileiro se vé na ined a frecténeia chamado a falar, quando ¢ pre: © ctica- mente melindrosas, como, por exemplo, projeve ccondmicos em terras ind. enas, para lovo em seguida ver o seu ¢ 1 recer desaparecer em gavetas obscuras, idas pelo anoninate ua burocracia © das decisdes por dbaixo do pane, Suando ako é acu- ado dc gigolé de indios, aproveitador da inocéneia + construir uma earreira de doce vida académi' vomo rom&ntico, 1irico, idealista, com suas demonstragd a necessidade de nomami ou seus fe hectares para os angumentes contra a construgdo de alpuma nidrelétrica o ind. enas. £ come se, em sua ingenuidade, 0 entropdloyo cuixotes~ canente vatall pelo welnor de dois mundos, quando apenas wi wndo € possivel -~ o dos poderes estavelecidos. Enquanto carre -— garmos essa pecha, poucos principes nos dar3o 0 ouvido. Valvez uma naneira de nos revelarnes © descarte a que nos relegam os poderes constituidos é un esforge publicitério sobre nossas agdes ativistas, anpliando mecanismos de divulgag3s, de modo a propayar pelos neios de com nicaséo mais permedveis 0 fato © 0 contetido de nossos pareceres a piblico pela laudos © opiniées; tornar piblico o que nJo vei ventade do poder. 9 ant: flexio ar meus cole pensar de © nosso pax pel como ator politice. 1 guntes que me vém surginds 14 al anes, tempo em que embaled esperancas, en terrei sonhos e eriei dereses cor s. lo momento, ndo podenos sos soore os acontecinentos. Apesar ce certa visivilidade que os vezes nos concedem, a3 nossas opinides ido essencialmente ignoradss pelos. donos do poder. = Ureio que uma anflise mais profunda e uma reflexio mais detida s4ria e urgente para nos compreendermos melhor e chegarmos tal 4 um melhor desempenho no future, intre a impessoalid do processo macro-nistérico ¢ a porosidade das situagdes conjuntu- rais localigadas no teupo © no espago, est’ um campo de ache pos sivel. Como ocupé-lo ética e eficientemente é a questae. Agradego a Luis Roberto Cardoso de Cliveira o gentileza de ler comentar sobre este trazalho 0 AnTRU?0Lebu bu No afa de servir so que acreditamos ser os interesses dos povos indigenas que estudamos, nos antropologos raramente pa ramos para pensar no que estamos fazendo cuando nos — envolvemos com questées de ordem juridica, quando pomes A disposigao ce pro ‘issionais da lei a pericia que nos é atribuida por sernios espe- clalistas. tas, somos especialistas em qué ? Esta é uma pergunta delicada e antipatica © sé me permito fazé-la porgue sou parte do problema que eu mesma levanto. Até que ponto sou eu uma especialista em Yanomami Os 27 meses descontinuos que passei, quase todos, em duas al- deias de menos de 100 pessoas < pertencentes a apenas um dos quatro grandes sudgrupos daquela etnia autorizam-me a tomar © lugar © a voz dos mais de % mil Yanomami no Brasil ? Cu, tome- or longo periode com ado mos outro profissional que tenha trava o universo inteiro de uma sociedade indigena. © conhecimento que foi por ele acumulado seria suficiente para torna-lo porta-voz de tudo © que & relevante pura aguela sociedade ? Em outras pala tia da vida indigena que conseguimos assimi - vras, a pequena lar em nossas pesquisas, sempre necessariamente 1 mitadas no tem po e no espago, sera suficiente para termos aquela visao, 20 mes 0 yloval e especifica, que nos havilite a fazer afim g6es que, ao passarem para o dominio da lei, sio metamortoses ~ tos e verdades juridicos Em que se vaseia, afinal, a idéia de “pericia antropo Uma primeira consideragZo toca diretamente naquela con tingéneia histérica que transformou os povos indigenas em gente indefesa face ao estado-nag&o que os engoliu. Gragas 4 vulnerabi lidade dos indios, somos revestidos de uma autoridade que é base ada, justamente, num saber que adquirimos dos proprios indios. Somos os tradutores de seus anseios. Mas, come todo tradutor zemos, no maximo, uma aproximagao, quando ndo escorregamos numa traigdo original. Até