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ARTHUR OMAR O ANTIDOCUMENTARIO, PROVISORIAMENTE Em tom polémico, as vezes agressivo, o cineasta Arthur Omar discute, a seguir, questées que dizem respeito ao documentdrio, & linguagem e @ cultura brasileira, Suas palavras séo claras: “o documentario tal como existe hoje é um subgrupo da ficgéo narrativa, sem conter em si qualquer aparato formal e estético que lhe permita cumprir com independéncia seu hipotético programa minimo: documentar”. ‘Se a primeira parte do artigo jd foi divulgada, a segunda (a partir de Experimento CONGO) é inédita: a atualidade de suas propostas serve para (re)pensar o problema cinematogrdfico brasileiro em toda a sua extensdo teorica, critica e pratica, (Nota da Redag&o) POR vicissitudes que no cabe aqui explicar, a histéria do cinema é monolitica: em 80 anos, uma forma maior se impés, formando um leito onde iria correr todo o resto. Essa forma € 0 filme narrativo de ficcdo, concretizado numa func&o social es- pecifica: o espetdaculo. A forma do- cumentdrio é inteiramente tributaria dessa vertente principal da histéria do cinema. A partir da invencfio da cémara de filmar, o cinema poderia ter sido uti- lizado para outros fins, técnicos e cientificos, mas os grandes investi- mentos necessdrios & sua pratica fi- xaram sua evolugio dentro de uma nica matriz, que é a de servir como um espetéculo ptiblico, recuperando e expandindo o teatro e o romance. © filme narrativo de ficcio € o mais lucrativo economicamente. Toda a lin- guagem do cinema se desenvolveu dentro dessa matriz, sem qualquer outra alternativa, desde os filmes di- daticos, até os publicitérios passando pela dita vanguarda cinematografica que nada mais fez que funcionar como margem necessdria que demilita esse campo irresistivel. Frente a esse campo irresistivel nao existe o filme documentério como lin- guagem autOnoma, isto é, 0 documen- tério tal como existe hoje 6 um sub- produto da ficcfio narrativa, sem con- ter em si qualquer aparato formal e estético que Ihe permita cumprir com independéncia seu hipotético progra- ma minimo: documentar. As conquistas formais do filme nar- rativo de ficcio (criadas segundo a I6gica interna desse tipo de filme, e que, em wltima andlise, era a ldgica que regia os problemas da adaptac&o do filme como mercadoria de grande consumo) foram sendo incorporadas aleatoriamente ao documentério, co- mo procedimentos que vém de fora, e se cristalizaram no que se pode ver hoje como uma férmula acabada. To- das as tentativas de dar ao documen- tario uma independéncia estética (e ideoldgica) foram infrutiferas diante 406 da presenca avassaladora do filme de ficgao. Nao queremos dizer que 0 documen- tario nfo exista. Mas 0 modo de apa- recer do seu objeto, o modo de cons- truir a existéncia desse objeto 6 rigo- rosamente idéntico ao do filme de fice&io, e por conseguinte no consti- tui uma opedo real frente a ele. Re- sumindo: na medida em que o cinema narrativo de ficcio determina o cine- ma documentario poderfamos dizer que o que o cinema da ficcao trabalha- va como sendo o real (mesmo que fosse um real ficticio) é 0 mesmo que 0 documentdrio reapresenta como sen- do fico (mesmo que seja uma ficoio real). A mistica 6 a mesma: hé um continuum fotografével que pode ser dado & visio, uma verdade que se apreende imediatamente. Essa apreensio é programada por um conjunto de instituigdes dentro da so- ciedade: os cinemas, as redes de dis- tribuicio, a critica cinematografica, as escolas de cinema etc. Esses luga- res materiais permitem que a massa de filmes produzidos anualmente cir- cule, conferindo-lhes um papel a de- sempenhar muito especifico, a: sua funcao. Retomemos 0 raciocinio repisando: o cinema de ficc%o aperfeigoou com grande esforco uma série de disposi- tivos estéticos visando a tornar mais real o que ele queria apresentar como a realidade, e 0 documentério, cujo desenvolvimento foi mera absorcio desses dispositivos, acaba apresentan- do a sua realidade documental como se fosse ficciio. O espectador sabe perfeitamente distinguir