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O Extraterrestre de Boa Vistinha

Muitas noites de sexta-feira gastei a conversar com o Melo Varjão nas cantinas
do Bexiga, na rua treze de maio. Isso foi lá por 74 ou 75 e o Melinho, sessenta
e poucos anos, já estava aposentado. Mais de quarenta anos de jornalismo em
quase todas as redações de São Paulo. Cabelos brancos, calvo no alto, barba
de algodão, óculos grossos de aro escuro, bonachão de conversa fluida e
competente podia falar durante horas sobre qualquer coisa ou ouvir com ar
interessado, meio debruçado á mesa.

Nascido em Araraquara, noroeste do estado, como muitos rapazes da região,


um dia, aos dezesseis anos, tomou o trem para a capital, sozinho, disposto a
fazer a vida. Chegou aqui, portanto às portas da década de trinta. Uma
pensão no Brás, um primeiro emprego, uma sucessão de outros e um dia
bateu na redação dos Diários numa função que ele costumava descrever como
“factótum subalterno”. Daí para frente uma longa carreira jornalística.

Relembro essas coisas aqui mais pela saudade que me faz a lembrança do
Melinho que veio a falecer no início dos oitenta. Se me deixo levar por essas
lembranças dispersas não conto a história do extraterrestre de Boa Vistinha.

As conversas na Fontana di Trevi, a cantina preferida, versavam sobre tudo


sem exclusão de assunto. Além de nós, o Melinho e eu, muita gente
freqüentou aquele papo. Eram na maioria jornalistas como ele, mas não
exclusivamente. Entre tantas histórias e polêmicas que sempre aconteciam,
esta história, que o Melinho sempre jurou verdadeira, causou-me uma
estranha sensação de solidariedade com o personagem principal, já morto,
pela extensão do infortúnio e, penso eu, profunda solidão a que foi condenado.

Boa Vistinha, se hoje ainda é praticamente desconhecida, naquele tempo era


um nada, povoadozinho à toa não muito longe de Araraquara. “Uma cagada de
mosca no mapa”, como definia o Melinho.

Pessoalmente o Melinho nunca conheceu o extraterrestre de Boa Vistinha que


deve ter morrido quando o jornalista não tinha mais que uns três ou quatro
anos de idade. Mas segundo ele muita gente da região chegou a conhecê-lo,
embora poucos na verdade acreditassem na sua origem.

A data não é muito precisa, 1905 ou 1908, embora o mês, sabe Deus por que,
é conhecido com certeza: dezembro.

Foi de tardezinha, pouco antes do por do sol. Não se sabe ao certo se foi uma
aterrissagem infeliz ou forçada por circunstâncias técnicas ou um acidente
astronáutico. O fato é que a nave do extraterrestre acabou caindo no pasto da
fazenda de um tal seu Valêncio com um estrondo tão grande que teve vaca
que ficou mais de uma semana com o leite preso.

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Muita gente acorreu ao local. O próprio Valêncio, colonos da fazenda e mesmo
gente do povoado curiosa com o fenômeno. Entre eles felizmente se
encontrava o Tonico Vermelho, que não era comunista e nem sabia o que era
isso mas tinha a pele de um vermelhão afogueado. Tonico era o farmacêutico
do lugar e pessoa tida como bastante esclarecida.

No meio do pasto, meio depositada numa pequena cratera, envolta por uma
nuvem de poeira da terra seca levantada, estava a nave, estranho objeto
metálico cuja forma exata perdeu-se no decorrer de muitas narrativas.

O povaréu ficou muito tempo olhando o bólido até que a noite caiu e nada
aconteceu. Na verdade ninguém fazia a menor idéia do que fosse aquilo.
Naquele tempo não se falava em ET’s ou ovnis, ninguém jamais havia visto
um dirigível ou mesmo um automóvel. Foi por isso que a princípio o Tonico
Vermelho chegou a pensar que fosse um meteorito, fenômeno sobre o qual já
havia lido. Até deu algumas explicações para quem estava em volta.

Foi depois que a noite caiu e já convencido de que se tratava de um meteorito


que o Tonico sugeriu que se verificasse se ainda estava muito quente a sua
superfície. Ninguém entretanto estava disposto a chegar muito perto e ainda
mais fritar a mão naquele negócio caído do céu. Foi quando um colono, o
Diorato, caboclo mato-grossense, forte e destemido achegou-se ao seu
Valêncio e se ofereceu prá testar a quentura da coisa.