que ponto somos também porte-vozes por. les delegados € uma medida da consciéncia, da confianga ¢ dispo- sicdo mituas que variam em cada caso Quando escrevemos um laudo antropolégico demonstrando que 0 povo X necessita de tanta terra ou cue o povo ¥ deve ser indenizado por isto ou por aquilo, sentimos a reconfortante sen- sag&o do dever cumprido. Ao mesmo tempo em que fizemos uma boa ac&o, somos gratificados com o reconhecimento externo da nossa was, quantos de nés néo sentimos une ponte de desconforto por estarmos ocupando um lugar que, na verdade n&o é nosso; por sermos, enfim, os intermediarios dos intermedia rios ? N&o ereio que esse sentimento seja um desassosse~ go idiossincratico, e nem descarto a outra face da moeda, ou 42, @ possibilidade de nos sentirmos lesados caso os indios acsu mam © papel de peritos deles mesmos e, assim, nos tornando des - cartaveis, N&o podemos esquecer que, encuante autores de laudo: periciais, somos, afinal, uma vieissitude conjuntural na trajeta ria interétnica dos indios. tem sempre fomos peritos para eles no passado € nem o seremos para sempre no futuro. Nossa atuagao nesse eampo é uma contingéneia histérica € como tal deve ser ava liada. fio fundo, tudo isso aponta para a incémoda questHo do pa- ternalismo que reconnecemos, por exemplo, no fstado ¢ na Tgreja mas le afastamos de nds mesmos com brios feridos quando nos é atribuido. Por outro lado, nZo hd davida que o que nos sustenta € a convicgao, nistoricamente mais do que justificavel, de que o respeito dquile que defendemos para os indios que nos tocan te- ria salvo muitos outros povos indigenas da extingao e da desagre agéo: suas terras, Sua salide, seu direito 4 vida e a diversida- de cultural. S40 esses os valores que nos redimem, que dao a nos sas incursées pelos campos cerrados da let um sentido que mais ue supera as criticas que possalios -- © gue do ¢ vemos = fa zer-nos em nosso papel de ‘especialistas". Esses valores sdo-nos legados pelos principios humanistas da prépria antropologia. H& una outra consideragio que deve ser cuidadosamente ot examinada, que é 0 processo pelo qual nos tornamos experts. Refi ro=me A repercussSo em nosso pensar da antropologia encuanto disciplina cientifica construida de teorias, conceitos, pressu.- postos, paraémetros e, por que nao, de modas. Quando po, nfo somos uma tabula rasa nem existencial, nem profissional. s tedricas, os conceitos, os métedos, até as As postur chicas, aue levamos como ferramentas de pesquisa vao talnar os dados gue levantarnos, vZ0 ser 4 un sO tempo amplificadores de percepgao © anteolhos, Somesticamos realidade cue nos rodeia com catego- riss que nos s&o familiares, tanto em termes da nossa socializa odo cultural como em termos do nosso treinamento profissional. © resultado é que transformamos a nossa vivéneia de campo numa ire- linguagem que ne pertence dquela realidade. A partir dal, mos reproduzir essa Linguagem em nossos eseritos que poderde in- cluir, entre outras coisas, leudos periciais, depoimentos ofiei— ais, declaragdes pivlicas, etc. Has, nao nos Lludamos, essa lin- guagen académica, aparentemente neutra, nem sempre & inofensiva. Tomemos o exemplo que nos da Fred Meyers, antropéloze norte-americano que faz pescuisa entre os Pintupi da Australi © esta engajado na defesa dos direitos dos Aborigenes. Ciamado pelo governo australiano 6 depor como especialista, Meyers viu- se na posigao de ter que guestionar ¢ tentar derrubar a proprie— dade com que 0 conceito de “grupo local de desvendéneia” — vinha sendo aplicado aos Aborizenes desde es temposde Radcliffe-Srown, De posse desse conceito, as autoridades nacionais australianas insistiam em obrigar os Avorigenes a provar que tinham realmen~ ter- te yrupos locais de descendéncia, se quisessen fazer gus 4 +14, ras que pleiteavam. Essa categoria analitica -- alias j& um tan- te fora de moda == ganhou, assim, o status de evidéncia judicial nas m&os do poder, mesmo que a intenc&o original de quem primei- ro 0 aplicou pudesse estar totalmente desligada da polities do contato, Advindo do reino supostamente indcuo do parentesco, es~ se conceito passou a ser o principal instr’ origenes (Heyers 1986:147). Uma faceta pouco conhecida da antropologia norte-ane~ ricana revela-nos uma figura j4 antiga e bastante relevante para esta nossa discussao -~ a testemunha pericial. 