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Ana Cristina Rodrigues
Organizadora

Apresenta:

O melhor do Desafio Operário

Contos de:
Daniel Gomes

Aguinaldo Peres

Abelardo Pedroga

Ana Cristina Rodrigues

Ana Carolina Silveira

João Dória

Ubiratan Peleteiro

Charles Dias

Leonardo Carrion

Joshua Falken

Antonio Luiz da Costa

Leandro Reis

Miguel Carqueija

Ana Letícia Fiori

(Fevereiro/2009)
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Revisão: Ana Carolina Silveira, Ana Cristina Rodrigues e Luiz Felipe Vasques

Capa e diagramação: Estevão Ribeiro

Índice

Apresentação ...........................................................................................................................05

Os Demônios, Talvez, Chorem – Daniel Gomes ...................................................................06

Sob a Proteção da Tempestade – Aguinaldo Peres ..............................................................15

Cruzeiro do Sul – Abelardo Pedroga ....................................................................................19

A canção dos Senhores da Guerra - Ana Cristina Rodrigues ............................................49

Através do espelho – Ana Carolina Silveira .........................................................................53

Outro dia Qualquer - João Dória ..........................................................................................57

Clandestinos – Ubiratan Peleteiro ........................................................................................63

Quem tudo quer nada tem - Charles Dias ............................................................................76

Marcos cinco descobre Deus - Leonardo Carrion ...............................................................84

Não precisamos de heróis - Joshua Falken ..........................................................................92

Papai Noel volta para casa - Antonio Luiz da Costa ...........................................................95

Sacrifícios - Leandro Reis ......................................................................................................98

Guerra da água - Miguel Carqueija ...................................................................................108

Em nome da coerência - Ana Letícia Fiori .........................................................................112

Biografias ...............................................................................................................................115
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Apresentação

A Fábrica dos Sonhos surgiu em fevereiro de 2005 com a proposta de ser um ponto de encontro
e de criação para autores de Ficção Científica e Fantasia. Quatro anos depois, a missão – que
não acabou – foi cumprida com louvor. Pessoas do Brasil inteiro já estiveram no grupo, alguns
por muito tempo, outros por poucos meses. Muitos começaram a escrever “a sério” na Fábrica e
aos poucos o reconhecimento, com prêmios e publicações, foi aparecendo. Textos de tamanhos
e estilos completamente diferentes surgiram nas atividades e debates. Projetos surgiram, alguns
mesmo se expandiram para fora da Fábrica, como no caso da revista Black Rocket.

E sinceramente dá um orgulho danado ver tudo isso. Claro, houve bons e maus momentos, brigas,
rusgas, comentários ácidos e ironias – afinal somos todos humanos, apesar dos comentários
sobre minha pessoa. Totalmente infundados, diga-se de passagem.

Esse ebook, reunindo quatorze contos, vai da space opera à high fantasy, passando por alegorias
e até mesmo uma fantasia gaimaniana com um ícone natalino. Do espaço profundo ao outro
lado do espelho. De um futuro sem água até um planeta com águas vermelhas. Com robôs,
paladinos, juízes, dragões e policiais temporais.

Os contos foram escolhidos em enquetes respondidas pelos próprios operários. Na hora de


montar o livro, escolhemos os mais representativos de cada um dos integrantes da Fábrica.
Justiça seja feita, foi quase impossível escolher só um do Aguinaldo, o grande campeão dos
desafios até hoje.

Agradeço aos escritores que compartilharam seus textos nesse livro. Estendo o agradecimento
aos todos os autores que já estiveram conosco e tomaram outros caminhos. Espero que entendam
o motivo desse livro privilegiar os “operários” que ainda estão conosco. E também agradeço
o apoio daqueles que acreditaram na Fábrica desde o começo: Lorna Dannan do Scriptonauta,
Marco Bourguignon da Scarium, Alexandre Lancaster da SciPulp (que virou parte da Fábrica) e
Octavio Aragão da Intempol. Ah, e um ‘thank you’ especial ao Felipe Vasques, que gentilmente
ajudou as duas revisoras.

Mas do fundo do coração, agradeço aos operários que estão na Fábrica desde seu primeiro ano,
aos trancos e barrancos: Abel, Dan, Aguinaldo, Ana Carol, Flávio e Claudiney.

Esse livro é uma demonstração do quão mais útil é sentar e fazer do que ficar esbravejando
contra o que vem de novo por aí.

Niterói, 28 de fevereiro de 2009.


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Abril de 2005

Tema: Sacrifício dos Anjos

Os demônios, talvez, chorem


Daniel Gomes

Eu sou Alazham e estou aqui para contar-lhes um pedaço pequeno de uma história há muito
perdida. Algo que faz parte de um todo que veio a surgir e a se insurgir por si só, desenrolando-
se e criando novos paradigmas. Algo que nos levou a nossa atual situação, passada, presente e,
quem sabe, futura.

Neste lugar inóspito encontrei, finalmente, Gaia, o livro escrito por seres muito antigos e
desconhecidos. Procurava por esse livro a mais de 70 anos, envelheci, mas, acima de tudo,
tenho que continuar. Tenho que saber o motivo das coisas estarem ocorrendo do jeito que estão.
Não posso dizer e não posso parar.

O vento frio e cortante varre os corredores escuros e abandonados, testemunhas da esquecida


glória do antigo castelo de Walkilia. Este, antes da Guerra Paradoxal, foi o centro do Grande
Império, mas um louco tomou as rédeas da política do Império e criou uma das maiores, senão
maior, Guerra que a humanidade havia enfrentado. O mais engraçado e estranho é que ao
passear pelas páginas de Gaia já estava predito em letras quase desconhecidas os eventos que
ocorreram em posteriori.

Impressionante, é o mínimo que eu posso pensar. E, ao chegar a um ponto que desconhecia,


apesar dos meus estudos sobre Gaia e de lendas que cultivei e vi em várias partes do planeta,
vejo, agora, parcialmente, o motivo de algumas coisas e alguns dos elementos que nos levaram
a Guerra Paradoxal e a procura das Esferas do Poder.

Aqui, e agora, transcrevo parte desta história.

...

Ocorreu a muito, num local conhecido Asgaroth, um dos 6 impérios que tomavam conta do
mundo. Este império havia sido formado logo após o Concilio que decidira suspender as
viagens espaciais até que o espaço fosse totalmente seguro para se navegar. Pois quando o nosso
planeta fizera viagens espaciais tivera contato com raças do espaço, mas algumas se tornaram
inimigas. Logo, enquanto viajávamos, estávamos a mercê de inimigos poderosos que, algum
tempo depois, vieram a nosso planeta em guerra para reivindicá-lo como sendo deles. Assim,
tivemos que nos isolar para não sermos mais atacados.

Com o nosso exílio criado, continuamos as nossas vidas. E precisávamos descobrir meios de
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continuarmos existindo, pois as viagens espaciais haviam trazido novas tecnologias e uma delas
nos deixou dependentes da Energia Mako. Pensávamos que tal energia não existia no nosso
planeta, o que nos obrigava a importá-la a todo custo. Mas, como se sabe, toda necessidade nos
traz novas maneiras de lidar com os problemas. Começamos os estudos sobre a Energia Mako
e, a partir destes, soubemos que esta existia em nosso planeta e de forma abundante. Criamos
mecanismos para a procura de tal energia e, depois de certo tempo, pudemos achá-la em sua
forma pura e extraí-la. Surgira as Usinas de Força Mako.

Existiam, no momento que esta história se passa, mais de 12 usinas Mako, duas em cada país
ali presente e foi em Asgaroth, o Império mais poderoso e influente do planeta que a revolução
começou.

...

“Finalmente,” – exclamou um homem que estava numa espécie de laboratório. – “Consegui


criar a primeira Matéria Artificial.”

Ele manipulava, cuidadosamente, os braços mecânicos da máquina que segurava um pequeno


globo azulado cintilante.

“Com todo cuidado,” – disse seu companheiro. – “não podemos deixar esse negocio cair, pois,
se for como vimos nos cálculos teóricos, se esse troço cair será, no mínimo, catastrófico.”

“Eu sei, eu sei,” – resmungou. – “eu sei disso, por isso não deixo qualquer um manipular a
energia Mako pura para criar a Matéria.”

No laboratório havia alguns poucos cientistas, que agora comemoravam a criação da primeira
Matéria artificial do mundo, possibilitando o uso artificial da Energia Mako e muito mais. Ainda,
lá, havia também alguns poucos empresários admirando o trabalho daqueles que eles estavam
financiando.

Um desses engomados havia chegado ao local onde estava o cientista.

“Então, essa é a Energia Mako artificial, Doutor Thorpe?” – perguntou.

“Sim e muito mais do que isso... não é uma energia qualquer. Essa Energia Mako é denominada
de Matéria e pode ser absorvida pelo homem.” – disse o doutor Thorpe, contentíssimo.

“Absorvida? Como assim?” – perguntou o seu colega que estava do lado. Assim como muitos
outros, agora, estavam atentos ao que o doutor Thorpe revelara.

“Vocês são uns estúpidos ignorantes. Se vocês tivessem lido as runas que trouxemos das ruínas
de Gailatoh, saberiam que a Matéria, em seu estado bruto, encontrado em alguns poucos lugares
no planeta, é a essência dos Antigos.” – disse, explicando-se.

“Pronto, mais um que endoidou de tanto estudar.” – disse um dos empresários que estavam
próximos.
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O doutor Thorpe, então, soltou uma gargalha que parecia sarcasmo para uns e loucura para
outros.

“Não exatamente, caro “chefe”. Os Antigos eram uma raça que veio a esse planeta e instruiu os
nossos antepassados, antes das guerras e do Grande Êxodo, com elementos muito além de nossa
capacidade. Pelas runas antigas para que os nossos antepassados pudessem aprender sobre os
elementos que regiam as habilidades que aqueles seres estavam trazendo, muitos deles haviam,
de alguma forma, se fundido com a ‘essência’ de nosso planeta e, ao fazer isso, se converteram
em Energia Mako. Só que, de uma forma consciente, eles se canalizavam em algum ponto do
nosso planeta formando o LifeStream – Corrente da Vida – cristalizando-se a um ponto no qual
criava-se a Matéria.

“Algumas Matérias davam, aos nossos antepassados, conhecimentos avançadíssimos,” -


continuou. – “Isto somente ao tocar aquela forma de Energia. Em outros casos, como foi visto
posteriormente, algumas pessoas poderiam sugar a Matéria, canalizar certos poderes e, assim,
invocá-los.”

Um dos cientistas olhou temeroso para aquela falação toda e sabia que algo de ruim estava para
acontecer.

“Você é louco???” – Disse o cientista – “Você sabe o que isso quer realmente dizer!!”

Alguns outros, que não eram versados em história antiga ficaram, apenas, atônitos. Mas outro
se pronunciou.

“Não acredito que você queira voltar para aqueles tempos? Ele é realmente louco,” – disse o
cientista. – “Você não sabe com o que está lidando.”

“Não sei?” – disse o Doutor Thorpe. – “Não sei com o que estou lidando Williams?” – riu do
seu colega. – “Vocês é que não sabem ver a oportunidade a sua frente. “

“Que oportunidade? De destruir, novamente, a humanidade? De voltarmos para a Era do Caos


logo após a queda dos Antepassados? De ficarmos a deriva até que uma raça, de algum outro
planeta, viesse nos salvar e, praticamente, nos escravizar?”

“Vocês não entendem, como sempre, nunca entendem. O que eu estou fazendo aqui é o melhor
para a Humanidade. Depois da criação dessa Matéria e o seu estudo, será possível que todos
possamos controlar as Matérias Naturais e invocar aquilo que nos pertence, que nos foi dado
pelos Antigos,” – continuou Thorpe – “E, assim, seremos os donos das estrelas mais uma vez,
antes da Era das Máquinas.”

Um dos cientistas, de nome Hawking, se aproximou por trás de Thorpe e tentou agarrá-lo, só
que um campo de força havia surgido em torno dele.

“Viram? Já começou...” – disse Thorpe, dando uma risada.


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“Mas, como?” – perguntou Hawking. – “A nãoser que você tenha entrado em contato com a
Matéria.”

“Como não?” – Sorriu sarcasticamente Thorpe. – “A Matéria sempre esteve comigo. Quando eu
fui às ruínas de Gailatoh, fui tocado por um LifeStream antigo, que ali estava enterrado. Senti
a força de um Antigo fluir nas minhas veias, e assim pude trabalhar nessas Matérias Artificiais.
Foi esse Antigo que me pediu para criar a Matéria com o conhecimento que me dera.”

Todos olhavam atônitos. Será que a Era do Caos estava para ser reiniciada? Será que a
humanidade, mais uma vez, estaria face a face com o seu fim?

“Doutor, calma,” – disse Williams – “O senhor não quer fazer isso. Você está sendo influenciado
por agentes exteriores. Ou foi exposto, por demais, a radiação Mako. O senhor sabe o que
radiação demais faz com o corpo humano.”

“O que? Eu não estou louco... eu não estou sendo influenciado...são... vocês... uggg,” – um brilho
azulado permeou todo o corpo daquele cientista. –“ Vocês não sabem o que estão dizendo..
huauhauauahuah... eu? Influenciado? Louco? Patético, vindo de vocês.”

Levantou a mão, jogando a todos no chão, com uma força vinda de algum lugar.

“Patético. Bem como ele disse... huahua,” – riu. – “Os humanos não prestam... que não deveriam
ter compartilhado Matérias com eles. Ele foi contra, como alguns outros de sua raça, mas não,
a maioria não quis se opor... Ele foi... foi... aprisionado. Eles, da rua raça, não queriam que más
influências viessem a tona e pudessem infectar a Nova Energia Mako, as Matérias, eles queriam
apenas dar conhecimento, somente isso, não queriam dominar a nada nem a ninguém.”

Um outro brilho mais forte veio a tona no corpo do cientista.

“ Ele continuou contra, num primeiro momento ele não achava os humanos imprestáveis, mas,
sim, que a humanidade ainda não tinha a capacidade de conter tais conhecimentos. Ele sabia
que os humanos, em seguida, poderiam fazer coisas ruins com as Matérias, como fora feito a
posteriori. Mas, não... ele teve que ser trancafiado... agora... agora... ele busca vingança, mesmo
que as outras Matérias, em suas consciências, não puderam ser infectadas, ele infectou aquela
das ruínas de Gailoth e, finalmente, conseguiu acesso ao exterior e, agora, irá fazer aquilo que
deveria ter feito a muito tempo.”

O Doutor Thorpe, que agora transluzia em cores azuis fortes, levantou a sua mão direita,
explodindo o vidro que dividia a sala de operações dos braços mecânicos fazendo a Matéria vir
até ele. A Matéria, uma esfera perfeita em verde, brilhava tal qual o sol num dia de verão.

“Essa Matéria sou... é... ele... Ultima, é o seu nome... com o conhecimento sobre todas as
Matérias conhecidos e, agora, o mundo é dele... não... é meu...” – Voltou a rir sozinho.

Alguns, que estavam ali, começaram a correr, mas as portas estavam todas fechadas.
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“Tolos, ninguém pode escapar. Vocês serão os primeiros a presenciarem o começo da nova
Era.”

“Alguém faça alguma coisa,” – disse um dos engravatados no local.

Um dos cientistas pegou um pequeno Taser, que era usado em questão de segurança caso
se o laboratório fosse invadido, mas, antes de fazer um disparo foi parado por uma força
desconhecida.

“Vocês não conhecem os poderes da Matéria não é?” – disse Thorpe agora totalmente mudado.
Os seus cabelos, antes castanhos claros, agora estavam totalmente brancos, os seus olhos
emanavam uma cor vermelho sangue e sua pele era azul clara. – Os seus Antepassados não
puderam controlá-la muito bem e assim criaram a Era do Caos, mas eu não, eu controlo o poder
supremo, poder ao qual vocês não tiveram acesso, e agora nunca terão. “

Vários soldados, do lado de fora da sala de operações, estavam, a todo custo, tentando entrar no
local, mas um campo os impelia de chegar no local.

“Sinto a presença de mais humanos,” – disse Thorpe (se é que ainda era ele). – “Ótimo, mais
testemunhas para o fim.”

Quando, finalmente, segurou a Matéria, que ele mesmo chamara de Ultima, esta começou a se
mesclar em seu próprio corpo – “Enfim a fusão está prestes a começar.”

Algo ainda mais estranho aconteceu naquele lugar. Primeiro, um barulho ensurdecedor tomou
todo o lugar, em seguida, uma espécie de onda de choques, vindo de todas as direções puderam
ser sentidas por todos que ali estavam presentes. Parecia que a própria atmosfera do lugar
estava se rendendo ante o poder da fusão entre o corpo de Thorpe e a Matéria, num evento que
estava enlouquecendo o tempo e o espaço. Nada e nem ninguém estava preparado para aquele
momento. Aquilo era, na verdade, anti-natural.

Muitos ali apenas fecharam os seus olhos e começaram a rezar. Até mesmo os céticos, nos
momentos mais críticos, acreditam em deuses, seres superiores, ou seja lá no que for. O barulho,
cada vez mais, ficava insuportável. Aquilo realmente parecia ser o fim do mundo. Ninguém,
naquele momento, poderia salvá-los. Nada, o fim. Cruel, amargo e obscuro.

Quiserem tentar alcançar os céus, uma vez, duas, dez vezes, mas falharam. Tentaram conhecer
os seus próprios limites, mas falharam. Tentaram ser deuses, e, ruidosamente, também falharam.
A humanidade era, na verdade, um antro que, na equação geral, era uma constância para falha,
para a imperfeição e para a lamentação.

Os poderes superiores, agora, deveriam estar se lamentando por aquela criação. Chorar era a
única coisa a se fazer naquele momento. Se arrepender de seus pecados e, quem sabe, receber
a absorção de sua alma.
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Quem sabe?

Num último momento, antes do evento crítico, da última ponta para a fusão total, devido às
perturbações espaço temporais, um buraco temporal apareceu do nada. Um elemento surpresa
apareceu.

Era um homem, parecido como um outro qualquer, só que segurava uma outra esfera em suas
mãos.

“Agora são dois,” – disse Williams – “Estamos ferrados de vez.” – Começou a chorar pelo fato
que estava ali ocorrendo, como muitos dos seus colegas estavam fazendo.

“O que?” – perguntou surpreso Thorpe, se afastando um pouco daquele estranho que ali chegara.
– “Quem? O que é você?”

O homem, estranho para aqueles ali presentes, era sentido por Ultima, um sentimento familiar,
mas, ao mesmo tempo, estranho também. Apesar de estar a quase 100% de toda a sua força,
Ultima olhava com receio para aquele ser. Não estava gostando nada daquela situação.

“Você...” – disse o homem. – “Você começou isso... mas, agora, é obrigado a voltar... a se
separar e dar início aquilo que foi previsto a muito.”

“Não...” – agora era definitivamente Ultima falando por meio de Thorpe. – “Não pode fazer
isso comigo. Cheguei até aqui, depois de milhares de anos de planejamento vocês não podem
me parar agora.”

O homem aproximou-se, ainda mais, de Ultima, estava segurando uma esfera de cor esverdeada
– muito parecida com a de Ultima, uma semelhança sem igual –, e, a cada passo, Ultima andava
um para trás.

“Jamais irei me entregar... você, nem os outros, nem ninguém, irá me levar de volta.”

“Mas é o ciclo que dá inicio agora. Você tem que ceder. Não existe mais saída. Agora que você
começou o ciclo, ele deve continuar. Deve fluir. Agora!” – disse o homem. A sua esfera reluzia
contrastando com a cor azulada de Ultima. – “Você sabe disso, não quer que eu tenha que
enfrentar você.”

“Nunca. Não me entregarei a você...” – disse Ultima, agora totalmente acuado.

“Você não tem mais para onde se esconder. Nós sentimos a sua presença. Eu senti a sua presença
e é por isso que fui trazido até aqui. O seu poder no total é menor que a soma das pequenas
partes, eu sou uma delas e você não tem mais o seu lugar aqui... já fizeste a sua parte e, agora,
não adianta chorar, se é que você sabe o que se significa isso, nos o deixamos se sacrificar para
o lado no qual havia escolhido porque sabíamos que você chegaria até aqui e, assim, libertaria
a onda de eventos que estão por vir.”
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“Tudo um... um plano? Vocês me deixaram porque quiseram? Me sacrificaram? Mas... mas...
mas... porque?” – não se sabia se era o Thorpe ou Ultima que estava dizendo aquelas palavras.

“Sim... nós o deixamos se sacrificar para, como os humanos dizem, lado negro, lado maligno,
para que, assim, a corrupção dessa escolha pudesse ser feita. Nós, por si mesmos, não podíamos
fazê-lo e não queríamos sacrificar a nossa `santidade’, pois os eventos a seguir não nos permitiam
sujar as Matérias dos poderes que serão usados. Tivemos que escolher um... e esse foi você,”
– disse o homem que segurava a esfera, esta, bem observada, tinha um desenho de um homem
segurando duas espadas num cavalo. – “Agora, você vem conosco.”

O homem, então, com a sua mão esquerda, retirou uma masamune, uma espada e segurou, com
a mão direita, a esfera para invocar a entidade que ali estava – que depois seria conhecida omo
a Esfera de Poder, mas não era uma das 7 existentes e sim uma nova, a 8 – invocando Odin, um
dos 8 Guardiões da Força que residiam nas Esferas do Poder. Estas faziam parte das Ardins,
que, por sua vez, faziam parte da Tomil Ardon e que por sua vez era a Matéria que restara do
embate a seguir – fazendo, assim, a fusão entre o homem e Odin.

Agora, a frente de Ultima, estava o Guardião da Força, vestindo uma armadura negra em todo
o seu corpo. Apenas o rosto, moreno claro, do homem, podia ser visto. Com o seu porte altivo
fazia Ultima, aos poucos, vacilar até mesmo em sua respiração.

“Nunca...” – disse Ultima, e atacou Odin. – “ Gravitaaaaaaa!”

Com o grito, invocou um antigo poder dos Ancestrais do qual tomara conhecimento na sua
estada como Matéria. Uma bolha negra começou a crescer em uma de suas mãos e, depois
de alguns segundos, tomara metade da sala de operações. Os que entravam em contato com a
mesma tinham a sua carne retorcida por causa da gigantesca gravidade que ali residia.

Rapidamente, Odin cortou a bolha de gravidade, fazendo-a desmoronar sobre si mesma.

“Como??? COMOOOOOO?” – perguntou,e atônito. – “Você não tem força para isso.”

“Não me teste...” – disse Odin. – “O seu tempo terminou... não há mais nada que você tenha a
fazer aqui. Venha... não resista.”

“Firagaaaaaaaaaaa!” – uma torrente de fogo começou a girar em todo o recinto fazendo a


temperatura atingir alturas altíssimas. Um botijão de oxigênio, ali perto, explodira, fazendo
Odin ser jogado daquele lugar. Eles estavam no 22º andar. Ultima foi atrás dele.

Os que ainda estavam vivos foram a beirada do buraco aberto e viram tanto Ultima como Odin
caindo em direção à avenida na frente do prédio.

O homem, juntamente com a sua armadura de Odin, caíram rapidamente e se estatelaram contra
o chão, abrindo um buraco no asfalto local, parando, assim, o transito. Do mesmo modo Ultima,
ao chegar naquele lugar.
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Vendo o buraco feito ao chão, Ultima jogara um Gravija, uma versão mais potente do Gravita.
Ao tocar as bordas do buraco, o poder fizera com que estes ficassem distorcidos e rachassem,
ainda mais, o local e, lentamente, a bolha negra caminhava em direção ao seu alvo. Antes
de atingir o mesmo, esta começara a voltar, só que, ao contrário de vir devagar, vinha numa
velocidade absurda, dando somente um tempo infinitesimal de Ultima se desviar. Avançando
para o céu, passando a estratosfera, a atmosfera do planeta, passando o satélite natural e, enfim,
chegando além da órbita planetária, implodindo e, em seguida, abrindo, momentaneamente, um
buraco de minhoca.

“Canalha... morra!” – disse Ultima. – “Figggaaaaaaaaa!”

Uma nova onda de calor veio para cima de Odin, mas fora cortado, rapidamente, por sua
espada.

Odin, agora, o encarava. Sabia que não tinha escolha.

“Os humanos já sabem demais. Eles hão de usar a Matéria para fazer o mal, mas, pelo menos,
você, Ultima, jamais será usado,” – Odin levantara a sua espada – “Você não me deixou escolha
e, mesmo que eu estivesse, já está tudo pronto.”

Colocou a espada sobre a sua cabeça e fez sinal de ataque.

“Enfim, não se pode lutar contra o Destino,” – e com um impulso, foi para cima de Ultima.
– “Ragnarokkkkkkk!”

Cortou Ultima horizontalmente, depois verticalmente e, em seguida, em formas tais quais


usadas na Rosa dos Ventos, dezenas, centenas, milhares de vezes, até que, por fim, a essência
de Ultima estava toda estilhaçada.

Thorpe caiu inerte, seu corpo voltando ao normal. Uma voz breve e suave pode ser ouvida.

“Por quê? Por quê? Não era a minha hora... era hora de dominar, ser o que eu fui feito para ser”.
– Perguntava Ultima, lamentando-se.

“Sim... você foi feito... foi feito para ser um demônio... na concepção humana, uma espécie
de anjo caído... você foi corrompido e corrompeu os outros e, agora, nesse ato, os eventos se
seguiram e sua essência dará lugar as novas essências que estão por vir... o seu dia de liberdade
já chegou e, enfim, você poderá, em breve poderá se integrar, novamente, a essência de Gaia e
ser uno com ela.”

Ultima, por fim, se transformou numa nova esfera e explodiu, com uma velocidade sem igual,
para um rumo desconhecido por muito tempo.

“Que os deuses cuidem dos humanos dos dias que virão... a provação, a última deles, começa
agora.” – Falou Odin, afastando-se do local. Desapareceu em seguida, deixando o corpo, ainda
vivo, de Thorpe no chão. Este seria o homem que daria inicio a Guerra das Matérias que levaria
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a extinção, temporária, delas.

...

“Então existe um oitavo Guardião da Força. Mas onde estará ele?” – pergunta Alazham – “Até
o momento nada dos meus estudos sobre as Esferas do Poder me indicavam que existia essa
entidade, essa oitava entidade. Será que os Antigos eram os Anjos que os nossos parentes da
Era do Caos falavam?”

“O que será que esse livro ainda esconde?” – perguntou ele, continuando a folhear o livro.
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Julho 2005

Tema: Peregrino

Sob a Proteção da Tempestade


Aguinaldo I. Peres

No séc. IV, a principal rota comercial entre a capital nirana do Reino de Temi e as fortalezas dos
ittacianos na Cordilheira de Oszitte margeava o grande Deserto Vermelho – situado a sudoeste
da Península de Yuracan – até a cidade de Kalgor. Somente então as caravanas ousavam penetrar
do deserto para atravessar seu ponto mais estreito. No meio dessa trilha existia um grande
rochedo que se sobressaia no deserto e, aos seus pés, o caravançarai tão antigo quanto o próprio
rochedo. O caravançarai era uma única e grande construção dividida em três partes: a morada
do administrador, o albergue para os viajantes e o estábulo capaz de abrigar até cem animais.

...

A tempestade de areia cobria o céu, de horizonte a horizonte. Eram apenas dez horas daquela
manhã sem sol. Com todas as janelas fechadas, a área reservada aos viajantes estava iluminada
apenas pelas lamparinas. Quatro mercadores, com túnicas brancas e mantos riscados em branco
e azul, conversam em torno do prato de frutas secas sentados em almofadas colocadas sobre o
grosso tapete.

- Maldita tempestade! Já viram tempestade assim?

- Nunca! Parece até que o Sol e o Céu não existem mais.

- Já estávamos dois dias atrasados, e agora essa tempestade...

- Acalme-se, chegaremos a Temi a tempo para o grande mercado.

Um servo entrou no salão segurando um lampião, sendo seguido pelo novo hóspede - um
peregrino loiro com vasta barba e vestindo manto negro sobre a túnica branca. O servo guiou
o homem até a mesa aonde encheu uma bacia com água limpa para que o viajante lavasse as
mãos e o rosto. Só após se purificar foi que o homem se dirigiu e cumprimentou os mercadores.
O mais jovem cedeu o lugar ao recém-chegado.

- O que o traz a este local de repouso? - perguntou o mais velho dos mercadores, um senhor de
barbas brancas.

- Estou indo para o sagrado Monastério de Temi em peregrinação.

- Nesse caso estava fugindo da tempestade.


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- Pode-se dizer que sim.

- Em Kalgor, eles costumam dizer que as tempestades são provocadas pelos demônios que
correm furiosos pelo deserto – comentou um dos mercadores.

O servo retornou ao salão trazendo a chaleira com água quente que foi entregue ao peregrino.
Este então derramou a água num recipiente cheio com uma mistura de ervas, ajeitou a piteira de
prata e a ofereceu à pessoa a sua direita. Os mercadores experimentaram a infusão e elogiaram
o gosto suave e o delicado perfume das ervas até o recipiente retornar ao dono.

- Pois os monges negros contam outra estória...

E o peregrino narrou a seguinte lenda:

...

Há muitos anos, antes mesmo que os primeiros niranos chegassem à Península de Yuracan,
a jovem Ariella – que viria a se tornar uma das mais ferozes sacerdotisas da deusa Guerra
– deixou o lar nas montanhas Ittaci e partiu sozinha para o Deserto Vermelho à espera de um
sinal da deusa.

Assim que a jovem deixou a segurança das montanhas, adentrando no deserto, ela foi notada
por Seret, o Inimigo, que odiava todos os humanos e em especial aqueles que eram benquistos
pelos deuses de Yuracan.

- Lezzet! Venha até mim, Lezzet – gritou Seret, o Maligno.

A criatura invisível se aproximou de seu senhor.

- O que posso fazer por vossa senhoria? – murmurou o demônio.

- Veja, Lezzet! Aquela patética criatura ousa pisar nas areias vermelhas, nas minhas areias
vermelhas! – bradou Seret, o Furioso – Vá e perturbe a mente daquela humana. Faça com que
ela se perca e vague pelo deserto até morrer de fome e sede. E deixarei que você se alimente de
toda a dor e sofrimento!

Lezzet, o Mentiroso, partiu com o vento e em instantes caminhava ao lado da jovem ittaciana
sem ser notado. E ele sussurrou palavras falsas e verdadeiras, de coragem e vergonha, de solidão
e amor, de prazer e dor, vida e morte. Mas a jovem nada ouvia, pois a grande paz inundava seu
coração. Então o vento veio e carregou consigo as mentiras e o demônio.

- Lezzet, seu inútil! – maldisse Seret, o Arrogante – Se palavras não a atingem, então que o
próprio deserto a destrua.

E das chamas eternas que são a essência do senhor dos demônios, o braço de couro vermelho
surgiu e da mão em forma de garra de águia escorreu um punhado de areia vermelha.
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- Veetrnyy, erga-se das areias escaldantes e arranque a carne dos meus inimigos até sobrar
apenas ossos!

E, das profundezas do deserto, Veetrnyy, o Turbilhão, surgiu para atender o chamado do mestre.
O demônio criou um redemoinho de vento que levantou a areia do deserto, transformando-as
em chuva de pequenas agulhas capazes de lixar até o grosso couro de um camelo. Os fortes
ventos atingiram a jovem Ariella fazendo-a cambalear. Impossibilitada de andar, a guerreira
agachou-se sobre a areia e cobriu a delicada pele negra com o manto. E o poder de sua vontade
foi tão forte que o vento e a areia não foram capazes de atingi-la. Mesmo o poder dos demônios
nunca foi infinito, e com o tempo a tempestade findou.

O frio olhar de Seret, o Tirano, passou sobre seus filhos demoníacos que se encolheram de
medo. Não encontrando nada que lhe agradasse, olhou para fora de seus domínios até que
encontrou uma criatura maligna o suficiente para seus propósitos. E sua vontade levou-o até os
confins do pântano salobro de Ziilrite, ao sul do Deserto Vermelho.

- Acorde, Kruttas, Senhor do Pântano!

