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Rock Baiano
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Rock Baiano

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“Em 1995, numa época pré-internet como a conhecemos, já existia um podcast. Com o telefone fixo, bastava se conectar ao nº 71 533 6640 que era possível ouvir agendas, músicas e resenhas sobre artistas locais. Era o Telefanzine, de Ednilson Sacramento, escritor que com muita informação e generosidade ilustra e imortaliza nessas páginas toda uma cena musical local, dos anos 1970/90 na Bahia, autoral e autentica.” Ricardo Cury * “Rock Baiano – História de uma cultura subterrânea não é um livro, é uma enciclopédia comprimida em um único volume, através de um mergulho profundo na cena independente da Bahia.” Eduardo Lubisco * A obra é resultado das pesquisas realizadas sobre o cenário underground de Salvador com destaque para as bandas baianas que atuaram nesta cidade entre os anos 1970 e 1990. Com a colaboração de Luciano Matos, a pesquisa é atualizada até um pouco mais que os anos 2010. Revela histórias de grupos marginalizados no mercado musical, indo do punk ao metal; dos shows às lojas alternativas. Nomes como Camisa de Vênus, Dever de Classe e Mar Revolto aparecem nesse mosaico de shows, histórias de vida e cultura subterrânea.
LanguagePortuguês
Release dateJul 12, 2022
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    Rock Baiano - Ednilson Sacramento

    INTRODUÇÃO

    Pra mim o Rock and Roll morreu em 59. Hoje o que existe é o reflexo de uma época em nossa cultura.

    Raul Seixas

    CUMÉQUIÉUNEGÓCIU?

    Mas rapaz, como é que você perde tempo para falar de rock baiano? Qual é o rock que existe na Bahia, rapaz? Marcelo Nova foi o maior engodo, foi um blefe, se aproveitou dessa baianada da província; se você fizesse um livro sobre o rock brasileiro, menos mal, apesar de que no Brasil não tem rock, é outra merda.  Rock é coisa de inglês, americano. Oxente! Você não ouviu Rita Lee dizer que o rock só presta cantado em inglês? Até você, rapaz? Um bocado de bandinhas fuleiras: trash metal, head-hunter... você deveria publicar um livro com a verdadeira história do rock and roll: Elvis Presley, Chuck Berry, Iron Maiden, Rolling Stones. Um bocado de bandinhas de imitadores, Dorsal Atlântica, Sepultura. A imprensa enganando o brasileiro dizendo que o Sepultura é sucesso no exterior. Quando eu vejo um rock nacional, eu acho uma porcaria, não existe rock no Brasil. O rock do Brasil é a xerox do rock, imagine na Bahia: é a xerox da xerox, é a cópia da cópia. Porra nenhuma, rapaz. Aqui só tem roquezinho. Eu tenho uma revista americana onde eles botam os ‘100 Maiores de Todos os Tempos’, pode olhar pra ver se tem esse negócio de Pepeu ou Robertinho do Recife. Esse negócio de ufanismo bobo. Juca Chaves disse uma vez uma coisa certa: ‘eu não assisto a filme nacional, sou patriota, mas não sou idiota’. Eu gosto das coisas do Brasil, mas rock, não! Você tem que escrever um livro sobre a axé-music, Daniela Mercury, Netinho, essas porcarias. Aqui na Bahia é tão ruim que eu leio os jornais e nem sei quais as bandas que têm aqui. É 14º Andar, Treblinka. Oh! Ednilson, valeu o seu esforço, mas esqueça esse projeto. Por curiosidade, eu tenho uma revista que publicaram sobre o rock brasileiro, alguns personagens e tal, mas rock na Bahia... Quem vai comprar? Alguns bobos. O pessoal gosta mesmo é de Daniela Mercury; brasileiro, no geral, não tem bom gosto, não.

    Depoimento anônimo

    Caí no atrevimento de escrever algumas linhas abordando um tema, no mínimo, desinteressante. O meio subterrâneo na cidade de Salvador. Uma subcultura, apêndice nos interesses vigentes, sem muita expressão. Quiçá um gasto desnecessário de papel.

