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Luigi Bordin
Introdução
O Prefácio de 1859 ao volume Para a crítica da economia política é importante por
ser o único texto de Marx que traça um perfil, ainda que breve, de sua história intelectual,
e, por conseguinte, política. É essencial por nele descrever, em uma página e meia, o
núcleo de seu método. Gramsci dizia que o Prefácio era a “fonte autêntica mais importante
para a reconstrução da filosofia da práxis”, termo que usava para indicar o marxismo.. O
historiador marxista inglês, Eric Hobsbawn, define este texto breve de Marx ainda hoje
como “soberbo” onde ele nos apresenta “o materialismo histórico em sua forma mais
plena”. Todavia os próprios méritos desse Prefácio podem trazer equívocos.
Na verdade, trata-se duma exposição essencial e sumária que deve ser lida tendo
presente todo o pensamento de Marx. Caso contrário, pode-se chegar a uma interpretação
redutiva e deformada da sua doutrina, vendo na relação estrutura-superestrutura uma
relação determinista e mecanicista. Nosso propósito é de apresentar através do comentário
desse prefácio uma sucinta, mas densa introdução ao pensamento de Marx.
Prefácio e comentário
Marx acena aqui para a batalha jornalística de que foi protagonista, a dos “roubos da
lenha” onde defendeu o direito consuetudinário que consentia à “massa pobre” o corte da
lenha contra uma aplicação rígida do direito de propriedade dos proprietários dos bosques.
Marx como “jovem hegeliano” tinha em mente uma idéia de “Estado universal” contrário
ao particularismo dos interesses, mas cuja universalidade se manifestasse na livre
consciência dos cidadãos.
2) O primeiro trabalho que empreendi, para resolver as dúvidas que me assaltavam, foi
uma revisão crítica da Filosofia do Direito de Hegel.
Esta é a problemática que caracteriza seu primeiro trabalho teórico: uma crítica à
filosofia do direito de Hegel, que empreendeu depois de ter deixado o jornal. Tinha se
tornado difícil dirigir a Gazeta Renana sob a pressão da censura do governo e a pressão dos
donos do jornal. Nessa altura, Marx estava sob a influência cultural de Feuerbach, crítico
de Hegel. Segundo ele, a “Idéia” de Hegel era uma reedição da teologia que relega o
homem concreto e sensível e todos os seus problemas à função de determinação da
“Idéia”. Sua força teórica consiste na idéia de revirar o pensamento de Hegel: Hegel
revirou a realidade, ora a crítica filosófica, dizia Feuerbach, deve recolocá-la no seu justo
lugar.
Marx era um jornalista político e tinha como central o problema do Estado. Utilizando
a estrutura da crítica feuerbachiana, criticou a falsa universalidade do Estado de Hegel,
mostrando que ela deriva do truque filosófico hegeliano: o de apresentar o Estado
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prussiano existente, com seu monarca e burocracia , como a realização do Espírito e,
portanto, como pura racionalidade.
A crítica teórica ao sistema filosófico de Hegel como ideologia conservadora era assim
feuerbachiana. O ideal político que animava essa crítica era democrático-rousseauniano.
Não só, segundo Marx, o Estado de Hegel é uma falsa universalidade, mas a idéia de
Estado como universalidade jurídica é uma “alienação” do homem, exatamente como o
Deus da teologia cristã e a “Idéia” da filosofia de Hegel criticados por Feuerbach.
Para Marx, o Estado, e as relações jurídicas que ele funda e que o caracterizam, não
podem ser compreendidas por si mesmos prescindindo da sociedade. O Estado não é
também o resultado do assim chamado “desenvolvimento geral do espírito humano.” Para
Marx, o Estado só se explica indo às suas raízes, isto é, às relações materiais de existência.
Estas são aquelas relações que em Hegel, como no pensamento precedente, são definidas
como “sociedade civil” separada do Estado.
A concepção liberal (John Locke) separa a sociedade civil da estatal para afirmar no
campo privado toda uma série de direitos de liberdade e, sobretudo, de liberdade
econômica. Hegel tinha mostrado a autonomia da sociedade civil, isto é, o funcionamento
das relações econômicas com respeito ao Estado que constituía a síntese ética.
Marx, neste momento seguidor de Feurbach, procura mostrar como o estado de
igualdade dos cidadãos frente à lei é uma falsa universalidade na medida em que cria um
“céu” (o Estado) em que os homens são iguais, enquanto existe uma terra (a sociedade
civil) onde vigoram as relações de propriedade e os homens são, por conseqüência,
desiguais.
Marx retorna pois aos conceitos de “sociedade civil” e “sociedade política”, mas para
mostrar que as relações econômicas constituem a base da sociedade civil e política, melhor
dizendo: as relações econômicas constituem a estrutura-base essencial de toda sociedade e
do Estado
4) O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de guia para os
meus estudos, pode formular-se, resumidamente, assim.
