Professional Documents
Culture Documents
Muitas noites de sexta-feira gastei a conversar com o Melo Varjão nas cantinas
do Bexiga, na rua treze de maio. Isso foi lá por 74 ou 75 e o Melinho, sessenta
e poucos anos, já estava aposentado. Mais de quarenta anos de jornalismo em
quase todas as redações de São Paulo. Cabelos brancos, calvo no alto, barba
de algodão, óculos grossos de aro escuro, bonachão de conversa fluida e
competente podia falar durante horas sobre qualquer coisa ou ouvir com ar
interessado, meio debruçado á mesa.
Relembro essas coisas aqui mais pela saudade que me faz a lembrança do
Melinho que veio a falecer no início dos oitenta. Se me deixo levar por essas
lembranças dispersas não conto a história do extraterrestre de Boa Vistinha.
A data não é muito precisa, 1905 ou 1908, embora o mês, sabe Deus por que,
é conhecido com certeza: dezembro.
Foi de tardezinha, pouco antes do por do sol. Não se sabe ao certo se foi uma
aterrissagem infeliz ou forçada por circunstâncias técnicas ou um acidente
astronáutico. O fato é que a nave do extraterrestre acabou caindo no pasto da
fazenda de um tal seu Valêncio com um estrondo tão grande que teve vaca
que ficou mais de uma semana com o leite preso.
1
Muita gente acorreu ao local. O próprio Valêncio, colonos da fazenda e mesmo
gente do povoado curiosa com o fenômeno. Entre eles felizmente se
encontrava o Tonico Vermelho, que não era comunista e nem sabia o que era
isso mas tinha a pele de um vermelhão afogueado. Tonico era o farmacêutico
do lugar e pessoa tida como bastante esclarecida.
No meio do pasto, meio depositada numa pequena cratera, envolta por uma
nuvem de poeira da terra seca levantada, estava a nave, estranho objeto
metálico cuja forma exata perdeu-se no decorrer de muitas narrativas.
O povaréu ficou muito tempo olhando o bólido até que a noite caiu e nada
aconteceu. Na verdade ninguém fazia a menor idéia do que fosse aquilo.
Naquele tempo não se falava em ET’s ou ovnis, ninguém jamais havia visto
um dirigível ou mesmo um automóvel. Foi por isso que a princípio o Tonico
Vermelho chegou a pensar que fosse um meteorito, fenômeno sobre o qual já
havia lido. Até deu algumas explicações para quem estava em volta.
Todo mundo, à luz da lua, o observou quando desceu a cratera, circundou uma
vez a coisa toda, botou a mão com cuidado e gritou para cima:
Alguém perguntou:
2
- Ó de dentro! Gritou na falta de coisa melhor.
Foi assim que o ET de Boa Vistinha fez sua entrada rompante no seio daquela
comunidade. Foi também nesse momento que o Tonico Vermelho abandonou a
tese do meteorito.
A figura que havia saído da nave, embora ninguém soubesse tratar-se de uma
nave, era absolutamente humana ainda que de estatura incomum, perto de
um metro e noventa, muito magro, mãos compridas e ossudas, zigomas
salientes, pele pálida, mas sem dúvida, indiscutivelmente humano. Estava
completamente nu!
Que tipo de tratamento recebeu, como foi sua convalescença, qual era sua
fisiologia, se tomou injeção e essas coisas todas, tudo ficou perdido no tempo
e ninguém mais sabe. O fato é que quatro ou cinco dias depois já estava de
pé. Não falava coisa alguma de português e também não entendia o francês
do Dr. Hermes. Falava sim, numa língua estranha de fonética irreproduzível,
que ninguém jamais pode entender.
3
Na farmácia diariamente formavam-se rodas de pessoas que discutiam as
origens e procedências do rapaz, porque não havia dúvidas de que se tratava
de um indivíduo do sexo masculino. Tentou-se de tudo. A maioria achava que
era estrangeiro embora ninguém pudesse explicar como um estrangeiro cairia
do céu num meteorito oco ou que quer que fosse aquilo. Pelo que sabia o
Melinho a questão nunca ficou satisfatoriamente resolvida ainda que nessa
época o Tonico tenha se tornado provavelmente o primeiro ufólogo do Brasil
pois acabou concluindo pela origem extraterrestre do recém-chegado.
Com os meses passando as coisas em Boa Vistinha foram retomando seu lugar
de sempre, a curiosidade do povo diminuindo para o que com certeza muito
contribuiu a figura perfeitamente humana do alienígena. Parecia um jeca
qualquer, um polaco das colônias ou coisa assim. Conversa com ele era
impossível mesmo. Da nossa língua só aprendeu as coisas mais óbvias, como
os nomes de algumas coisas que lhe eram apontadas e as gentilezas sociais
como cumprimentar e agradecer. Frase inteira mesmo com sentido inteligível
ao que se sabe nunca pronunciou.
Nunca pode dividir com alguém as agruras de sua inusitada saga. Na opinião
do Melinho o pobre a princípio adotou um estoicismo que aos poucos foi
descambando para uma expressão peculiar de epicurismo depressivo. Ficou
com o tempo acabrunhado de uma tristeza que fazia dó a todos. Vagava pelos
arredores, rondava as ruas abatido, a cabeça derrubada, olheiras fundas de
cortar o coração.
Foi por causa dessa tristeza que um dia no armazém lhe deram cachaça. Ele
costumava andar para lá e para cá e detinha-se às vezes nas portas dos
estabelecimentos comerciais espiando o movimento.
4
Parecia tão triste que o pessoal que bebia naquele domingo de manhã
resolveu lhe oferecer um gole. Todo mundo ficou espantado quando, após o
primeiro gole cuidadoso, bebeu todo o resto de uma talagada como se fosse
água. Bebeu mais uma, outra, ficou alegre, falante, embora falasse naquela
sua língua esquisita entremeando com um ‘brigado quando lhe enchiam o
copo. Ficou na roda do pessoal como se estivesse em casa, riu, ninguém sabe
de que. Todos riam.
Foi daí em diante que virou bêbado. Continuava educado, nunca ofendeu
quem quer que fosse, jamais um atentado ao pudor. Na pensão, dona Maria
das Graças habituou-se lhe dar dois pratos de comida por dia numa bonita
demonstração de caridade cristã. Como bebendo parecesse feliz, sempre havia
quem lhe pagasse um trago.
Morreu, segundo seu Tadeu, tio de Melinho, assassinado num botequim por
um forasteiro que interpretou mal alguma de suas frases mal articuladas.
Ninguém sabe direito o que aconteceu. Um sujeito esquentado, uma facada
rápida e certeira. Era tão magro que muita gente diz que sangrou quase
nada...
- Dizem que foi enterrada no pasto, no mesmo local em que caiu, alguns anos
depois quando o Valêncio decidiu recuperar aquele trecho de pasto.