Todo mundo, à luz da lua, o observou quando desceu a cratera, circundou uma
vez a coisa toda, botou a mão com cuidado e gritou para cima:

- Tá frio. E tem uma porta desse lado aqui.

Uma porta! Imagine-se o que se passou pelas cabeças de todos os presentes.


Uma porta!

Alguém perguntou:

- Como, uma porta?

- uma porta, ué! Tá meio aberta...

Chamaram o Diorato para cima. O caboclo estava variando. Era preciso


esclarecer o que ele queria dizer com “porta”.

Era uma porta, ou abertura parecida com porta. Arredondada e meio


entreaberta, provavelmente devido ao impacto.

- Pois vá lá e bata! Ordenou o Valêncio.

Novamente o colono desceu a cratera, aproximou-se do estranho meteorito


que tinha porta e bateu com os nós dos dedos:

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- Ó de dentro! Gritou na falta de coisa melhor.

Silêncio total. Bateu de novo. Silêncio.

A essas alturas as pessoas já estavam todas bem na beirada da cratera,


alguns até meio dentro. De repente o Diorato soltou um berro medonho e
abalou-se a subir a cratera com todas as pernas e braços que tinha e antes
que pudesse explicar-se todos puderam ver claramente no pasto enluarado a
figura esguia e alta que havia surgido no local onde ficava a porta.

A criatura por um momento parou como a olhar para as pessoas e em seguida


desabou no chão onde permaneceu imóvel.

Foi assim que o ET de Boa Vistinha fez sua entrada rompante no seio daquela
comunidade. Foi também nesse momento que o Tonico Vermelho abandonou a
tese do meteorito.

A figura que havia saído da nave, embora ninguém soubesse tratar-se de uma
nave, era absolutamente humana ainda que de estatura incomum, perto de
um metro e noventa, muito magro, mãos compridas e ossudas, zigomas
salientes, pele pálida, mas sem dúvida, indiscutivelmente humano. Estava
completamente nu!

Nesse ponto da história, lá na Fontana di Trevi, em volta da mesa houve uma


pequena discussão sobre a morfologia dos ET’s. Alguém perguntou por que os
alienígenas que são descritos pelos ufólogos são invariavelmente olhudos e
carecas, posto que o nosso não fosse, não tinham orelhas etecetera. Pois esse
nosso ET, fora o incomum do tipo, tinha todas as características humanas o
que aliás demonstraria igualmente pelo seu comportamento durante sua
permanência na vila.

Pois bem. Desfalecido na porta da nave quem sabe devido ao trauma do


choque causado pela queda. O chamado do Diorato deve tê-lo feito arrastar-se
para fora.

À vista daquele ser humano desfalecido Tonico tornou-se novamente


farmacêutico, trazido subitamente ao hábito de lidar com doentes.

O extraterrestre foi carregado de carroça para a cidade e conduzido para a


casa do Dr. Hermes Feitosa, clínico geral que mantinha uma pequena
enfermaria junto ao consultório num anexo da casa.

Chegaram lá pelo início da madrugada e o médico recebeu o paciente.

Que tipo de tratamento recebeu, como foi sua convalescença, qual era sua
fisiologia, se tomou injeção e essas coisas todas, tudo ficou perdido no tempo
e ninguém mais sabe. O fato é que quatro ou cinco dias depois já estava de
pé. Não falava coisa alguma de português e também não entendia o francês
do Dr. Hermes. Falava sim, numa língua estranha de fonética irreproduzível,
que ninguém jamais pode entender.
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Na farmácia diariamente formavam-se rodas de pessoas que discutiam as
origens e procedências do rapaz, porque não havia dúvidas de que se tratava
de um indivíduo do sexo masculino. Tentou-se de tudo. A maioria achava que
era estrangeiro embora ninguém pudesse explicar como um estrangeiro cairia
do céu num meteorito oco ou que quer que fosse aquilo. Pelo que sabia o
Melinho a questão nunca ficou satisfatoriamente resolvida ainda que nessa
época o Tonico tenha se tornado provavelmente o primeiro ufólogo do Brasil
pois acabou concluindo pela origem extraterrestre do recém-chegado.

Deram-lhe roupas que lhe ficavam deploráveis, as calças pelas canelas


ossudas, a camisa curta e apertada, alpargatas Roda feitas de brim e sola de
sisal, lembram-se?