0 antropologo witness enteou na cone judicial americana @ partir ndian Claims Commission (Hosen a maioria dos depoimentos antropold; S, embor cos nos triounais fosse sopre ntes indigenas daquele pais, outros ca sos também levarai testemunnas: 0 di antropdlogos ao sanco da: reito dos Amish de n3o mandar seus filnos para 4 rede escolar nacional, a justeza ou n&o do sistema de segregagao racial em es colas, “insanidade cultural” dos cueinaderes de arquivos de re crutamento durante 6 guerra do Vietn’, Fol por causa dessa expe~ riéncia de tentar provar o relativismo cultural nos trivunais que clentistes sociais americanos ciegaram ao conccito de “in capacidede social” atrisuivel « grupos minoritérios conc uma for %a contundente de expor aos clhos da lei a realiuade das diferen Ss cultu: is, fossem elas criadas pela experiéncia histérica dos indies, pela vida nos guetos ursenos ou pela tradigdo religiose de uma minoria etnicamente ciferenciadsa, £03 nossos ouvidos es~ ‘incapacidade social” ressoa como um ceo do “rel ivamente in capazes" do nosso Cédigo vivil, cue contemplou os povos indi nas como o Gnico segmento socialnente constitufdo no pals a mere cer essa disting’o. Assin, chegou-se ao mesmo conceito legal por S distintos: nos Estados Unidos, pela experiéncia de cien sociais expostos 4 complexidade da lei; no Brasil, por de 18s, terminagao de juristas expostos 4 complexidade cultural. Lawrence Rosen, o antropélogo americano que, em 1977, discorreu sobre o assunto, nao poupa esforgos para ressaltar as repercussdes geradas por esse tipo de envolvimento por parte de cientistas sociais, Ele aponte o problema de depoimentos contra- ditorios como consequéncia de interpretagées distintas dadas por diversos antropélogos ao me mo eassunto, a reputagao de soft science da antropologia afetando decisdes de juizes, a importan- cia da autoridade do perite como fiel da balanga nas decisées ju diciais © -- de especial relevancia para nos ~ © impacto que es. sas cxporténeias individuais de antropSlogos podein ter sosre 0 pensar antropologico. Citando o caso de Julian Steward, que testemunnou jun to & Comissio de Reivindicagdes Indigenas sobre e organizagao 2 litica dos Paiute setentrionais, Rosen ressalta que esse envolvi mento levou Steward a aprofundar sus pesquisa sobre bandos de oc: 1B gadores. Conclui © oS depoimentos de antropdlogos perante a © 1c missZo estimularam un mumento de pesquises em ctnografia e em ¢ nohistéria, dando aos estudiosos a “oportunidade e a necessidade de reavaliar abordagens técnicas e metodologicas ha muito acei - tas, com o resultado de que cada uma destas pode ser reatirmada ou abandonada™ (ay, apud Rosen 1977: evidente, afirna Ro sen, que “essa particis tem tido um efei- 0 em casos judic. to reciproco no pensamonto antropolds, fop.cit.). Mais reveladora ainda é a declaracie do proprio Steward sobre o papel do antropdlogo nessas situacSes: “Ele mes- mo transforma-se em ‘evidénciat, pois o seu testemunho esta © ado, de maneira incalcul el, na.sua teoria (explicita ou impli- clita), nas suas experiéncias com o povo, nas suas viagens Lo. territério, . Em outras palavras, sua autoridade de expert ¢; t3 calcada num tipo de experiéncia pess ale sui generis com o 18, grupo estudade, experiéncia essa virtualmente irreproduzivel por outro profissional. Sonme-se a isso a influéncia que um ow outro tipo ae teoris exerce sovre cada antropéiogo © teremos uma situa ma dos “imponderéveis’ de ualinowsxi, isto