Mergulhado no lodo, a gigantesca serpente de duas cabeças abriu os olhos.

- O que o Senhor do Mundo deseja do Senhor do Pântano? – sibilou o monstro.

- Façamos o pacto! Eu lhe darei o dom de andar entre os humanos e em troca você destruirá
todos aqueles que ousarem atravessar meu deserto.

A serpente aceitou o acordo e em instantes estava percorrendo o deserto com a pele de um


humano. E foi questão de tempo para Kruttas encontrar sua presa. Aproveitando-se da forma
humana, a serpente se aproximou de Ariella e então para a surpresa da jovem ele retornou à
verdadeira forma. As línguas bipartidas saborearam o acre cheiro de suor e medo. Apesar da
jovem guerreira enfrentar corajosamente o monstro de espada em punho, o destino dela estava
selado.

Porém a deusa Guerra nunca abandonou aqueles que lhe servem com coragem. Ela apontou a
lança para um de seus leais generais.

- Vá e elimine da face da terra aquela criatura maldita.

E Nottavon, o Severo, caiu como um raio entre o monstro e a donzela. O gigante de bronze
bradou os quatros braços. E diante daquele ser poderoso, Kruttas acovardou-se e fugiu sendo
então perseguido pelo servo da deusa.

Seret, o Traiçoeiro, ao ver o aliado em perigo, lançou sobre o deserto uma forte tempestade de
areia, permitindo que a grande serpente fugisse para o pântano. Contudo as ordens da deusa
são absolutas, e o gigante permaneceu no Deserto Vermelho sob a forma de enorme rochedo,
aguardando que Kruttas ousasse abandonar o esconderijo nos pântanos de Ziilrite.
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Ariella orou e ofereceu seu sangue para a deusa. Cumprida a provação, ela retornou as montanhas
Ittaci para tornar-se a sacerdotisa da deusa Guerra.

...

- ...e é por isso que os monges negros dizem que as tempestades de areia são enviadas por
Seret, o Senhor do Mundo, para ocultar Kruttas, o Senhor do Pântano, dos olhos do gigante de
bronze.

O peregrino deu a última tragada na infusão. Saciado, ele apreciou o silêncio após o fim de sua
história. Percebendo que a fúria da tempestade estava diminuindo, ele se despediu.

- É hora de partir. Obrigado pela atenção e pela refeição.

Então ele deslizou seu enorme corpo serpentino, deixando para trás o salão vazio.
19
Setembro de 2005

Tema: Rio de águas vermelhas

Cruzeiro do Sul
Abelardo Domene Pedroga

- Helô para Cruzeiro do Sul, responde Zeff...., RESPONDEEEEEEEEEE..

Mas é apenas estática que a jovem recebe como resposta. Ela está escondida no meio de algumas
pedras colocadas logo à entrada do templo. Alguns passos adiante, o corpo crivado de setas do
seu empregador. O analita, com seus seis tentáculos e corpo de medusa apresenta cinco ou seis
flechas fincadas em seu dorso gelatinoso que mais parece um paliteiro, o sangue amarelado
ainda escorrendo abundantemente. Ao lado do cadáver o objeto que levou o aventureiro e
Heloísa àquele planeta distante: o Colar de Ashash, uma relíquia religiosa que, segundo Hannar,
alcançaria o valor de quinze milhões de dhers no mercado negro.

Heloísa se aventura a colocar a cabeça para fora da proteção e percebe que a situação piorou
ainda mais. Se no começo eram dez atacantes, dos quais cinco já estavam fora de combate,
agora havia ao menos mais vinte correndo pela pequena trilha que vinha da aldeia dos nativos.

- Maldito seja Hannar e sua ambição desmedida. Duas novas flechas são lançadas pelos nativos,
por sorte batem nas pedras. Mas a mira dos nativos parece estar melhorando, pois até então elas
passavam direto pela entrada indo parar nos fundos do templo.

- Zeff, onde você está? Será que os veios de minério radiativo estão influenciando as
comunicações? ZEFF...

Ela olha para o magazim energético de sua arma e, desanimada, percebe ter carga para apenas
mais três tiros. “Que tremenda idiota que eu sou, onde estava com a cabeça quando concordei
em vir até aqui sem um traje de combate e armas adequadas?”, pensa ela.

Um grito feroz faz com que ela volte sua atenção para a entrada do templo, bem a tempo de ver
dois guerreiros correndo montanha acima em sua direção. Sem outra alternativa disponível, ela
efetua dois disparos e novos corpos se juntam àqueles que já haviam tombado em combate.

- Zeff... Zeff... Pelo amor de Deus... Zeff...

A arma energética de Heloísa só tem carga para mais um único tiro, e ela está decidida a não se
entregar aos atacantes.

- Cruzeiro do Sul para Heloisa, agüente firme, menina, estou chegando.


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- Desgraçado, venha rápido só tenho mais um tiro!

Os atacantes, decididos a terminar de vez com aquela caçada, se aventuram a subir a trilha
que leva ao templo. Então, todos ao mesmo tempo lançam-se contra a posição da inimiga,
seus gritos de guerra no entanto são abafados por um estrondo sônico. Diversos pares de olhos
voltam-se para o céu e vêem a majestosa Cruzeiro do Sul pairando no ar perto do templo.

- Saiam daí seus selvagens, deixem a Helô em paz. - a frase dita por Zeff assusta os nativos.

Alguns tiros energéticos são disparados pela nave. Os atacantes percebem claramente que não
terão chances contra o novo inimigo e, quando três deles tombam com um único disparo, os
demais saem em dasabalada carreira, deixando seus mortos e Heloísa para trás.

A pequena Cruzeiro do Sul, cujo formato é muito semelhante a uma de bola de futebol, pousa.
Seus 80 metros de diâmetro formam um contraste enorme com as ruínas do templo e também
com as árvores e todo o cenário ao redor.

Do interior da nave salta um ser que a primeira vista seria considerado um homem, mas em
verdade é um avatar, um andróide que faz às vezes de mãos e pernas da IA da Cruzeiro do
Sul.

- Aqui estou querida, salvando o dia.

Se o avatar, de nome Zefferino, esperava algum agradecimento, acabou por se enganar.

- Maldito seja Zeff, há horas estou lhe chamando, o que aconteceu?

- Os veios de minério radiativo interferem nas comunicações Helô. Devia saber disso. Vai levar
o corpo de Hannar?

- Não, deixe-o aí apodrecer, que sirva de comida aos carniceiros deste planeta. Eu só quero um
bom banho, uma garrafa do melhor vinho trafalgano que tivermos e dormir.

Sem esperar mais, Heloísa entra na Cruzeiro do Sul, seguida pelo avatar. Imediatamente a nave
levanta vôo, deixando para trás o corpo do analita, o colar e o planeta Mener, onde por pouco
não perdeu a vida.

- Para onde, Helô?

- Como para onde? A sede da IRMANDADE, onde mais podemos ir?

- Programando coordenadas de vôo.

- Vou fazer o relatório, na última viagem fiquei presa por cinco dias por não entregar o maldito
no tempo correto.

- Isso está em meus registros, Helô.


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Heloísa solta uma gargalhada. Ela pensou em pedir para os programadores da Irmandade
verificarem o programa da IA da sua nave, mas já estava tão acostumada com o jeitão de Zeff
que abandonou a idéia.

...

Dois dias depois.

A Cruzeiro do Sul se aproxima de um sistema espacial remoto. Uma leitura nos sensores
revela que já houve quatro planetas ao redor da velha estrela azul, mas um enorme cinturão
de asteróides demonstra que o segundo dos planetas explodiu há muito tempo. De maneira até
então incompreensível algumas das luas daquele mundo não foram atingidas pela catástrofe, e
formavam uma interessante anomalia como que em órbita dos destroços. A navegação espacial
por aquele emaranhado de corpos celestes é complicada e exige o máximo tanto do piloto como
de sua nave.

- Constelação dos Irmãos à frente. Zeff, emita o sinal de reconhecimento, não quero ser
pulverizada pelos canhões iônicos.

Zeff, que cuida das comunicações e armas, emite o sinal codificado e fica no aguardo da
confirmação, que se dá cerca de um minuto depois.

- Recebemos autorização para prosseguir, já estão enviando os planos de vôo.

Helô solta um suspiro profundo, qualquer erro de navegação ou de comunicação naquele


local e a Cruzeiro do Sul seria transformada em partículas cósmicas. De forma imaginativa os
Defensores da Irmandade haviam transformado o cinturão de asteróides em uma verdadeira
fortaleza, se necessário poderiam resistir a toda uma frota de combate sem maiores problemas.

A holotela se ativa mostrando a face sorridente do Controlador de vôo.

- Heloísa, que surpresa vê-la de volta tão cedo. Somente a aguardávamos para a semana que
vem.

- Aconteceram alguns problemas.

- E nosso cliente?

- Vamos dizer que ele não mais contratará nossos serviços.

- Grande perda, o analita sempre foi um bom cliente. Mas são coisas que acontecem.

Heloísa detesta essa conversa fiada do controlador, mas antes isso do que ser pulverizada.

- Siga o sinal que estou enviando, Helô. Vá para o hangar oito e cuidado para não perder o
prazo de apresentação do relatório. Fiquei sabendo que teve problemas com isso em sua missão
anterior.
22
- Obrigado pelo lembrete, desta vez não perco os prazos.

A tela se desativa, e Heloísa solta um “idiota” em bom tom. Para sua sorte a ofensa só encontra
o avatar e a IA da nave como testemunhas.

- Manobras implementadas, rota até hangar oito confirmada.

- Obrigada, Zeff, não sei o que faria sem você, sua lata de sardinhas ambulante.

- Não tenho registro desta designação, Helô.

Heloísa não consegue segurar uma sonora gargalhada e se diverte mais ainda quando a IA
resolve adicionar o termo no arquivo de “nomes” pelos quais Heloísa chama seu avatar. Alguns
deles bem pejorativos.

...

Dois dias depois.

Heloísa está exausta, a sessão de treinamentos foi rigorosa e exigiu demais dela, tanto física
como psicologicamente. Ossos do ofício, afinal os “irmanados”, como gostam de se designar
os membros da Irmandade, precisam estar sempre prontos para o pior. Nunca se sabe quando
algum dos “Negociadores” vai aparecer com novos trabalhos e nem quem vai ser escolhido ou
escolhida para cumprir o “Contrato”. Ela está deitada em sua cama quando escuta o sinal do
comunicador holográfico. Aborrecida, ela atende o chamado.

- Heloísa.

Em instantes forma-se a figura taciturna de um dos cinco “Gerentes”, únicos seres em toda
Irmandade com acesso direto ao Triunvirato que controla a organização.

- Venha até minha sala.

Curto e seco, como sempre. Sem alternativas, ela se arruma e segue para a sala do gerente.
O nome deste ser e qual sua origem são desconhecidos pela garota, assim como por todos os
irmanados, a não ser pelos outros gerentes e também pelos membros do Triunvirato.

Enfim ela está diante do estranho ser de quatro braços, tórax em forma de tonel, cinco olhos
formando um pentágono distribuído pela testa de grandes proporções. Ele emana um cheiro
desagradável, algo levemente azedo, mas suportável, seus pêlos são dourados, a boca é grande e
mostra três fileiras de dentes e as orelhas enormes, a pele é de um verde profundo e se apresenta
ligeiramente enrugada.

- Sente-se.

Ele mostra uma cadeira colocada à frente da sua mesa para Heloísa, que acaba por sentar sem
quaisquer questionamentos.
23
- Aconteceu algo raro, um cliente contratou nossos serviços, mas ele exigiu que fosse você a
cumprir o contrato.

Helô se assusta com aquilo, afinal quem poderia fazer tal exigência?

- Quem é o cliente e qual o contrato?

- Você vai encontrá-lo no setor MD2833 em cinco dias, no caminho irá receber novas orientações.
Sua nave foi equipada com armamentos adicionais, sensores mais potentes, e tanto o gerador
de cronomation quanto os motores foram substituídos por versões bem atualizadas. Acredita-se
que a sua viagem será longa.

- Qual o valor do contrato?

- Seis milhões de dhers, pagos adiantados. Sua parte, 600.000 dhers, já se encontra depositada
na conta de seus pais, como de costume. Está dispensada.

Helô sai da sala do gerente totalmente intrigada, afinal quem seria aquele cliente misterioso e
qual o contrato? Ela sabia que não adiantaria perguntar, ainda mais que o pagamento já havia
sido efetuado e, como gostavam de enfatizar, “A IRMANDADE SEMPRE CUMPRE SEUS
CONTRATOS”.

- Zeff, quanto falta?

- Chegaremos lá em duas horas.

- Esse novo gerador e os motores são excelentes mesmo. Com nosso equipamento padrão a
viagem demoraria no mínimo mais 10 dias.

Ela deixa o avatar continuar seu trabalho e volta sua atenção para o monitor de leitura, as
últimas instruções haviam sido enviadas há cerca de 30 minutos.

- Esse cliente deve ser louco, Zeff, ele enviou as instruções criptografadas, a chave diz que
enviará quando estivermos mais perto de Zemarion II. Cruzeiro, o que sabemos sobre esse
mundo?

A pergunta fora dirigida diretamente para a IA da nave, imediatamente formou-se a figura


holográfica que mostrava a velha constelação do Cruzeiro do Sul, como vista por um observador
que estivesse no distante planeta Terra. A voz monótona e fria inicia seu relato:

- Temperatura média 22,8° C, três continentes, sendo o principal...

- Cruzeiro, pule essas descrições detalhadas, quando quiser eu faço uma turnê por esse mundo.
Quero saber a quem pertence, o que fazem aqui, esse tipo de coisa.

- “Coisa”? Isso não consta em meus arquivos.

- Pois anexe, agora consta. Quem manda neste mundo?


24
- Ele é independente, não faz parte de nenhum conglomerado estelar específico. Sua economia
é baseada no comércio, nem todo ele lícito. Você vai encontrar elementos de todo universo
conhecido neste mundo. Desde condes, duques estelares e outros representantes da nobreza de
diversos impérios e aglomerações, até a escória composta por traficantes, assassinos de aluguel,
piratas, escravistas e outros seres dedicados a atividades pouco recomendadas.

- Uau, um mundo interessante. Algo mais?

- Sem ser dados sobre topografia, número de habitantes e “coisas” deste gênero, nada mais.

- Ótimo, sou escolhida a dedo para cumprir um contrato de um cliente que paga antecipado e
que só vou conhecer em um mundo cheio de incertezas. Onde fui me enfiar?

- Devo anexar nos arquivos essa última frase?

Helô nem se dá ao trabalho de responder, manualmente ela desliga o holoprojetor e fica sentada,
no aguardo dos próximos acontecimentos.

- Mensagem chegando.

- Na tela.

- Não há imagem, é apenas um arquivo.

- Deve ser do “cliente misterioso”, passe para meu terminal.

Conforme ela já esperava, o novo arquivo enviado trazia a chave para decodificar a mensagem
anterior. Então, ela roda o programa para poder ler.

“Continente Hesper, Cidade Central, Setor Leste-03, Rodo-bar Azirra, terceiro pavimento, sala
02, a partir das 20:00 do horário local.”

- Ótimo, Zeff...

- Faltam duas horas e vinte e três minutos pelo nosso horário.

- Bom, vou para meus aposentos, se precisar de mim.

- Eu sei, basta chamá-la, isso é, se você acordar.

Heloísa não chegou a escutar essa observação sarcástica de seu avatar.

O holograma externo não deixava margem a dúvidas, escrito em cerca de 400 idiomas estava
bem nítido “Rodo-bar Azirra”. Helô e Zeff estavam diante da entrada do local indicado.

- Muito bem Zeff, é aqui, vamos ao tal terceiro pavimento, sala 02. Qual a hora local?

- Pelos meus sensores são 19:52 h.


25
- Ótimo, temos oito minutos para “conhecer o ambiente”.

- Sugiro que deixe o reconhecimento do local para outra hora, Helô, afinal nem sabemos quanto
tempo vai demorar até achar alguém que saiba onde fica a sala.

Helô dá uma risada em alto e bom tom.

- Vamos lá, sua lata de sardinha, vamos conhecer esse cliente misterioso de uma vez por todas.

A entrada do local é discreta, apenas um pequeno portal eletrônico. Helô se aproxima aguardando
a abertura, mas tudo que consegue é ser indagada pelo computador que controla a entrada. No
idioma do leste ele pergunta:

- O que quer no Rodo-bar Azirra?

- Tenho um encontro, terceiro pavimento, sala 02.

- Um momento, verificando lista de autorizados. Seu nome?

- Heloísa Duarte Manchelli.

- Dados insuficientes, quem veio encontrar?

- Por todos os diabos, vim de muito longe para esse encontro, estou a trabalho, deixe-me entrar
logo, monte de ferro velho.

- Nenhuma Heloísa Duarte Manchelli tem entrada autorizada. Há algum outro nome que use?

Helô fica séria, havia sim um apelido pelo qual ela era conhecida apenas algumas poucas pessoas
bem íntimas sabiam disso.

- Experimente procurar por Quindim Faisão Borgonhês.

- Um momento... Ok, essa pessoa está sendo esperada.

A porta enfim é aberta, permitindo a passagem de Helô e do avatar Zeff.

- Esse cliente deve me conhecer bem, Zeff, há anos não conto a ninguém esse apelido, a última
pessoa que teve conhecimento dele foi...

- Irmanado Cochrane Esfim, ou capitão Coc como gostava de ser chamado.

- Grata por me lembrar desse infeliz, mas não deve ser ele, não após tantos anos.

Em seu íntimo, Helô lembra-se de Coc e do tórrido romance que manteve enquanto o mesmo
permaneceu na Irmandade. Um belo dia ele saiu em uma missão e nunca mais voltou. Por
dois anos ela manteve a esperança de rever seu grande amor, todos os recursos disponíveis
da Irmandade foram acionados na tentativa de localizar o desaparecido e tudo foi em vão.
Pela primeira vez a Irmandade perdia um irmanado sem ter certeza que o mesmo morrera no
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cumprimento de um Contrato.

Enquanto pensava nisso Helô nem percebeu que Zeff já havia se conectado a um terminal do
local.

- Siga-me, Helô, temos menos de três minutos para encontrar o cliente, já sei onde fica o terceiro
pavimento e a sala 02.

Ela segue o avatar por um emaranhado de corredores, até chegar em um túnel de subida. Zeff é
o primeiro a entrar e imediatamente é sugado para cima. Alguns segundos depois, Helô segue
seu companheiro. Então desembocam em um novo corredor bem diante do que parece ser uma
sala.

- É aqui, Helô.

- Aperte a campainha.

- “Campainha”, isso não consta em meu banco de dados.

Irritada, Helô aciona o sistema acústico de chamada. Ela se identifica e escuta apenas o leve
zunido da porta deslizando. No interior da tal sala 02 reina um ambiente escuro, aqui e ali
algumas luzes provenientes de aparelhos eletrônicos piscam ininterruptamente.

- Aloooooou, alguém em casa?

- Quindim, há quanto tempo.

Helô sente o coração se apertar, essa voz, a intimidade com que chamou por seu velho
apelido.

- Coc? Coc, é você?

Uma luz branca é acesa. Sentado em um sofá de design bem antigo repousa um homem forte e
alto com cerca de 40 anos, olhos verdes, cabelos e cútis claros.

- Olá.

Com lágrimas nos olhos, Helô se aproxima do homem, olha profundamente em seus olhos e
desfere um violento bofetão na cara, após o qual desanda a chorar.

- ...seu imprestável, maldito seja mil vezes...

Coc massageia a face e solta um leve sorriso.

- Diabos, estou vivo, não estou? Estamos juntos, não estamos?

Novo tabefe é a sua resposta. Ele pega os braços dela, segura firme e a beija apaixonado. No
princípio ela reluta e tenta se desvencilhar, mas acaba se entregando aos carinhos do único
homem que amou em toda a sua vida.
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Subitamente ela se afasta dele e o encara, lágrimas ainda descem e seus olhos estão
vermelhos.

- Estou aqui a trabalho, o que está fazendo nessa sala? Eu vim encontrar um...

- Ainda não percebeu, Helô? EU SOU O CLIENTE.

- Você? Mas....

- Onde arrumei os dhers para pagar? Depois que saí da Irmandade andei fazendo alguns bons
“trabalhos solos”.

- Ok, você é o cliente, bom, sou a irmanada, qual o contrato?

- Helô, não precisa ser assim tão...

- Estou sendo profissional, Coc.

- Sente-se.

- Não quero.

- Sente-se de uma vez, mulher. Zeff, pegue algo para beber no terminal de auto-serviço. Dois
martinis zulandrianos na temperatura ambiente.

Ela encara o homem, com uma das mãos enxuga as últimas lágrimas.

- Muito bem, Helô. Já ouviu falar do Mundo do Rio Vermelho?

- E quem não ouviu? Um planeta misterioso onde se deduz ter surgido a primeira civilização
que fez viagens interplanetárias no universo, cheio de maravilhas tecnológicas de uma raça
há muito extinta. Fora lendas sobre o ouro vermelho, metal raro que se encontra em grande
abundância nas margens do rio conhecido como Rio Vermelho. Balelas e mais balelas.

- E se eu lhe disser que descobri onde podemos encontrar esse mundo?

- Eu diria que comprou um mapa estelar falso. Por favor, Coc, você gastou uma fortuna para me
trazer aqui, fale logo o que quer.

- Eu SEI que tenho a localização exata deste mundo, Helô. Mas é uma viagem muito perigosa
para ir sozinho, por isso contratei a Irmandade e pedi você.

- Vamos apenas supor que isso seja verdade, o que eu duvido, qual seu interesse?

- É o ouro vermelho, metal mais raro e por isso mesmo valioso do universo. Posso me associar
à TRÍADE da Irmandade ou quem sabe fundar minha própria organização.

- Está maluco, Coc, apenas cinco seres em todo o universo sabem quem são os membros do
triunvirato. Pode ser qualquer um. Além disso, quem garante que eles vão concordar em se
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associar a você? Ainda, você sabe que eles nunca deixariam que uma organização rival fosse
fundada. Eles possuem meios de impedir isso.

- Oras, Helô, eles são comerciantes e eu vou ter uma tal quantidade de ouro que dificilmente vão
se negar a ter mais um sócio. O aporte de capital seria bem substancial.

Zeff chega trazendo as bebidas. Ela pega o copo das mãos do avatar e bebe em uma só
tragada.

- Bem, tudo isso não passa de conjecturas, nossa relação é estritamente comercial, você contratou
a IRMANDADE, eu sou a irmanada. Quando partimos?

- Helô, não precisa ser assim, querida.

- E como vai ser, Coc? Ou quer que eu me jogue em seus braços e vá contigo para a cama
esquecendo os cinco últimos anos?

- Onde a Cruzeiro está pousada?

- Ala três do espaçoporto.

- Estarei lá amanhã, as 07:00 h, horário local.

- Tudo estará pronto para a partida, vamos, Zeff.

Coc a segue até o corredor e fica a olhar o corpo mignon, de seios empinados, cabelos longos
e louros que tanto prazer já lhe deram no passado. Sorri satisfeito com o que viu, os anos
não a mudaram, pelo contrário, parece tão jovem, bonita e impetuosa como no dia em que se
conheceram durante uma sessão de treinos na sede da IRMANDADE.

Mais tarde, sala de comando da Cruzeiro do Sul.

Helô pede mais uma garrafa de vinho para Zeff, a terceira desde que voltaram para a nave.

- Helô, a ingestão de tanto vinho pode...

- Cale a boca Zeff. Uma garota não pode se embebedar? Ele estava vivo esse tempo todo e
nunca me mandou notícias. O pilantra está vivo, VIVO....

O avatar Zeff desiste de dizer qualquer coisa, vai até a cozinha e pega não uma, mas duas
garrafas de vinho.

Na manhã seguinte, Helô é acordada por Zeff.

- Helô, acorde, ele está aí.

Ela acorda e logo percebe que exagerou no vinho, a cabeça está latejando e seus reflexos ainda
estão bem lentos.
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- Ok, deixe que entre, temos um trabalho a fazer. Preciso de uma daquelas pílulas dragoneanas.
Estou péssima.

- Eu tentei lhe avisar.

- Não grite, traga logo o que pedi.

Coc entra na nave e logo se depara com Helô.

- Como foi a noite? Dormiu bem?

- Muito bem. – Ela diz isso apertando as têmporas com força.

- Eu diria que...

- O que você diz ou pensa não importa. Zeff, cadê as malditas pílulas?

Ele solta uma sonora gargalhada. Após tomar duas pílulas, Heloísa se sente bem melhor.

- Muito bem, para onde vamos?

Ele entrega um pequeno disco prateado para ela.

- Ponha isso para rodar, as primeiras coordenadas estão aí.

- Primeiras? Olha aqui, Coc, ponha suas cartas na mesa de vez, não é mais fácil...

- Vamos fazer as coisas do meu jeito, Helô.

Ela solta um palavrão, pega o disco das mãos de Coc e programa o vôo com as coordenadas que
estão ali gravadas. Discretamente a Cruzeiro do Sul decola do espaçoporto, sem que ninguém
perceba, um grande cruzador levanta vôo praticamente ao mesmo tempo.

...

- Coordenadas aceitas, primeiro salto em 30 segundos.

Helô e Zeff estão sentados em suas cadeiras, Coc permanece ali sem muito o que fazer, a não
ser admirar a perícia com que ela conduz a nave.

- Estamos sendo seguidos.

- O quê? Especifique.

- Cruzador de guerra manthoryano.

- Coc, o que você está me escondendo?

- Rápido com o salto, não os deixe chegar perto o suficiente para poderem interferir.

- Ótimo estou em um vôo maluco, com um “fantasma” e para completar tenho um cruzador de
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guerra no meu encalço. O que falta acontecer?

A Cruzeiro do Sul sofre um violento solavanco.

- Raios tratores.

- Aumente a força, compense o raio trator, se não conseguir mire nas naceles.

A resposta de Helô é outro solavanco, a voz da IA se faz ouvir.

- Medidas não surtiram efeito, ainda estamos presos ao raio trator, iniciando disparos, sem
efeito, campo de força do cruzador absorve o impacto dos xasers sem problemas.

- Armar campo de força com polaridade invertida, preparar mísseis antimatéria.

- Ficou louca, Helô, se soltar esses mísseis conosco tão perto vamos virar poeira espacial.

- O cliente nunca deve interferir na pilotagem da nave, isso está bem específico no contrato.
Zeff, ao meu sinal.

Ela dá um ligeiro sinal para o avatar, ele aciona os mecanismos e um míssil explode bem perto
do campo de força do cruzador, causando uma sobrecarga neste, a Cruzeiro do Sul também
sofre violento solavanco.

- Agora, tudo à frente enquanto eles estão atordoados. Zeff, preparar novo plano de vôo, não vão
demorar muito para vir em cima de nós.

A Cruzeiro do Sul livre dos raios tratores dá um violento tranco e dispara pelo espaço. A intenção
de Heloísa é colocar a maior distância possível entre a sua nave e a de seus perseguidores, com
isso tem tempo para o recalcular o vôo a partir das coordenadas de Coc.

- Helô, confesso que nunca vi nada igual.

- A IRMANDADE possui algumas novas tecnologias, Coc, se não tivesse saído de lá procurando
por uma lenda saberia disso.

- O planeta do Rio Vermelho NÃO É LENDA, nós vamos encontrá-lo, Helô.

- Salto em dez segundos, nove, oito...

Enfim, os propulsores são acionados e a nave se lança para uma longa viagem pelo
hiperespaço.

- Agora, senhor Cochrane, vai me explicar direitinho essa história toda.

- O que quer que eu explique?

- Primeiro, quem ou o quê está atrás de você?


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- Digamos que tenho alguns velhos amigos um tanto descontentes comigo.

- Ótimo, e entre esses “amigos” um que tem um cruzador manthoriano?

- Alguns dos meus trabalhos envolveram altas autoridades.

- Muito bom, e agora tenho uma dessas autoridades querendo acabar contigo, e para isso eles
não se importam de atacar a minha nave.

- Oras, Quindim...

- NÃO ME CHAME ASSIM, para você sou a IRMANADA HELOÍSA, e não se esqueça
disso.

- Como quiser, Quindim.

Ela olha para Coc, fuzilando-o com os olhos.

- Idiota. Zeff, assuma, vou preparar alguma coisa para comer, é provável que coloque algum
“tempero especial” no prato do nosso cliente.

No espaço normal, um manthoriano irritado acaba de pulverizar o seu navegador, imediatamente


se chama um novo oficial para ocupar o posto.

- Ache-o.

A ordem é curta, seca e sem necessidade de maiores explicações. O novo oficial fixa os quatro
olhos de um vermelho intenso no corpo sem vida do antecessor, com um dos seis tentáculos
limpa uma gota de suor que se formou em sua testa gelatinosa e imediatamente começa a
vasculhar a área ao redor, rezando para seus deuses que consiga achar a pista da nave do humano
Coc. Ele sabe muito bem o que lhe acontecerá se fracassar nessa missão.

Quinze dias depois., a IA anuncia.

- Coordenadas alcançadas, saindo do hiperespaço.

- Ok, Zeff. Agora, senhor contratante, o que devemos fazer? Esperar que o tal planeta do Rio
Vermelho se forme do nada diante de nossos olhos e dos sensores da nave?

- Deixe de ser implicante, Helô, eis o complemento, devemos estar a menos de 5.000 anos luz
do objetivo.

Os novos dados são inseridos e imediatamente a IA começa o cálculo para o novo salto.

- Coc!

- Sim.

- Você sumiu. O que aconteceu?


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- Havia coisas que eu precisava fazer.

- Mas que não me interessavam?

- Digamos que certas coisas um homem deve fazer sozinho.

- Eu o teria seguido para qualquer lugar.

- Sim, eu sei, e seus pais passariam necessidades. Você tinha acabado de entrar para a
IRMANDADE, tinha participado apenas de três contratos.

- Eles entenderiam, Coc.

- Mas EU NÃO ENTENDERIA, querida. Nem mesmo sabia se daria certo, se conseguiria
concretizar meus planos.

- Acho que nunca vou saber ao certo o que aconteceu, não é isso?

- Helô, saí em busca de realizações, aventuras, conhecimento. Essa é a última viagem, depois
disso terei dinheiro suficiente para cuidar de você e toda sua família, sei que na Terra as coisas
são difíceis.

- Coordenadas calculadas, salto programado, início em 30 segundos.

Lentamente a IA vai contando os segundos.

-...25, 24, 23...

Neste instante, os sensores de detecção dão o alerta.

- Nave saindo do hiperespaço a 500 Km daqui, é o nosso “velho amigo”, Helô.

- Ótimo, os malditos nos acharam, continuar contagem regressiva, ainda temos uma chance.

No cruzador inimigo o comandante dá uma risada sarcástica.

- FAÇAM CONTATO COM ESSA NAVE, QUERO VER A CARA DO MALDITO


HUMANO.

Na Cruzeiro do Sul.

- Estão querendo estabelecer contato.

- Ponha na tela, Zeff, vou falar com esse maldito.

A pavorosa face do manthoriano se forma no projeto holográfico.

- Eu disse que ia te achar, humano, reze para seus deuses.

- Oras, muito prazer em revê-lo, N’anhe’c, muito frio por aí?


33
- Quero o que é meu, pague o que deve ou...

- Ou vai me matar e nunca mais vai receber? Acho que não fará isso, amigo. Sei que vocês
manthorianos tem muito apego ao dinheiro.

- Dinheiro?

- Ah, desculpe, esqueci, vocês preferem trabalhar com metais, ouro vermelho para ser mais
específico.

- SALTO EM ANDAMENTO.

A Cruzeiro do Sul dispara para o hiperespaço deixando um furioso manthoriano para trás.

- Muito bem, então você deve para esse seu amigo? Essa excursão nada mais é que uma tentativa
desesperada de conseguir ouro vermelho suficiente para pagar a dívida?

- Uma parte do que acharmos será dele, Helô, a localização do planeta deverá ser mantida em
segredo, isso consta no contrato.

- Diabos, não precisa me lembrar das entrelinhas do contrato, senhor contratante.