    Por que não escrever sobre vitaminas, menores de rua ou globalização das informações? Destinar 10% de capacidade mental para a realização de uma obra fadada a poucos curiosos é, em primeira autoanálise, loucura.

    Uma frase sanfranciscana, que li num release do grupo Via Sacra, dizia que a loucura é o sol que não deixa o juízo apodrecer. Quem sabe, não há razão?

    Mas, quais razões levariam alguém a esse temerário ofício? A vontade de falar por aqueles que não falam. O tesão em contar para o mundo aquilo que se considera o máximo, crente que se está ‘abafando’ ao fazer uma viagem contra a correnteza. Dar o que falar. Dar um tapa na má memória dos descontraídos habitantes da terra natal. Dentre estas, outras justificativas serão adicionadas com o tempo.

    Querer retratar um cenário apontado como subterrâneo e montado numa freguesia explícita e tropical como a que lhe serviu de arena é, sem a menor dúvida, uma temeridade. Por vezes - como disse Bob Marley - nos recusamos a ser o que eles queriam que nós fôssemos: fomos o que fomos.

    Este registro não tem o compromisso de catalogar nem classificar o quadro dinâmico de todas as manifestações do rock na primeira capital do Brasil. Objetiva descrever fatos pitorescos inerentes aos grupos adolescentes envolvidos de alguma forma com a música de rua.

    Esta narrativa se materializou abastecida por dados coletados pessoalmente, por documentos de arquivo, vivências, entrevistas, viagens, visitas in loco e pesquisas em periódicos e literatura de 2ª categoria por cerca de 10/12 anos.

    Não tive a intenção de fazer o ABC ou a Bíblia do rock baiano. Apenas arrisquei traçar um relato histórico da música independente local como forma de expressão e contraponto.

    Um tratamento linear do rock não seria condizente em face da espontaneidade, tanto deste movimento musical quanto dos meios que utilizei para montá-lo. Ora pois, meus jovens, não me cobrem coesão ou exatidão. Se esta abordagem é anômala, a culpa não é só minha.

    Não fiz um trabalho sobre um movimento que deu certo ou que mais agradou. Muito menos por estar na ordem do dia. Apenas procurei trazer à superfície as manifestações de amor à vida, das sobras do banquete musical ou do caldeirão cultural.

    Condensei assuntos empoeirados em cima do guarda-roupa, com entrevistas, papos, depoimentos, cartas e fanzines. Busquei situar a redação com fatos e tendências conflitantes, deixando por conta do leitor ou ouvinte o trabalho de crítica e análise.

    Confesso que também ajudei a construir o movimento. Fui mais que testemunha.

    Tentei driblar o vai e vem dos fatos: grupos formados na semana de fechamento da edição, grupos sumindo depois de ganhar repercussão no meio alternativo, patrocinadores fechando as portas, até alterações na língua portuguesa. É, meu caro, não foi fácil!

    No decorrer deste apanhado, procurei cercar-me da contribuição de pesquisadores, críticos e estudiosos da música pop, o que não se deu em maior escala devido à falta de tempo de alguns e à ausência de tantos, tornando-o, desde já, um relato incompleto. Talvez esse desfalque tenha afetado um pouco a abordagem, mas ao mesmo tempo deve ter deixado lacunas e discussões abertas para o florescer de novas pesquisas e consertos (ou concertos) daquilo que não foi suficientemente dissecado.

    Tanto irão se queixar da ausência de muitos grupos e outros reivindicarão uma maior atenção para o setor A ou B, mas quem sabe? Tais falhas lhes servirão de incentivo para a confecção da sua própria história.