é, as eo muito préx Pectos pouco ateitos 4 precisao e & previséo, mas de importancia fundamental para se desvelar um determinado ethos. ‘ard conten numa capsula esse predi camento do antropélogo: o de ser, -a um sé tempo, sujeito e o J ge seu propric trabalho. Essa condigSo merece um exame cuida- S805 pena de, desavisados, sermos apanhados em situagdes contreditértas, ou seja, sermes solieitades a participar como eu sunto quando, ao mesmo tempo, somos barra algum 20. dos em nosso trabelno como antropéloge © caso, por exem de muitos etnélogos vue colavoram com um dos poceres do Estado , © judiciario, fornecende laudos periciais sovre povos indfuenas do norte da Anazdnia, enguante um outro poder desse mesmo Esta~ do, 0 executivo, nos proive de voltar ao campo para continuar - trabalnar. A pecha de persona mos @ exercer 0 nosso “ip rato como ur non grata aderiu & imace mancha pecamino- sa atirada pela mio certeira de militares que reconhecem 0 gote: cial de dendnecia que representa a testemunna ocular do antropélo ° cientista come, alias, nunca existiu social desligado e acina de qualquer contradico de orden soc ou politica. Fatores tao constitutives de seu ser social quan - to © seu trabalho propriamente cientifico sdo aqueles tan assim que ele transpSe o urbrsl de torre de marfim, % do a. momento em que ele esté do lado de tora, tudo pode acontecer, No Brasil, 0 palco onde desempenhamos’a nossa perieia nko @ tanto o espetaculo piibtico do tribunal como os bastidores S09 linisvério Pablico, Smais com a Procuradoria Geral da Kepdolica que os antropdloges interagem em seu papel de expert witnesses . Reeonkecendo o potencial de ue node servicos ser prestaces nes se terreno, a ABA selou acordo com 2 Procuradoria, de modo 4 ente coletivo da categoria o que até en transformar em envoly t&o era participacde individual ce alauns antropéiogos em proces nto sos judiclais. Ticou entBo oficializade esse tipo ce engajar que antes dependia da ousadia e dos contates pessoais de cada an tropéloge. Trazer uma associagao profissional para essa = arena com seu carimbo de legitimidade, reforga ainda mais algumas das consideragdes que citel, especialmence, no que toca ao pensar en tropolégico, ao se introduzir o interesse por temas que, sem €S se estimulo, vez deixassem de ser explorados. Steward sobre o papel Voltemos & de “evid’neia® que o antropéloge pode assumir. Embora a sua expe rigneia etnogratica, de campo, seja pessoal ¢ néo possa ser reve tids por mais ninguém e nem por ele mesmo em outro momento dife~ rente, og resultados escritos que vém dela nfo perdem seu peso cond prova evidencial. #1ém disso, os escritos profissionais que © antropdlogo produz ao longo de sua carreira, referindo-se dire te ou indiretamente & sua vivéncia etnogréfice especifica, — tén um grande potencial de se transformar também em prova juridica. Por um desses acasos que neniume racionalidade consegue — expli~ car, chegou-me as mos um impecdvel exemplo de como o antropolo~ go pode transformar-se em “prova". f com um misto de pudor e or gulho que resumo esse exemplo, JA que, sem o saber, fui envolvi~ da. A 22 de margo de 1990, 0 Juiz Federal em Cuiads, Mario Figues redo Ferreira sendes, julgou improcedente a Ago Ordinaria de be sapropriagado Indireta movias contra a Unido Federal e a UNAL por membros da vamilia Yictorelli que reivindicam a propriedade Apipuana. de quase 170 mil hectares dentro da Area Para chegar a essa decisdo, 0 juiz baseou-se nas seguintes evi - déncias: laudo pericisl antropolégico (de autoria nao declarada), denonstrando que essa area ven sendo ocupada pelos {ndios Cinta- larga desde 1680, © dispositivos constantes da Let das~Zerras,de 1856, ‘das Constituigdes de iu91, 1934, 19 © 8, 5, 1969 e 19% tindo aos indios @ posse permanente de suas terras. Provada a an tecedéncia da posse indigena com relagdo & alegada prepriedade da familia Victorelli, a questao limitou-se 