- Não custa lembrar alguns detalhes.

- Quanto deve para ele?

- Isso importa?

- QUANTO?

- Seis milhões de dhers.

- Interessante, é exatamente a quantia que pagou por esse contrato. Mas e os seus serviços
solos? Não lhe trouxeram lucros?

- Gastei quase tudo comprando coisas que trouxessem alguma referência ao planeta do Rio
Vermelho.

- Ah, então está tudo explicado. Você está falido, deve para algum figurão e essa é sua única
chance de continuar vivo.

- Eu não colocaria assim, Helô, mas digamos que está bem perto da verdade.

- E eu cheguei a acreditar naquela história que estava me contando. Você é efetivamente um


imprestável, Coc, como pude me apaixonar por alguém assim?

- Digamos que se encantou com meus lindos olhos verdes.

Ela nem responde. Irritada, se levanta e vai para seus aposentos. Zeff assume o comando da
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CRUZEIRO DO SUL.

- Saída do hiperespaço em 10 segundos.

A tensão é quase palpável à bordo da cabine de comando da CRUZEIRO DO SUL. Helô e Coc
aguardam o final da contagem regressiva, a longa viagem estava por pouco.

Enfim, o vermelho do hiperespaço cede lugar ao negro salpicado de luzes do espaço normal.

- Sistema estelar desconhecido a meio minuto-luz.

- CRUZEIRO, quais as características do sistema? – Coc pergunta ansioso.

- Duas estrelas: uma verde e uma amarela, cinco planetas, 18 luas.

- Descreva a órbita do terceiro planeta.

- Está há 60 milhões de quilômetros da estrela amarela, dois continentes separados por um curso
de água que se estende de pólo a pólo. Temperatura média 24,8°, atmosfera de oxigênio. O
mundo possuí fauna e flora diversificados, há indícios de civilização como atestam as diversas
ruínas espalhadas por todo o planeta.

- É ELE, HELÔ, O PLANETA DO RIO VERMELHO, IAUUUUUUUU.

O grito de Coc é uma mistura de alívio e desabafo. Anos e anos montando um enorme mosaico,
um gigantesco quebra-cabeça que enfim se revela. Ali, a alguns milhões de quilômetros, está o
planeta do RIO VERMELHO, onde conforme dizem lendas antigas desenvolveu-se a primeira
raça do universo que desenvolveu tecnologia para viajar entre as estrelas. E mais do que isso,
onde devem estar milhares de toneladas do chamado ouro vermelho, metal mais raro e valioso
do universo.

- Cruzeiro, levar a nave para o terceiro planeta.

Helô olha de soslaio para Coc.

- Só uma coisa senhor contratante, a NAVE AINDA É MINHA, sou EU QUE DOU AS ORDENS
AQUI.

- Está bem irmanada, então conforme consta no contrato peço que desça a nave no terceiro
planeta.

- CRUZEIRO DO SUL, calcular rota de aproximação, velocidade de empuxo, sensores de


longo alcance ao máximo, não quero ser surpreendida por algum amiguinho do Coc.

- Implementando orientações da irmanada.

- Muito grato, Helô.

- Não agradeça ainda, Coc, estou só cumprindo com minhas obrigações.


35
- Eu sei, você não deixa que eu me esqueça disso.

A nave se aproxima do terceiro planeta.

- Cruzeiro, quero dados sobre esse mundo, nada de geografia e outras besteiras, apenas se tem
atmosfera respirável, radiatividade, indícios de seres civilizados morando nessas ruínas.

Alguns segundos se passam antes da resposta da IA.

- Atmosfera respirável pelos padrões humanóides, traços de radiatividade não apresentam perigo
para exposição por pequenos lapsos de tempo, não há indícios de nenhum tipo de inteligência
civilizada.

- Algo mais?

- Sensores revelam que o planeta contém alguma forma de vida semi- inteligente, estão em um
estágio de evolução atrasado.

- Bom saber, dessa vez vou colocar a armadura de combate e levar algum armamento mais
pesado.

- Acho que está exagerando Helô, que perigo alguns nativos atrasados podem representar para
nós?

- Já passei por algumas dificuldades com nativos atrasados, meu amor. Tenho minhas razões
para esse cuidados.

- Entrada na atmosfera em 15 segundos, algum local de pouso específico?

- Helô, passe essas coordenadas para a Cruzeiro.

- Hum, então sabe até onde temos de pousar? Tem certeza que essa é a primeira vez que visita
esse mundo, Coc?

- O que quer dizer com isso?

Heloísa não responde, dedica sua atenção aos sensores da nave. Esta por sua vez se dirige para
as coordenadas de pouso indicadas por Coc.

Três horas mais tarde, Helô já estava farta.

- Pois bem, para mim chega, esse mundo é um monte de ruínas distribuídas ao longo do curso
de um rio.

- Calma, Helô, devem haver depósitos de ouro vermelho por perto. O que dizem seus sensores,
Zeff?

- Capto grandes quantidades do metal, mas há algum tipo de interferência que impede a
localização exata dos depósitos. Enquanto andam pelas ruínas eles não percebem que olhos
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curiosos os espreitam.

- Helô, temos companhia.

Ao aviso de Zeff, a valente Helô saca seu pesado desintegrador e aciona o escudo energético de
sua armadura, quanto a Coc esse permanece impassível.

- Cadê eles Zeff?

- Estão em todo lugar, meus sensores apontam que há pelo menos 200 ou mais deles ao redor.

- Ótimo, sua lata de sardinhas, estamos cercados e SÓ AGORA VOCÊ NOS DIZ ISSO?

- Calma, Helô, nunca se esqueça de que há resíduos radiativos neste mundo, podem estar
interferindo nos sensores de Zeff e da Cruzeiro.

De repente, eles surgem, seus corpos são alongados e apresentam muitos pseudomembros que
lhes servem de pés, perto da cabeça se ergue um pequeno tronco onde estão os seis braços das
criaturas de três olhos dispostos em forma de um triângulo naquilo que poderia ser designado
como testa. Há um forte cheiro emanado pelos corpos. Eles estão desarmados e parecem mais
curiosos do que outra coisa.

- Fique perto de mim, Coc, eu e Zeff vamos abrir caminho no meio desses nojentos.

- Calma, Helô, não está vendo?

- Estou e não gosto nada do que vejo.

- Eles podem ser os descendentes degenerados dos antigos donos deste mundo, podem nos levar
até os depósitos do ouro vermelho.

- Zeff, como anda seu tradutor universal?

- Totalmente operacional, Helô.

- Ótimo, tente contato, vamos ver se essa raça fala algo que conhecemos.

Zeff se adianta ao grupo, indo na direção daqueles que parecem ser os líderes e tenta estabelecer
algum tipo de diálogo com os estranhos seres.

Coc observa os esforços de Zeff e balança a cabeça desaprovando.

- Acho que não devem falar nenhum idioma conhecido, Helô.

- O que quer que eu faça então? Por mim abrimos caminho a força e voltamos para a Cruzeiro
do Sul.

- Veja, um dos seres está se aproximando de Zeff.


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É um momento de tensão, o ser com corpo de cobra se aproxima do avatar, sem a menor
cerimônia aproxima sua cabeça do corpo de Zeff e o cheira, a seguir emite um guincho.

- Zrrrrrr thhhhhht nhannnnnnnnn

Os seus semelhantes respondem:

- Nhannnnnnnnnn tshchchsssssss

- Meu Deus, Coc, essas coisas falam.

- Sim, mas não reconheço o idioma. Zeff, tem algo assim em seus bancos de dados?

- Negativo, Coc.

- Que tal se tentarmos estabelecer contato por intermédio de sinais? Afinal, é uma linguagem
universal, mesmo seres atrasados como esses devem entender algo simples.

- Se quiser tentar, boa sorte. – Helô não parece se entusiasmar muito com a idéia.

Coc se aproxima do avatar, aponta a si mesmo.

- Coc, esse aqui é Zeff – diz isso tocando no corpo de Zeff.

Os seres ficam mudos, aquele que ainda cheirou Zeff ainda permanece por perto.

- Aquela é Heloísa, mas podem chamar de Helô.

O alienígena se aproxima novamente e refaz o ritual de cheirar, desta vez suas narinas se
concentram em Coc.

- Zhuannnnnnn mhutnnnnn yiusuuuuuuu.

- Zeff, algum progresso em descobrir que idioma é esse?

- Negativo, senhor Coc.

- Ótimo tão perto e ao mesmo tempo longe do objetivo.

- Zeff, Coc, eles estão se aproximando, cuidado.

Os seres se aproximam despreocupados dos intrusos, como se fosse um ritual todos cheiram
tanto o avatar como Coc e falam entre si em seu estranho idioma natal.

- Helô, só podemos ficar aqui fora mais 30 minutos, os índices de radiação ficam perigosos após
esse período.

- Ok, Zeff, vamos ter de voltar mais tarde. Venha, Coc, abra caminho entre seus novos amigos.

- Mas, Helô, temos de estabelecer algum tipo de contato. Quem diz que eles vão estar aqui após
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algumas horas?

- Então fique com eles, senhor contratante. Zeff, venha comigo.

Nisso Coc faz o impensável.

- Atenção, Cruzeiro do Sul, mudança nível 05, senha de acesso Beta-8-5- 4-2-Delta-9, irmanado
nível 08 assumindo comando da missão.

- Código de acesso aceito, Irmanado Cochrane Esfim assumindo comando da missão.

- O que é isso? Zeff...

- Desculpe, Helô, mas na hierarquia da Irmandade o Irmanado Cochrane está em uma posição
superior à sua, sou obrigado a seguir suas ordens.

- Irmanado? Mas ele está fora da Irmandade há anos, que significa tudo isso?

- Simples, Helô. Significa que algum idiota esqueceu de apagar meu código de acesso, eu
não tinha certeza se isso ia adiantar, mas deu certo. Cruzeiro desabilitar armas e armadura de
combate da irmanada Heloísa.

- O que está fazendo, seu idiota, Zeff que significa isso. Cruzeiro...

Zeff responde por ele e pela IA.

- Sinto muito, o código de comando do irmanado ainda consta nas instruções de comando,
somos obrigados a reconhecer e obedecer. Não há nada que possa fazer, Helô.

- Não percebeu ainda, Helô? Se mantiver as armas prontas para o combate pode acabar dando
um tiro ou fazendo alguma confusão, nunca conseguiremos um contato concreto com essa
raça.

- CRUZEIRO DO SUL para tripulação, tempo de exposição à radiação residual chegando ao


limite do tolerável para orgânicos, tempo estimado de tolerância 30 minutos, a partir desse
período há necessidade de se tomar pílulas anti-radiação.

- Obrigado, Cruzeiro. Mas vamos tentar insistir no contato, esses seres sabem onde estão os
depósitos de ouro vermelho.

- Eu juro que vou matá-lo quando sairmos daqui, Coc.

Coc parece nem se importar com as palavras iradas de Helô. Através de sinais, tenta dar a
entender aos alienígenas que quer saber do ouro vermelho, como forma de reforçar seus gestos
ele pega no bolso de seu traje uma pequena pepita e mostra aos nativos.

- Se isso não adiantar, ficarei sem opções.

Um dos seres se aproxima mais de Coc, repete o estranho ritual do cheiro e depois começa a
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dedicar atenção especial a pequena pepita. Subitamente começa a falar.

- Chussh manhjto.

Ao que todos repetem:

- Chussh manhjto... chussh manhjto...

Os nativos começam a falar todos ao mesmo tempo. Coc percebe que mostrar a pepita de ouro
vermelho foi uma boa tentativa, pois os alienígenas dão mostras claras de conhecer o metal.

Após um “debate” árduo, os nativos começaram a se dirigir para uma determinada parte daquela
cidade em ruínas. Satisfeito com seu progresso Coc resolve segui-los, não sem antes ordenar
a Zeff que levasse Heloísa para dentro da Cruzeiro e deixasse a nave pronta para partir, ele
seguiria sozinho.

Zeff se aproxima de Heloísa.

- Siga-me, Helô.

- Sua lata de sardinhas ambulante, monte de ferro velho imprestável.

- Não adianta me ofender, Helô, infelizmente Coc tem um nível de irmanado maior que o seu.

- Mas ele não faz parte da IRMANDADE há anos.

- Pode ser, mas não apagaram os códigos de acesso de que ele dispõe. Venha comigo, não
gostaria de usar a força bruta.

Heloísa percebe que não tem como reverter a situação, ao menos por enquanto, e segue o avatar
da Cruzeiro do Sul em direção à nave.

...

- Coc para Cruzeiro do Sul. Helô, está me ouvindo?

- Vai para o inferno, seu maldito.

- Pode ser que vá, mas não agora. Qual a capacidade de carga da nave?

- Capacidade de carga? Sabe muito bem que essa nave não é um cargueiro.

- Diabos, Helô, há toneladas de ouro vermelho em barras aqui embaixo, uma fortuna
incalculável.

- O quê?

- Os alienígenas me trouxeram até um local que deve ter servido de depósito, são milhares de
barras, estamos bilionários, Helô.
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- VOCÊ ESTÁ BILIONÁRIO.

- Com todos os diabos, pare de reclamar, siga o sinal. Zeff, esvazie o depósito da nave, quero
todo espaço disponível.

- Um momento, senhor contratante, isso...

- ESTÁ NO CONTRATO SIM, SENHORA, LEIA DE NOVO. Agora vamos rápido. Coc
desliga.

- Com todos os diabos, o que posso fazer?

- Nada, Helô, eu sinto muito, vou esvaziar o depósito.

- E onde vai colocar o que já está lá?

- A ordem do IRMANANDO COC diz apenas para esvaziar, se não houver local para deixar a
carga vou ser obrigado a jogar tudo fora.

Zeff sai da ponte de comando e segue para executar sua tarefa, Heloísa solta um violento
impropério.

Duas horas depois, Coc retoma o contato.

- Coc para Cruzeiro do Sul, ainda no aguardo.

- O Zeff está acabando de jogar tudo que pode fora, não deve demorar muito.

Neste momento Zeff entra na sala de comando.

- Toda carga da nave já foi retirada.

- Ótimo. Helô, traga a Cruzeiro para onde estou, mande o Zeff vir até aqui para me ajudar.

- Peça você, senhor contratante/irmanado, não quero ter nada a ver com isso.

- Bah, mulheres, nunca estão satisfeitas. Irmanado Coc para Cruzeiro do Sul, envie o avatar
para onde estou, acionar controles automáticos e trazer a nave o mais próximo possível das
minhas coordenadas. Estou no aguardo, Coc desliga.

- Comandos automáticos acionados, coordenadas inseridas, nave em movimento, previsão de


chegada em dois minutos.

Foram horas e horas de fatigante trabalho. Zeff e Coc, mesmo usando uma plataforma
antigravitacional, precisaram de diversas viagens para trazer toda a riqueza a bordo da nave.
Heloísa acompanhou o trabalho com certo desdém e em nenhum momento se prontificou a
ajudar.

Os alienígenas apenas olham com certo desinteresse ao seu visitante pegar as barras de ouro
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vermelho, um pequeno grupo parece estar discutindo algo.

- Zeff, quantas mais?

- Capacidade total de armazenamento já está em 99,8%.

- Ótimo, então vamos deixar essas aqui, em outra viagem carregamos o resto.

Zeff acompanha a plataforma para dentro da nave enquanto Coc é cercado pelos alienígenas
que guincham alto em sua voz gutural e idioma indecifrável. Eles parecem estar nervosos e por
mais de uma vez apontam para a garota e para o ouro. Helô começa a desconfiar de que essa
história ainda não terminar bem para ela, mas fica quieta, prefere esperar pelo desenrolar dos
acontecimentos. Momentos depois Coc surge diante dela, sua face mostra preocupação.

- O que foi?

- Helô, estamos com problemas.

- Você pode ter um problema, o que eu tenho a ver com isso?

- Bem, é meio complicado, mas parece que esses seres nunca viram uma mulher como você
antes.

- Ótimo, já tenho um fã-clube, e daí?

- Eles querem que fique.

- O quê? Como assim? Querem que eu fique?

- Helô, é um período curto, é só o tempo de eu guardar todo esse ouro e voltar com uma
expedição maior, eu...

Nem houve tempo de Coc completar sua frase, um violento tapa de Helô acaba por jogá-lo ao
chão.

- Coc, seu patife, vai me deixar aqui com essas coisas? Por causa de um punhado de ouro
vermelho?

- Confie em mim, Helô, daqui a dois ou três meses estarei de volta e levo você comigo.

- SEU CANALHA FILHO DA MÃE.

Coc se ergue e aponta a pistola de xaser para ela.

- Sinto muito, Helô, mas tem de ser assim. Zeff, deixe mantimentos para três meses, não sabemos
se a comida desses seres pode ser ingerida por humanos.

Ela pensa em se atirar contra Coc, pouco se importando com a arma, mas surpreendentemente
solta uma gostosa gargalhada.
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- Eu devia saber quando te encontrei Coc. Eu fico, mas cuidado amor, há certas coisas que só
as mulheres conseguem fazer.

Coc nem se dá ao trabalho de perguntar o significado da frase misteriosa.

Duas horas depois a Cruzeiro do Sul, sob o comando do Irmanado nível 08 Cochrane Esfim
sobe rapidamente para o céu, deixando Helô e seus novos amigos. Na cabine de comando, Co
fixa os olhos na tela e se amaldiçoa pela sua ganância. Mas ela há de entender, serão apenas
dois ou três meses até ele voltar com uma nave maior e alguns robôs e tripulantes, depois disso
dará a Helô uma vida de rainha.

- Cruzeiro do Sul para comandante Cochrane.

- Sim, Cruzeiro, o que houve?

- Sensores indicam existência de um campo minado em volta do planeta.

- MALDITOS MANTHORIANOS, ELES NOS ENCONTRARAM.

- Positivo, comandante, há um único caminho livre das minas e leva diretamente ao cruzador
manthoriano.

- Erguer escudos, preparar todo armamento disponível.

- Escudos erguidos, subsistema de controle dos armamentos não disponível.

- Como não disponível?

- A irmanada Heloísa alterou as configurações dos sistemas de armas, há necessidade de se


entrar com a senha de acesso.

Um leve sacolejar na nave revela a Coc que seus amigos já o acharam.

- Isso não é possível, destrave o sistema de armas.

- Impossível implementar essa ordem, necessário senha de acesso.

- EU SOU UM IRMANADO NÍVEL 08, minhas ordens tem preferência sobre um nível 04.

- Concordo, senhor, mas a irmanada nível 04 modificou o subsistema de armas de forma que
este trabalhe de forma independente do sistema central.

- Então ela fez isso?

- Sim, senhor, de acordo com o código de conduta da Irmandade ela utilizou-se do artigo...

- Já sei droga, artigo 23, parágrafo 17. “Um irmanado pode alterar sistemas vitais de forma a
trabalharem independentes obedecendo a comandos próprios definidos pelo irmanado.”
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- Absolutamente correto.

- DROGA, MIL VEZES DROGA. Cruzeiro, voltar para o planeta. Zeff, prepare uma armadura
de combate, algumas granadas, um rifle do mais grosso calibre, parece que vamos ter de libertar
Heloísa.

- Não há granadas a bordo senhor, as armaduras de combate por serem muito pesadas foram
classificadas desnecessárias e deixadas no planeta. O peso de uma armadura é de...

- EU SEI QUAL O PESO DE UMA ARMADURA, ZEFF.

- Sim senhor.

- O que temos de armamentos?

- Apenas algumas pistolas leves.

- Só isso?

- Sim.

- Vão ter de servir.

Heloísa se encontrava sentada dentro de uma grande sala, decerto um local que aquelas
estranhas criaturas consideram sagrado. Ao seu lado há dois seres, reconhecidamente fêmeas
da espécie que preparam uma mistura de ungüentos e ervas formando um estranho creme de
cheiro desagradável. Ela sabe que aquela coisa estranha será colocada em seu corpo. Os seres
parecem considerá-la uma deusa ou algo do tipo pois desde que Coc a deixou ali nenhum deles
ousa olhar diretamente em sua face, em uma típica demonstração de submissão.

Mas pululam pelo universo diversas histórias de sociedades primitivas que endeusam
determinados elementos e depois os sacrificam em honra de algum deus maior.

- Se estão pensando em passar essa gororoba em meu corpo, desistam. Esse negócio fede e eu
não quero isso.

As alienígenas nem se importam com as queixas de Helô, pacientemente continuam seu


trabalho.

De repente há barulho do lado de fora, Helô reconhece tiros de xaser e como ela não viu
nenhuma arma moderna com os alienígenas isso só pode significar uma coisa.

Uma porta se abre e Coc entra, armas em punho, sem quaisquer considerações, aponta para as
alienígenas e atira, matando-as instantaneamente.

- Ei, isso era preciso?

- Venha comigo, Helô.


44
- Ir para onde? Não ia me deixar aqui apodrecendo?

- Diabos, mulher... – algumas flechas são lançadas, diversos alienígenas entram pelos fundos,
Coc coloca suas armas para dispersão máxima e com dois tiros vaporiza os agressores.

- Venha logo, não vou conseguir detê-los por muito tempo.

Ela se ergue e segue Coc. Do lado de fora Zeff está cercado pelos estranhos seres que se lançam
contra o avatar, sendo rechaçados sem muito esforço.

- Vamos, Zeff, já temos o que viemos pegar.

- Sim senhor.

Uma vez dentro da nave Coc dá a ordem.

- Cruzeiro, levantar vôo, Heloísa, os manthoryanos nos encontraram, preciso que destrave o
sistema de armas.

- Como? Faz favor do quê?

- Helô, depois você me xinga do que quiser, agora a coisa é séria.

- Séria? Mas o que eu irmanada nível 04 posso fazer em prol do GRANDE IRMANADO
NÍVEL 08? Quero que eleve meu status.

- Helô, deixe de brincadeira.

- Capítulo 15, parágrafo 08 “Em condições especiais um irmanado de status superior pode
promover um subalterno ao seu próprio status, dividindo assim as funções de comando da
missão.”

- Cruzeiro, neste momento declaro a Irmanada Heloísa Duarte Manchelli promovida ao status
nível 08 da IRMANDADE, autorização COC-8-4-8-0-SIGMA. Pronto, está satisfeita agora?

- Está bem melhor. Cruzeiro, qual a situação?

- Todo o planeta está envolto em um campo minado, o único caminho livre que permite a
navegação espacial leva diretamente ao cruzador manthoryano.

- Uau, a coisa tá feia.

- Isso eu sei, querida, agora se fizer o favor de destravar o sistema de armas juro que terei prazer
em tirar esses caras da nossa cola.

Ela sorri sem falar nada.

- A nave é minha, meu caro IRMANADO, e lembre-se que agora somos iguais dentro da
IRMANDADE, portanto CALE A BOCA E FIQUE QUIETO, estou pensando em como vamos
45
sair dessa encrenca que o SENHOR NOS COLOCOU.

Um violento solavanco encerra a discussão.

- Cruzeiro, desviar toda força para os escudos, ¼ de empuxo à frente, vamos ver se esses
manthoryanos são bons de briga.

- Ficou maluca, eles não vão sair da frente.

Ela olha para ele com certa malícia.

- Mas, meu amor, é exatamente o que quero, que não saiam.

Na nave manthoryana há um quê de surpresa quando a Cruzeiro arremete contra eles.

- Esses humanos são loucos, deixem se aproximar mais, depois joguem tudo que temos contra
eles, há tempos que não vejo uma nave se dissolver em partículas cósmicas, eheheheh.

Ao riso de seu comandante, os demais também sorriem.

- Cruzeiro, destravar armas, autorização HELÔ-5-2-1-BETA-0-GAMA. Zeff, assuma o


comando, deixe que eu tomo conta do armamento. Cruzeiro, desabilitar mira automática, prefiro
fazer isso à moda antiga.

- Ficou maluca, Helô, vai usar mira manual?

- Ué, pensei que tinha solicitado que CALASSE A BOCA.

- Sou seu igual.

- Ótimo, se prefere assim. Desabilitar sistemas de...

- Eu fico quieto, continue.

Estando a pouco menos de 30 quilômetros da nave manthoryana a Cruzeiro é recebida com


diversos disparos dos canhões intervalares dos manthoryanos.

- Escudos a 70%.

Dois impactos diretos depois.

- Escudos a 40%.

Helô ainda não disparou um só tiro e continua com a mão em cima do botão que aciona o
armamento da Cruzeiro.

- Zeff, quando eu der a ordem quero que vire a nave exatos 22,5° no sentido leste.

- Ordem confirmada.
46
Na nave adversária os manthoryanos cantam alegremente, pois consideram a presa já abatida.

- Agoraaaaaaaaaaa!

Com a maestria de sempre Zeff efetua o desvio solicitado por Heloísa. Essa por sua vez aciona
todos os armamentos da Cruzeiro, os disparos dos canhões xaser e dos mísseis fotônicos
convergem todos para um único ponto da nave inimiga. O escudo desta acaba não suportando
o fulminante impacto e desmorona.

- Os escudos deles caíram.

Heloísa continua seus disparos, que atingem a nave manthoryana, que em poucos segundos
explode. A Cruzeiro do Sul passa pelo meio dos destroços incólume.

- Santo Deus, como conseguiu isso?

- Ora, Coc, deixe uma garota ter seus segredos, digamos que os armamentos da nave foram
“ligeiramente” alterados.

- Conseguimos garota, estamos bilionários, livres dos manthoryanos e podemos voltar a esse
mundo a qualquer momento.

- ESTAMOS? Pensei que VOCÊ estava rico. O que eu tenho a ver com isso.

- Acreditou que eu não ia voltar, Helô?

- Zeff, programe as coordenadas, vamos deixar esse local. Eu vou tomar um drink, me
acompanha, Coc?

- Mas é claro, minha querida.

Na pequena mesa da cozinha Coc senta-se enquanto Helô se dirige até um armário antigo e tira
de lá uma garrafa.

- Eu só tomo isso em ocasiões especiais. – diz a jovem e enche um copo com o conteúdo da
garrafa - essa é uma delas.

Delicadamente ela entrega a bebida a Coc, que fica olhando enquanto Helô serve a si mesma.

- A nós, meu amor.

Ela apenas observa enquanto Coc toma uma grande talagada de seu copo.

- Isso é maravilhoso, o que é?

Ela brinca passando o dedo na borda de seu próprio copo.

- É Martini ximathiano, uma raridade, beba mais.


47
Coc dá o copo para Helô que, torna a enchê-lo e devolve para ele.

Ele abre a boca mas não chega a tomar nada, seu copo caí da mão.

- O que está acontecendo comigo? Helô, o que tem nessa bebida?

- Ora, Coc, que coisa estranha, eu me enganei e peguei a garrafa “batizada”. Há calmantes
misturados a essa bebida que podem parar um batalhão de bestas de Zion.

- Sua maldita, o que quer fazer comigo? Vai me matar?

- Ora Coc, fui sua amante, como ousa pensar isso de mim.

Coc não responde, caí desfalecido. Ela cutuca-o com o pé direito, certificando-se que está
adormecido, solta uma estrondosa gargalhada, volta ao armário onde guarda a garrafa e pega
uma bem semelhante, serve-se de uma dose bem generosa e saboreia a bebida com prazer.

Algum tempo depois, Coc acorda, ainda zonzo, sem saber direito onde está ou o que aconteceu,
imediatamente percebe que aquele local não é a Cruzeiro do Sul. Ao conseguir sentar na cama
toma um susto, bem à sua frente, sentado calmamente há um dos gerentes da IRMANDADE.

- Senhor Cochrane Esfim, finalmente resolveu acordar.

- Estou na sede da IRMANDADE?

- Sim, voltou às origens, irmanado nível 08, acho que temos algumas contas a acertar.

- O quer dizer com isso?

- Oras senhor Cochrane, isso me espanta. Não se lembra das diretrizes da IRMANDADE?
Saiu de nosso convívio sem autorização, ficou anos desaparecido e nunca pagou a taxa de
afastamento.

- Taxa de Afastamento?

- Sim, eis o código da IRMANDADE, leia o artigo 439 – “todo irmanado é livre para deixar a
IRMANDADE, mas para isso deve pagar a Taxa de Afastamento, que calcula-se multiplicando-
se a média de ganhos anuais do solicitante pelo saldo de sua VIDA ÚTIL DENTRO DA
IRMANDADE”. Veja irmanado Cochrane, quando nos deixou estava com 28 anos, a média que
estabelecemos como “VIDA ÚTIL” para alguém como você é de 60 anos, portanto nos deve 32
anos de ganhos, como sua média de ganhos anuais é de 100 milhões de dhers, você tem de nos
pagar três bilhões e duzentos mil dhers.

- Ficou louco? Não tenho isso.

- Já esperava, portanto vamos ter de aplicar a pena alternativa.

- Pena alternativa?
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- Sim, vai ficar os 32 anos restantes no serviço de limpeza dos esgotos. Sabe, irmanado Cochrane,
temos seres de diversas etnias e origens trabalhando aqui, confesso que os robôs poderiam fazer
um trabalho melhor do que qualquer ser orgânico na limpeza dos esgotos, mas preferimos
que isso seja feito pelos irmanados cujo comportamento se mostra contrário às normas da
IRMANDADE. Levem-no.

Dois enormes guardas aparecem e pegam Coc pelos braços.

- Um momento, cadê a Heloísa?

- Ah, Heloísa Duarte? Ela pediu seu afastamento, nos pagou com ouro vermelho e ainda comprou
a Cruzeiro do Sul.

- Não é possível, aquele ouro é meu, fui o contratante do serviço. Tenho um contrato para provar
isso.

- Seu contrato se torna sem efeito a partir do momento que coloca a vida de algum membro da
IRMANDADE em risco. Verificamos os arquivos de som e imagem da Cruzeiro do Sul antes da
concessão, parece que o senhor ia deixar nossa piloto em um distante planeta alienígena, se leu
o contrato vai se lembrar da cláusula de segurança. Essa é uma das que permite o cancelamento.
Levem-no, joguem-no no setor 43, dos metanitas.

Coc apenas grita enquanto os guardas o levam.

Enquanto isso, na Terra, Heloísa pousa uma mala no chão da sala da casa de seus pais.

- Filha, que bom vê-la, mas o que aconteceu? Não é o período de suas férias.

- Vamos nos mudar, mãe. Comprei um bangalô em Mirrenius 4.

- Ficou maluca? É o local mais caro do universo conhecido.

- Digamos que eu “acertei na loteria”.

Dois dias depois a Cruzeiro do Sul, tendo a família de Helô à bordo decola rumo a Mirrenius 4.
Dentro da nave a garota se lembra com saudades de Coc enquanto olha um antigo álbum. Ela
sorri, joga as fotos no incinerador. Nos porões milhares de barras de ouro vermelho garantem a
aposentadoria da ex-irmanada Heloísa Duarte.
49
Outubro 2005

Tema: Senhores da Guerra

A Canção dos Senhores da Guerra


Ana Cristina Rodrigues
Com citações de “Senhores da Guerra” - Madredeus

No tribunal do Fim do Mundo, uma mulher de olhos cobertos e coração fechado leva seu corpo
fino até o centro. O alvo do tecido que recobre sua pele contrasta com o negror do seu cabelo e
de sua alma. Seu nome é Justiça.

Perfura o pensar dos poucos sentados no Júri. Sua voz tem entonação de raiva e agonia.

“Lá fora estão os senhores da guerra

E cantam já hinos de vitória

Qual é a historia desta terra?

É o medo, ali mesmo...”

Por trás de si, o vulto de anos atrás. Dá espaço e deixa passar o primeiro dos homens a trazer
seus queixumes.

Por Allah, Pai e Criador!

Nos tempos da antiga Castela, havia um velho mullah. Com a graça do Senhor Deus, guiava os
espíritos dos seus na Santa Lei do Profeta.

Pois já dizia o livro da Revelação, o Qran: Só Allah é Deus e Mohammad é seu Profeta!

Um homem justo. Um servo do Senhor. Fazia o Jejum. Dava as esmolas.

Allah, Allah, por que abandonou seu povo? Pois eram os dias da Guerra. Dos infiéis contra os
crentes.