Devemos notar a expressão: “guia para os meus estudos”. Marx aqui insiste sobre o
caráter do método com que se apresenta a sua concepção.Trata-se antes de tudo,de um
método de pesquisa. Não uma concepção em si concluída, um sistema de “verdades”
definitivas, mas um modo de pensar sempre aberto a novas aquisições, sempre pronto a
colocar em dúvida o já adquirido.
O método de Marx, que se traduz na analise a realidade social e dos processos
históricos e políticos duma realidade histórica e determinada, visa, também e sobretudo,
guiar a uma ação capaz de transformar a realidade social e de incidir sobre os processos
históricos .
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correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas e
materiais.
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8) Não é a consciência dos homens que determina o seu ser: ao contrário, é o seu ser
social que determina a sua consciência.
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10) De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se
em entraves.
12) Abre-se pois, uma época de revolução social: a transformação que se produziu na
base econômica transtorna mais ou menos lenta ou rapidamente toda a colossal
superestrutura.
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correspondência mecânica. O primeiro “pode ser verificado fielmente com a
precisão das ciências naturais”.
Marx reivindica aqui o caráter autônomo que a ciência da economia tem adquirido
com os clássicos da economia política burguesa, Adam Smith e David Ricardo. Reivindica
também o rigor de que esta ciência é capaz.Devemos todavia observar que Marx, na época
em que redigia esse Prefácio, estava sob a influência da epistemologia da física clássica,
segundo a qual as leis da natureza são rigorosamente determináveis, absolutamente
deterministas e não podem sofrer exceções. Movimentava-se pois no quadro de uma
concepção mecanicista da natureza e das ciências da natureza. Mas já, na época da
elaboração de O Capital (vol.III) se pode notar em Marx uma perspectiva mais
probabilística, mais próxima das epistemologias contemporâneas. No terceiro volume de O
Capital, ele observa: “Em toda produção capitalista a lei geral se afirma como tendência
predominante só em modo muito complicado e aproximativo...”
Outra característica tem a “transformação” das “formas jurídicas, políticas, religiosas,
artísticas ou filosóficas” que recebem influência das relações de produção. Marx nos diz
que aqui nos aventuramos em um campo mais problemático, que exige análises muito sutis
e complexas, e nem sempre tais que se possa chegar a conclusões exaustivas. Admoesta-
nos a não estabelecer relações mecânicas e simplistas entre a base econômica e a
superestrutura.
Ele define essas formas como ideologias. É em nível das idéias que os homens,
segundo Marx, concebem os conflitos de classe (as contradições entre as forças produtivas
e as relações de produção) e é em nível das idéias que os combate. Mas o que entende Marx
por “ideologia”?
Por ideologia entende (ver “Ideologia Alemã”) uma falsa consciência da relação entre
idéias e estruturas sociais, isto é, entre idéias e base econômico-social, entre idéias e classes
sociais. Daqui deriva a ilusão de que as idéias possam por si mudar a sociedade e que seja
suficiente só uma consciência crítica, como acreditavam os “jovens hegelianos”, criticados
justamente por Marx na Ideologia Alemã.
“Nenhum desses filósofos, escreve ele, teve a idéia de perguntar pela interconexão da
filosofia alemã com a realidade efetiva alemã, pela interconexão da crítica deles com a
própria circunstância material deles”.
Voltando à relação entre estrutura e superestrutura em geral, deve-se insistir sobre o
risco de cair em uma visão simplificada e mecânica dessa relação. É o erro em que caiu
grande parte do marxismo da II Internacional, também sob a influência do positivismo. (A
esse respeito ver a carta de 21 de setembro de 1890 de Engels a Joseph Bloch). A estrutura
econômica condiciona ou determina, sim, as instituições políticas, a organização do Estado,
a cultura, não porém de modo imediato, mas só em “última instância”. Entre a base
econômica e as superestruturas intercorrem mediações complexas.
A expressão “em última instância” pode parecer vaga e certamente arriscamos em cair
num metodologismo abstrato ou, pior, numa “filosofia da história”, se pretendêssemos
colocar com exatidão, antes da indagação histórica concreta, caso por caso, a intervenção
condicionante da base econômica, isto é, a relação que se estabelece entre a base
econômica, de um lado, e a organização do Estado, as relações jurídicas, as forças políticas,
os movimentos culturais, de outro. Deve ser captada vez por vez, no exame dos
determinados processos históricos. Somente com essa análise concreta e diferenciada se
podem colher essas interconexões, que se apresentam em formas complexas e mediadas.