4 pertinéncia de in- denizar os ‘autores da Agio pela juste desapropriacao. Dai om di- ante, os argumentos de juiz sao exclusivamente antropologicos: Pele que se depreende da exposico dos “experts a regio do cn rege da ilata é utilizada pelos indios cinta-lanza em suas dades de pesca, caya e coleta de frutos silvestres, fato Ihe confere a posse sobre ele, A Doutora Alcida Rita Samos, Professore de antropologia da Unt ~ versidade de Brasilia, em seu opisculoe Sociedades indigenas, edi, tado pela Atica, 193%, pgs 26 © 22, sobre a importincia do terri téric para a soorevivéncia indiyena: Segue-se a citazao de dois paragrafos de Sociedades indigenas on de se demonstra que territéric indigena é muito mais do que ples bem de produg&o e que se estende para além das imedia das casas © das rocus. Prossegue o juiz: Fica, entao, reconhecido cue o territério trival ndo pode cin gir-se aos estreitos limites de uma aldeia. Ora, a criagao de. uma reserva, parque ou Area indigena dentro das fronteiras de uma area imenorial dos indios desnatura 0 caréter destes, que néo pode ter a reievaneia de sua ancianidade reduzida ou ex tinta pela inpropriedade de um ato ou denaminagio. Conclui-se que as terras que os autores pretendem se lhes reco - nhega como dominial realmente rio 0 sSo: Inpossivel, assim, indenizar-se os autores. Quande em 192 termined a redaglo de Saciedades nas, os meus leitores-alvo eram alunos de In odug gia. No entanto, por mais popular e acessivel que fos: gem que imprimi ao texto, em momento algum abdiquei do rigor an- tropelégico e do respeito ao leitor, por mais leigo que fosse. Constatar oito anos mais jue a influénoia de um texto como universitarios e alcancar os esse pode transbordar os Lil lisura e sericdade de juices como Hario tribunais para, gragas Figueiredo Ferreira ‘iendes, trensformar-se em instrumento de de- fesa de direitos indizenas, é ranscender a gratificagao pessoa: da autora do texto. f, aciva de tudo, ver proclamada, para quem 10 do antropologo em foros que duvidasse, a importancia do tral ultrepassan og linttes estreitos da academia, é reiterar a neces sidade de se manter uma ponte constantemente estendida entre 0 rigor profissional ¢ 0 engajanento polities. vias ¢ também apon- t r para a relevancia da linguacem na qual veiculamos es nossas informagdes; um texto cua espessura técnica € tal que o torna indi em nao € do samo, certamente ter4 seu Ambito de por a) influéneia muito mais restrito e talvez nunca chegue ini tas no lugar © na hora certos. também aqui o nosso métier pode beneficiar-se do reflexo que nos é devolvido pelo espelho da al- teridade, desta vez, a alteridade profissional: vemo-nos nos ©, compreenden ~ Anos de um juiz que nos mira de sua trivuna © ai do-nos e interpretando-nos, toma decisdes ¢ afeta destinos em situagdes como a dos © poder de foo do antropélo: Yanomami relatada no primeiro trabalho (0 Antropélogo como Ator Polftico) & muito limitado e ele ainda corre o risco de se quei- nar, por atrair para si atencies © agdes retaliatérias de quem se sente atacado pelo seu testemunho. Mas nZo creio que — nenhum de nds que encara esse tipo de desafie é inocente a ponto de ima nar que o seu laude pericial v4 salvar o povo indigena do fla~ gelo, nem que o seu mérito seja universalmente reconhecido, Fa~ semos isso porque nos sentimos atores de um complicado processo politico, porque acreditamos que o nosso conhecimento acumulado deve servir para mais do que simplesmente a academia © porque n&o dormiriamos bem se nos omitissemos em meio a tragédias como a dos Yanomami. flo fundo, acho até que Rosen (i97 acertou quando evocou Carl Sandburg ac dizer que “an expert is just a damned fool a long ways from home. Fred 1936 fhe Politics of sepresentation: Anthropological Discourse and australian Aborigines. American nologist i sen, Lawrence Witness. American

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