E na peleja continua, os filhos do deserto foram derrotados. Os olhos tristes do mullah seguiram
o homem de armadura brilhante que acabara de destruir a aldeia. Pálido como todos os cristãos,
olhos e cabelos negros. Os infiéis seguiam como a um de seus santos demoníacos.
50
Ah, que desgraça! Pois o povo escolhido sofreria derrotas seguidas nas mãos desses idólatras!
Que o Fogo do Inferno de Shaiatan devore suas entranhas!

Fatimah, a segunda esposa do mullah, estava ao seu lado. As demais ficaram receosas de
aproximar-se dos demônios seguidores do papado.

- Quem é ele, Abduallah? Por que destruiu nossas casas e nossas plantações?

- É o Senhor da Guerra.

E Abduallah ibn Mohammed ibn Yussef soube que iria morrer em breve. Allah escrevera seu
destino nas mãos de Dom Roderico, chamado de El Cid Campeador.

Maktub!

Seu olhar atraiu o cavaleiro.

- Quem é você?

O mullah conhecia a língua dos bárbaros. Mas tinha dificuldade em a falar.

- Abduallah, servidor do Deus.

- Um mullah? Ótimo! Será morto ao amanhecer – E para maior desonra do santo homem,
os olhos cheios de devassidão foram encontrar as curvas de Fatimah. Um sinal e dois servos
agarraram a moça, que sequer protestou.

Na fúria da incompreensão, o velho seguidor do Islã bradou:

- Allah, Allah, pai e senhor, por que largou toda a terra? Por que o destino dos homens encontra-
se nas mãos dos Senhores da Guerra?

A Guerra ecoava no Salão do Juízo e o sábio muçulmano desvaneceu-se. A Justiça calou-se.


Um homem alto, os olhos sombreados pelo rancor, vestido de couro preto, adiantou-se. Jogou
os cabelos e soltou o seu brado. Seu nome era Juízo.

“Cá dentro estão os homens á espera

Unidos no destino da terra

Já não há memória de paz na terra

É o medo, ali mesmo”

Juízo e Justiça deram-se as mãos. Vindo de outras épocas, um velho de terno aproximou-se.
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- Saudações; irei neste momento contar um caso. Aconteceu com um ente muito querido de
minha pessoa. Um amigo, perdido pelo mais torpe dos motivos. Seu nome era Marc Bloch,
professor universitário quando da terrível invasão nazista ao território francês.

Na frente de Lucien Febvre, o cenário alterou-se. Mostrou o interior de uma pequena cela.

Marc Bloch olhava com piedade para o rapazinho que chorava, sentado em um canto da cela
fétida. Lembrou do filho que jamais veria crescer. Sua esposa já estava morta, ele sabia. Lucien
Febvre tinha conseguido contrabandear a informação para dentro do campo de segurança onde
o velho historiador encontrava-se.

Não chorou. Sabia que em breve a encontraria. E sentia que o único a chorar sua morte, por
muito tempo, seria o amigo a quem dedicara seu último livro, espalhado nos cadernos que
enviara da prisão.

Um soldado alemão entrou no espaço exíguo. Gritou algumas ordens inequívocas, e conduziu
os prisioneiros a uma caminhonete.

Ali, o choro silencioso irrompeu em soluços. O coração do professor condoeu-se. Aproximou-


se com dificuldade do rapaz. As pernas mal agüentavam o seu peso, depois dos maus tratos e
das torturas. Ergue o braço esquerdo para acarinhar o cabelo do mocinho choroso, quando a
visão do cotoco enegrecido e coberto de feridas e pus trouxe a amarga verdade. Não possuía
mais a mão esquerda.

Não deixou a frustração o vencer. Passou a extremidade calejada e ferida na cabeça do homem
mais novo.

- Não chore. Não precisa ter medo, não vai doer nada...

- Eles vão nos matar... claro que vai doer, você está mentindo.

- Acredite, não vai. Eu sou professor da Sourbonne. Não posso mentir.

De todo o coração, desejava estar falando a verdade. O caminhão partiu, desequilibrando-o. Na


saída do setor, uma imagem do Fürher saudava os condenados. O historiador, autor de um longo
tratado sobre os poderes dos reis, abaixou a cabeça, curvado ao peso do Senhor da Guerra.

O ronco do caminhão perdeu-se na imensidão da sala escura. Justiça e Juízo permanecerem


impassíveis, as mãos dadas. A figura de terno saudou a assistência e desvaneceu-se no ar.

Dessa vez, nenhum dos dois começou a cantar.


52
O velho mullah, morto pelo guerreiro cristão, surgiu. Ao seu lado, o historiador francês,
ainda carregando em si as marcas dos maus tratos nazistas. Pouco a pouco, todo o espaço foi
preenchido. Um iraquiano assassinado ao sair de uma mesquita, confundido com um terrorista.
Um lavrador português, que caíra na emboscada de um angolano nas guerras coloniais. Um
francês, vítima das guerras entre seu rei e o rei inglês durante a Idade Média. Um guerreiro
gaulês, a cabeça aberta pelos golpes de um centurião romano. Um jovem tímido americano, que
ficara no Vietnã, uma bala alojada em seu coração.

Cada um em sua língua, no seu jeito, no seu sotaque, entoou a canção que Justiça e Juízo
cantavam.

“Ai terra, Mais um dia a nascer

Ai, é menos um dia a morrer

É tão pouca a gloria duma guerra

E os homens que as fazem sem vitórias

Já não há memória, de paz na terra

É o medo, ali mesmo”

Das trevas onde estaria imersa a platéia, uma voz profunda fez-se ouvir.

“Eu sou o Senhor da Guerra

E canto meus hinos de Vitória.

A minha história é a história desta terra.

Eu trouxe o medo e assim mesmo...

Aqui estão os homens à espera!

Não veem que não há mais memória

De paz na terra?”

Vindas não se sabe de onde, luzes acendem-se. Não era palco, ou tribunal de audiência.

Era a Terra. Destruída, arrasada.

Entregue aos Senhores da Guerra.


53
Novembro 2005

Universos Paralelos

Através do espelho
Ana Carolina Silveira

A grande sala, meio parecida com o interior de uma árvore pelas grandes paredes de madeira
arredondadas, estava uma verdadeira bagunça. Havia algumas pilhas de livros pelos cantos,
além de alguns pergaminhos e folhas de papel sobre eles, isso sem contar com os frascos com
amostras de plantas e animais por todos os cantos. No meio de toda aquela bagunça, em um
banquinho de madeira, uma jovem estava sentada, terminando de ler as últimas páginas de um
livro de capa dourada.

- Hum... – Disse ela para si mesma em voz alta. – Então o suco das mandrágoras pode ser
aplicado dessa forma, sim, sim...

Usava lentes grossas para conseguir ler as palavras do livro, os cabelos estavam displicentemente
presos em um coque, vestia uma túnica velha que não ousaria mostrar em qualquer outro lugar
longe daquele quarto. Estava recitando a lição passada por seu mestre para aquele dia, teria de
começar logo a preparar a próxima, sobre poções, que o mestre lhe pedira para o dia seguinte.

Não que não achasse minimamente divertido preparar poções – a maioria usada como
medicamento por aqueles que as requisitassem – mas gostava mesmo era da magia elemental.
Tinha preferência pelo domínio do fogo, a cada dia aprofundava-se mais e mais na arte de
controlá-lo. Porém, não custava lembrar, era apenas uma aprendiz, mal sabia de cor os símbolos
arcanos mais primordiais.

Levantou-se, fechando o livro e espreguiçando-se. Era verdade o que todos diziam, aquele lugar
estava um caos! Pegou, logo em sua frente, o frasco com um exemplar raríssimo: uma fada do
sexo masculino. Seu mestre lhe dera de presente em seu último aniversário, pela boa evolução
de suas disciplinas mágicas durante aquele ano que passara. Estava realmente muito satisfeita
consigo mesma, o treinamento transcorria muito melhor do que podia imaginar! Ainda estava
muito longe de ser uma maga, mas já podia sentir o poder que lhe era fornecido pela natureza
dentro de seu próprio corpo. Mais do que isso, já quase conseguia formar imagens mentais dos
objetos e manipular sua essência, estava quase indo um passo além do mundo visível!

Colocou algumas folhas de papel rabiscadas e antigas na pequena lareira que havia em um dos
cantos da sala apenas para atiçar as chamas. Caso se concentrasse, podia ver as salamandras e
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até mesmo interagir com elas! Mas no momento não estava interessada nisso. Tinha deixado os
objetos de estudo para trás e se admirava no grande espelho oval que havia no meio exato de
seu cômodo. Ele era grande o suficiente para poder ver seu corpo inteiro, mas não estava muito
interessada em prestar atenção numa garota sem-graça vestida com uma túnica velha.

Lembrava-se de uma lição que conhecia desde a infância: o mundo em que vivia não era o único
existente. Havia muito mais a se ver e ouvir do que simplesmente aquilo que conhecia, do que
todos os sentidos de seu corpo, mente e alma podiam compreender ou captar. Havia outras
realidades, outros mundos que se sobrepunham ao seu. Podia até ser que outra versão dela
existisse em outra realidade, que jamais desconfiasse o que significava “magia”...

Fixou os grandes olhos castanhos no espelho. Tinha certeza de que caso conseguisse se
concentrar, poderia ver muito mais do que vultos não pertencentes ao seu mundo, mas até
mesmo uma imagem de algum desses outros lugares...

...

- Capitão, estamos a T-120 do limite do perímetro do sistema estelar de Polaris.

- Prossiga a rota como estipulado. Não haverá a necessidade de desvios.

- Sim, senhor.

O capitão da nave de reconhecimento estelar suspirou profundamente enquanto se espreguiçava


em sua poltrona. Então todos os seus cálculos tinham dado certo, se tudo tinha ocorrido bem
até aquele momento, o resto da viagem provavelmente também seria tranqüilo. Sabia que não
podia se descuidar nem por um único momento, afinal era muito mais do que sua vida e a dos
outros tripulantes em jogo: era todo um processo de expansão que começara gerações antes
que poderia ser perdido. Sentia todo o peso da responsabilidade em suas costas, das noites em
que só conseguira dormir à base de medicamentos, dos momentos de tensão, das horas – e dias
– perdidas fazendo cálculos que não levaram a resultados conclusivos.

Teria uma hora de descanso antes de ter de voltar aos cálculos para a última parte da viagem.
Levantou-se no momento em que deveriam estar entrando no perímetro, queria beber um
composto de cafeína antes de continuar a viagem. Não era nenhum principiante na pilotagem,
mas era a primeira vez que estava no comando de uma nave com uma missão vital. Não seria
um descuido momentâneo que colocaria tudo a perder, não podia deixar que isso acontecesse.

Sentou-se novamente com o copo na mão. Podia ver o espaço salpicado de estrelas logo a sua
frente, que agora se mexiam devagar. Era uma visão muito mais confortante do que o caos
inerente ao interior de um wormhole, podia considerá-la até mesmo... poética. Lembrava-se de
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vê-las através de sua janela na Terra, quando criança. Suas primeiras lembranças remetiam a um
móbile de estrelas sobre seu berço. Seu primeiro sonho fora alcançá-las e por ele lutara durante
toda a sua vida. Os anos de estudo para ingressar na Academia, as primeiras missões mesmo
que periféricas e os anos de barganhas de todas as espécies, em especial as políticas, para que
pudesse realizar seu maior objetivo: ser o capitão de uma nave capaz de visitar as estrelas.
Estava satisfeito ao perceber o quão próximos estavam do sucesso da missão, mal podia esperar
para começar todo o mapeamento do sistema estelar de Polaris.

Enquanto descansava a mente e esperava para o próximo passo de sua missão, pousou os olhos
no monitor logo a sua frente: mostrava as ondas captadas pelos sistemas da nave, na tentativa
de receptar sinais de civilizações avançadas com as quais pudessem manter algum contato. Até
o momento não houvera sinal algum, o que não os impedia de continuar tentando.

O capitão sorriu. Lembrava-se da mesma fundamentação física que permitia as distorções de


espaço-tempo e a viagem para pontos distantes pelo interior dos wormholes. Será que aquele
receptor também seria capaz de identificar mensagens de universos paralelos? Já tivera a
impressão algumas vezes, era como olhar por vidraças grossas e perceber o que havia do outro
lado. Não, deveriam ser apenas coincidências de uma mente cansada.

O que não o impedia de olhar pelo monitor e continuar em seus devaneios...

...

Foi quando aconteceu.

Os grandes olhos castanhos eram tão presentes quanto reais. Eles o observavam intrigados, assim
como observava intrigado a dona daqueles olhos. Era humana como ele, vestia trajes estranhos,
tinha os cabelos presos em um coque e certamente não era uma ilusão ou um devaneio.

Ela também observava seu espelho, o homem com a face intrigada que a observava. Que lugar
estranho, ainda mais do que seu próprio quarto! Parecia metal polido, mas que espécie de
pessoa usaria aquilo numa casa? E as roupas dele? Lembravam as roupas da guarda do Exército
Imperial de X’har, que vira uma vez na infância. Estava realmente diante de um habitante de um
mundo que não era o seu? Levantou a mão, tocando-a no espelho, numa tentativa de comunicar-
se.

Por sua vez, o capitão da nave afastou rapidamente a franja que lhe caía sobre o rosto e tocou a
tela no mesmo lugar em que a aprendiz de maga colocara a mão pouco antes, como para tocá-
la, caso isso fosse possível. Aquilo não era muito provável, apesar de perfeitamente possível.
Estava conseguindo captar sinais interdimensionais? E que casa estranha era aquela, parecia
uma biblioteca velha e desarrumada misturada com as amostras de um laboratório de biologia!
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Era bastante surreal, quase inacreditável.

Mas os grandes olhos que não paravam de olhá-lo... Que lindos olhos eram aqueles! E que
estranha sensação, a aprendiz de maga estava sentindo! Era como se o próprio tempo tivesse
sido suprimido e apenas o olhar de curiosidade em relação ao estranho tivesse sobrado, era
como se estivesse realmente fascinada e encantada. Enquanto ele, por sua vez, tinha deixado o
ceticismo de lado e deixado apenas a curiosidade dar as ordens.

- Capitão!

- Bellatrix!

Assustados, viraram na direção de onde as vozes tinham vindo, despertos do transe momentâneo.
Era um dos seus subordinados da nave que o chamava para o serviço; era a responsável pela
casa que a chamava para a refeição.

- E-e-e-e-estou indo...

- Dê-me um minuto.

Ao olharem novamente para o monitor e para o espelho, apenas sinais de estática e a própria
imagem refletida. O capitão piscou os olhos e meneou a cabeça por alguns instantes antes de
seguir o subordinado para a sala de cálculos, a fim de fazer os últimos necessários para o fim da
expedição. A visão tinha sido bastante interessante, mas era melhor esquecê-la para que pudesse
terminar os cálculos da viagem sem maiores tropeços. Não podia se dar ao luxo de errar quando
já estavam quase chegando.

Bellatrix, por sua vez, olhava estática para sua imagem no espelho. Tinha certeza, aquilo não
fora só uma ilusão, tinha conseguido ver um outro mundo através de seu espelho! Deu alguns
pulinhos e gritinhos infantis de satisfação por ter conseguido ir em frente!

- Bellatrix, não chamarei de novo!

A aprendiz de maga resmungou alguma coisa enquanto colocava alguma roupa um pouco melhor
para a refeição. Tinha de comer alguma coisa, mas assim que voltasse certamente tentaria de
novo!
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Março 2006

Tema: Dragões

Outro dia qualquer


João Doria

O Diretório Central estava um pandemônio. Equipes de segurança corriam sem parar pelos
corredores. Teodore aguardava no refeitório que as coisas se acalmassem. Quebras de segurança
eram casos comuns, mas este episódio já estava passando dos limites, meia hora para controlar
uma população era tempo demais. Os guardas deviam estar precisando de uma reciclagem.

As outras pessoas no refeitório estavam apavoradas, eram todas visitantes que queriam conhecer
as maravilhas da engenharia moderna. Estavam fazendo o tour pelas instalações. Não sabiam
nada do acontecido. Tanto não sabiam que se assustaram quando um homem entrou pelas portas
do refeitório fazendo um estardalhaço tremendo. Uma das garotas sufocou um gritinho.

– Ted! Aí está você! Tenho te procurado por todo o prédio. Preciso de você. Agora... – Miguel
não tinha o menor tato para tratar as pessoas. Ele podia ser o Diretor de Operações, mas era um
grande babaca. O cargo devia subir à cabeça dele, poucos já o tinham visto descer do salto.

– Calma aí, Miguel. Não tá vendo que eu tô tomando café? Dá um tempo. Não consegui dormir
essa noite, aquelas duas eram insaciáveis – Teodore parou para tomar um gole bem longo de
café. O café, na verdade, era horrível e estava naquela caneca quase uma hora, mas sabia que
deixava Miguel alucinado quando fazia isso. E nada fazia Teodore mais feliz do que infernizar
a vida de Miguel.

Daquela vez ele não disse nada. Limitou-se a esperar calado até Teodore cansar e ir direto ao
assunto. Algo importante estava acontecendo ou a veia na testa do engomadinho não estaria
latejando nesse momento.

– O que foi, Miguel? Aconteceu alguma coisa?

– Se não tivesse acontecido eu não estaria aqui falando com você. Venha! – Teodore largou a
caneca sobre a mesa e seguiu o outro. Os corredores ainda estavam cheios, mas a correria tinha
parado. Alguns guardas ainda eram vistos cochichando enquanto caminhavam. A música suave
que sempre tocava nos corredores tinha parado. Aquele silêncio todo estava deixando Ted com
dor de cabeça. Puxou um pote de aspirinas do bolso da jaqueta, mas estava vazio. Teria que
esperar mais um pouco.
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Os dois foram em direção aos elevadores. Subiram até o térreo, saíram e tomaram o trem do
complexo. Dirigiam-se para o setor de segurança máxima. Pesquisa militar e biológica. Foi a
primeira vez que Teodore pressentiu que a coisa era um pouco mais séria do tinha imaginado.
Talvez o dia ainda fosse divertido...

O vidro blindado tinha sido derretido. Um buraco enorme com cerca de quatro metros de
diâmetro se abria para o galpão. Equipes de segurança fechavam o perímetro num raio de 10
km. Boa parte da alta cúpula da Companhia estava presente. O vice-presidente de pesquisa se
aproximava naquele momento, uma pequena trupe o seguia.

– Teodore, espero que possamos resolver esta questão em pouco tempo. Já ordenei que o projeto
fosse interrompido, mas ainda temos que controlar esta situação.

– Com todo o respeito, senhor, não tenho certeza se essa situação vai poder ser controlada. Temos
um dragão à solta e, pelo que eu sei, eles podem voar. – alguns dos homens ali arregalaram os
olhos e Teodore tinha certeza que viu um deles dar uma leve tremida.

– Eu não iria colocar o dinheiro dos acionistas em um projeto que pudesse arruinar a Companhia.
Meus técnicos me garantiram que ele ainda não desenvolveu as asas o suficiente para voar.
Falta mais de um mês para isso. Daí a importância de você controlar essa situação o mais
rápido possível, antes que ele possa sair da ilha. – O vice-presidente estava visivelmente
transtornado. Teodore conseguia vislumbrar os motivos de ter sido chamado ali. Seus serviços
eram requisitados novamente.

– Então se eu pegar esse monstrengo pra você eu posso tirar umas férias bem longas? Tipo...
com todas as despesas pagas? – A risadinha que deu naquele momento foi a gota d’água para
Miguel.

– Eu sabia! Você não presta mesmo! Senhor, tenho certeza que minhas equipes podem encontrar
e conter a ameaça sem a ajuda desse traste. Deixe-me...

– Não! – O grito do vice-presidente interrompeu até a risada de Ted. – Teodore irá resolver a
questão. E quanto a você, – virou-se para Ted – quero esse problema resolvido até o fim da
semana no máximo. Você tem três dias. E se não tiver sucesso, vou me certificar pessoalmente
que tenha as suas merecidas férias. E acho que não vamos ter muitas despesas com elas.

Teodore ficou sozinho no galpão. Os executivos se retiraram atrás do vice-presidente. Tinha


três dias para pegar este dragão. Não tinha idéia de como descobrir onde o demônio havia se
metido, mas Ted precisava achar uma maneira de fazer isso logo. As férias que lhe tinham sido
prometidas não pareceram muito agradáveis aos seus ouvidos.
59
Teodore seguiu os últimos passos do dragão até o interior da ilha. Ele usava um detector de
feromônios desenvolvido por uma equipe que trabalhava em paralelo com o projeto Dragonianos.
Era um instrumento bastante útil, o Demônio parecia não deixar uma marca visível por onde
tivesse passado, com exceção, é claro, do imenso buraco no vidro lá atrás.

Ted chegou até os pés de uma montanha que se erguia solitária no meio da ilha. Era o antigo
vulcão que a tinha formado, inativo há muito tempo. Os rastros da besta sugeriam que ela tinha
entrado em uma caverna na face norte da montanha. As buscas que Teodore realizou foram
infrutíferas. O seu detector de feromônios parecia enlouquecer dada a quantidade absurdamente
alta de feromônios existentes dentro da caverna. Ele não conseguia ter nenhuma leitura precisa
da direção que o animal tinha tomado nos túneis imensos que se enfiavam montanha adentro. A
busca aleatória pelos túneis demorou tanto e não obteve nenhum resultado que Teodore acabou
retornando até o complexo para verificar algumas alternativas.

– Então, cara. Eu preciso saber como que eu poderia atraí-lo para fora daquela caverna. Não tem
como encontrá-lo ali dentro. Além disso, preciso de caminho livre para conseguir um bom tiro.
Qualquer coisa serve. Uma dragoa, um brinquedo ou uma comida preferida...

– Peixe – interrompeu subitamente o técnico. – A gente sempre dava peixe pra eles. Talvez isso
funcione.

Teodore parou para pensar um pouco sobre o que o homem dizia. Com certeza naquela caverna
não deveriam existir peixes. Quase certo não existiria outro tipo de comida qualquer que o
dragão pudesse se alimentar. No cativeiro eles eram alimentados todos os dias. Ele devia estar
com fome.

– Qual é o peixe que vocês davam a eles? E qual é o peixe mais fedorento que eu posso arranjar
por aqui?

Uma pequena equipe de quatro pessoas ajudou Teodore a levar as cinco caixas de peixe até a
entrada da caverna. Ali ele dispensou os quatro e começou a preparar a emboscada. Carregou as
caixas de peixe até a entrada da caverna. O cheiro era muito forte, seria impossível do dragão
não senti-lo. Depois separou uma caixa e colocou os peixes em uma grande sacola que pendurou
nas costas e entrou na caverna com seu rifle de assalto em mãos. Conforme ia entrando mais
fundo na caverna ia consultando o detector de feromônios, mais por uma precaução do que
qualquer outra coisa, as leituras continuavam estranhas.

Quando achou que já tinha entrado o suficiente na caverna, retirou um grande peixe da sacola
e atirou para o fundo da caverna. Depois voltou por onde tinha vindo e ocasionalmente atirava
mais um peixe para a escuridão, até que todos os peixes se acabaram. Voltou à entrada da
caverna, as quatro caixas continuavam ali intocadas, por exceção de algumas moscas e outros
insetos que enxameavam ao redor.

E então ele esperou. Era metade da tarde do segundo dia e ele começava a sua espreita. Escondeu-
60
se em um abrigo que tinha construído protegido por uma árvore que caíra. Passou-se todo o
terceiro dia e nada do dragão aparecer. Teodore tomava anfetaminas para não dormir, precisava
estar “ligado” quando o animal aparecesse. Mais dois dias se passaram. Mesmo com as drogas,
Ted já começava a se sentir extremamente cansado e sua mente parecia um oceano de memórias
alucinantes que nunca teve.

Alguns animais pequenos apareciam ocasionalmente, mas logo eram espantados por uma pedra
se começassem a comer muito peixe. Naquele crepúsculo do terceiro dia de espera um gambá
apareceu. Estava namorando aquela pilha cheirosa de peixes e Ted já não agüentava ver essas
criaturinhas comendo o seu peixe. Foi à procura de uma pedra e no momento em que ia atirá-la,
o pequeno marsupial se assustou com alguma coisa e fugiu. Teodore ainda olhou para a pedra
em sua mão sem entender nada e então viu um grande animal saindo da caverna.

O dragão não era nem um pouco como ele tinha imaginado. Não tinham lhe mostrado registros
de imagem do monstro, eles eram expressamente proibidos já que o experimento era ilegal. O
animal parecia um Morcego gigante. Tinha cerca de um metro de comprimento com uma cauda
que seguia afinando até a ponta mais um metro para trás. Suas patas traseiras eram pequenas
e curtas com enormes garras que certamente dilacerariam qualquer pedaço de carne que se
colocasse no seu caminho. Suas patas dianteiras eram modificadas. Eram extremamente longas,
finas e possuíam uma membrana que se ligava até a parte superior das patas traseiras.

Ele andava com as quatro patas, completamente desengonçado, muito parecido com um
morcego que Ted tinha visto num documentário na TV. Era uma cena engraçada. O que seriam
seus cotovelos subia acima da cabeça quase um metro de altura. O que o diferenciava de um
morcego era a cabeça muito parecida com a dos lagartos, inclusive com a lingüinha bifurcada
saindo da boca a toda hora, e a pele desprovida de pelos. A superfície do corpo era recoberta
por um couro acinzentado que parecia ter a textura da pele humana, talvez um pouco mais
enrugada.

Teodore ficou encantado com a estranha criatura. Ela ia em direção aos peixes sem parecer notar
a presença de Ted. O dragão começou então a emitir usa lingüinha incansavelmente em direção
aos peixes e logo começou a comer alucinadamente. Abocanhava um peixe enorme e o partia
como se fosse gelatina. Seus dentes cortavam como verdadeiras facas. Eram afiadíssimos.

Ted logo deixou de se impressionar com a cena e tratou de engatilhar seu rifle. Tinha preparado
a arma de modo que pudesse capturar a criatura se possível. Os primeiros dois projéteis eram
carregados com tranqüilizantes poderosos que certamente deixariam o dragão completamente
grogue. Os demais eram todos projéteis experimentais que possuíam uma pequena carga
explosiva que detonava um segundo após o impacto com o alvo. Eram devastadores. Precisaria
de apenas um desses tiros.

A mira estava perfeita. O pescoço do dragão estava completamente à mostra e não foi difícil para
Teodore acertar o tiro com precisão. O animal deu um alto grito e uma leve fumaça começou
61
a sair de sua boca. Ele começou a pular de forma descoordenada. Para um lado e para o outro
e depois girava em círculos. Era uma cena estranha e Ted não gostou nada de ver que o dragão
ainda permanecia acordado. Engatilhou novamente o rifle e atirou. O projétil penetrou as costas
do animal um pouco acima da cintura. Um novo guincho e dessa vez um grande esguicho de um
líquido foi expelido pela boca do animal. O líquido fez um arco no ar e quando começava a cair
novamente inflamou. Uma linha de fogo se formou no ar e algumas árvores se incendiaram.

O dragão continuava a pular, já não com o mesmo entusiasmo de antes, mas ainda não mostrava
sinais de que tivesse sido drogado. Ted já tinha engatilhado novamente a arma, dessa vez o
projétil na agulha era explosivo, quando a criatura despencou no chão. Ela se contorcia de modo
assustador e o guincho que emitia era de enregelar os ossos. Teodore começou a se aproximar
com cautela. Não tinha gostado nada da demonstração pirotécnica de pouco.

O dragão ofegava tentando respirar. A ferida no pescoço sangrava muito e Ted ficou pensando se
conseguiria estancar a hemorragia antes que o animal morresse. Agora que tinha se aproximado
pôde ver que a pele do dragão era coberta de escamas, como todos os répteis. Entretanto elas
eram tão pequenas, juntas e sobrepostas, que quase não se podia diferenciá-las.

Ted olhava fixamente para os olhos do dragão. Eles estavam começando a ficar um pouco
opacos, o monstrengo estava completamente chapado. Pegou o celular e discou o número do
Departamento de Operações. A voz de uma mulher atendeu prontamente.

– Senhor Crimson. Por favor, aguarde na linha um instante. O Diretor Cervantes pediu que
assim que o senhor ligasse transferisse a ligação para ele. Obrigado. – Ela não o deixou nem
mesmo responder alguma coisa, o colocou na espera escutando aquela música imprestável.

Logo depois Miguel atendeu, como não podia deixar de ser, gritando a plenos pulmões que ele
não prestava e que era a última vez que ele prejudicava esta companhia.

– Mas Miguel, acabei de capturar o dragão que fugiu. Tendo feito isso eu não fiz o que me
pediram? Se eu prejudico a companhia assim, não é melhor eu soltar a fera então? – O homem
do outro lado da linha ficou mudo. Ted tinha destruído todos os argumentos dele naquele
momento.

– Onde você está? O que aconteceu com o espécime? Ele está vivo? Você disse que o tinha
capturado.

– Sim, ele está vivo. Atirei com tranqüilizantes nele. Ele me parece bem. Agora, eu preciso de
um transporte pro animal. Não vai dar pra carregar ele nas costas. Por que você não triangula a
ligação e localiza onde eu estou. Vou deixar o telefone ligado. Tchau.

– Não! Esp... – Ted já tinha tirado o telefone do ouvido e olhava novamente para o animal
estendido no chão. Se com aquelas asas enorme o bicho não podia voar, ele não sabia como
algum dia voaria.
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Teodore se ajoelhou ao lado do corpo do animal e começou a olhar novamente para os olhos da
fera. Tinha alguma coisa estranha com aqueles olhos. Eles estavam muito opacos. De repente
a lingüinha reaparece e o animal abre mais uma vez a boca, uma fumaça acre começa a sair do
fundo da garganta. Enquanto isso Ted dá um grande salto se levantando e agarrando o rifle em
posição. Engatilha e atira em uma fração de segundo. A cabeça do dragão explode e os restos
começam a pegar fogo imediatamente. O bicho devia estar tentando expelir fogo mais uma
vez.

Teodore respirava com dificuldade. O ar estava muito quente e o fogo não ajudava em nada.
Uma dor começou a subir por sua perna direita e ao olhar para baixo viu as chamas em sua
calça. Conseguiu apagar o fogo com as mãos antes de maiores danos.

Ted parou alguns minutos, admirado, observando o corpo do dragão se consumir em chamas.
Foi então que se lembrou do celular. Procurou nos bolsos, mas não achou. Revirou o chão ao
seu redor e nada.

Nessa hora viu um brilho metálico no meio das chamas e deu de ombros. Juntou suas coisas
e foi embora em direção oposta ao complexo. Para o leste ficava a cidade costeira de Nova
Elba, onde morava a grande maioria dos funcionários da companhia na ilha. Era uma ótima
cidade, com muitos clubes noturnos. Ali com certeza encontraria um pouco de Bourbon e umas
aspirinas. As suas tinham acabado e essas anfetaminas não faziam muito bem para a sua dor de
cabeça.
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Março 2007

Tema: Polícia Temporal

Clandestinos
Ubiratan Peleteiro

Tânia havia acabado de começar seu plantão quando foi chamada à sala de controle de tráfego
intertemporal. E por ordem do comissário. O que poderia ser tão importante para o chefão
em pessoa descer até lá? Ao dobrar o corredor, encontrou seu experiente parceiro, Gaspar,
aguardando o elevador. Ele tinha mais de quinze anos de carreira, estava sendo muito instrutivo
para Tânia trabalhar com ele, apesar dela não concordar com muitas das práticas daquele policial
linha dura.

— O que será? — perguntou ao colega.

— Sei lá! Não deve ser a operação que tinham programado pra hoje. O chefão não costuma se
envolver nessas bagatelas.

— Depende. Você ficou sabendo algo sobre a operação?

As missões só eram totalmente reveladas às equipes no início da operação, era uma medida de
segurança para evitar vazamentos. Mas Gaspar costumava ficar sabendo de alguma coisa antes,
o que era ventilado nos corredores. Gaspar baixou o tom de voz e disse:

— Ouvi dizer que é contra uma missão arqueológica autorizada. Parece que é fachada para
roubo de relíquias. Mas não suspenderam a operação, as outras duplas estão dentro. Só nós
fomos chamados pelo comissário.