14) Do mesmo modo que não se julga um indivíduo pela idéia que se faz de si mesmo,
tampouco se pode julgar uma tal época de transformação pela consciência que ela tem
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de si mesma. É preciso, ao contrário, explicar esta consciência pelas contradições da
vida material, pelo conflito que existe entre as forças produtivas sociais e as relações de
produção.
15) “Uma formação social jamais desaparece antes que estejam desenvolvidas todas as
forças produtivas que possam conter, e as relações de produção novas e superiores não
tomam jamais seu lugar antes que as condições materiais de existência dessas relações
tenham surgido no próprio seio da velha sociedade. Por isso a humanidade não se
propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois aprofundando a análise,
ver-se-á sempre que o problema só se apresenta quando as condições materiais para
resolvê-lo existem ou estão em via de existir”.
Com a individuação das bases objetivas da revolução ou transformação se dá um
fundamento científico à luta. Estamos colocados, com clareza, em frente à superação das
formas utópicas do socialismo e das concepções abstratas de revolução. Para que a
revolução seja possível, não é suficiente a vontade das vanguardas. A possibilidade da
revolução está fundamentada sobre o caráter objetivo do desenvolvimento social.
O processo histórico é visto por Marx como uma permanente dialética entre forças
produtivas e relações sociais, entre o momento da correspondência e o momento da
oposição. É indispensável ter sempre presente tal distinção entre os dois momentos, pois é
diversa a lógica interna de cada um. A revolução não se torna possível pelas idéias. É mais
o processo real que torna possíveis idéias capazes de guiar o processo revolucionário.
Os socialistas utópicos como Fourier, Owen, Saint Simon, obedeciam ainda a uma
concepção iluminista, a de que as idéias válidas deviam por si convencer.Marx, ao
contrário, enfatiza a necessidade das condições objetivas do processo revolucionário. Uma
ação subjetiva, sem base objetiva, seria utópica e condenada à falência.
Marx polemizou toda a sua vida com os “alquimistas da revolução”, e foi sempre
forçado por exigências polêmicas a chamar atenção sobre a impossibilidade, também para o
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revolucionário, de dobrar as leis históricas e sobre o dever de conhecê-las e respeitá-las
para poder explorá-las.
Com isso não significa que o elemento subjetivo, “a consciência de classe”, não seja
importante. Não só é importante, mas fundamental; todavia, se a ação do movimento
operário não acompanha e não dirige os processos objetivos, mesmo um alto grau de
consciência e de combatividade da classe operária será inútil. A esta altura deveríamos
analisar o papel da classe operária na sociedade capitalista. É evidente que agora,
sobretudo nos países avançados, a classe operária não é mais sufocada pela miséria e
exploração selvagem. Isto implica em abandonar a concepção que vê no proletariado a
classe oprimida e que vê a miséria das massas como mola da revolução.
Já o próprio Marx mais maduro (quando escreve “O Capital” e os “Grundisse”), fazia
apelo não a um proletariado miserável, último degrau da escala social, mas ao contrário, a
um proletariado moderno e qualificado, que por sua formação técnica e a sua capacidade de
dominar os novos instrumentos criados pela inteligência, está em condições de gerir por si
o processo de produção.
16) Em grandes traços, podem ser designados, como outras épocas progressivas de
formação econômica da sociedade, os modos de produção (asiático, antigo, feudal e
burguês moderno).
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da humanidade. Vimos como para Marx os momentos objetivo e subjetivo na luta pela
emancipação são essenciais. Um momento não pode ser isolado do outro. Mas justamente
por isso o fim último da práxis revolucionária não pode ser uma mera conquista
econômica, nem uma simples transformação social, mas o restabelecimento da realidade
revirada, isto é, o sujeito restituído a sua função de sujeito, o produtor restituído ao
domínio do processo produtivo.
À medida que as forças produtivas se expandem e se socializam, à medida que o
processo produtivo se torna mais complexo e deve responder a uma racionalidade interna
própria, o papel do capitalista fica concluído e deve ser substituído pela inteligência e pela
capacidade técnica: o “saber social geral”, como diz Marx nos Grundisse, chegará a um
papel cada vez mais importante. Em outras palavras, o desenvolvimento das forças
produtivas cria progressivamente um processo social de produção que torna mais supérflua
a figura do capitalista.
Claro, isso implica uma expansão, em todos os níveis ,da participação democrática.
Isso também implica, além de muitas lutas, uma revolução cultural. Revolução cultural não
significa certamente aquisição de noções e de “cultura” em sentido burguês. Significa
desmistificação da consciência, capacidade de ver as relações sociais no mundo real ao
invés do mundo revirado, de ver a totalidade concreta em lugar das ideologias. Isto
significa ter adquirido uma consciência de classe. Sem essa revolução cultural, sem essa
autotransformação do sujeito, as simples mudanças econômicas e sociais não nos darão o
socialismo.
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