    ESSA METRÓPOLE

    Vamos falar sobre uma cena ocorrida num paraíso tropical com quase 50 quilômetros de praia, verão quase o ano inteiro, tido e vendido pelos órgãos de turismo como a sensual land. Uma síntese do Brasil ou do planeta. Essa é a terra que testemunhou os efeitos dos ruídos absurdos saídos de esgotos, garagens e sarjetas para a celebração da sua vertente subterrânea. Uma velha metrópole capital dos desiguais, como brindou um shopping center em 29/03/1994, quando da passagem dos 445 anos de fundação de Salvador.

    A BAHIA DOS CONTRASTES

    Salvador é o caos urbano rodeado de belezas naturais por todos os lados. É a terra paradisíaca explorada pelo cinema internacional e, diariamente, pelas câmaras sofisticadas dos milhares de turistas que a visitam. Com um clima tropical deliciosamente equilibrado - até mesmo a topografia rebelde conta a seu favor - a capital da Bahia destaca-se como uma das cidades que reúne algumas das mais belas paisagens do planeta. Tudo isso recheado por uma cultura rica e uma história que lhe garante o título de primeira capital do Brasil. Mas como omitir seus abismos sociais, suas valas e esgotos mal cheirosos, os meninos maltrapilhos nas sinaleiras, a sua porção violenta e cruel que se traduz em sofrimento e pobreza do seu povo?

    O esquema da música baiana, surgido no princípio da década de 1980, levantou cifras, extraordinariamente consideráveis, perpetuando-se no terreno popular de uma maneira nunca antes verificada. Conterrâneos como Caetano, Gil, Raul Seixas ou Glauber Rocha estiveram longe demais da mina de ouro.

    O estouro da música feita na Bahia, rotulada fonograficamente de axé-music (termo pejorativo), fez com que se atingissem, em 1995, índices oficiais de arrecadação anual de mais de um milhão de dólares. Em 1988/89 cerca de 50% dos lançamentos de discos do Brasil eram de bandas baianas, sem falar que, em 1995, quase todos os artistas locais gravaram suas músicas na terra natal.

    Se a produção do grande circuito esbanja números, o mercado independente - principalmente o de rock - perde feio ensombreado pela pressão da indústria cultural. Ainda em 1995 e levando em conta uma razoável legião de admiradores, bandas independentes trocam o apoio cultural aos seus eventos por sanduíches e impressão de filipetas de divulgação.

    Considerando-se ainda um efetivo de dezenas de bandas e artistas marginais, esses músicos enfrentam o desdém e o silêncio como antes padeceram iniciativas tipo Sexteto do Beco e Os Tincoãs.

    E é dessa terra rica de ritmos e números que brotam ruídos avessos e diversidade de costumes, além de inesperadas manifestações culturais. À margem da produção oficial, circulam ativistas e inquietos manifestantes teimosos de encontro ao caminhar do rebanho.

    O palco dessas vertentes, muitas vezes ambíguas, é a terra tida como o nirvana, fama que lhe confere uma visitação turística grandemente provocada por seu cardápio musical.

    A produção independente aponta a questão do incenso - simbolismo utilizado quando se refere aos bastidores do meio político e artístico - que domina as relações de valores e preferências dentro do ambiente cultural:

    É todo mundo incensando todo mundo, porque um depende do outro. Quando, por exemplo, uma moda ou um artista está em baixa, a incensação cessa e logo aquele incensador (bajulador) passa a incensar uma outra onda ou outra corrente; quando a canoa está virando, o sujeito pula para outra (Marcelo Nova).

    A BAIANIDADE

    A terra do candomblé produz e consome a sua própria cultura e, entre esses dois estágios, desenha seu mais novo cartão postal que é vendido aos quatro cantos, depois de expandido em quase todo o Brasil.

    É baseado nesse ambiente nirvânico que especialistas executivos do setor cultural propagam a imagem santificada da Bahia. E fazem isso muito bem, a ponto de atingirem altos índices de conversão - para não dizer lavagem cerebral - entabulando até estudos para averiguar, por exemplo, a influência das ladeiras da cidade no desenvolvimento da manemolência do povo baiano ou projetando análises para evidenciar uma nova dança ou coreografia nascida a cada verão.