A porta do elevador se abriu. Estava vazio. Entraram e ela escolheu o andar. Mas não conversaram
mais, pois havia a câmera com microfone embutido no canto. Enquanto subiam, Tânia ficou
imaginando do que se tratava o chamado. “Será que é sobre a categoria X?”, pensou.

A porta se abriu e eles saíram. Tudo estava normal na sala de controle, cada operador estava
concentrado no seu monitor de deslocamento temporal e, na parede em frente às fileiras de
equipamentos, o painel principal mostrava uma visão geral dos deslocamentos na jurisdição
daquela chefatura. Ele exibia um gráfico 3D. O eixo Y representava a escala de tempo, o X e o
Z o plano do espaço, onde estava traçado um mapa da jurisdição em alto-relevo. Cada viagem
no tempo era representada por um vetor descendente que iniciava num momento de partida e
ia até um momento de destino. A sombra de cada vetor marcava no mapa o local onde estava
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ocorrendo o deslocamento.

Havia uma sala reservada. Na porta estava o supervisor de controle, ele fez um sinal, chamando-
os. Tânia suspeitou que era algo grave, ou ao menos secreto, para terem que tratar naquela sala.
Quando entrou, viu o comissário observando apreensivo o trabalho de um operador, o qual ela
conhecia e sabia pertencer à categoria X. “É uma daquelas missões!”, pensou, esforçando-se
para não deixar transparecer seu desgosto. O supervisor fechou a porta atrás deles, ficando do
lado de fora. O barulho da porta chamou a atenção do comissário.

— Ah, Finalmente! — ele exclamou quando os viu. — Venham aqui!

Aproximaram-se e o comissário fez um gesto ao operador, para que ele explicasse a situação.

— Excluímos este deslocamento do plano geral — começou a explicar o operador, apontando a


tela onde havia uma imagem bem incomum para um deslocamento temporal. — Eu o encontrei
por acaso. Estava tentando fazer uma ampliação de outro deslocamento e esbarraram em mim.
Ampliei esta região sem querer.

— Mas a imagem está distorcida? O vetor parece bem inclinado — falou Gaspar.

— O deslocamento é esse mesmo. E de fato ele é inclinado ao invés de ser vertical. É alguma
anomalia. Nunca vi nada igual, e também não há nada assim nos registros. Ele parece ocorrer
não só no tempo, mas no espaço também.

— No espaço!? — perguntou Tânia, espantada.

— É. Por isso ele é inclinado. Na verdade eu acho que ele atravessa a nossa jurisdição, ao
invés de ocorrer em um único local. Entra por um lado e sai pelo outro. Além disso, as ondas
temporais fogem completamente dos padrões. E a energia consumida é um ínfimo do normal!

— Seria alguma tecnologia desconhecida para nós? — Perguntou Tânia.

— Pode ser. Mas não está emitindo o código de segurança. Na verdade, não está emitindo
código nenhum! Deveria estar, dificilmente a lei que estabelece a obrigatoriedade da emissão
do código seria revogada no futuro.

— O que você acha que é? — perguntou Gaspar.

— Não há como saber. Com certeza é algum clandestino. Vocês vão ter que capturá-lo para
descobrirmos.

— Muito bem! – falou o comissário, enxugando o suor da cabeça calva com um lenço. —
Chega de conversa! Aqui estão as ordens — entregou um envelope lacrado para Tânia e outro
para Gaspar. — Já localizamos um momento e local adequados para a emboscada. Peguem as
informações com o operador e executem a missão. Eu aguardo os resultados.

O comissário se retirou da sala, ajeitando o paletó largo sobre o corpo obeso. “O trabalho sujo
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fica pra gente!”, pensou Tânia. Desde a primeira missão desse tipo ela se arrependera da maldita
decisão de ter aceitado entrar para a categoria X. Tratava-se de um padrão secreto que alguns
policiais recebiam no seu assentamento funcional para lidar com algumas missões sigilosas.
Garantia uma aposentadoria com vinte por cento menos de tempo de serviço, com proventos
trinta por cento maiores. De início pareceu interessante, mas quando ela descobriu que muitas
vezes as missões eram para “lavar roupa suja”, viu os maus lençóis onde se metera. Pelo menos
para ela, que não gostava nem um pouco deste tipo de coisa. E não havia como voltar atrás, a
não ser se saísse da corporação.

O operador passou os dados da emboscada e eles se foram. Enquanto saíam, Tânia abriu o
envelope entregue pelo comissário, conferiu a autenticidade e o guardou no bolso. Sabia que
não havia nenhuma informação importante ali. Era apenas uma segurança para o policial, prova
de que não estava agindo por conta própria, afinal, esse tipo de missão era muito secreto, sem
registro nos sistemas e conhecida por poucos, os quais poderiam negar sua existência. Seria
arriscado demais tocar uma missão dessas sem uma garantia bem sólida. “Já basta o peso na
minha consciência”, pensou Tânia, “Lidar com o pessoal de assuntos internos por esta merda,
nem pensar!”

...

— Você lembra do primeiro cara que a gente prendeu, Gaspar? — perguntou Tânia.

— Hein? — disse Gaspar, retirado de repente da sua concentração. — Acho que não — respondeu
após um momento, voltando a olhar para a armadilha. — Afinal, foram tantos! E eu já tinha
prendido um bocado quando você entrou!

— Não, eu estava falando depois que nós entramos para a categoria X.

— Ah, sim! Aí não foram tantos. Na verdade foram poucos, só uma meia dúzia. E eu lembro
do nosso primeiro. Foi um velhote. Ele era estranho pacas! Parecia todo modelado feito um
boneco de biscuit. Sabe-se lá que interferência cosmética eles vão inventar no futuro! Ele não
era nem um pouco calvo, os cabelos, muito negros, a pele lisa como a de um bebê e os dentes
mais brancos que madrepérola. Ele andava ereto feito uma tábua, não tinha nem sinal de barriga
ou pneus. Mas eu tenho certeza que era um velhote, só pela expressão nos olhos dele. Eles
eram azuis como o céu, num fundo mais branco que algodão. Não se via uma raia vermelha.
Mas o olhar sempre vem lá do fundo, e era olhar de velho, isso aí eu acho que eles ainda não
aprenderam como modelar.

— O que você acha que foi feito dele?

Gaspar olhou para ela, em dúvida. Parecia não entender seu interesse no assunto. Depois de
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alguns momentos, falou:

— Acho que ele falou a verdade, quando o prendemos. Devia mesmo ser um figurão da própria
polícia. Aquele punhado de ouro que ele nos ofereceu, caramba! Gostaria de ter tido um jeito de
ficar com aquilo! Mas não havia como. A mensagem que a chefia recebeu do futuro devia estar
falando do ouro também. Agora o que foi feito dele, tenho pra mim que deram um sumiço no
velho. Cremaram o corpo e depois mandaram as cinzas pra a pré-história, sei lá! Nesses casos
não é registrado boletim de ocorrência mesmo, foi faxina na própria casa, pode ter certeza.

Tânia não perguntou mais nada. Passou a prestar atenção no monitor do controle remoto em
suas mãos. Logo à frente, uma rede de contenção estava armada na forma de um paralelepípedo,
na altura, largura e profundidade de um homem, com uma boa folga, caso o alvo fosse muito
alto ou obeso. A rede era negra, mas apresentava uma certa fosforescência amarelada. Era de
um modelo mais novo recém adquirido pela corporação. Não precisava de suportes nem de
um motor de tração para fechar a rede sobre o alvo. Ela era modelável através do controle
remoto. Além da forma, as propriedades elásticas também podiam ser controladas. Quando
o alvo chegasse, acionando-se a armadilha, a rede diminuiria de tamanho e se tornaria mais
rígida, prendendo-o.

— E o alvo que está vindo aí, Tânia? — perguntou Gaspar. — Será que é outro figurão trazendo
ouro?

— Logo vamos descobrir. Ele vem vindo — um vetor temporal inclinado apareceu no monitor,
aproximando-se de uma marca que parecia o foco de uma mira telescópica. — Dez segundos.
Nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois... Agora!

Não era necessário pressionar nenhum controle. O acionamento da rede era automático. Ela
tinha sensores que detectavam quando a armadilha devia ser acionada. Não havia outra forma,
os reflexos humanos não seriam capazes de acionar a armadilha com a precisão necessária.
Assim que a rede estabeleceu o bloqueio temporal, uma figura apareceu no seu interior. A rede
se soltou, comprimindo-se e apertando o vulto, que caiu, se debatendo feito um peixe. Seus
movimentos foram diminuindo conforme a rede vazia o ajuste fino na imobilização. Por fim ele
parou, exibindo apenas um leve tremor.

Tânia e Gaspar se aproximaram. O prisioneiro estava deitado de barriga para baixo. Ele usava
estranhas roupas largas, semelhantes a um pijama no qual as mangas da camisa e as bainhas
das calças tinham um corte em V. Mas o tecido era mais grosso e rústico. Tinha cabelos negros
e crespos, que iam até a metade das costas. O aperto das roupas sobre o corpo denunciava uma
extrema magreza.

Gaspar virou o prisioneiro com brutalidade, chutando-o. Ele tinha pele morena, seu rosto era
sulcado e o nariz, adunco. Os lábios arroxeados eram finos e secos, os olhos negros se alojavam
em órbitas profundas, margeadas por olheiras muito escuras abaixo e sobrancelhas negras e
densas acima.
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— Parece um maldito mulçumano! — disse Gaspar, com desprezo.

Tânia ainda pensou na ignorância do colega, de não saber distinguir a religião da etnia, antes de
notar a estranha alteração nos olhos do prisioneiro. Eles pareceram crescer, as pupilas negras
tornaram-se profundas como abismos. Não podia mais discernir nenhum detalhe daquele rosto,
nem de nada mais. Conseguia apenas prestar atenção nos olhos, sem poder desviar deles. Sem
entender por quê, seus braços penderam de cada lado do seu corpo, fazendo o controle da rede
de contenção cair. Sentiu um grande desânimo, teve vontade de se deixar tombar no chão, mas
não tinha mais controle sobre sua própria vontade.

— O que foi? — perguntou Gaspar.

“Mate-o”, ouviu em sua mente um comando desprovido de voz audível, desprovido de timbre
ou sentimento. Num movimento rápido, ela sacou a faca que trazia presa ao antebraço.

— Calma aí! Você vai furar ele? — Perguntou Gaspar, dando um passo em sua direção.

Mas não havia como ele imaginar. Tânia ergueu a faca e o golpeou no ombro, rente a clavícula,
onde o colete-couraça era mais fraco. Ele gritou de dor e surpresa. Ela ergueu o braço esquerdo
dele e deu mais um forte golpe sob a axila, onde a couraça era aberta. Ele caiu de joelhos. Ela o
prendeu entre as pernas e, agarrando o capacete pela parte de trás, forçou-o para frente exibindo
a nuca. Levantou bem alto a faca e deu um golpe com toda a força. Gaspar caiu, gemendo
baixinho, esvaindo-se em sangue.

“Liberte-me”, novamente o comando sem voz na sua mente. Pegou o controle e liberou a
armadilha. Ela ouviu uma seqüência de estalos elásticos enquanto a rede se rompia. O prisioneiro
sentou-se, esfregando os músculos para recuperar os movimentos. Então se levantou, alongou
os membros depois olhou para ela. Os olhos haviam voltado a ser como antes, porém ela
continuava inerte, sem poder se mover. Ele a examinou de cima a baixo e depois falou:

— Livre-se desta armadura e dessas geringonças odiosas.

Sua voz era serena, eivada de um sotaque que ela não conhecia. Não era um sotaque das línguas
próximas ao árabe, que ela estava esperando ouvir devido ao estereótipo dele. Parecia o sotaque
de alguma língua antiga e esquecida. E o comando era irrecusável. Livrou-se da armadura e de
todo o equipamento. Sentiu pudor frente ao estranho, pois por baixo vestia apenas calcinha e
uma camiseta justa e sem mangas, que deixava ver os contornos dos seus seios bem formados,
os mamilos proeminentes. Tinha consciência que seu corpo era belo e que constantemente
atraía o interesse dos homens. Mas a expressão do estranho não se alterou frente a sua quase
nudez. Ele se aproximou, fitou profundamente seus olhos e a segurou pelos braços. O seu toque
era duro e áspero como o de velhos galhos de árvore.

— Você virá comigo — ele falou.

Imediatamente o ambiente ao redor começou a se turvar e escurecer. Ela reconheceu o processo


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de aceleração temporal, mas não entendeu como o estranho conseguia levá-la consigo apenas
pelo toque. Ele poderia ter um cinturão de transporte individual sob aquela camisa larga, mas
precisaria cingir a cintura dela com um outro cinturão para que ambos se deslocassem. Por certo
deveria ser de uma tecnologia inusitada para ter esse poder.

— Não preciso de nada disso — falou o estranho, como se lesse seus pensamentos. — A mim
basta a força do meu espírito e a benção do Senhor.

A escuridão total os cercou. Ela tentou engolir em seco, nas nem para isso tinha liberdade frente
à dominação exercida pelo estranho. Tudo que podia fazer era ter apreensão pelo destino que
ele lhe reservava, apreensão esta que rapidamente se tornou pavor.

— Eu permito que você fale — disse o estranho.

No mesmo instante sentiu que recuperava o controle sobre sua faculdade de falar. Imediatamente
disse:

— Quem... quem é você?

— Pode me chamar de Melke, já que os laicos como você apreciam apelidos.

— Melke? E o que quer de mim?

— Eu não quero nada com nenhum indivíduo. Minhas intenções são com todos os homens, ou
melhor, com suas almas. Você e aquele outro guerreiro é que tentaram me aprisionar, sem que
eu tenha feito nada contra vocês.

— Você me fez matar meu parceiro, seu desgraçado!

— Ele era apenas um, muito pouco frente à obra que eu devo realizar. Levei muito tempo para
compreender este último mistério, agora posso voltar no tempo e corrigir os erros.

— Que erros?

— Você não pode entender. A verdadeira fé está perdida. Está escrito que eu deveria aguardar o
meu substituto, que será o Salvador, porém surgiram tantos falsos profetas que o Senhor desistiu
da mensagem, desistiu da humanidade. Como dizem as escrituras, o Senhor se arrependeu. Mas
agora eu vou acertar tudo, eliminando todos eles, todos os falsos profetas.

— Mas é um crime gravíssimo interferir no passado, ainda mais matando pessoas de certa
notoriedade.

— A mim só importa a Lei do Senhor. Assim como ele, eu devo escrever certo por linhas
tortas.

— Mas por que você está me levando então?

— Camuflagem. Já que vocês podem ver meus passos nas areias do tempo, quando eu chegar ao
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meu destino vou te arremessar no abismo do passado. Você vai continuar sozinha nossa viagem,
navegando eternamente até a inexistência. Seus amigos não perceberão minha ausência. Mas
talvez eles tentem te interceptar, quem sabe?, como você e seu amigo tentaram fazer comigo.
Isso se o Senhor se apiedar de ti.

Tânia tinha certeza de que isso não iria acontecer. Lembrou-se de que o operador havia dito que
achara o sinal por acaso. A possibilidade de alguém encontrar o sinal era remota. Ninguém viria
resgatá-la e ela ficaria aprisionada naquele deslocamento temporal até morrer por inanição.
Começou a tentar imaginar uma saída para se ver livre desse destino terrível.

Mas então viu uma mudança na expressão pétrea doe estranho. Ele começou a virar o rosto para
os lados, assustado, como se procurasse alguma coisa.

— Quem vem lá? — perguntou, e sua voz soou um pouco estridente.

Melke parou de virar o rosto e passou a fitar um ponto específico. Sua expressão encheu-se
de rancor. Tânia seguiu seu olhar e viu um vulto tênue começar a tomar forma na escuridão.
Inicialmente ele apareceu transparente e embaçado, depois sua figura passou a ficar cada vez
mais nítida, até que surgiu por completo. Era um homem alto, de pele morena, totalmente calvo,
com um crânio amendoado e um nariz fino e pontiagudo. Sua magreza lembrava a de Melke,
porém seu rosto não era tão sulcado nem os olhos tão cruéis. Vestia uma túnica rústica que
parecia uma veste de tempos antigos. No pescoço levava uma corrente grossa e fosca com uma
grande esmeralda pendurada. A jóia era linda e destoava de todo o restante das vestes simples.
Era arredondada e brilhava com uma superfície multifacetada.

— Hermes! — Exclamou Melke, num tom de voz nitidamente irritado.

— Sim, sou eu. Vim impedir que você faça isso.

— E desde quando você se interessa em meus assuntos?

Os dois homens conversavam como se ela não estivesse ali.

— Eu estou tratando dos meus assuntos e não dos seus — disse o estranho ao qual Melke havia
chamado de Hermes. — Pouco me importam seus devaneios fanáticos. Eu só não vou permitir
que você envie esta mulher até o Princípio. Se nem os iniciados devem conhecer o Arcano
em sua forma pura, plena e imaculada, quem dirá uma leiga como esta. Os resultados seriam
imprevisíveis. Você poderia criar uma deusa, ou um demônio.

— Blasfêmia! — gritou Melke, com os olhos muito arregalados e ensandecidos — Tal coisa
não existe! O Senhor decidirá o que será feito dela!

— Chega de discussões inúteis — Falou Hermes. — Dê-me a mulher! — Estendeu a mão em


direção a Tânia.

Mas Melke não cedeu, mas sim apertou ainda mais os braços dela, fazendo-a sentir dor. Os
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dois homens pareciam estar travando uma luta em suas mentes. Os olhos injetados tremiam
e brilhavam. Tânia sentia uma parte do conflito em sua própria mente, como uma coceira
incômoda nas têmporas, uma indecisão ferrenha em mover os músculos, que ficaram retesados
como se ao mesmo tempo ela quisesse mover e conter os membros. De repente, Melke a puxou
para o lado oposto de onde estava seu adversário e falou:

— Cheguei onde queria! Se quiser a mulher, vá buscá-la!

E ele a arremessou na escuridão. Foi como se ela caísse em um mar tempestuoso. Sentiu-se
mergulhada em um fluído denso como a água, porém negro feito piche. Não conseguia respirar,
era como se ela estivesse em um forte redemoinho que mudasse de direção e sentido de giro a
todo o momento. Sentia gastura por estar escutando um terrível silêncio ao invés de ruídos de
turbulência. Seu fôlego se esgotava e ela concluiu que era seu fim. Sua mente começou a apagar
e seus últimos pensamentos foram de arrependimento pelas coisas erradas que havia feito em
sua vida. Lembrou-se de sua mãe, a única religiosa que havia na família, católica fervorosa, a
qual sempre tentava convencê-la a ir às missas. Tânia nunca acreditara nessas coisas, mas agora,
afogando-se naquele limbo temporal, confessava seus pecados com o sentimento de que havia
uma entidade, maior do que qualquer padre, profeta ou homem santo que pudesse perdoá-la.

Sentiu de repente um puxão em seu braço e ela voltou para um espaço vazio e seco, como
se alguém a tivesse resgatado do oceano negro. Na sua frente estava o estranho chamado
Hermes.

— Vou te levar de volta — ele falou. — Para onde quer ir?

Tânia demorou um pouco para entender a pergunta. Mas então começou a raciocinar. Ainda não
estava a salvo. Não podia voltar para sua época. Como explicar o assassinato de Gaspar? Com
certeza a corporação desconfiaria dela. Havia casos registrados de policiais que receberam altas
somas como propina e tentaram viver uma vida farta em épocas remotas. Essa seria a primeira
possibilidade que seus superiores cogitariam. Quem acreditaria se ela falasse em magia? Mas
Tânia, como boa policial, sabia qual era a melhor época para se esconder.

— Quero ir para o início do século XXI.

— Que seja — respondeu Hermes, segurando suas mãos.

E iniciaram nova viagem.

...

Hermes permaneceu em silêncio enquanto se deslocavam no tempo. Tânia sentia-se calma e


segura, sem saber por que, não temia que o seu novo guia lhe fizesse mal. Num dado momento,
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sua curiosidade despertou e ela não resistiu em perguntar:

— Vocês são feiticeiros?

— Esse termo não me agrada. Cada um dos perseguidores da Grande Obra escolhe seu caminho.
Aquele que te raptou aprendeu através do poder da sabedoria do espírito, mas acabou seguindo
caminhos escuros e tortuosos. Eu, aprendi através do poder de todas as três sabedorias do
mundo.

Tânia notou novamente a grande jóia que ele levava no pescoço.

— Esta esmeralda em seu pescoço. É linda! Ela tem algum poder?

— De certa forma sim. Nela está escrito todo o meu conhecimento. E o meu conhecimento é o
que eu sou. Você a quer?

Tânia surpreendeu-se com a pergunta.

— Você me daria? — retrucou.

— Claro! — respondeu Hermes, retirando a jóia do pescoço. — Eu posso fazer outra. Já fiz


várias, sempre na esperança de passá-las adiante. Sinto que você será uma boa guardiã para
uma delas.

Tânia sentiu o peso da corrente, enquanto o estranho cingia seu pescoço. Pegou a jóia e a
admirou na palma de sua mão.

— Mas como pode algo estar escrito em uma jóia? — Perguntou.

— Não há mais tempo para perguntas. Estamos chegando.

O ambiente começou a tomar forma. Surgiram paredes e móveis de um quarto.

— Agora devo deixá-la.

— Espere, senhor Hermes, antes me diga quem era aquele outro, o que disse se chamar
Melke.

Ele fez uma cara de estranheza e perguntou:

— Melke?

— Sim, pelo menos foi como ele disse se chamar.

— Bom, não sei por que ele disse isso. Talvez esteja aceitando alcunhas agora. Mas ele é um
judeu, um rei e um sumo-sacerdote. Foi muito sábio e justo um dia, mas tornou-se um fanático
e sua fé se corrompeu. Mas se sua curiosidade é tão forte, eis a fonte que melhor pode lhe
esclarecer.
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Ele retirou do embornal uma caneta de pena e escreveu algo na palma da mão de Tãnia. Então
deu um passo atrás. Começou a tornar-se etéreo.

— E você? Quem é você? — Tânia ainda tentou perguntar.

— Sou o três vezes grande — respondeu sorrindo, e sua voz soou distante e abafada.

Ele desapareceu e Tânia se viu sozinha em casa de estranhos. As paredes do quarto eram
recobertas por um papel de parede esmaecido, com desenhos de flores. Havia uma cama, um
guarda-roupa, uma cômoda e uma arca. Todos os móveis eram de madeira talhada, polida e
envernizada. Tudo parecia antigo, porém muito bem conservado. Abriu o guarda-roupas com
cuidado. As dobradiças rangeram um pouco. Dentro havia roupas de homem. Vestiu um calção
e uma camisa apenas para ficar menos nua. Foi até a porta do quarto e abriu uma fresta. Ouviu
alguém cantando, em francês. A voz era de mulher e o som era baixo, vinha de algum cômodo
da casa. Saiu do quarto e seguiu pelo corredor. Chegou a sala de estar, a cantiga vinha da
cozinha. Ali também havia muitos móveis antigos, e toda a sorte de objetos de ornamentação
de casa, desde abajures até quadros nas paredes. De repente, percebeu que quem cantava estava
vindo para a sala. Depressa se escondeu atrás de um sofá. Pela beirada viu uma senhora gorda
levar uma pilha de roupas para um dos quartos. Saiu do esconderijo e foi até a cozinha.

Em um varal na área de serviço havia alguns vestidos. Estavam todos úmidos, apenas um deles
estava mais seco, úmido apenas nas bordas. Vestiu-o. Voltou para a sala, a chave estava na
fechadura da porta de entrada. Começou a virá-la, mas estava meio dura, forçou e ouviu um
forte estalo metálico, enquanto o ferrolho cedia. No quarto, a senhora parou de cantar.

Abriu a porta e a fechou atrás de si. Começou a descer as escadas e no fim do primeiro lance
ouviu a porta se abrir lá em cima. Continuou descendo, mais próxima a parede, para evitar que
a vissem pelo vão da escadaria. No térreo, abriu a porta de incêndio. Viu o porteiro falando ao
interfone. Ele a encarou, como se esperasse que ela iria chegar por ali.

O homem desligou o telefone e veio em sua direção, fazendo perguntas. Ela fez cara de
desentendida. Quando chegou perto, ele tentou segurá-la pelo pulso. Tânia aplicou-lhe uma
chave de braço e em seguida uma gravata. Segurou-o até que ele apagasse. Deixou-o cair ao
chão. Encontrou o interruptor que abria o portão e ganhou a rua, aliviada.

...

Faltavam dois quarteirões, mas ela já podia ver o grande prédio com arquitetura em estilo
gótico. Foi fácil pedir informações de como encontrá-lo. Enquanto andava, volta e meia levava
a mão até o meio dos seus seios, para ver se a jóia ainda estava lá. Temia que ela pudesse
desaparecer como Hermes fizera.
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No balcão de atendimento pediu emprestada uma caneta e um pedaço de papel. Anotou
discretamente as poucas letras que Hermes havia escrito em sua mão. Depois entrou na fila
de atendimento das bibliotecárias. Logo alguém entrou na fila atrás dela. Viu que era um
jovem negro, que tinha a cabeça raspada e usava uma camisa social branca abotoada até em
cima, apertando o pomo-de-adão, bem como as mangas eram abotoadas até o pulso. Ele a
cumprimentou gentilmente, sorrindo.

— Pois não? — disse a bibliotecária quando chegou sua vez.

— Por favor, você consegue identificar este código? — mostrou-lhe o papel.

Nele estava escrito:

SAL 110:4; HB 7:15

A bibliotecária torceu o nariz.

— Não é nenhum código de catalogação — falou.

— Tem certeza? — perguntou Tânia um pouco aflita.

A bibliotecária mostrou o papel à colega, que balançou a cabeça negativamente.

— Absolutamente — disse a primeira bibliotecária.

— É a Bíblia!

Tânia ouviu alguém dizer próximo ao seu ouvido. Só então percebeu que o jovem negro olhava
por sobre seu ombro.

— É a Bíblia — ele repetiu. — Salmos 110:4 e Hebreus 7:15. Vou te mostrar.

Tirou do bolso uma pequena bíblia com zíper, abriu-a com agilidade na página desejada e leu
a primeira passagem:

— Salmos 110:4. Jurou o SENHOR, e não se arrependerá: tu és sacerdote eternamente, segundo


a ordem de Melquisedeque.

Depois folheou novamente e leu a segunda passagem:

— Hebreus 7:15. E muito mais manifesto é ainda, se à semelhança de Melquisedeque se levantar


outro sacerdote.

O rapaz ficou sorrindo em sua frente.

— Precisamos atender os outros usuários — interrompeu a bibliotecária, impaciente.

— Você me empresta? — perguntou Tânia, apontando para a bíblia.


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— Mas é claro! — respondeu prontamente o rapaz, entregando-lhe o pequeno livro e indo
buscar o atendimento da bibliotecária.

Tânia percebeu como a capa era gasta pelo uso. Abriu nas passagens que o rapaz citara e anotou-
as no papel. Depois agradeceu, devolvendo a bíblia, e foi se sentar em uma das mesas. Ficou
olhando o papel, lendo os trechos repetidas vezes. “Melke é um apelido para Melquisedeque”,
pensou, “então ele é imortal? Vive entre nós desde aquela época, esperando o seu substituto que
foi profetizado. Ele disse que estava voltando para matar os impostores. Os outros sacerdotes que
se levantaram. Quem serão? Jesus Cristo? Maomé? Buda? Talvez todos eles!”. Tânia levantou
os olhos e só então viu os computadores a disposição do público. “O três vezes grande!”,
pensou. Levantou-se e foi até um dos computadores.

Entrou num site de busca e digitou as palavras: “o três vezes grande”. Logo no primeiro resultado
encontrou o seguinte:

A famosa Tábua de Esmeralda sempre foi utilizada como ponto de partida para os estudiosos da
alma humana. Segundo dizem, neste pequeno texto estão encerrados os mais secretos segredos
da vida. Alquimistas, filósofos, magos, cabalistas, basearam suas pesquisas neste fragmento de
sabedoria atribuído a um sábio egípcio chamado Hermes Trimegisto. Daí o motivo do nome
hermetismo para generalizar as diversas correntes ocultistas ao longo do tempo.

Hermes se auto-entitulava Trimesgisto (três vezes grande) porque dominava os três


aspectos da sabedoria do mundo: física, mental e espiritual. Através da conquista
dessa Arte era capaz de executar a Grande Obra com êxito. Originariamente gravado
em uma esmeralda, o texto...

Tânia parou de ler e olhou para baixo, para o volume formado pela jóia entre seus seios.
Seu coração acelerou. Discretamente, puxou a corrente e ocultou a esmeralda em sua mão.
Examinou-a de perto, usando a luz do monitor. Nas facetas triangulares podia ver vários pontos,
como se alguém houvesse feito piques com uma agulha.

Para ver se era algum tipo de escrita, precisaria de uma lupa, e uma lupa muito forte. Mas então
se perguntou: por que deveria se preocupar com isso? Estava em uma época estranha, sem
nenhuma chance de voltar para casa. Não conhecia ninguém, a única coisa de valor era aquela
jóia. Precisaria vendê-la para conseguir algum dinheiro. Não havia outra escolha.

Mas ela sabia que não faria isso. Sabia agora que uma coisa que ela sempre considerou baboseira,
a espiritualidade do homem, era real, experimentara ao menos duas vertentes na própria pele,
uma de luz e outra de escuridão. Ela iria ficar com a jóia. Daria um jeito de sobreviver. E iria
estudar. Independente do que tivesse de fazer para viver neste novo mundo, arranjaria tempo
para isso, pois desejava provar do mesmo poder daqueles dois estranhos. Colocou de volta
a esmeralda entre os seios e a apertou com força. Teve certeza que um dia desvendaria os
75
mistérios da pedra, e poderia também viajar no tempo sem ajuda de nenhum equipamento,
tornando-se também uma clandestina e, quem sabe, vivendo eternamente.
76
Abril 2007

Tema: Regras e Exceções

Quem tudo quer nada tem


Charles Dias

Durante décadas o segundo de três planetas de um sistema periférico de Alfa Eridani, Dolphin
357, foi considerado sem nenhum interesse colonial, comercial ou científico. O planeta era
coberto por um único oceano com somente três ilhas, nenhuma grande o suficiente para manter
mais do que uma modesta base científica, a atmosfera tinha dióxido de carbono em demasia
para ser respirável e a água uma densidade de sais minerais alta demais para poder ser usada
sem processamento.

Um dia, uma nave cargueiro que viajava pelas vizinhanças foi atingida por uma chuva de micro
meteoros que danificou o casco, despejando no espaço todo o estoque de água do sistema de
resfriamento dos reatores de fusão. Convencido de que sua tripulação era capaz de fazer os
reparos necessários, seu capitão decidiu não pedir por socorro. Foram as equipes de trabalho
que instalavam uma plataforma de purificação e lançamento de água para a nave em órbita
que descobriram que aquele mundo oceânico escondia um segredo, uma base submarina de
pesquisa militar abandonada, relíquia de uma guerra antiga.

Enquanto os reparos da nave eram feitos, uma equipe de exploração foi enviada para explorar
uma parte da base e colher o máximo de informações possível. O capitão tomou posse do
planeta em nome da Corporação Los Gatos, amparado na Lei Internacional de Exploração
Espacial, mas somente comunicou sobre a descoberta inesperada para a matriz da corporação.
Antes de retomar a viagem, a nave deixou na base submersa um pelotão de soldados-robô e,
orbitando o planeta um satélite de vigilância, que deveriam fazer a segurança até a chegada das
naves militares e de pesquisa da corporação.