Durante um bom tempo foi diariamente à nave, entrava nela e lá permanecia


durante horas, às vezes dias, certamente na tentativa de consertá-la. No
começo as crianças o acompanhavam e ficavam sentadas à borda da cratera.
Com o tempo suas idas ao local foram rareando, desanimado com certeza o
pobre ficava muitas vezes perambulando sem eira nem beira pela cidade,
nada entendendo nada comunicando. As pessoas em geral o tratavam bem,
sorriam para ele e consta que às vezes ele sorria também. Davam-lhe um
prato de comida aqui, uma fruta ali, dormia num banco da praça.

Acabou aprendendo umas palavras de português, de tanto ouvir. Sabia dizer


boa-tarde, obrigado e algumas coisinhas do trivial com um estranho sotaque
misto de extraterrestrês e caipira de erres carregados. Parecia muito educado.

Com os meses passando as coisas em Boa Vistinha foram retomando seu lugar
de sempre, a curiosidade do povo diminuindo para o que com certeza muito
contribuiu a figura perfeitamente humana do alienígena. Parecia um jeca
qualquer, um polaco das colônias ou coisa assim. Conversa com ele era
impossível mesmo. Da nossa língua só aprendeu as coisas mais óbvias, como
os nomes de algumas coisas que lhe eram apontadas e as gentilezas sociais
como cumprimentar e agradecer. Frase inteira mesmo com sentido inteligível
ao que se sabe nunca pronunciou.

Nunca pode dividir com alguém as agruras de sua inusitada saga. Na opinião
do Melinho o pobre a princípio adotou um estoicismo que aos poucos foi
descambando para uma expressão peculiar de epicurismo depressivo. Ficou
com o tempo acabrunhado de uma tristeza que fazia dó a todos. Vagava pelos
arredores, rondava as ruas abatido, a cabeça derrubada, olheiras fundas de
cortar o coração.

Às vezes sentava-se sob a mangueira e parecia perdido afagando as mãos


ossudas e compridas. Passava noites inteiras em claro olhando para o céu.

Foi por causa dessa tristeza que um dia no armazém lhe deram cachaça. Ele
costumava andar para lá e para cá e detinha-se às vezes nas portas dos
estabelecimentos comerciais espiando o movimento.

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Parecia tão triste que o pessoal que bebia naquele domingo de manhã
resolveu lhe oferecer um gole. Todo mundo ficou espantado quando, após o
primeiro gole cuidadoso, bebeu todo o resto de uma talagada como se fosse
água. Bebeu mais uma, outra, ficou alegre, falante, embora falasse naquela
sua língua esquisita entremeando com um ‘brigado quando lhe enchiam o
copo. Ficou na roda do pessoal como se estivesse em casa, riu, ninguém sabe
de que. Todos riam.

Quem visse de longe nunca imaginaria que naquele balcão um extraterrestre


bebia alegremente com um bando de caipiras.

Foi daí em diante que virou bêbado. Continuava educado, nunca ofendeu
quem quer que fosse, jamais um atentado ao pudor. Na pensão, dona Maria
das Graças habituou-se lhe dar dois pratos de comida por dia numa bonita
demonstração de caridade cristã. Como bebendo parecesse feliz, sempre havia
quem lhe pagasse um trago.

Em alguns anos nada mais o diferenciava de um mendigo comum, o bêbado


típico meio amalucado que toda cidade do interior possui. Era o Zé do
Meteoro, apelido que carregou até o último dia de vida. Ia pela rua meio
trôpego, arrastando as pernas compridas, os calcanhares sujos à mostra nas
sandálias rôtas. Às vezes um bando de crianças o acompanhava. Houve um
tempo que andou com um cachorro magrela.

Morreu, segundo seu Tadeu, tio de Melinho, assassinado num botequim por
um forasteiro que interpretou mal alguma de suas frases mal articuladas.
Ninguém sabe direito o que aconteceu. Um sujeito esquentado, uma facada
rápida e certeira. Era tão magro que muita gente diz que sangrou quase
nada...

- E a nave Melinho? Que foi feito da nave?

- Dizem que foi enterrada no pasto, no mesmo local em que caiu, alguns anos
depois quando o Valêncio decidiu recuperar aquele trecho de pasto.

Essa história o Melinho nos contou naquela noite de 74 ou 75 à mesa da


cantina, lá no Bexiga. Muitos, a maioria penso, não acreditaram mesmo que
fosse verdadeira, ainda que fosse cativante aquele jeito jornalístico do Melinho
que soava como fato com foto e tudo. Não sei o que pensar, exceto sentir uma
estranha e triste solidariedade para com aquela criatura das estrelas
compulsoriamente exilada num mundo que não pode compreender nem jamais
o compreendeu.

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