    No campo da música, esse esquema encontrou abrigo inigualável quando, nos primeiros anos da década passada, programadores de rádio e donos de blocos carnavalescos comungaram uma estratégia de pasteurização cultural sem precedentes, configurando um formato musical maciçamente inspirado no vazio, na ausência de texto e na selvageria da repetição.

    E assim se passaram anos de franca e produtiva movimentação musical. Daí em diante, o artista baiano se viu entre duas opções: entrar para a jogada ou assinar o suicídio e amargar a falta de espaço no universo da música local.

    A grande sacada dos promotores da música axé construiu rainhas e dinastias que brilham e somem a cada carnaval. Blocos carnavalescos investem alto em festas de janeiro a dezembro, praças e avenidas eram arenas para o espetáculo do descartável, do lucro fácil, pautados na monocultura musical. E o povo dançou como nunca havia dançado antes, cultivando uma síndrome em que a alegria, a beleza e a fantasia integram o circo.

    Não se pode esconder que a música baiana exerceu um papel preponderante dentro do panorama empresarial deste fim de século, no que tange aos aspectos de mercado de trabalho e divisas culturais. Salvador cruza a década de 1990 sendo a cidade mais sonorizada do país, sem que isso implique na melhoria da qualidade de vida de seus habitantes.

    A música nascida dos trios elétricos continua fazendo a explosão de alegria de janeiro a dezembro e, por conseguinte, aumentando o patrimônio de muitos dos seus articuladores

    A CULTURA SUBTERRÂNEA NA METRÓPOLE REGIONAL

    A chamada cultura subterrânea ou cultura underground tem um perfil padronizado dentro de qualquer conglomerado urbano, principalmente nesses anos do pós-guerra. Na Bahia e, notadamente, em Salvador, as minorias marginalizadas conviveram (e convivem) com aspectos e fatores singulares.

    A Bahia que, em mais de quatrocentos anos de história, foi rotulada com paradisíacos apelidos - Terra da Felicidade, Boa Terra, Terra Sensual - rica em costumes e tradições culturais de invejável exuberância, parecia não ter espaços para focos de manifestações diferenciadas, de cunho acentuadamente urbano. Depois do apogeu econômico centralizado nas culturas agrícolas do café, cacau e cana-de-açúcar, o maior estado do Nordeste amargava a decadência da sua economia baseada no campo. Com essa situação, nossa terra depara-se com saídas emergenciais no campo da agroindústria e, principalmente, no campo de serviços. Acompanhando o caminho de outras capitais, o estado convive consecutivamente com um fantástico êxodo rural que lhe adorna com visíveis concentrações de população no seio e cercanias da capital. Quanto mais aumentava a abrangência de seus problemas urbanos, crescia ainda mais o encanto e a beleza da sua feição.

    Para compor sua personalidade, a terra cuidou de preservar suas vocações culturais concentradas na herança perpetuada pelos negros, adicionando- lhe ingredientes de uma vastidão incomparável. A Bahia é a síntese do Brasil nos seus aspectos mais nativistas e antropológicos, florescendo a sua fama marcante juntamente com momentos de pluralidade cultural e econômica. Suntuosos prédios e shopping centers nascem como se estivessem apostando em um degrau mais cosmopolita onde pisam juntos o moderno e o tradicional.

    Claro que tomamos apenas o exemplo para situar o leitor dentro do ambiente maior da música. Da Blitz a Noel Rosa, todos puseram a terra em suas composições. Mas, registremos a retratação suja e despudorada das canções de rua.