Em uma época em que corporações multiplanetárias lutavam pela supremacia, uma descoberta
como daquela era valiosa demais para permanecer secreta. Apenas alguns dias depois da partida
da nave cargueiro, uma nave militar da Organização dos Planetas Unidos com camuflagem de
última geração passou pelo satélite de vigilância sem ser detectada e mergulhou no oceano
alienígena. Não demorou muito para que outra nave, dessa vez particular, mas também dotada
da mesma tecnologia, despistasse o satélite de vigilância, para também mergulhar no oceano
daquele mundo até então esquecido.
77
Depois de longos minutos os tremores de mais um maremoto acalmaram e Sig pôde respirar
aliviado. Encostada na parede oposta do túnel estava Peach. Chang continuava sentado no
volante do pequeno carro de transporte, impassível como se nada houvesse acontecido, coisa
de robô que não havia sido programado para sentir medo. Em algum lugar atrás do carro estava
Pêpe, com certeza tranqüilo como sempre.

“Droga, o que está acontecendo com esse lugar?” – perguntou Peach sem esperar que ninguém
respondesse.

“Não sabia que você tinha tanto medo de umas tremidinhas bobas. Assim você me decepciona”
– brincou Pêpe pelo comunicador dando risadas.

“Você é um idiota” – respondeu Peach, irritada.

“Deixem as brincadeiras para quando estivermos fora desse planeta. O quanto mais rápido
terminamos, mais rápido vamos embora” – disse Sig, voltando a caminhar lentamente.

Quando Sig recebeu um chamado inesperado de um agente de contratação que não ousaria
decepcionar, soube que o alto pagamento oferecido significaria perigo de captura ou mesmo de
morte. Um pequeno ajuste de curso e logo sua nave, a Sereia das Estrelas, chegou ao planeta
indicado pelo contratante. Não tiveram trabalho para despistar o satélite de vigilância, para
então penetrar na atmosfera do planeta, mergulhar em seu mar ancestral e acoplar na escotilha
deixada pelos corporativos que haviam descoberto aquele lugar.

“Capitão, os sensores indicam um domo com cinco quilômetros de diâmetro logo a mil metros”
– disse Peach.

“Ok. Mantenham a guarda, não sabemos o que encontraremos nesse lugar” – respondeu Sig,
preocupado com a segurança de sua equipe.

A base havia sido escavada em um gigantesco platô submarino e era formada por grandes
domos funcionais interligados por uma série de túneis. Encontraram alguns esqueletos nos
laboratórios e túneis, muita bagunça e nenhuma energia, o que indicava que a base havia sido
abandonada às pressas.

Quando chegaram ao domo, encontraram um grande canhão de energia como nenhum deles
havia visto na extremidade de um longo trilho de transporte próximo à entrada do túnel por
onde vieram. “Um estande de teste de tiro com toda certeza. Mas nunca vi uma arma como
essa” – disse Pepe, aproximando-se do canhão.

“Chang, procure por alguma coisa interessante que possamos levar. Peach e Pêpe, fiquem de
vigia” – ordenou Sig, enquanto dava a volta em torno do canhão.

“Capitão, encontrei um console de monitoramento conectado a essa arma. Devo proceder a uma
checagem de sistema?” – perguntou Chang, com sua inconfundível voz robótica.
78
“Faça, Chang, mas com cuidado” – respondeu Sig.

“Capitão, acho que detectei alguma coisa estranha” – chamou Peach, ansiosa.

“Como assim, acha?” – perguntou Sig, chamando para a tela virtual diante dos seus olhos as
leituras que a garota estava captando.

“Não tenho certeza. Por um segundo dois sinais surgiram entre as estruturas do outro lado do
domo, mas sumiram” – respondeu Peach. Sig olhou com cuidado para a imagem do domo
renderizada em tons de laranja pelos sensores óticos do capacete, que permitiam enxergar na
escuridão absoluta daquele lugar. Viu pontos mais claros pipocarem na escuridão, deu um zoom
na imagem e viu dois seres humanóides correndo em sua direção, atirando em algo que os
perseguia.

“Atenção, temos companhia, mas ninguém atira, não sabem que estamos aqui. Chang, já
terminou a checagem?” – disse Sig, sem tirar os olhos da dupla que fugia.

“Capitão, o console está funcional e tem todos os dados sobre essa arma, esquemas técnicos,
resultados de testes de tiro, tudo” – respondeu o robô.

“Ótimo, carregue-o no carro” – respondeu Sig, que, acionando o zoom do visor reconheceu a
armadura de combate das Forças Especiais da OPU nos humanóides que fugiam.

“São soldados federais e estão sendo perseguidos. Peach, entre no canal de comunicação deles
e digam quem somos, rápido. Pêpe, me dê o rifle de plasma.” – disse Sig, sem tirar os olhos dos
soldados, que ainda estavam a pouco mais de mil metros do canhão.

“Capitão, eles estão usando um canal de emergência. Avisei da nossa presença e eles pedem
apoio. Estão sendo perseguidos por soldados-robôs corporativos” – respondeu a garota.

“Soldados-robôs aqui?! Isso não está me cheirando bem” – disse Pepe, entregando o rifle para
Sig.

“Chang, leve o carro de volta para a nave. Peach e Pêpe, vão e protejam a carga” – disse Sig,
procurando pelos soldados-robôs.

“Capitão, não é melhor ...?” – começou a dizer Peach.

“É uma ordem, droga, vão logo!” – ordenou Sig.

Depois que viu o carro e sua equipe desaparecerem no túnel, Sig apoiou o fuzil de plasma na
lateral do carro e acionou o sistema de mira de precisão. Agora conseguia ver dois soldados-
robôs perseguindo os soldados federais, disparando suas armas. Conseguiu ver claramente no
peito de um deles o logotipo da Corporação Los Gatos. Com disparos certeiros, fundiu a cabeça
dos soldados-robôs, fazendo seus corpos desabarem inertes. Pouco depois, os dois soldados
federais chegaram ao canhão para imediatamente assumirem posição defensiva.
79
“Onde eles estão?” – perguntou um dos soldados.

“Já dei conta dos soldados-robô que estavam na sua cola” – respondeu Sig, mas o soldado
somente se permitiu sentar no chão depois de ver as carcaças no chão.

“Droga, pensei que dessa vez não escaparíamos. Agradeço sua ajuda, amigo, mas quem é
você e o que diabos está fazendo aqui?” – perguntou o soldado com o distintivo de tenente no
capacete.

“Meu nome é Sig e, até onde sei, estou aqui pelo mesmo motivo que vocês” respondeu Sig,
checando que os soldados estavam com pouco equipamento e somente uma arma cada.

“Sou o tenente Lopez das Forças Especiais da Organização dos Planetas Unidos e esse é o
soldado O’Neil, somos o que restou de um esquadrão de dez homens que chegou a esse lugar
há vinte horas. Estava tudo calmo, mas quando chegamos na entrada oposta desse domo, fomos
pegos de surpresa por um esquadrão de soldados-robôs corporativos que partiram para cima
de nós com tudo. Nosso capitão e o restante do esquadrão foram mortos. Somente nós dois
conseguimos escapar. Esses desgraçados são muito mais inteligentes do que deveriam ser”
respondeu o oficial com a voz cansada.

“Peach, tudo bem por aqui. Estou com os dois soldados federais, encontro vocês na encruzilhada
que passamos para chegar aqui” – disse Sig, usando um canal de comunicação particular.

“Entendido, capitão” – respondeu a garota, sabendo que deveriam montar uma posição defensiva
até a chegada de Sig.

Segundo o capitão Lopez, seu esquadrão tinha abatido meia dúzia de soldados-robôs antes de
cair, que somados aos dois que Sig havia abatido, deixava pelo menos mais quatro soldados-
robôs operacionais que não demorariam a aparecer.

“Vamos embora daqui. Minha nave não está muito longe” – disse Sig, pondo-se de pé.

“Vamos, O’Neil. Ele está em estado de choque” disse Lopez.

Sig conhecia muito bem as Forças Especiais da OPU, foi lá que conheceu Peach e Pêpe, e sabia
que, para um esquadrão ser dizimado daquela forma, tinham de ter enfrentado rivais muito
fortes. A Corporação Los Gatos era uma das maiores da galáxia e deviam ter um interesse muito
grande naquele lugar. Sig sabia que não poderiam deixar nenhum rastro de sua presença ou
enfrentariam conseqüências nada agradáveis.

Antes de seguir para encontrar sua equipe, Sig armou uma carga de explosivos de baixa potência
na entrada do túnel e que serviria somente para avisar quando os outros soldados-robôs viessem
perseguí-los.

“Temos que correr se quisermos sair vivos daqui” – disse Sig para os dois soldados federais, e
então começaram a correr pelo longo túnel. Não demorou muito para ouvirem a explosão.
80
“Capitão, temos um problema” – chamou Peach pelo comunicador.

“O que aconteceu?” – perguntou Sig, sem parar de correr.

“Chegamos à encruzilhada no momento em que as passagens estavam sendo fechadas por


escotilhas, e tivemos de usar o carro para evitar o fechamento da escotilha do túnel que leva à
nave” – respondeu a garota.

“Os soldados-robô corporativos devem ter encontrado o sistema que controla as escotilhas dos
túneis. Aguardem, em cinco minutos chegaremos” – respondeu Sig, preocupado.

Quando chegaram à encruzilhada, encontraram a equipe de Sig de guarda junto do carro, que
estava preso sob uma pesada escotilha.

“Tenente, essa é minha equipe. Peach, Pêpe e Chang” – disse Sig, apresentando seu pessoal.

“Esse é o tenente federal Lopez e aquele é o soldado O’Neil” continuou.

“Parece que vocês tiveram muita ação lá atrás, tenente” – disse Pepe, puxando conversa.

“Se você chama de ação perder praticamente todo um esquadrão de soldados de elite, então
tivemos ação” – respondeu o tenente, amargo.

“Esse carro não vai mais a lugar algum” – disse Sig, verificando o estado do carro de transporte
esmagado sob a escotilha.

De repente o capacete do soldado que acompanhava Lopez explodiu e seu corpo tombou
convulsionando.

“Protejam-se, estamos sendo atacados” – gritou Pepe, antes que uma chuva de projéteis atingisse
as paredes, o carro de transporte e a escotilha meio aberta.

“Droga, eles vieram antes do que eu esperava. Alguém está conseguindo vê-los?” – rosnou
Lopez de seu esconderijo junto de uma das escotilhas laterais.

“Vejo quatro soldados-robôs a trezentos metros, protegidos por um carro de manutenção!” –


disse Peach.

“Chang, você consegue carregar sozinho o console até a nave?” – perguntou Sig, pensando em
como sair dali sem que ninguém mais perdesse a vida.

“Sim, capitão, devo demorar pouco mais de trinta minutos para chegar até a nave” – respondeu
o robô.

“Que console é esse?” – perguntou o tenente Lopez.

“Algo que encontramos naquele canhão e que vai pagar nossas contas. Peach, você vai com
Chang e fique de olhos abertos. Eu, Pêpe e Lopez seguraremos os soldados-robôs o quanto
81
pudermos” ordenou Sig.

Um novo maremoto fez tremer toda a base. Sig aproveitou a chance e começou a disparar em
direção ao fundo do túnel, seguido por Pêpe e Lopez. Chang tirou rapidamente o console do
carro e passou por baixo da escotilha meio abaixada, seguido por Peach. Uma nuvem de poeira
desprendeu das paredes e do teto.

“Droga, esses abalos estão comprometendo a estrutura desse lugar. Se continuar assim, a pressão
da água vai implodir tudo isso” – disse Pepe, enquanto recarregava sua arma.

“Vamos sair daqui antes que essa escotilha feche de vez!” – gritou Sig, correndo por sob a
escotilha, sendo seguido pelos outros.

Depois da escotilha, o túnel fazia uma longa curva que daria na doca onde a Sereia das Estrelas
estava atracada.

“Vamos correr no esquema de revezamento, o último da fila protege os outros dois. Vocês vão
primeiro” – disse Sig, enquanto se protegia atrás do carro de transporte e atirava em intervalos
regulares contra os soldados-robôs. Quando recebeu um sinal, Sig começou a correr, mas assim
que passou por Lopez outro forte tremor fez que perdesse o equilíbrio. No chão pode ver três
dos soldados-robôs tentando se equilibrar em meio aos tremores e o quarto destruído sob a
escotilha que veio ao chão partindo o carro de transporte ao meio.

“Três conseguiram passar pela escotilha!” – gritou para Lopez.

Por longos minutos os três homens revezaram enquanto percorriam o túnel, mas somente
conseguiram abater um dos soldados-robôs, o que não impediu que os outros continuassem a
perseguição implacável.

“Minha munição está no fim, só poderei revezar mais uma vez. Alguém tem outra arma?”
– perguntou Lopez.

“Só estou com minha pistola de projéteis e munição para mais dois revezamentos” – respondeu
Pepe, enquanto disparava contra os soldados-robôs que usavam a curvatura do túnel para
escapar dos disparos.

“Droga, ainda estamos a pelo menos duzentos metros da nave e não consigo fazer contato com
Peach ou Chang. Lopez, depois de usar o resto de sua munição corra até a nave e traga socorro.
Enquanto isso, eu e Pêpe seguraremos esses safados” –disse Sig, checando o que restava de sua
munição.

“Sig, a regra é não deixarmos desconhecidos que estejam conosco sozinhos. Essa regra já
nos poupou muitos problemas. E eu não confio nesse federal” – disse Pepe, usando o canal
privado.

“Eu sei disso, Pêpe, eu mesmo criei essa regra, mas às vezes pode valer a pena abrir uma
82
exceção. Confie em mim” – respondeu Sig. Alguns minutos depois Lopez passava correndo por
eles fazendo um gesto de boa sorte.

Aquela não era a primeira vez que Sig e Pêpe enfrentavam juntos situações que pareciam
perdidas, mas todas as vezes haviam conseguido escapar com vida. Aquela era uma situação
complicada, onde nem eles nem os soldados-robôs tinham alguma vantagem estratégica óbvia
e, se de um lado isso era um problema, de outro permitiu que eles conseguissem diminuir
a velocidade de avanço dos inimigos usando a pouca munição que ainda tinham. Quando a
munição estava no fim e Sig pensou que não poderiam escapar dos disparos inimigos por muito
mais tempo, duas esferas de eletricidade passaram rápido por eles e provocaram uma explosão
de luz tão forte a uma centena de metros que provocou um blackout momentâneo no visor do
capacete.

“Capitão, acho que aqueles soldados-robôs não causarão mais problemas” disse Chang jogando
no chão o rack fumegante da bazuca de eletro-cargas que havia usado.

Quando chegou na doca de atracagem, Sig encontrou Peach sentada em uma caixa balançando
as pernas. Uma luz vermelha sobre a escotilha de atracagem indicava que a Sereia das Estrelas
já havia partido.

“Como você disse que aconteceria, o filho-da-puta federal roubou a Sereia das Estrelas assim
que teve a chance” – disse Peach.

“Ótimo” respondeu Sig com a voz alegre.

“Como assim ótimo, você enlouqueceu?” perguntou Pêpe contrariado.

“Deixe de ser idiota, Pêpe, onde mais conseguiríamos trocar a velha Sereia das Estrelas por uma
nave militar de último tipo totalmente equipada sem gastar um tostão?” perguntou Peach como
sempre não esperando resposta.

“Vamos dar um jeito de encontrar a nave dos militares, alguma coisa que satisfaça nosso
contratante e dar o fora daqui” – disse Sig, alegre.

“Mas ele levou o console do canhão e poderá vendê-lo por uma fortuna” – disse Pêpe.

“Não, ele não levou nada, não. Chang cuidou disso” – respondeu Peach dando, tapinhas na
caixa em que estava sentada.

...

Pouco mais de um dia depois de chegar ao planeta, a nave militar partiu sob o comando de uma
nova tripulação, levando uma carga preciosa de segredos guardados na base secreta esquecida.
83
O comando da Organização dos Planetas Unidos nunca descobriu o que aconteceu com a nave
militar que enviou a Dolphin 357 e sua tripulação altamente treinada.

A base secreta finalmente foi destruída por um maremoto violento, não sem antes entregar todos
os seus segredos para a Corporação Los Gatos.

Em um final de tarde seco como qualquer outro no poeirento espaço-porto de Tenin 289, um
daqueles lugares onde naves de baixa qualidade sem documentos eram compradas e vendidas
por valores baixos e nenhuma pergunta, um homem de maneiras militares tentava conseguir
um preço melhor por uma nave de transporte recoberta por uma camada de tinta preta que não
conseguia esconder direito o nome Sereia das Estrelas.

Depois de uma temporada em um estaleiro particular especializado em modificações não


autorizadas em naves de origem duvidosa, a nova nave militar de Sig e sua equipe ganhou uma
cara civil e foi batizada de Obrigado Lopez.
84
Abril 2007

Tema: Regras e Exceções

Marcos Cinco descobre Deus


Leonardo Carrion

Foi relembrando os anos anteriores, enquanto olhava pela janela panorâmica da nave espacial,
que o robô Marcos 5 concluiu que Deus é a esperança de perdurar como consciência e de
receber, algum dia no futuro incerto, um corpo inteiramente novo.

1. Regras e Exceções

Marcos percebeu que havia uma série de regras sobre o jejum na igreja ortodoxa. E havia
também grande variedade de exceções às regras, conforme se adotasse as orientações da Igreja
Ortodoxa Russa ou da Igreja Ortodoxa Sérvia.

Era fato conhecido, até mesmo dentro da mesma orientação, que diferentes sacerdotes mantinham
diferentes teorias sobre o jejum.

Felizmente para Marcos alguns aspectos eram comuns e encontravam consonância em todos os
doutrinadores ou orientações. Por exemplo: as regras sobre o jejum não eram somente destinadas
aos monges, mas válidas para todos cristãos.

Igualmente havia consenso sobre a exceção em se jejuar no dia de uma grande festa ou da
festa do padroeiro da paróquia. Se tais festejos ocorressem durante um período de jejum havia
a liberação para ingestão de alimentos. Nestes casos o cristão prudente deveria consultar seu
padre e o calendário da paróquia para maiores detalhes.

Outra questão que envolvia as regras sobre o jejum era sobre a adoção deste ou daquele
calendário. A St. John of Kronstadt Press (Editora São João de Kronstadt) publica calendários
murais e de bolso que indicam a regra de jejum para cada dia do ano. O Calendário de São
Germano, publicado anualmente pela St. Herman of Alaska Press (Editora São Germano
do Alaska), também é um guia diário confiável para estas situações. É certo que ambos são
publicados em inglês e que seguem o calendário Juliano, que não é adotado em todas igrejas
ortodoxas.
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MARC-05, homem mecânico número de série 458B7890RSXXX2345 fabricado pela
RoboticBRAS e vulgarmente conhecido como Marcos Cinco desconectou sua interface e
interrompeu o download/leitura/compilação do texto “A REGRA DO JEJUM NA IGREJA
ORTODOXA por John Brady”.

Aquele era o principal texto que lhe fora fornecido e o último que analisava. Não era nada fácil
compreender corretamente o objetivo destes preceitos religiosos, o que tornava a tarefa que lhe
fora designada cada vez mais difícil.

Marcos tinha a seu cargo uma centena de estudantes com idades entre 5 e 7 anos. Estavam à
bordo da astronave colonial brasileira “Amyr Klink” que se dirigia à velocidade de 0,998c para
o planeta dois do sistema de Vega, distante 26 anos-luz da Terra.

A viagem tardaria pouco mais de 8 anos de tempo subjetivo para os colonos e 33 anos na Terra.
Marcos tinha gravado, como não poderia ser diferente para sua mente robótica, o discurso do
Senador Galvão Bueno no dia do lançamento:

- Mais um golaço para o Brasil! Os pais dormirão em suspensão criogênica enquanto o robô
serve de professor e babá para seus filhos. – dizia o político diante do aplauso da comunidade
religiosa.

Mas além de ser “professor e babá” Marcos tinha a obrigação de fazer o trabalho doméstico
durante os momentos de sono da turma, a manutenção da nave e observação dos instrumentos
automáticos de navegação.

2. Ana Júlia

Em um dos primeiros dias de aula teórica sobre manufatura de lixívia, antes que Marcos Cinco
iniciasse sua exposição sobre as diferenças da lixívia obtida com a urina deste ou daquele tipo
de animal, Ana Júlia já estava com a mão levantada.

Era uma menina de seis anos com longos cabelos negros e pele cor de amêndoa. Tinha sinais
evidentes de grande potencial intelectual. Aparte esta observação Marcos conhecia a ficha de
Ana Júlia, bem como dos pais e dos seus antepassados até os bisavôs, assim como de todos os
colonos a bordo.

- Professor, porque nossos pais não podem ficar acordados como nós? Ou então, porque não
podemos dormir todos juntos?

A pergunta não pegou Marcos Cinco de surpresa, como nenhuma pergunta poderia já que a
surpresa é uma das características humanas e não robóticas. Marcos tinha à sua disposição os
bancos de dados de todas as expedições anteriores, e apesar de ter acontecido mais cedo do que
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das outras vezes, a questão sempre era feita. Geralmente os líderes do grupo não se formavam
tão cedo e não tinham a coragem de perguntarem antes da segunda semana a bordo.

A programação de Marcos determinava que ficasse atento para verificar se se tratava de uma
liderança nata, vocacionada, ou apenas de uma criança tão ansiosa que não suportava a situação
com normalidade.

Estes pensamentos todos ocorreram em seu cérebro computadorizado tão rapidamente que
sequer a menina tinha terminado a frase eles já estavam todos devidamente relacionados com
as ações do robô. A primeira ação seria explicar a lógica da colonização brasileira em planetas
distantes.

- Ana Júlia, é bem simples. Crianças, todas vocês devem prestar muita atenção agora – disse
em sua voz de modulação cibernética. Virou-se para a tela a fim de projetar números e gráficos,
além de fotos e vídeos sobre a explicação que daria.

As crianças aguardavam em expectativa.

- Vejam crianças, um grupo de dez adultos congelados criogenicamente é o máximo permitido


pelos parâmetros do Ministério da Colonização Espacial - MCEsp. Porém este número é
reduzido demais para ser conveniente em relação ao custo da viagem para o governo. Não
seria possível ao governo brasileiro investir em uma nave colonizadora que levasse apenas dez
colonos e nem isto seria suficiente para impulsionar a colônia.

Marcos mostrava neste momento gráficos com os custos projetados para diferentes tripulações
em suspensão criogênica. As faixas amarelas e vermelhas iam dançando em uma hipnótica
sucessão.

- Já um grupo de 100 adultos justificaria plenamente a viagem. O problema é que se torna


inviável a sua manutenção de tantas pessoas sob monitoramento computadorizado pelo tempo
necessário para atingir uma colônia como Vega ou outras mais longínquas ainda.

A imagem agora mostrava diversas pessoas colocadas nas câmaras criogênicas de uma nave de
colonização brasileira, do espaço e, finalmente, da nave acelerando rumo ao desconhecido.

Marcos sabia que havia uma complexidade tecnológica muito alta na criogenia para a indústria
brasileira. A construção de uma nave com mais de dez leitos criogênicos implicaria em uma
nave desproporcionalmente sofisticada para que a viagem tivesse equilíbrio econômico. Este
detalhe era cuidadosamente sonegado às crianças, que deveriam acreditar sempre na supremacia
tecnológica absoluta do Brasil.

- Por outro lado – continuava o Robô mostrando fotografias das fábricas - a construção de
grandes naves com muito espaço e tecnologia mais simples se tornou viável desde que instaladas
as fábricas do consórcio Mercosul no cinturão de asteróides de Marte.
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A projeção de uma linda imagem das fábricas espaciais, com a bandeira dos 12 países do bloco
e, ao fundo Marte, Júpiter e Saturno sempre retirava um espantado “ahhhhhh” das crianças.
Desta vez não foi diferente.

- Por isto é bastante lógico que as crianças pequenas, ou jovens patriotas como vocês, se tornem
a principal tripulação para as viagens rumo às colônias. Vocês podem crescer durante a viagem,
aprendendo comigo ofícios importantes, e chegarão em tempo e idade de serem importantes
contribuintes para a colônia brasileira – arrematou o Robô dando por encerrada a explicação
com um filme que mostrava diversas crianças sorridentes subindo a bordo de uma nave de
mesma classe do que a “Amyr Klink”

Os fatos não escapavam a Marcos Cinco. Seu cérebro robótico entendia perfeitamente a lógica
da colonização.

Mais do que tudo se sentia confortável com a sabedoria implícita nos cálculos que levaram a
institucionalização desta política pelo Brasil. Tinha mesmo até um certo orgulho, como produto
genuinamente nacional projetado na TecnoPUC e montado na zona franca de Manaus, da
supremacia da lógica brasileira para a colonização – fato que não acontecia com outros paises
que tratavam a questão sob um ponto de vista mais emocional.

Os colonos eram selecionados pelo Ministério tendo em vista, dentre outras características,
a quantidade de filhos de idade correta que tinham ou aqueles que se dispunham a adotá-los
em grande quantidade. Na “Amyr Klink”, por exemplo, havia 100 crianças de 5 casais que
congelados totalizavam as 10 pessoas adultas possíveis.

Quando chegassem a Vega os adultos teriam praticamente a mesma idade subjetiva e seus filhos
estariam maduros ou próximos disso.

Marcos Cinco observou enquanto algumas das crianças choravam na classe, como sempre tinha
ocorrido desde que fizera a primeira vez esta explicação. A lógica desta reação humana infantil
era parte integrante da programação psicológica do robô. Os maiores, então com sete anos,
choravam contidamente enquanto que os menores davam total vazão ao sentimento de falta
dos pais. Apenas alguns poucos como Ana Júlia não choravam, o que mais uma vez fez o robô
diagnosticar uma exceção à regra.

Como convinha neste momento convidou a classe para uma atividade no domo arbóreo da
nave, o que sempre obtinha o efeito calmante nos pequenos.

3. No segundo ano

O primeiro ano subjetivo de viagem transcorreu sem que nada houve para perturbar Marcos
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em seu trabalho costumeiro. Esta seria sua terceira viagem como robô da “Amyr Klink” para
Vega. As mesmas questões com as crianças, a falta inicial dos pais, as pequenas confusões entre
elas, algumas doenças endêmicas trazidas a bordo da nave. Desta vez não tinha havido nenhum
falecimento no grupo, o que mostrava boa eficiência do robô.

A diferença, nesta viagem, foi que a seleção dos colonos ocorreu entre uma minoria que
professava a religião conhecida no Brasil como “Igreja Ortodoxa”.

Marcos não compreendia a religião.

Pensava que seu desconhecimento era apenas porque não fora programado para tal. A natureza
de seu cérebro não conseguiria lidar com o conhecimento de que a religião era algo que não
encontrava entendimento mesmo entre os humanos, mesmo entre aqueles que se dedicavam
fanaticamente à prática.

Ou seja, Marcos Cinco não captava o conceito de “Fé”, muito menos de “Deus”.

Coincidindo com o ano-novo subjetivo e o final da alfabetização dos mais jovens, o calendário
da nave marcou o início da instrução religiosa da turma. Neste caso a educação religiosa limitar-
se-ia à instituição da prática do jejum e em textos pré-determinados para serem lidos pelas
crianças.

Confrontado com a religião Marcos Cinco chegava até a duvidar da sabedoria de seus
programadores e do controle da missão, porque a tarefa se mostrou complexa de forma a torná-
lo inadequado para ela.

Marcos não tinha como saber que a decisão de fazê-lo instrutor de religião fora tomada num
último momento por pressão da bancada religiosa no congresso. Os técnicos resignaram-se
a instruir o robô verbalmente e oferecerem-lhe textos para que baixasse e estudasse durante
a viagem, já que seria impossível modificar sua programação tão próximo da viagem com
segurança de que não houvesse algum desarranjo.

Como se poderia conceber que preceitos tão simples, apesar da grande quantidade de regras
e exceções, fossem aceitos com dificuldade pelos humanos jovens? E mais, como entender a
compulsão destes humanos por fugirem e fraudarem os preceitos aos quais voluntariamente
aderiam? Marcos não conseguia compreender.

Tendo absorvido todos textos sobre o assunto e pensado muito sobre o jejum, Marcos não
entendia a questão de fundo. Por que jejuar aproximaria o ser humano de “Deus”? Seria “Deus”
uma condição que somente seria atingida com as reservas de energia perigosamente baixas?

4. Jejum
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De início fora fácil seguir o calendário de “St. John”. Todas as quartas e sextas-feiras evitam-
se os alimentos como a carne, incluindo aves, e quaisquer derivados da carne vermelha. Eram
proibidos também os peixes com espinha dorsal, ovos e laticínios. O azeite de oliva também
era evitado.

Como o seqüenciador atômico da nave proporcionava qualquer tipo de alimento disponível em


seus bancos de dados feitos a partir de matéria orgânica (no caso da nave, dos dejetos e de uma
reserva embarcada de carbono-hidrogênio-oxigênio-magnésio, as crianças não estranhavam
muito a alimentação). Uma refeição com verduras cozidas e massa com mariscos não deixava
muito a desejar sob qualquer aspecto, pelo que a programação de Marcos informava.

A grande complicação se iniciou com o jejum da Quaresma.

Segundo o manual “A REGRA DO JEJUM NA IGREJA ORTODOXA por John Brady”, o


jejum da Quaresma é o mais longo e estrito do ano e começa na semana que antecede a própria
(Semana da Tirofagia).

No início da primeira Semana da Quaresma comem-se apenas duas refeições completas durante
os primeiros cinco dias, uma na quarta e outra na sexta-feira. Não se come nada desde a manhã
de segunda-feira até o anoitecer de quarta-feira – o mais longo período sem alimentos no ano
eclesiástico. Para as refeições da quarta e da sexta-feira, bem como para todos os dias de semana
na Quaresma, a carne e seus derivados, o peixe, os laticínios e o óleo são evitados.

Depois, na Semana Santa propriamente dita o jantar da Quinta-Feira seria a última refeição a
ser consumida até a Páscoa. O Jejum da Grande Sexta-Feira Santa é o mais estrito dia de jejum
do ano. Após a Liturgia de São Basílio no Sábado Santo pode-se consumir, para subsistência,
um pouco de frutas. O jejum é quebrado na noite de Sábado, às vezes após as Matinas da
Ressurreição, ou, o mais tardar, após a Divina Liturgia de Páscoa.

As crianças não agüentaram tanta privação de alimentos, caindo em choros e negativas de


participação em atividades além da experiência de Marcos. Mesmo recorrendo a toda a sua
programação, com os melhores psicoterapeutas humanos, nada parecia ter efeito!

O robô viu-se obrigado a impor uma miscelânea de castigos, limitações de direitos e privação de
liberdade, além de ameaças de danos físicos. Desta forma conseguiu uma colaboração mínima,
mesmo tendo que manter os castigos e restrições aos maiores como exemplo. Mal conseguia
atender suas tarefas de manutenção da astronave.

5. Jesus, o diabo e o sequenciador

Na expectativa de controlar seu grupo, Marcos Cinco fez o download de toda a liturgia da igreja
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ortodoxa mesmo sem maior compreensão sobre seu significado. Apesar da fome as crianças
pareceram ter sua atenção apreendida por aquelas palavras, especialmente após a narração do
encontro de Jesus com o Demônio no deserto, enquanto Cristo jejuava.

- Então o Demônio oferecia comida para Jesus e ele recusava? – perguntou-lhe Ana Júlia

- Na verdade o Demônio oferecia para Jesus a possibilidade de tornar, com seu poder, matéria
inorgânica em comida, quebrando assim sua força de vontade e os votos de Jesus, Ana Júlia
– respondeu Marcos Cinco – citando texto de Mateus 4 1-4.

- Mas não é assim que funciona o seqüenciador atômico professor?– perguntou a menina.

Marcos Cinco então tentou explicar que a Terra, dos quais alguns já estavam perdendo as
lembranças, não era uma nave espacial e que em sua história houve períodos em que o homem
não possuía tecnologia avançada como o seqüenciador.

- Mas Jesus e o Demônio tinham a tecnologia não é? Senão como poderiam estar falando sobre
o seqüenciador atômico? – questionou novamente Ana Júlia.

O restante da aula foi de enorme confusão, com as crianças com cada vez mais cheias de
dúvidas e Marcos Cinco tendo que novamente apelar para aula prática no domo arbóreo, onde
construiu balanços de corda para todos.