documentd- rio de ficc&io, porém a maneira de ele se colocar frente ao contetido desses filmes 6 idéntica nos dois casos, ou seja, dele se exige um mesmo tipo de esforco e trabalho, se exige que seja © mesmo tipo de espectador, ou me- Ihor, um mero espectador. Mas que filigrana 6 essa que unifica os dois tipos de filme? Simplesmente o ESPETACULO. Ambos se oferecem como espetéculo. A FUNCAO-ESPE- TACULO pressupée um tipo de sujei- to que o contempla e é uma funcio objetivamente situada dentro da tra- ma social, é uma instituicéo. O sujeito se transforma em sujeito de espetd- culo quando é conhecido pela rede de cinemas disponiveis. Essa instituicado poderia nao ter existido, ela tem uma historia, onde se registram as vicis- situdes e as motivacdes da sua for- maciio. Nela, como se apresenta hoje, o es- pectador se coloca frente ao documen- tario na passividade de um olho indi- ferente, e 0 objeto do documentdrio surge como qualquer outro objeto de documentério, ou melhor, como um simples objeto de documentério, per- feitamente intercambidvel com outro objeto. Tudo pode ser objeto dessa vontade mistica de documentar, nu- ma corrente sem fim de filmes que se sucedem. Porque tudo pode ser dado como espetdculo. Esse o segre- do do filme documentario (forcado por sua filiagio com o cinema narra- tivo de ficc&o): dar 0 seu objeto como espetdculo. Surge no espectador interessado a ilusfio de conhecer. De dominar, atra- vés do conhecimento, o que o filme lhe exibe. Essa ilusio se funda nas coisas que Ihe sio dadas a ver com evidéncia. A visio do objeto, que gra- tifica, desde que aceite a submissio & posicao de espectador. Mas que posic&o é essa? E a posicéo de afastamento maximo. De isolamen- to radical em relagéo ao que é mos- trado. Situacio paradoxal porque o espectador justamente acredita que 0 documentério Ihe permite o dominio maximo de um objeto, 0 conhecimen- to. Nesse jogo, uma dinamica que se institui ao longo da histéria. Vejamos © que acontece. Para haver um documentério é pre- ciso uma erterioridade do sujeito e do objeto. Cada qual de um lado da linha, sem se tocarem. $6 se documen- ta aquilo de que nao se participa. O documentério surge depois, numa si- tuag&o, € o ultimo intruso, trazendo a sua devassabilidade normativa. Um objeto sd se torna objeto de do- cumentério no momento em que o sujeito se reconhece isolado desse objeto. Uma vez isolado, surge a pre- tensao de conhecer, produzir um fil- me onde se processa 0 etéreo efeito de se estar sendo apresentado a um objeto, que pode ser um vaqueiro, uma feira de artesanato, a vida de um pintor, um periodo da literatura brasileira, um auto dramatico popu- lar, os acidentes de transito etc. Um documentério é isso, um estudo, uma abordagem exterior. Nenhum documentario é aliado e aprendiz da ciéncia social e nos dé o mundo como espetaculo, 0 oposto do mundo da agio. A pretensio de cién- cia bombardeia os minimos detalhes do documentério, geralmente uma ciéncia perpassada de empirismo. Os temas esto ali, para serem co- Ihidos. Nao hé um método de refle- xGo sobre o nivel da realidade em que o documentério vai se situar. E © processo de construcio do filme também 6 semelhante, indo do parti- cular ao geral, em linha reta e ele mentar. Como? Finalmente cenas con- cretas de uma situacio, isto 6, foto- grafada em sons e imagens, compdem- se um quadro generalizador que ex- trapola aquela situacio para o seu conceito. Assim, por exemplo, temos flashes e entrevistas de uma danca popular acontecendo num certo mo- mento (momento da histdéria dessa danca); em seguida, a narracdo gene- ralizada, com dados socioldgicos, eco- nomicos etc. Por vezes, surge a pretensio de um documentdrio critico, com critica dos fatos, onde mais se acentua esse cir- culo geral-particular. Sai-se do cinema com a poderosa sensacao de ter visto um bom faroeste. Falta 0 método que transforme essa relag&io do filme com seu objeto real numa relacéo de fe- cundacio. Para o documentério apenas médio, académico, existem duas solugdes es- 401

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