    Na versão Controle Total, uma das pioneiras músicas interpretadas pelo Camisa de Vênus, a capital é tida como uma arapuca composta de todos os aparatos para impedir as contestações. Identidade é o título de uma outra composição do grupo, muito tocada nos shows iniciais, versando sobre a falsa aparência de seus cidadãos. Notabilizada pela ausência de comedimento, a crítica social constante no cancioneiro alternativo aparece aqui numa letra (não editada em disco) do Delirium Tremens, grupo de 1984, que satirizava contundentemente a rotina soteropolitana em Ociosidade Nessa Cidade, obra de Jerri Marlon e Hélio Rocha:

    Esta é a nossa cidade / Não, eu não sei / Realmente onde nós vamos parar / Onde iremos e o que faremos / E o que vamos encontrar / Porque essa é a nossa cidade / Problemas sociais e de estrutura / Que não lhe afetam em sua Cobertura / Não, eu não sei / Realmente em quem devo acreditar / Naqueles que mandam / Ou naqueles que dizem que deveriam mandar / Não temos problemas nem crises econômicas / Se tivéssemos não haveriam / Tantas obras faraônicas / Oh. oh, oh ociosidade / Não eu não sei / Realmente mais para onde olhar / Se o que eu  quero ver está encoberto / Pra ninguém enxergar / E aqui vamos seguindo / Exatamente como nos foi mandado / Nos submetendo a um ensino / Velho e ultrapassado / Essa é a nossa cidade / Vivemos todos na mesma cidade / Na rua ou em casa morrendo sufocado / Em qualquer desses ônibus lotados / Nas ruas  há de tudo / Violência e cassetetes / E você julga ter problemas / Com seu novo videocassete / Ociosidade nessa cidade.

    Mesmo contrariando aqueles que dizem que música é um embalo para a alma e, por conseguinte, despida de qualquer mácula, já em 1973 o grupo de rock baiano Celibato incutia a poesia satírica do escritor Gregório de Mattos Guerra em uma de suas músicas - Louvação - adaptada do poema Aos Padres. Dizia:

    A cidade aos teus pés te louva/ Cega e surda ao teu clamor/ A nossa Sé da Bahia/ Com ser um mapa de festas/ É um presepe de bestas/ Se não for estrebaria.

    Na segunda metade da década de 1980, a banda Via Sacra colocava o texto Cidade Morta numa de suas mais angustiantes canções:

    Circulam e rondam / Com o orgulho e a honra / De estarem aqui / Morando na cidade morta / Habitam os morros / E os barracos perto dos esgotos / E acham a felicidade / Pulando atrás dos trios da cidade / Tem praia e sol / Tem carnaval, também tem futebol / E o povo da cidade morta / Esquece a sua vida tão ruim / Têm fama de religiosos / E fazem festa para os santos mortos / E o grande ditador / Chefe da igreja e das esmolas / Exaltada em verso e prosa / Glorificada até no exterior / Carrega suas feridas / No ignorante povo sofredor.

    Encontramos muitos outros textos denunciando a desfiguração da musa de concreto.

    Músicas e temas desconhecidos ou ignorados pela maior faixa da população estabeleceram um painel de debates sobre aquilo que podemos chamar a cidade partida, a cidade que viu e produziu dois tipos clássicos de cultura. O leque soberbo de atrativos de caráter convencional e centrado nos grandes nomes e contestado por vozes violentas e despudoradas. Salvador, por exemplo, é título de uma das músicas mais executadas pela banda Dever de Classe. Eles não tinham sonhos coloridos.

    SALVADOR

    Andar pelo centro urbano / Dessa cidade fedorenta / Mais mendigo a cada ano / Esses esgotos ninguém aguenta / Isso é Salvador nada aqui se salva / Sobra restos, resta dor, nada aqui se salva / Um bando de turistas gordos / Compram tudo por aí / Depois viajam mais gordos / Deixando merda pra engolir / Isso é Salvador, nada aqui se salva / Sobra palha, resta dor, nada aqui se salva.

    Alguns desses compositores afirmam que não detestavam a cidade, mas odiavam o estágio em que ela estava: mergulhada numa pasmaceira linear e tentando encobrir seus defeitos como se eles pudessem ser ofuscados pelas luzes da falsa aparência. Erraram eles ou errou a cidade?