6. Jejum robótico

No dia seguinte Marcos descobriu que alguns dos meninos menores estavam sendo colocados na
saída de ar dos dormitórios e seguiam pela tubulação até o seqüenciador atômico, providenciando
alimentos proscritos para todos.

A descoberta só ocorreu porque Marcos notou que o consumo noturno de energia estava acima
do normal, quando conseguiu voltar ao seu trabalho de manutenção.

O robô decidiu, pela lógica, que necessitava de uma compreensão maior do fenômeno religioso.
Não bastava proferir discursos de outros oradores, sem compreender do que estava falando.

Tinha que descobrir o que levava os seres humanos a tais comportamentos frente a uma prática
que deveria ser observada voluntariamente. Também precisava de uma compreensão maior da
religião, mais abrangente do que aquela insuficiente e ilógica fornecida pelos textos disponíveis.
Marcos Cinco resolveu induzir os mesmos efeitos do jejum em seu corpo robótico.

Após completar os consertos na nave, colocando uma senha que evitaria o uso do seqüenciador
exceto para produzir os alimentos conforme a mais estrita regra de jejum, fez os mesmos arranjos
em seu próprio fornecimento de energia, reprogramando sua pilha nuclear.
91
7. Deus pela fome

Nos anos seguintes a cabeça de Marcos Cinco jazia sobre um console da sala de controle da
nave. Estava conectada a uma fonte de energia que roubava uma carga elétrica baixa de um
componente elétrico do painel da nave. Não poderia dizer qual componente, já que seus olhos
não alcançavam além dos cabos de eletricidade.

Em compensação tinha uma ampla visão da tela panorâmica, que mostrava ainda longe mas
visível o segundo planeta do sistema Vega, o destino finalmente alcançado.

A nave, com a navegação totalmente automatizada, chegara ao seu destino. Ao menos um dos
robôs na missão tivera sucesso.

A porta lateral da sala de controle da nave deslizou e por ela entrou a sacerdote Ana Júlia com
seus acólitos mais próximos, todos utilizando roupas cerimoniais vermelhas, chifres e portando
tridentes. Estavam com aproximadamente 15 anos e tinham os corpos deformados pela gordura
em excesso.

A batalha entre os cristãos ortodoxos e os demonistas acabara quando Ana Júlia tomara o
controle do seqüenciador atômico e demonstrara ter o poder de produzir qualquer alimento, não
só os prescritos no jejum, convertendo-os todos ao seu credo que incluía a alimentação farta
oferecida pelo demônio. Este desfecho se produziu um ano após o dia em que Marcos Cinco
passara a ocupar-se somente com a visualização da janela.

A reprogramação de sua pilha provou ter sido um erro estratégico em uma nave com 100 crianças
famintas e que tinham ouvido a história de Jesus e o Diabo no deserto. Isto especialmente
porque o robô percebeu que os seus sistemas corporais desligaram toda e qualquer função que
não a manutenção do cérebro com a privação da energia.

Capturado e desmontado por Ana Júlia, Marcos levara alguns meses até sucumbir à tentação e
entregar a senha e as informações pretendidas. A menina fornecia e retirava alternadamente a
potência da alimentação do cérebro do robô.

Ao menos a experiência servira para que Marcos compreendesse plenamente o significado da


morte para os humanos. Também entendia agora o porquê da geração do fenômeno da fé e
devoção sempre maior naqueles seres humanos que vão se aproximando da idade de morrer.
Nada havia de ilógico nesta condição. Marcos Cinco descobriu que Deus é a esperança de
perdurar como consciência e de receber algum dia, um corpo novo.
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Maio 2007

Tema: Lobos

Não Precisamos de Heróis


Joshua Falken

“Não Precisamos de Heróis”.

Era o que dizia um dos editoriais de um dos principais jornais do estado.

Tive que me segurar para não rasgar o jornal em dois.

Ainda me lembrava da noite anterior... de quando corri até o ponto onde a policia tinha cercado
a minha irmã caçula, Jerrica, e prontamente a fuzilado. Ainda posso sentir a respiração difícil
dela, o sangue que se esvaia de seu corpo... Ela tentou me dizer alguma coisa, mas a voz estava
fraca demais... Não consegui entender.

Lentamente, o corpo musculoso dela daquele momento se transformava no corpo alto e esguio
que sempre tinha visto.

As feições lupinas retornavam ao padrão humano.

Acho que estou adiantado na minha historia. Creio que devo me apresentar: meu nome é
William. O sobrenome não é necessário. Sou médico do Hospital Memorial. Especialidade?
Terapia gênica.

Ironicamente, foi isso - terapia gênica - que iniciou o pesadelo de minha irmã.

Bom, para mim, tudo começou numa noite fria e chuvosa, daquela que você não quer pôr o
nariz para fora dos cobertores, quanto mais de casa... foi quando ouvi baterem na porta de meu
sobrado, o que era bem assustador, já que isso queria dizer que, quem quer que fosse, tinha
entrado pulando o muro. Obviamente nervoso, e segurando um pequeno taser, fui até a porta.
A pequena tela do sistema de segurança (que com certeza tinha que pensar em trocar) mostrava
claramente a forma de uma mulher alta, com cabelos ondulados longos, envolta numa longa
capa escura. A aba do chapéu e as sombras escondiam seu rosto. Perguntei quem era.

- William, sou eu, a Jerrica. - a voz estava estranha, mas reconhecível. Pensando que ela devia
estar com alguma gripe e, por incrível que pudesse parecer, com algum problema sério (se
houvesse um concurso de “Senhorita Amigável”, seria Jerrica a escolhida), abri a porta.

O que aconteceu no segundo seguinte ainda me assombra.


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Da noite, saltou um ser humanóide, com feições lupinas, pelo avermelhado. Imediatamente,
uma mão em forma de garra tapou minha boca, impedindo de gritar apavorado. O impulso
da criatura me levou ao chão. A outra mão segurava meus braços. Se me atacasse com as
mandíbulas, era um homem morto.

Então, a criatura falou, respirando fundo entre as palavras, tentando se acalmar.

- William, por favor, não tenha medo. - Não conseguia acreditar que o ser sobre mim usava a
voz de minha irmã.

Foi quando a reversão começou.

A pelagem avermelhada começou a sumir. Os potentes músculos diminuíam. As feições do


rosto retornavam às que eu sempre conheci.

Sem acreditar no que via, ouvi mais do que vi, minha irmã dizer, assustada.

- Por favor, me ajude!

Após uma longa conversa, descobri que tinha acontecido. Minha irmã também é geneticista,
trabalhando no Projeto Genoma do Lobo Guará. Num acidente de laboratório, ela recebeu uma
injeção completa de genes dessa espécie de animal. O que ela só descobriria mais tarde era que
a amostra estava contaminada com enzimas de inserção, usadas para inserir DNA no genoma
de uma célula.

Como tinha acontecido, Jerrica devia estar sofrendo de câncer ou síndrome de rejeição gênica...
mas, ao invés disso, ela se tornou uma hibrida humano-lupino, ou para usar um termo coloquial,
quando a adrenalina corria em seu sangue, uma lobisomem (ou lobismulher, que seja! Não
estou com cabeça para gramática!).

Receitei alguns calmantes para manter sua adrenalina num nível baixo, até descobrimos como
reverter aquela mutação.

Um mês depois, sem pistas de como desfazer aquilo, a primeira notícia sobre a Mulher-Lobo
(foi como a mídia a chamou) apareceu. Uma mulher fantasiada de lobisomem impediu um
estupro e quase mutilou o agressor. Enfatizo o “quase”: não importa o que digam, minha irmã
nunca machucaria alguém de propósito, mesmo que o miserável merecesse!

Claro que mais tarde naquele dia, ela me explicou o que tinha acontecido: fora ao supermercado
de noite, quando viu o marginal atacando aquela pobre garota. Indignada, a adrenalina surgiu
em sua corrente sanguínea, e a transformação aconteceu. E, apesar de todos os instintos para
matar o agressor, ela conseguiu se segurar e fugiu do local, após imobilizar o criminoso e fazer
uma ligação anônima para a polícia.

Foi o começo da carreira da Mulher-Lobo.


94
Não vou incluir todos os incidentes aqui, em que ela ajudou alguém – e não, ela nunca “procurava
encrenca”, a encrenca que sempre vinha atrás dela. E Jerrica não podia reagir de outra forma:
gostando ou não, tinha aqueles poderes, que surgiram quer quisesse ou não.

Claro que a policia a chamava de vigilante, a mídia, de aberração.

Logo a perseguiam como uma criminosa... até que finalmente a mataram na noite anterior, logo
após ela impedir que um rapaz fosse seqüestrado...

A questão não é que “não precisamos de heróis”. Precisamos, sim.

O problema é que nós não os queremos...


95
Dezembro 2007

Especial de fim de ano

Papai Noel volta pra casa


Antonio Luiz M. C. Costa

Só a barba branca era de verdade. A roupa vermelha era um artifício ridículo, a pança não
passava de enchimento. Até um dos olhos azuis por trás dos óculos de aros finos e dourados
– também falsos – era de vidro. E ainda mais fingidos que tudo isso ficaram os ho-ho-hos,
depois de penar com o calor fora do comum do Rio de Janeiro nessa véspera de Natal. Data
odiosa, maldita.

Os supostos ajudantes de Papai Noel, dois negros magros e sorumbáticos, sacolejavam no banco
às suas costas. Como de costume, não abriam o bico, mas o velho sabia que eles ansiavam ainda
mais por chegar em casa. Estavam todos suados, exaustos e de saco cheio. Mesmo depois de
distribuir todos os brinquedinhos.

Ao menos, a palhaçada acabara. Enfrentar de novo aquela criançada toda, só no ano que vem.

Sua querida velha sempre o chamava de pessimista, mas ele sabia ser apenas realista. Conhecera
bem demais a natureza humana, mais do que muitos outros idosos da mesma geração. Tivera
dias de grandeza, caíra na miséria e passara a depender desse humilhante bico de fim de ano
para equilibrar as contas e ter um mínimo de conforto. Mas o pior de tudo era ter de fazer isso
a serviço do concorrente que o tirara do negócio.

Da primeira vez que o desgraçado mandou o mensageiro lhe oferecer o biscate – idéia do seu
novo sócio-executivo, soube depois –, quase foi lá cuspir na compassiva e generosa fachada do
manda-chuva, mais fingida que a pose de bom velhinho que queria obrigá-lo a representar. Se
fosse chamado de anti-semita, azar. Era velho demais para tentar ser politicamente correto.

A muito custo, a esposa o convencera a aceitar até que as coisas melhorassem. Melhorassem!
Acaso ela não entendia que iam de mal a pior e que não viveriam para sempre? E ter de
desperdiçar o que lhe restava de vida promovendo o mais desleal de seus inimigos?

Mas agora o vento fresco da noite já o animava e as inevitáveis sacudidas do veículo não o
incomodavam, nem lhe interrompiam os devaneios. Quase conseguia se sentir otimista. Boa
parte do seu leve sorriso, admitia, era feito de germânica Schadenfreude, o sentimento de alegria
pela desgraça alheia tão conhecido de seu povo. Seu empregador não ia bem, os problemas
continuaram a piorar desde o ano anterior. Nunca o vira tão nervoso e rabugento.
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A globalização agora só dava dores de cabeça ao patrão que antes tanto a elogiava. Um
concorrente árabe lhe tirava mercados, usando as mesmas táticas brutais e inescrupulosas com
as quais roubara os clientes de tantos negócios menores. Até aqueles indianos de fala mansa,
que pareciam tão ingênuos e inofensivos, já o comiam pelas beiradas. A família brigava e se
dividia, cada um exigindo sua parte para fundar o próprio negócio. Seus podres vinham à tona,
os esqueletos despencavam dos armários.

Melhor, o poderoso sócio executivo, sem o qual o maldito déspota jamais teria chegado aonde
chegou, controlava cada vez mais as operações e mal lhe dava atenção. Negociava abertamente
com os concorrentes e até mesmo nas datas comemorativas da fundação da casa esquecia-se de
mencionar o nome do patrão e fundador, do qual cada vez menos clientes se lembravam.

Nessa época do ano, ria-se do falso Papai Noel, até o palhaço de vermelho era mais popular.
O patrão tivera mais um daqueles hediondos ataques de ira e ciúme e tentara demiti-lo de
uma vez por todas. Mas o executivo-chefe arquivou o memorando, chamou o velho caolho
em particular, pediu-lhe desculpas pelo mau comportamento do sócio, elogiou seu trabalho e
agradeceu antecipadamente os lucros que continuaria a lhe trazer. Até prometeu um aumento.

Continuava a ser um trabalho odioso, mas os momentos divertidos estavam se tornando mais
freqüentes. E tinha de dar o braço a torcer à esposa: graças às seus sagazes conselhos de
paciência, as coisas começavam a melhorar. Além de lhe deixar acumular uma pequena reserva,
o bico lhe dera oportunidade de sair de casa, exercitar suas faculdades e as de seus ajudantes,
manter contatos, fazer novos amigos e conquistar um punhado de fãs e clientes ocasionais.

Já pensava em reabrir o negócio. Anteontem à noite, naquele boteco à beira-mar, conversara


confidencialmente com antigos rivais e eles se mostraram receptivos à idéia de uma nova
sociedade. O safado do grego estava ainda mais falido do que ele, mas também queria voltar à
ativa e tinha muita experiência. Sua velha amiga irlandesa também vinha sondando o mercado,
tinha um punhado de bons clientes e estava disposta a contribuir. O baiano, único da velha
guarda a manter seu ponto, também se interessou por ampliar os horizontes.

Um trovão distante o fez se lembrar da conversa do filho com um cineasta entusiasmado com
a história da família. Se desse certo, seria uma ótima propaganda. Ao contrário do pretensioso
concorrente, o falso Papai Noel sabia não ser imortal. O fim podia não estar distante. Mas agora
quase podia jurar que haveria de brilhar de novo antes desse dia chegar, e seu filho também.
Todos iam ver!

Ah, sim. Precisava se trocar antes de chegar em casa. No ano passado, se esquecera e o porteiro
quase perdera o fôlego de tanto rir. Ficara com vontade de lhe dar uns tabefes, mas acabou
por rir com ele. Estava ridículo, teve de admitir. Mas este ano, não. Era hora de recuperar a
dignidade.

Sentiu mais um sacolejo forte, ao atravessar outra inesperada corrente de jato. Olhou em volta,
calculou que já havia cruzado o Círculo Ártico e procurou um lugar para pousar o trenó. Aquilo
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ali em baixo eram as geleiras da Groenlândia, a montanha devia ser o Gunnbjørn. Puxou as
rédeas e conduziu o time de oito renas nessa direção, até encontrar um platô adequado.

O Papai Noel de mentirinha apeou-se do falso trenó e esticou as pernas cansadas. Admirou a
paisagem noturna, o suave brilho da aurora boreal, o silvo do vento gelado, os poucos flocos
de neve que lhe tocavam as bochechas rosadas. Apreciou a sensação familiar. Estava quase
em casa, longe do inferno das selvas, savanas e metrópoles tropicais onde tivera de distribuir
milhões de malditos presentes. Só faltava uma coisinha.

Disse aos ajudantes para descerem e os dois negros o obedeceram, animados pela primeira vez
naquela noite. Começaria por eles. Arregaçou a manga, tocou o bracelete mágico, sussurrou
sílabas misteriosas e os dois voltaram a ser corvos e lhe pousaram nos ombros. Logo teriam
de retornar à tarefa de conferir se as crianças se comportariam bem ou mal, mas teriam uma
merecida semana de férias.

E ele tinha razões para esperar que em poucos anos poderia voltar a lhes confiar missões mais
importantes. Os dias de tirania de Javé e Mammon estavam contados. Zeus, Morrigan e Oxalá
se uniriam à sua luta.

Mais um gesto mágico. O trenó voador transformou-se em enorme lança de arremesso, poderosa
e infalível. Outro. As oito renas se fundiram em um único e espantoso animal, um magnífico
cavalo de oito patas. Terceiro gesto. A ridícula fantasia vermelha transformou-se em uma
armadura imponente e completa e o corpo retornou à sua majestosa estatura verdadeira. O olho
de vidro lhe caiu da órbita ampliada, enquanto os corvos erguiam vôo.

O velho recolocou a ameaçadora venda negra, empunhou a lança e montou. Com um relinchar
impressionante, o colossal Sleipnir ganhou os céus, seguido pelos fiéis Hugin e Munin. Sua
velocidade espantosa sacudiu as geleiras desertas com um estrondo sônico, pouco antes de
alcançar Bifröst, o portal entre os dois mundos.

O leal porteiro o reconheceu e fez soar a trombeta Giallarhorn, como nos velhos tempos. O rei
agradeceu a Heimdall com um acenar de cabeça, enquanto as valquírias convergiam de todas
as direções para formar a guarda de honra e escoltar o soberano ao Valhalla. Frigg, Thor e toda
Asgard o esperavam para abrir a festa de Yule, o solstício de inverno. Odin sentiu-se em casa.
98
Novembro 2008

Tema: O que os Olhos não Vêem

Sacrifícios
Leandro Reis

Eu estava lá. Aquele crepúsculo, quase oculto pela fumaça que se erguia das casas que ardiam
em chamas, havia sido gravado em minha mente como se por ferro em brasa. As crianças,
espalhadas pelas ruas, choravam desesperadas à procura de seus pais. Homens e mulheres com
olhares vazios tentavam salvar o que podiam, procurando alento em seus bens materiais. O
único sacerdote da vila abençoava os corpos daqueles que haviam tombado, garantindo-lhes
uma boa jornada junto de Amupherus, a Guia dos Mortos.

Atravessei lentamente aquele caos, sentindo o calor do fogo e a dor da perda junto com aquela
gente. Quando passei pelo sacerdote, um jovem cavaleiro, ao seu lado, chamou minha atenção.
Ele orava rente a três corpos: Uma bela mulher e duas crianças, que não passavam de doze anos.
Seu nome era Andréas Vanderslake, um Campeão Sagrado ordenado há poucos anos.

Sua armadura estava impecável. A espada colocada na bainha tinha um lenço branco amarrado
em seu cabo em sinal de luto. Seu cabelo negro estava minuciosamente penteado para trás. A
barba estava aparada, ressaltando o largo bigode. Mas foi seu rosto que me causou espanto.
Várias pessoas também observavam o semblante do paladino. Achávamos que a loucura havia
se apossado dele, pois seu rosto refletia a felicidade dos bons anos que Marllirian havia tido.
Uma época distante da atual, pois uma tragédia caíra sobre o lugar. Andréas, porém, estava
feliz. Seus olhos, repletos de felicidade e esperança, não escondiam a alegria e satisfação que
sentia, mesmo na frente dos corpos de sua amada esposa e filhos.

Esta história, porém, não tem início nos dias de luto deste Campeão Sagrado. Permita-me retornar
no tempo, um ano antes desta tragédia, a fim de explicar como esta cena pôde acontecer.

Andréas reunia seus melhores homens para atender a um pedido de socorro. A vila de Mayfair,
cuja agricultura sempre prosperou por localizar-se em uma região chuvosa, enviara o pedido
que, apesar da rixa entre eles, certamente não seria negado. Na mensagem, diziam-se cercados
por orcs que visavam os frutos da última colheita antes do inverno. O jovem Campeão, repleto
de coragem e fé, partiu então com seus companheiros para auxiliá-los, atravessando planícies,
rios e montanhas até chegar ao local que seria protegido.

Quando avistou a vila, deparou-se com o caos. Apesar do céu limpo e estrelado, e do calmo luar
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banhando o vale, a visão do que acontecia em torno da vila era assustadora. Centenas de orcs
realizavam um ataque desesperado, massivo e mortal com o objetivo único de destruir aqueles
que se opunham entre eles e a comida fácil.

Não havia tempo para perder, Andréas soou sua trombeta, desembainhou sua espada e, após pedir
por proteção à deusa da justiça, investiu contra o inimigo, lançando-se no caos da batalha.

Os poucos soldados de Mayfair encontraram esperanças quando viram as forças de Marllirian


surgirem da retaguarda inimiga, abrindo caminho até eles. Ao se encontrarem, os homens não
trocaram nada mais que olhares esperançosos. Apenas uniram-se e lutaram noite adentro pelas
vidas dos inocentes que ali estavam. O ódio e a fome dos orcs os havia transformado em bestas
incansáveis, intimidando os homens com tamanha sede de sangue. A batalha, que parecia sem
fim, feria a esperança a cada leva de orcs que se lançava contra os defensores.

Quando o alvorecer banhou o horizonte, Andréas, tão cansado quanto seus homens, ouviu o
soar de trombetas e não as reconheceu. Eram mais orcs convocando suas forças para recuar e
organizar seu ataque final. A ruína de Mayfair estava selada. Os cavaleiros e soldados desabaram
de cansaço quando o calor da batalha os abandonou. Somente Andréas, permaneceu imóvel.
Músculos rijos, respiração curta e espada pronta para o ataque que estava por vir. Seus olhos
vidrados encheram-se de lágrimas ao perceber que morreria ali, longe de sua mulher e filhos,
lutando em defesa da vila. A voz de Tristan, seu melhor amigo, o trouxe de volta à realidade.

- Andréas! Não podemos permanecer aqui, a cidade está condenada. Devemos escoltar este
povo até Marllirian.

Um Campeão Sagrado, devoto de Rauny, deveria lutar até a morte para fazer prevalecer o bem
e a justiça. Fugir para sobreviver não fazia parte de seus ideais, por isso Andréas respondeu
decidido:

- Leve-os! Eu atrasarei o inimigo!

Tristan respirou fundo, colocou a mão no ombro do amigo e pediu pausadamente, clamando
por razão:

- Andréas, você não vai atrasar centenas de orcs raivosos. Escute-me. Venha e me ajude a salvar
o máximo de vidas que pudermos. Sei que mesmo fugindo, orcs nos seguirão. Porém, o farão
em menor número e com menos motivação. Lembre-se que eles querem comida para o inverno.
O resto é somente ódio.

O Campeão olhou a sua volta e viu as crianças e mulheres aos prantos e homens com a alma
estilhaçada por perderem tudo o que tinham. Então, argumentou:

- Olhe para eles. Como viverão, se perderem tudo que têm?

Tristan apertou-lhe o ombro:


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- Eles não irão perder suas vidas. O tempo fechará as feridas e eles terão uma nova chance
para experimentar a esperança e apagar a lembrança dos dias ruins. Por favor, meu amigo, me
ajude.

Andréas finalmente concordou. Tristan estava correto. Aos berros, reuniram os homens como
puderam, traçaram uma rota de fuga e, antes do retorno do inimigo, os sobreviventes deixaram
Mayfair.

A viagem para Marllirian foi árdua e cruel. Os orcs os seguiram e não deixaram de atacá-los
por um momento sequer. Os homens lutaram com todas as suas forças pela sua sobrevivência
e, após seis dias de fuga, das noventa e oito vidas que saíram de Mayfair, somente trinta e
cinco chegaram a Marllirian. Tristan foi um dos vários homens que tombaram bravamente em
combate, colocando-se entre os machados inimigos e o povo inocente.

Andréas porém, não tombou. Chegou à sua vila carregando a única criança que sobrevivera. Sua
honra fora destruída pela impotência, sua alma fora partida pelo ódio e sua fé fora estilhaçada
pela injustiça.

Em seu leito, de volta aos braços de sua amada esposa, ele chorou e jurou que jamais pronunciaria
o nome de um deus novamente. Jurou a plenos pulmões que escorraçaria qualquer representante
do clero que viesse à sua porta, e assim o fez.

Por ser um Campeão Sagrado, muitos sacerdotes tinham estima por ele e todos, sem exceção
vieram, em vão, tentar trazê-lo de volta ao seu caminho. Mas ele havia se perdido. Renegou sua
fé e título de Campeão Sagrado e deixou de lutar pelo futuro, para simplesmente sobreviver ao
presente. O tempo passou e, um dia, como haveria de ser, a deusa da Justiça fez seu chamado.
Através de um sacerdote de terras distantes, chamado Ramirez.

...

Andréas estava na parte de trás de sua casa, um local em que havia diversas plantas que sua
esposa adorava cuidar. Ele sentia-se à vontade naquele local, conseguindo até mesmo esquecer
por alguns segundos dos fantasmas de seu passado.

Sua esposa havia saído para comprar algumas verduras no velho Jonathan e quando chegou,
aproximou-se por trás abraçando-o fortemente. Ele, após virar-se para beijá-la, retribuiu o
carinho. Tão logo a soltou, ela revelou algo que acontecera:

- Um sacerdote de Rauny veio a mim, querido. – Disse ela, com olhar afetuoso.
As sobrancelhas do homem curvaram-se, seu rosto tornou-se hostil. Teria blasfemado se ela lhe
desse tempo, mas ela continuou antes:
101
- Você sabe que jamais deixei de acreditar... sempre respeitei sua escolha. Mas nunca deixei de
orar para Rauny, implorando para que ela iluminasse sua alma. O sacerdote Ramirez veio falar
sobre mim, sobre meu futuro e sobre meu objetivo nesta vida.

Andréas estranhou.

- O que ele disse? – perguntou carrancudo.

- Ele mostrou minha missão.

O homem queria acabar a conversa ali mesmo, porém, a curiosidade falou mais alto:

- O que ele disse? Fale logo, mulher!

As crianças a viram e correram para abraçá-la. Ela retribuiu os abraços e logo que levaram
as verduras para dentro da casa, ela as seguiu. Na porta, voltou-se novamente ao marido, que
esperava sua resposta:

- Eu vim a este mundo para tornar-me o pilar da sua fé. Serei o motivo da sua devoção.

Andréas riu incrédulo. Esperou-a entrar, fitando o vazio. O ódio crescia dentro dele. Levantou-se
raivoso, atirou um vazo para longe e saiu correndo com o objetivo de encontrar o tal Ramirez.

Procurando pela vila não demorou a encontrá-lo. O homem novo tinha cabelos negros e um
semblante sereno. Usava trajes brancos por baixo de uma cota de malha. Um longo cajado de
madeira estava encostado ao seu lado. Ramirez ostentava em seu pescoço um símbolo de prata,
um octógono, com a figura de uma espada em posição vertical na frente de uma balança. Ele
aguardava, com ar sereno, ao lado do poço de água, no centro da vila.

Andréas pensou em esmurrá-lo, mas faltou-lhe coragem. Pensou em xingar-lhe, mas faltaram-
lhe palavras. Parou a frente do homem santo e observou-o, sem saber o que fazer. Ramirez era
diferente dos outros sacerdotes. Ele emanava uma energia que envolvia Andréas, fazendo-o
sentir-se pequeno. O sacerdote não tardou a falar. Sua voz, serena, transmitia tranqüilidade:

- Não vim provocar-lhe, Campeão Sagrado. Vim trazer revelações à sua esposa e um presente
a você.

Retirando o símbolo sagrado do pescoço, revelou uma inscrição e leu-a em voz alta:

- Aurian tesne mayra in korith tes alnior.

Explicou:

- É o idioma celestial, um provérbio passado a nós pelos anjos. Quer dizer: “Olhai através do
véu e conhecerá o verdadeiro eu”.

- Besteira! – Andréas finalmente conseguiu falar.


102
Ramirez encarou-o severamente, fazendo-o se calar, depois continuou:

- Te dou esse medalhão de livre e espontânea vontade. Ele possui um dom especial, concedido
a poucos nesta época, que permitirá a você que veja e converse com aqueles que estão no plano
espiritual.

Andréas negou com a cabeça e, erguendo a voz, questionou:

- Falar com os mortos? O que devo perguntar? Devo perguntar às crianças que vi morrer se elas
sentiram dor? Devo perguntar a elas se os Deuses explicaram porque os orcs mataram seus pais
e depois as mataram?

O sacerdote não moveu os lábios, sabia que o homem responderia as suas próprias
indagações.

- Não. Não há o que perguntar aos mortos. Saia daqui maldito! Diga aos sacerdotes de sua
ordem que Andréas não tem mais interesse nas suas mentiras!

Ramirez colocou o medalhão na borda do poço, enquanto pegava o cajado para partir:

- A vida é feita de escolhas, Andréas. Sinto que você ainda não fez a sua. – Disse ele.

Andréas pegou o medalhão e arremessou-o poço adentro. O sacerdote parou, indignado.

- Vá! – Gritou o homem, ameaçando o sacerdote.

Ramirez partiu para nunca mais voltar, sua tarefa estava cumprida.

Andréas decidiu esquecer tudo aquilo. Mas encontros como este nós não esquecemos, nós os
guardamos em um cantinho de nossa cabeça até o momento em que precisarmos nos lembrar.

...

Um novo inverno aproximava-se e a tribo orc, que ostentava a alcunha de “Olho Furado”,
havia forjado uma aliança com gigantes das montanhas. O objetivo era repetir o mesmo que a
tribo orc do leste havia conseguido há poucos anos, quando pilharam a vila de Mayfair. Os orcs
estavam em menor número desta vez, mas os gigantes deveriam compensar tal diferença. E com
essa milícia eles prepararam seu ataque.

Naquela noite Andréas teve um sonho estranho, onde gigantescos olhos prateados diziam que
sua família ficaria bem. Incomodado por julgar que tais olhos eram da própria Rauny, levantou-
se e perambulou sozinho pela vila, procurando por ideais e sentimentos antigos. E, por um
milagre, pôde ver as tochas do inimigo ao longe, tendo a chance de acordar todos.
103
O mesmo inferno que vivenciara começava a se repetir. As mulheres levavam seus filhos para
o centro da vila. Crianças choravam. Soldados abraçavam suas amadas.

O regente de Marllirian, Sir Thomas Marllir, veio a ele e pediu ajuda. Não foi preciso insistir.
Thomas era um homem excessivamente forte, que também seguia a deusa da justiça. Um
Campeão Sagrado experiente que o iniciou no caminho da fé.

Sem pensar em recusar, Andréas correu para casa e colocou sua armadura. Viu sua mulher com
as crianças e desesperou-se.

- O que ainda fazem aqui? – indagou.

Ela o olhou, sorriu e respondeu calmamente:

- Estamos seguros aqui.

Sem tempo para discutir, ele confiou nela e, após um rápido beijo, abraçou seus filhos, saindo
em disparada pela porta.

Os homens reuniam-se no portão norte. Andréas parou próximo aos líderes e ouviu seus planos.
Um capitão de Thomas aconselhava:

- Vamos atacá-los de surpresa, esmagá-los contra seus próprios homens.

Thomas olhou para todos e declarou:

- Não sabemos quantos são. Sua idéia seria boa se tivéssemos uma cavalaria. Quero os arqueiros
em cima das casas. Metade dos homens virá comigo, iremos nos posicionar entre eles e a
cidade.

Após uma pausa, percebeu que todos aprovavam a estratégia, então continuou:

- A outra metade ficará aqui. Vocês protegerão as ruas de orcs que passarem por nós. Eu
encontrarei e matarei o líder deles. Quando o fizer tocarei minha corneta. Após este sinal
estaremos recuando para a cidade. Reagruparemos no centro da vila para expulsar o restante
desses vermes de volta para suas tocas.

Andréas aproximou-se do paladino e ofereceu-se:

- Vou com o senhor.

Thomas estudou-o antes de negar.

- Não, você tem experiência em defesa interna. Fique aqui e proteja nossas famílias. A Senhora
da Justiça está com você, posso senti-la aqui, hoje.

Com um simples comando, os homens, que já haviam se dividido, seguiram Thomas noite
adentro. Andréas permaneceu onde estava, com os pelos arrepiados e olhos arregalados. As
104
palavras de seu antigo tutor trouxeram à tona os sentimentos que ele procurava.

Os tambores orcs começaram a tocar. Aproximando-se lentamente, aumentando a intensidade


cada vez mais. Ouviu-se o grito de guerra dos soldados e um coro de vozes raivosas ergueu-se
no horizonte. Os homens na vila pouco conseguiam ver do confronto que iniciava.

O som do aço contra o aço, os gritos da batalha e os tambores aproximando-se formou uma
cacofonia assustadora. Andréas olhou para o céu e sentiu um imenso vazio ao impedir a si
mesmo de fazer sua prece. Alguém gritou:

- Estão vindo!