    Num fragmento da poesia Tortura Cerebral, o poeta Ney desabafa: por que os meus pensamentos/ Estão nas favelas/ No menor abandonado/ Na mendigagem das ruas. Como se percebe, a temática das composições urbanas sempre esteve a refletir o agressivo questionamento juvenil para com a área em que se vive. A musa dos shoppings centers e das máquinas de servir refrigerantes se faz ouvinte dos poemas de seus filhos.

    Essa polarização reflete igualmente o desencanto daqueles que amam a sua cidade e não se conformam, por exemplo, com o vazio estabelecido dentro do mundo musical baiano nos últimos tempos. Ao pronunciar a frase Eu não viveria sem o acarajé, o guitarrista Morotó Slim sintetiza seu amor pela Bahia e acentua o desejo de ver brotar vida útil na terra da felicidade.

    E a Bahia da magia segue imponente e robusta. Bahia das crises e dos avanços, da Orquestra de Berimbaus, da Passarela do Caranguejo, da Casquinha de Siri e da água de coco!

    A Bahia invade o próximo século tirando onda de primeiro mundo, administrando meninos de rua e fotografando Aleluia Beach; exportando carnaval e proliferando mendigos, miseráveis e sobreviventes numa busca incansável do exótico e do encantador para o lucro imediato. Repetindo o poeta, a Bahia tem um jeito que ninguém tem e leva jeito pra essas coisas, parindo ricos e abastados do mesmo útero que dá vida aos que rastejam, evidenciando seus contrastes que insistem em ser mais agudos a cada dia.

    Bahia de Cézar Zama. Bahia de Raul Seixas! Bahia de Anísio Teixeira! Levante o seu véu, pois queremos começar a viver.

    OS PRIMEIROS DIAS

    Garotos da Ondina não devem se misturar com rapazes da Barroquinha. Moças do Canela não devem frequentar bailes da Cidade Baixa.

    Recomendações como estas eram itens importantes na condução dos costumes da Bahia de 1960. A cidade já era dividida há muito tempo.

    A capital contava com cerca de 600 mil habitantes e alguns quatro ou cinco destes ficaram entusiasmados com a nova onda da música jovem: O rock and roll.

    Daí em diante - na cabeça de alguns compatriotas - todas as estórias passavam por um baile da Jovem Guarda.

    Em 1962, Raul Seixas inicia Os relâmpagos do Rock. Thildo Gama, Waldir Serrão, David Barouh e muitos outros foram protagonistas dos emblemáticos embalos sob o signo do iê-iê-iê. Chegaram a montar grupos com nomes do tipo Os 5 Loucos, The Black Cat, Os Kriptons, Os Selvagens e Bossa Brotos.

    Mas a história não para aqui.

    PRIMEIRO, O PASSADO

    Estudar, ir ao cinema e namorar. Estas eram as principais ocupações de jovens baianos de 1963. Pra variar, muitos deles corriam atrás dos concursos de twist e dublagem na TV. Nesse clima, enquanto os agitos não explodiam, adolescentes como David Barouh ensaiavam canções do repertório gringo. Começava ali, a ambientação para o futuro rock baiano.

    Barouh foi crooner no conjunto Os Selvagens e integrou muitos outros que faziam apresentações em colégios como o Manoel Devoto, Edgar Santos e em espaços como o Instituto Normal (atual ICEIA) e Ginásio Antônio Balbino.

    Os encontros das turminhas do iê-iê-iê eram frequentes na loja Duas Américas, situada na Rua Chile, ponto onde os grupos trocavam ideias antes de irem às festas do Cine Roma, Clube Mesbla ou Cine Paripe.

    Foram também importantes os conjuntos Quadrante 6, Os Sombras, Os Pássaros e Banda Hospício. Cada um dava o melhor de si em interpretações de sucessos que marcaram época como Lady Madonna e outros.

    Um pessoal que não girava bem da bola. Assim eram classificados os moleques da época. Corriam à Praça da Sé para namorar os últimos modelos de guitarras na loja A Primavera e conferir - na banca de revistas - as famosas figurinhas difundidas por Hugo Perrone, com reproduções dos astros do rock, com endereço certo na mente de seus colecionadores.

    Perrone hoje lidera o grupo Cadillac, revivendo glamourosos sucessos dos anos 1950 e 1960.

    Desde 1958, jovens de Feira de Santana já se reuniam em culto a Elvis e seus antecessores, dando à Bahia posição dianteira nos vestígios desse tal de rock and roll.

    Esta história, aliás, dá um livro...

    O ENCONTRO BIG BEN X RAUL SEIXAS

    Esse encontro foi fantástico. Eu me preparei todo, botei a gola pra cima, engomei o cabelo, botei o topete porque sabia que o Titó ia trazer o Waldir Serrão de tarde. Fiquei esperando ele, mascando chiclete para mostrar que eu era mais cool. Ele chegou da mesma forma. Foi aquele aperto de mão, assim de rock, sabe, meio de banda, aquela coisa de juventude transviada, James Dean, o maior barato (Raul seixas).

    Mont Serrat, aprazível bairro da Cidade Baixa, península banhada pelas águas cálidas de Todos os Santos, reduto de encontro de jovens.

    Com boa parte da infância repartida com Raul Seixas, Waldir Serrão foi o primeiro fedelho a adquirir intuitivamente discos de rock.

    O bairro da Boa Viagem serviu de locação para constantes encontros e depois, agitos a começar pelos bailes e festas no Cine Roma. Nesse ponto, evidenciou-se a participação do garoto Serrote, apelido atribuído por Raul Seixas (morador do Monte Serrat) a Big Ben, que residia na Boa Viagem. Depois que Dom Raulzito foi apresentado ao camarada, começava a troca de figurinhas e, consequentemente, a história do rock na boa terra.

    Os primeiros sinais lhe chegavam via rádio quando ouvia, em ondas curtas, programas da Rádio Mairynck Veiga - Como Hoje é Dia de Rock- versão dedicada ao ritmo dentro da série Hoje é Dia de... na qual todos os estilos tinham seu dia de exibição (samba, tango, bolero). Ouvia, então, o locutor ou speaker, Abelardo Barbosa - O Chacrinha - levando ao ar Cliff Richard, Paul Anka e Elvis.

    Diante destas audições, foi nascendo o interesse em mergulhar no mundo da radiodifusão. Big Ben começou a infiltrar-se em estúdios, peruando incessantemente até conseguir fazer bicos como DJ.

    Entre 1959 e 1960 começou a fazer participações na Rádio Cultura da Bahia AM. Colaborava levando alguns discos para serem programados na estação o que, em seguida, se transformaria no Só Para Brotos. Acabou assumindo a produção e apresentação, ocasião que tocava os primeiros discos de Presley.

    Sem maiores pretensões, senão congregar os poucos adeptos do Rei do Rock, funda o fã clube Elvis Rock Club, sediado no bairro da Calçada.

    O limiar da década de 1960 aparece no calendário da juventude de então como uma fase embrionária ou uma premonição daquilo que, mais tarde, se chamaria de anos incríveis do antigo rock and roll. Na verdade, os grupos dessa época eram inspirados em três segmentos da música jovem: os conjuntos de baile (que apoiavam as estrelas da Jovem Guarda), os grupos de covers dos Beatles e alguns conjuntos de rock. Muitos eram os representantes do som brilhantina sob a luz da Jovem Guarda: MJ - 6, Os Brasas, Os Gentlemen, Inema Trio e Brasa Bossa.