Andréas fechou seus olhos e concentrou-se. Estava sozinho, posicionado entre duas casas, e
vultos com tochas aproximavam-se rapidamente. Três deles, imensos, também haviam passado
pela defesa inicial e aproximavam-se dispersos entre os orcs.

O primeiro inimigo chegou a ele e o calor da batalha se apresentou. Sua fúria superava a
investida do orc que, pego de surpresa, mal viu o que o abateu. Outros passaram por ele, alguns
enfrentando-o, outros atirando as tochas sobre as casas de madeira, correndo vila adentro.

O som caótico da batalha preencheu as ruas. Os homens tinham vantagem óbvia. Andréas
recuou para se posicionar melhor e passou a lutar lado a lado com um antigo amigo.

O primeiro gigante apareceu, três vezes maior que um homem comum. A clava do monstro
atravessou uma casa acertando dois soldados no caminho. Todos se apavoraram. Andréas
estava longe e pensou em correr contra o gigante, mas decidiu enfrentar outros orcs que se
aproximavam com tochas.

Um dos arqueiros nas casas alvejava a criatura gigantesca quando o segundo e terceiro gigante
invadiram o outro lado da vila. As flechas apenas os irritavam. A esperança falhou. Andréas
baixou a cabeça e pensou consigo:

- Perderemos novamente.

Superando os lamentos e o som do aço e do fogo, a trombeta de Thomas Marllir soou de forma
clara. O líder dos orcs estava morto e eles estavam retornando. Andréas ergueu a cabeça e
investiu contra um grupo de invasores. Havia esperança. Enfrentou quatro orcs como se fossem
um. Atacou com força renovada, aniquilando qualquer inimigo que se punha em seu caminho.
Os homens estavam vencendo, seria diferente desta vez.

Gritos desesperados chamaram sua atenção, olhou para a esquerda e viu que os dois gigantes
aproximavam-se da construção onde as mulheres e crianças estavam. Apenas dois soldados os
separavam do refúgio. Todos os outros haviam tombado. Começou a correr quando chamaram
na direção oposta:

- Andréas, veja!
105
Um amigo apontava outro gigante. Andréas desesperou-se ao ver que sua casa estava no
caminho da outra criatura. Deu dois passos em direção à sua esposa e filhos, mas cessou. Olhou
novamente para a casa com as mulheres e crianças. Um dos soldados corria para se salvar. O
outro segurava uma lança, tentando, inutilmente, ameaçar os dois gigantes.

O Campeão olhou novamente para sua casa, indeciso. Tinha pouco tempo. Olhou para os dois
gigantes, na direção oposta, que se preparavam para atacar o soldado. Lembrou-se de seu
sonho, o mesmo que o fizera perambular pela cidade. Seus olhos encheram-se de lágrimas e
elas verteram por seu rosto. Suas pernas tremeram. Olhou mais uma vez para a própria casa e
partiu para o lado oposto o mais rápido que pode, em auxílio às várias famílias em perigo.

A clava acertou o soldado com a lança, arremessando-o na direção de Andréas. A arma caiu a
poucos metros dele. Habilmente ele pegou-a do chão, sem cessar sua investida. Continuou a
correr gritando e agitando os braços. Um dos gigantes voltou-se para ele. O outro se preparou
para atacar a construção.

Ele pediu auxílio à Rauny, segurou a lança acima da cabeça e preparou-se para arremessá-la.
Deu dois passos largos e lançou-a com tanta força que foi ao chão. A arma cortou o céu e atingiu
a cabeça da criatura em cheio. O gigante cambaleou e tombou para o lado, esmagando uma
carroça. Restava apenas o outro.

Pegou a espada e escudo e pulou de lado pouco antes que a clava do gigante enfurecido o
esmagasse. Levantou-se rapidamente e começou a afastar-se da casa, trazendo a criatura
consigo.

Mais uma vez a clava se ergueu. Ele preparou-se para receber o ataque e habilmente esquivou-se.
A clava atingiu o chão violentamente. Aproveitando-se dos movimentos amplos e desajeitados,
correu até a perna da criatura e cravou sua espada no calcanhar.

Sabia que isto apenas o irritaria. Afastou-se mais da casa e o gigante o seguiu. Esquivou de
outro golpe e escondeu-se atrás de uma carroça em chamas. Tão logo se protegeu, cruzou os
olhos com os de Thomas e seus homens, que retornavam.

Largou o escudo, desprendeu o pesado peitoral da armadura e correu para sua casa. Outros
soldados, que tomaram seu lugar, ainda enfrentavam o gigante furioso enquanto Andréas se
afastava.

Quando chegou à sua casa, um calafrio agourento percorreu sua alma, revirando seu estomago.
A casa onde criara seus filhos havia sido reduzida a gravetos. Procurou, desesperado, por
intermináveis minutos, até encontrar o que queria: os corpos de sua mulher e filhos.

As pernas do guerreiro cederam, seu corpo tremeu e, em meio aos soluços, ele deixou-se cair
no chão. Repetia desesperadamente para si:

- Eu confiei em ti...
106
Seu choro e sua dor intensificavam-se cada vez que repetia isso para si. Havia sido ingênuo o
suficiente para acreditar que Rauny protegeria sua família. Ali permaneceu até que amanhecesse.
Os homens souberam de seu ato heróico e, constrangidos, não tiveram coragem de agradecê-lo
por ter dado sua família em troca da deles.

Com muito custo levantou-se e começou a caminhar sem rumo. O olhar perdido. A mente
fragmentada. Mas algo, que estava guardado no cantinho de sua mente, voltou à tona. Seus olhos
tomaram vida e ele começou a correr para o centro da vila. Chegou ao poço onde encontrara o
sacerdote Ramirez, meses atrás. Inclinou-se sobre ele e, ao ver o brilho do medalhão, jogou-se.
Dois homens tentaram impedi-lo, mas era tarde.

Andréas atingiu a água e afundou rapidamente devido às partes da armadura que ainda vestia.
Chegando ao fundo pegou o Símbolo Sagrado e tentou voltar à superfície. Quase desmaiou
antes de poder respirar novamente. Vários homens gritavam e jogavam cordas, preparando-se
para resgatá-lo.

Ignorando-os, colocou o símbolo de Rauny no pescoço e pensou em sua esposa.

- Faith. – Ele chamou. E, sentindo o corpo leve, teve a impressão de desmaiar. Não mais estava
molhado, cansado ou ferido. Olhou para baixo e viu a si mesmo, na água.

Olhou novamente para cima os homens não estavam mais ali. Ele não estava mais no poço,
estava nos fundos de sua casa e ela estava intacta. Faith estava parada à sua frente, sorrindo.

Ele pasmou e, ajoelhando-se, pediu perdão.

Ela consolou-o e alertou:

- Não temos muito tempo. – disse ela. – Toda vida tem um início e um fim. Toda ação tem uma
causa. Nada acontece sem que os deuses saibam. Nada escapa ao plano deles. Não se culpe por
nos sacrificar. Lembre-se do que eu disse, quando você me viu pela última vez.

Ele lembrou-se:

- Você disse que era seguro.

Ela respondeu.

- E era. Nada de ruim me aconteceu. Eu apenas encerrei uma etapa de minha vida.

- Por que tanto sofrimento? Por que tanto caos? O que os deuses querem provar? – Perguntou,
ainda ajoelhado.

- Não há caos. Há causa e efeito. Acredite quando lhe disserem que depois da tempestade vem a
bonança. Depois do ataque orc a Mayfair, a rixa entre nossas vilas acabou por completo. Nosso
amor ao próximo e nossa compaixão foram elevados após experimentarmos o horror do ódio.
Pense, e você sempre achará a causa. Observe, e você sempre verá o pêndulo do equilíbrio nos
107
acontecimentos, sejam quais forem.

Andréas abraçou-a. Viu as crianças por sobre os ombros dela. Ambas acenaram para ele. Então
ele contou a sua esposa o que sonhara nesta noite:

- Eu sonhei que dois olhos gigantes, prateados, me observavam do norte. Uma voz me disse
que uma missão me seria dada e que ao cumpri-la eu salvaria incontáveis vidas. A voz me disse
que vocês estariam seguros. Por isso permiti que vocês ficassem em casa. Por isso eu escolhi
cumprir a missão que Thomas me deu ao invés de proteger vocês.

Ela concordou com a cabeça enquanto limpava as lágrimas do marido. Depois acrescentou:

- Seu ato de coragem e sacrifício ecoará por séculos e será exemplo a vários guerreiros santos.
Cada vida que você salvou aprendeu uma lição de amor que não será esquecida por séculos.

Sorrindo, ela continuou.

- Você é um Campeão Sagrado, meu querido Andréas. Sua fé despertou no momento em que
acreditou em seu sonho. Você jamais deixou de tê-la. Você apenas a reprimiu e recusou-se a
ouvir a inspiração que lhe foi enviada dia após dia.

Ele baixou a cabeça, lembrou-se de um ensinamento antigo e percebeu que a prova estava
diante dele. Falou a si próprio.

- O que chamamos de morte é na verdade renovação, não há porque me culpar tanto por
aqueles que partiram. Minha missão não era somente defendê-los, mas sim deixar o exemplo
de virtude.

O paladino assentiu, afastou-se, segurou-a pelas mãos e, emocionado, admitiu:

- Sei que vou sentir sua falta... Você cumpriu sua missão, Faith, mas é hora de Andréas
Vanderslake voltar e cumprir a sua.

O Campeão então acordou. Estava deitado no chão, próximo a uma taverna. Todos, inclusive
Sir Thomas, o encaravam espantados.

Ele levantou sem pressa, encarou os céus e sorriu. Sem dizer uma única palavra, levantou-
se e foi se banhar para prestar as honras à sua família, como já lhes contei, livre de qualquer
sofrimento de perda. Todos acharam que ele estava louco. Ao contrário disto, Andréas estava
consciente.

Sua fé foi renovada e uma nova etapa de sua vida começava. Suas primeiras palavras após seu
luto, são repetidas até hoje, servindo de inspiração aos jovens Campeões Sagrados:

- Benditos sejam aqueles que acreditam sem nunca ter visto, pois a eles pertence a
verdadeira fé.
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Novembro 2008

Tema: O que os Olhos não Vêem / Guerra da Água

Guerra da água
Miguel Carqueija

Sob um céu abrasador, eu e Arlim nos arrastávamos por entre as pedras e touceiras do capim
brabo, por onde esvoaçavam nuvens de mosquitos. Nossos próprios objetivos imediatos
haviam-se tornado nebulosos: sobreviver, localizar água, escapar ao inimigo ou persegui-lo...
de qualquer forma, tínhamos de nos mover; ali, naquele deserto ressequido, não nos sobravam
muitas opções.

Barbudo como eu, Arlim já parecia um candidato a Robinson Crusoé; tomando uma seringa de
água – uma das poucas que nos restavam –, balbuciou exausto:

- São Pedro bem que podia nos dar uma colher de chá...

- É pouco provável – respondi, engolindo em seco. – Não se vê nem um fiapo de nuvem... a não
ser as de mosquitos, é claro.

- Mas aqui perto tem tanta água... eis a ironia da sorte.

- Em que a Terra foi transformada! Tudo por causa dessa humanidade metida a besta...

- A essa altura não adianta nada reclamar ou filosofar, Sávio. Temos é que encontrar essa bendita
água antes de virarmos esqueletos ressequidos! Que nem aquela visão do profeta Ezequiel...

- Ainda acho incrível a destruição do nosso grupo...

- Você já nem fala mais como soldado, Sávio. Éramos um regimento.

- Soldado, diz ele? Regimento? Éramos um simulacro, apenas isso. Já não se fazem exércitos
como antigamente.

Dei um grito abafado.

– Acabo de espetar a mão num cacto.

- Tome mais cuidado, irmão. Ah, aqui tem umas batatas bravas, vai dar para enganar a fome...

Ele arrancou uns tubérculos insignificantes. Poderíamos fazer uma brasa com o auxílio de
gravetos, mas valeria a pena? Tínhamos sido trezentos; mais de dois terços haviam morrido e o
109
resto se dispersara na caatinga braba.

Mas acendemos o braseiro. A fome era grande e era preciso colocar alguma coisa nos nossos
debilitados estômagos. Depois, a contragosto, fiz uso de uma das minhas últimas seringas de
água.

- Veja que estamos quase no alto do outeiro, Sávio. Talvez dê para avistar alguma coisa.

Ou sermos avistados, pensei. Não sei se poderíamos contar com a Convenção de Genebra ou
qualquer ato de boa vontade da parte do inimigo. Mas segui Arlim; não havia muito mais o que
pudesse fazer.

Descobrimos que aquele cume, bem disfarçado por arbustos silvestres, dava um ótimo mirante
para longa distância. Descansamos nossos rifles ERB-42 na terra e espiamos, extasiados: lá
longe se avistava o açude Esperança, as terras vermelhas e marrons que o circundavam e, sim,
a vila improvisada que o inimigo montara junto à sua base. Algumas casas de campanha, feitas
de material pré-fabricado (notadamente o indispensável magiplast), já se encontravam de pé e
inteiramente acabadas. Eles eram rápidos, sem a menor dúvida.

- A cabeça-de-ponte no açude... eles já fizeram! – rosnou Arlim, cerrando o punho.

- O que você esperava? – observei com amargura. – O exército inimigo, aproveitando-se das
deficiências do nosso efetivo. Devemos isso ao desleixo dos nossos políticos e governantes, que
sucatearam as nossas Forças Armadas... Bem, o exército inimigo nos desbaratou. E agora eles
têm o que queriam: a água!

- Será que o Norte está tão seco assim? Eles precisam disso?

- O mundo lutará até a última gota de água, você sabe. Brigadas internacionais lutam na África
Equatorial e ao longo do Ganges, na Índia... e todo o Sul e o Norte lutam no Rio Amazonas...

- Mas aqui, Sávio, onde a água já é tão escassa... por que? Populações miseráveis foram expulsas
a tiro, massacradas...

- O homem se tornou muito violento e egoísta. A vida humana já não tem nenhum valor...

Tristes, deprimidos, ficamos a observar aquele imenso lençol d’água que, a partir de agora,
não estaria mais ao alcance dos nossos. Observamos a borda, a encosta, a cidade castrense lá
embaixo... e então Arlim falou:

- Está pensando o que eu estou pensando?

- Sim, creio que eu pensei a mesma coisa, mas não... é difícil, é perigoso demais...

- Pense bem, Sávio! O que mais nós podemos fazer? Ou antes, o que é que nos resta a perder?
Se não fizermos nada vamos morrer mesmo!
110
- Pode ser que os nossos explosivos consigam... mas será uma barra chegarmos até lá.

- Eu sei. Vamos aguardar que anoiteça e nos arrastar para lá. Como você pode ver, para leste
tem umas subidas que facilitam.

Se não morrêssemos antes por desidratação haveria alguma chance; mas eu não me sentia nada
animado. A resistência humana tem os seus limites.

Era uma idéia louca, sim. Mas homens desesperados são capazes de tudo, como disse Fred Mac
Murray naquele filme do professor distraído.

Teríamos de nos mover vagarosa e sorrateiramente, ocultando-nos em pedregulhos, touceiras,


árvores mortas e retorcidas, em qualquer coisa que servisse e, beneficiados pela irregularidade
do terreno e por aquela noite que, por graça dos céus, seria de lua nova...

Mas eu não tinha certeza de podermos contar com recurso técnico suficiente. Seria suficiente a
invenção do Dr. Nobel?

Felizmente havia umas oiticicas que auxiliaram os nossos esforços de avanço ininterrupto sem
prejudicar a ocultação.

Ao longe alguns lampiões ainda permaneciam acesos no lusco-fusco. Procuramos discernir,


com nossos binóculos, a posição das sentinelas. A escuridão descia rapidamente e, apesar do
declive em que seguíamos, esgueirando-nos através de araticuns, aroeiras, braúnas e muricis,
a chance de nos avistarem era muito diminuta. Afinal, qualquer pequeno movimento àquela
distância poderia ser algum tatu-peba, algum calango, alguma preá.

Conversando em sussurros, fomos acertando os detalhes do nosso golpe. Tratava-se simplesmente


de entupir o sangradouro e, pelo conhecimento que tínhamos da infra-estrutura da barragem, a
água deveria transbordar em pouco tempo. Até porque a manutenção sempre fora precária.

- Só mesmo dois loucos como nós – observou Arlim, cinicamente.

Deviam ser umas onze da noite quando finalmente nos vimos no topo da barragem, a pouca
distância do sangradouro a despejar um contínuo fluxo que se perdia no boqueirão coberto da
espessa mata enfezada e tostada. Aquela água acabava por se evaporar mais adiante, em contato
com a areia e a rocha abrasadoras e nuas, descontado o grande porcentual que se abismava nos
pélagos subterrâneos. Mas a razão de ser de um sangradouro, objetivamente falando, é que
o açude capta o líquido de algum curso d’água, geralmente de pequeno porte. A acumulação
resulta numa grande quantidade; se não houver o sangramento ela extrapolará, quiçá rompendo
as paredes e inundando as regiões vizinhas.

Iríamos cometer um crime ecológico.

Felizmente nosso conhecimento sobre dinamite era razoável e pudemos calcular com bastante
exatidão a quantidade e a colocação do explosivo. Depois tratamos de nos afastar.
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Nós não pudemos, na verdade, ficar para assistir o resultado. Soubemos detalhes bem mais
tarde, graças principalmente ao testemunho de alguns brasileiros, prisioneiros de guerra que
lograram escapar com vida. As explosões que provocamos saíram meio abafadas, mas obtiveram
a obstrução do canal de sangramento. Os soldados foram até o local ver o que havia acontecido;
ora, estávamos na época de melhor vazão do Rio Jaguaribe, uma sorte, pois ele poderia estar
com o leito seco. Nossos inimigos não entendiam muito de açudes e não entendiam o que estava
acontecendo. Quando a parede desmoronou, foram pegos inteiramente de surpresa. A inundação
destruiu o acampamento, afogou centenas de homens, inutilizou seu material bélico e ainda
atingiu as tropas de reforço que vinham chegando. Representou uma mudança na tendência
geral do conflito, uma grande vitória para os brasileiros nacionalistas.

E isto, conseguido por dois semimortos como Arlim e eu.


112
Novembro 2008

Tema: O que os Olhos não Vêem

Em nome da Coerência

Ana Letícia de Fiori

Fogos de artifício estouram lá fora, impedindo meu sono. Da janela do 37º. andar emanam
estrondos esporádicos e o burbúrio das massas cria uma invulgar paisagem sonora. O edifício
da agência de Mnemose, onde trabalho e tenho meu lar, fica próximo à Praça da Matriz, ou
melhor, Praça da Abundância, o lugar das comemorações. As paisagens urbanas também foram
reprogramadas após a Libertação, mas no meu trabalho às vezes tendemos a esquecer estas
mudanças, pois trabalhamos com códigos já inexistentes. É mais difícil de lembrar quando eu
acordo, pois meus sonhos formam um banco de dados ilegal de realidades perdidas. Há tempos
não saio para as ruas e, ao acordar com os ecos da festa, sinto uma melancolia nostálgica... quer
dizer, sinto que estou no meu lugar, e que aquilo é para outrem. Os trabalhadores-habitantes
dos andares superiores tem certezas maiores, são cidadãos mais ajustados e que desempenham
funções mais importantes. Eles agora devem estar dormindo tranquilamente.

Esfrego meus olhos tirando junto com a secreção as imagens sobrepostas de passados ausentes,
acionando cineticamente os nano-renderizadores óticos Bentham v112 para poder enxergar.
Melhor lavar meu rosto e repassar os relatórios. Ainda antes da Permissão devo me encontrar
com meu assistente e ir para o litoral, para um trabalho de campo da micro-reconstrução. A
água de que disponho não tem cheiro. Sento-me em minha estação e ordeno mentalmente as
projeções sinápticas do plano de trabalho, revendo as instruções enquanto o barulho das ruas se
extingue e se imponham as leis do Recolher, atrasado hoje para as comemorações. A central me
alerta que meu assistente me aguarda no veículo.

Ao nos cumprimentarmos, observo-o. Parece haver alterações em sua rede nervosa epitelial e
ele está involuntariamente secretando líquidos. Não se deixe ser pego pelos Pastores, digo a ele
com o olhar, ou você será conduzido à Reabilitação. Ele nota que eu percebi, e esfrega as mãos
sobressaltado. Sua estranha palidez contrasta com o interior negro do veículo que voa por cima
das avenidas desertas. A noite esmaece revelando os poucos transportes dos trabalhadores da
noite e os edifícios de vidro, que refratam a cor do céu em um efeito de horizontes indistintos.
Logo a paisagem abaixo de nós muda, e o sol nasce no horizonte produzindo um feixe de
reflexos brilhantes na superfície do mar. Pousamos levantando a areia branca e assustando
algumas gaivotas, que se afastam grasnando. Temos que realizar o serviço rapidamente, antes
113
da hora de Permissão, ou os banhistas atrapalharão todos os procedimentos.

As últimas análises acusaram a presença de organismos exóticos na água que escaparam às últimas
Reconstruções, nos incansáveis esforços de reconduzir o passado à Coerência Temporal. O
trabalho da Mnemose é dar conta dessas sutilezas e trabalhar na composição mínima da Realidade.
Houve intensos debates entre os coordenadores da Realidade sobre o grau de esmiuçamento
necessário em nome da Coerência Temporal, com especialistas de diversas áreas levantando
problemas. Algumas medidas haviam sido imediatas, como a reconfiguração do calendário e
dos nomes. Todos os registros inscritos no cotidiano do período anterior à Libertação foram
reconfigurados, para que ninguém tivesse mais que pensar neles. Nomes de ruas e praças, de
famílias e de objetos, todos já estavam sintonizados. Os linguistas, epistemólogos, arqueólogos
e historiadores realizaram um árduo trabalho de Reconstrução dos léxicos, dos conceitos e dos
fatos. A Reconstrução dos geógrafos trabalhou para a reorganização do entendimento do espaço.
Para os especialistas das exatas, as tarefas de gestão da Realidade se impuseram e em nome
da Coerência apenas houve uma releitura de certos procedimentos científicos. Sua principal
contribuição foram os diversos nano-agentes, especialmente os nano-renderizadores óticos da
série Bentham, que permitiram à população enxergar a Realidade enquanto as Reconstruções
prosseguiam. Hoje trabalharíamos com nano-agentes recompositores Haussmann 860.

A voz do meu assistente interrompe minhas digressões mentais.

- Estava ansioso para trabalhar novamente na Praia da Saciedade. Estive aqui há dois ciclos para
trabalhar com a areia. Veja só. - ele apanha um punhado de areia no chão a derrama com o pulso
fechado, formando uma linha branca até o chão. - Não há mais nenhuma substância exótica
aqui. Nem rastros de produtos consumidos ou qualquer tipo de sujeira. Não há fragmentos de
minerais que não os apropriadamente pertencentes à areia e não há indícios microscópicos de
fauna e flora pré Libertação.

- Fale baixo – eu o repreendo suavemente. - Fui informado de sua especialidade. Libere os


nano-recompositores na água, porque não há muito tempo para monitoração.

Ele assente com a cabeça e leva os tubos de contenção para a beira-mar, parecendo satisfeito em
molhar os pés. Lembro-me da discussão sobre poupar ou não o mar. Ele sobreexistiu ao fim da
Guerra da Água porque os especialistas disseram que a vastidão do oceano seria a melhor prova
da Abundância. No entanto, creio que o motivo foi que na época não havia recursos energéticos
suficientes para Reconstruir todos os oceanos. A Libertação e o advento da Abundância eram
comemorados a cada ciclo pela população racionada, este ano com especial entusiasmo por
causa do aumento das cotas.

- Esta é a segunda Reconstrução realizada nessa costa. - meu assistente começa a falar mais
uma vez – da primeira vez os biólogos vieram retirar a fauna e flora exóticas, mas esqueceram
alguns microorganismos. Um deles me contou que antes da Libertação havia viagens realizadas
com veículos que flutuavam nas águas, levando carga. Estranho, não? E quando retornavam
114
com compartimentos vazios, recolhiam água para equilibrar o peso, que posteriormente eram
despejadas. Água de lastro, este é o nome. Por isso tantas substâncias e espécies exóticas são
encontradas aqui. Disse também que os fenômenos ecológicos decorrentes da ocupação humana
dessas águas foi um dos elementos que desencadeou a Guerra.

- Basta – dessa vez minha voz é firme. - Quer ser ouvido? Sabe que não estamos ajustados
para enxergar totalmente a Realidade enquanto não terminarmos as Reconstruções. Mas já há
etapas superadas... – abaixo o tom – A Guerra da Água, e todas as narrativas e sentimentos a ela
subjacentes, só existem agora em alguns arquivos da Mnemose, e por pouco tempo. Não devem
mais ser trazidos aos sentidos, pela fala ou o que quer que seja.

- Você está sendo ingênuo – a voz de meu assistente agora ecoa por toda a praia, como se
pudesse se dirigir aos primeiros banhistas que surgiriam à hora da Permissão – você acha que a
Reconstrução é capaz de recontar tudo, desde a origem do universo? Algum dia abandonaremos
esses detalhes que já ninguém é capaz de ver mesmo, e a coisa mais ínfima irromperá na consciência
de todos, trazendo a tona novamente todos os eventos vergonhosos que nos trouxeram a este
mundo racionado e estupidamente feliz. Eu sei, porque eu VEJO. Os meus nano-renderizadores
são incapazes de encobrir totalmente o que eu vejo e o que eu penso, porque eu também ouço
e cheiro e sinto. Fui danificado pelos nano-recompositores e juntei os elementos de toda esta
farsa. Vejo imagens se descolando da minha retina como mentiras podres em um mundo que
conseguiu sim sobreviver à nós e a nossa loucura, e que agora estamos tentando fazer com que
esqueça de si assim como nós nos esquecemos. Agora, pela primeira vez desde a Libertação,
esse eufemismo barato para a escravidão global e a censura do pensamento que nos impusemos,
há um elemento fora do sistema. Eu. E posso reconduzir outros e podemos deter a Reconstrução
e preservar o pouco que nos resta das evidências...

Foi o bastante. Um veículo da Reabilitação, o primeiro visto em muitos ciclos, pousou na


praia e meu assistente foi para lá dirigido. Terá que passar um tempo reformulando suas
memórias, seu vocabulário e seus sentidos, até que se ajuste novamente à Realidade, e creio
que jamais trabalhará novamente na Mnemose. Para os banhistas, foi tudo incólume, pois de
fato nada viram ou ouviram. Em silêncio, esfrego meus nano-renderizadores para banir aquelas
imagens e acrescento ao relatório que se faz necessária mais uma checagem do trabalho dos
nano-recompositores naquelas águas. O veículo que me trouxe me leva de volta para a sede
da Mnemose, para o resto do expediente. Anseio pelo dia em que meus nano-renderizadores
óticos possam ser plenamente ajustados à Realidade. Enquanto trabalho para a Mnemose, às
vezes tenho que ser capaz de ver o mundo com os olhos nus, carregando esses traços do passado
inexistente que estamos eliminando na Reconstrução. Um dia poderei não mais o enxergar e
esquecê-lo também.
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Biografias

Daniel Gomes
Cearense, 25 anos. Estudante de Ciências da Computação, é fã de séries de ficção cientifica e um
gamer. É um dos fundadores da Fábrica dos Sonhos. Escreve contos gerais de Ficção Cientifica e
Fantasia como hobby. Fã de Jornada nas Estrelas, escreveu fanfics da série.

Aguinaldo Peres
Paulistano nascido no início de 1966. Formado em Matemática e analista de sistema por profissão .
Leitor compulsivo, somente a partir do encontro com os colegas da Fábrica dos Sonhos passou a se
dedicar à nobre arte da escrita. Foi premiado nos concursos FC do B e Prêmio Bráulio Tavares - Ano
2008.

Abelardo Pedroga
Casado, 47 anos, paulistano. Fã de Ficção Científica e Fantasia. Há cerca de 10 anos participa de
listas de discussão na Internet e oficinas literárias sobre FC & F. Autor de IMPÉRIO livro inédito, não
publicado. Autor de diversos contos espalhados pela grande rede. Co-fundador do grupo Fábrica dos
Sonhos.

Ana Cristina Rodrigues


Uma das fundadoras da Fábrica dos Sonhos. Carioca, atualmente morando em Niterói, com o marido,
filho e um número variável de animais de estimação. Exerce as atividades de escritora, historiadora,
revisora, tradutora e pesquisadora, além de ser funcionária da Fundação Biblioteca Nacional. Na
Fábrica, é a coordenadora-geral e a responsável pela Editora

Ana Carolina Silveira


Mineira e advogada. Ganhou três prêmios literários. Membro da Fábrica dos Sonhos desde 2005, já
publicou em sites, como o SciPulp, bem como em antologias como Encontros em Contos, de 2006 e
Imagens da Vida, em 2008, ambos pela Editora UFV
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João Dória
Nasceu em Porto Alegre no ano de 1984. Mudou-se para Florianópolis em 2002 onde se formou
Biólogo pela Universidade Federal de Santa Catarina no início de 2008. Fã de Isaac Asimov e J. R. R.
Tolkien, começou a escrever histórias de ficção científica e fantasia como hobbie no ensino médio.

Ubiratan Peleteiro
Capixaba de Vitória, nascido em 1973. É formado em engenharia da computação e atualmente trabalha
como auditor fiscal. Sempre gostou muito de ler e em 2006 teve contato com a literatura de fantasia
e entrou para a Fábrica dos Sonhos, onde também se apaixonou pela Ficção Científica. É um dos
coordenadores da Fábrica, responsável pela recepção dos novos membros e o que mais aparecer.

Charles Dias
Charles Bronson Dias, nascido no Sul de Minas em 1971, é formado em Economia pela USPe agora
se aventura no serviço público. Leitor de ficção científica e histórica desde a adolescência, somente há
alguns anos começou a escrever realmente. É co-fundador da revista digital de Ficção Científica Black
Rocket, seu editor e coordenador.

Leonardo Carrion
Nasceu em Porto Alegre, em 1969. Formado em Ciências Jurídicas e Sociais na UFRGS, é. Tem uma
filha de nome Helena, um papagaio chamado Pingo e uma biblioteca particular de aproximadamente
dez mil volumes. Eventualmente encontrou o grupo Fábrica dos Sonhos, onde começou a escrever algo
mais mostrável e publicá-los em revistas. Para sua surpresa, foi um dos selecionados para a coletânea
do concurso FC-do-B.

Joshua Falken
Tem 28 anos, é paulista e farmacêutico. Fã de FC, Fantasia e Mistério, sendo que seus autores
favoritos são Isaac Asimov, Arthur C Clarke e Robert J Sawyer.

Antonio Luiz da Costa


Jornalista, escreve na revista Carta Capital.
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Leandro Reis
Mora em São José dos Campos-SP e tem 29 anos. Começou a escrever valendo-se de um cenário
imaginário de nome Grinmelken, mundo que surgiu quando, há mais de uma década, imaginou suas
paisagens e personagens pela primeira vez. Decidiu investir no meio literário em 2006, dedicando-se à
comunidade de literatura especulativa. Em 2008, publicou o livro Filhos de Galagah. Seus textos são
constantemente publicados em revistas, antologias e na web.

Miguel Carqueija
Miguel Carqueija é carioca, nascido em 1948. É o decano da Fábrica. Escreve deste os anos 60. Publicou
em diversas revistas, fanzines e antologias, tendo participação ativa no fandom da ‘Segunda Onda’ da
Ficção Científica Brasileira. Em 2008, publicou seu primeiro livro ‘profissional’, Farei o meu destino.

Ana Letícia Fiori


Paulistana nascida em 1986. Cursa bacharelado e licenciatura em Ciências Sociais na USP, onde atua
no Núcleo de Antropologia da Performance e Drama e no Núcleo de Antropologia Urbana. Nerd
inveterada, apaixonada por ficção científica, fantasia e terror desde criança, escreve por hobby, mas
compulsivamente, o que a levou a ter e apagar vários blogs.
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