    Jovens de 16 e 17 anos ensaiavam sua versão iê-iê-iê entre 1962 e 1973, como foi o caso do contrabaixista João Torres, integrante do grupo Os Mustangs, de 1965, que fazia parte dos inúmeros concertos do Cinema Roma e do programa Poder Jovem na TV Itapoan. Esse programa era composto de artistas consagrados e destinava espaço a variedades do tipo concurso de calouros e divulgação das atividades culturais daquele tempo. Os Mustangs - que, por certo tempo, foi atração fixa do programa - formava com Fernando Barros (guitarra centro), Antônio Rabelo (guitarra solo) e Valdir (bateria). Eles interpretavam os sucessos de Elvis Presley ao lado de canções de Roberto Carlos, Beatles e demais artistas em voga.

    Hoje, João Torres é um bem sucedido empresário, tendo inaugurado, no verão de 1995, a casa noturna Sound and Sandwich, com atrações baseadas em grupos que exaltam o som das décadas de 1950 e 1960. O mais histórico dos grupos dessa fase foi o Jormans, liderado pelo então baterista Perinho Santana, guitarrista de renome no cenário internacional. Perinho era um dos melhores bateristas da Bahia nos anos 60, quando ensaiava no bairro do Barbalho, antes de se dedicar à guitarra.

    Já por volta de 1968/69, o Cine Roma enfrentava seus dias de vertical decadência, acabando assim com um palco-celeiro de artistas e eventos mais populares que encontraram ali momentos e plateias enlouquecidas, entre ritmos frenéticos e rebeldia ingênua.

    Com o declínio do cinema, alguns grupos se dissolveram ao tempo em que outros prosseguiram ocupando o Cine Teatro Nazaré, localizado no bairro do mesmo nome.

    Em geral, a Concha Acústica do Teatro Castro Alves se prestava à realização de festivais e encontros de grandes bandas dos mais diversos matizes. Grande parte desses espetáculos era promovida pela TV Itapoan, pioneira em programas de auditório.

    QUAIS FORAM OS CULPADOS?

    Se meu drops era Dulcora. Se o almanaque da minha família era o Capivarol. Se nossos refrigerantes eram Grapette, Mirinda e Laranja Turva. Se o meu cinema era o Aliança, meu som, Zilomag. Se a minha camisa era volta ao mundo. Meus ídolos, Bob Carlos e Taiguara, então quem foram os culpados?

    Questiona-se nostálgico, um cliente contumaz da loja O Adamastor, na Rua Chile.

    Mas a culpa da perpetuação do estilo musical e seus costumes no seio da juventude nativa recai sobre os programadores de rádio e produtores artísticos como Chacrinha, escritos de Roberto Mugiatti, José Emílio Rondeau, Ana Maria Bahiana, Ezequiel Neves e Maurício Kubrusly para apontar os mais implicados.

    Depois das gravadoras lançarem no mercado Roni Cord com Dear Someone, Paul Anka, Neil Sedaka e uma enormidade de versões de Rossini Pinto, as informações do universo musical chegavam às poucas mentes interessadas no iê, iê, iê via revistas e jornais.

    A revista Geração Pop, rica publicação especializada, deteve, por longos anos, a maior credibilidade. Projetos outros circularam mais tarde (destacadamente no Rio de Janeiro e em São Paulo) explorando o mundo do showbizz como Pipoca Moderna, A Canção de Nossos Dias, Jornal do Disco, Música, Somtrês entre outras

    Com vida curta, essas publicações nunca chagaram a atravessar décadas como os tabloides importados - New Musical Express, Rolling Stones ou Melody Maker - que desembarcavam aqui a duras penas nas mãos de quem podia viajar.

    Responsáveis pelas novidades da cena mundial, os redatores e articulistas aliados às gravadoras supriam o acanhado mercado fonográfico com Sly & Family Stone, Cream, The Platters, Kinks, Yes, Normam Greenbaun, The Fifth Avenue Band entre Pholhas, Mutantes e Suzi Quatro.

    Se as gravadoras lançam e as revistas comentam, então quem eram os vendedores desse ritmo maldito e mal escutado?

    Do sul do país, compravam-se as raridades em discos e fitas da loja TSR (True Sound of Reality) e de outras afins. Nas ruas da cidade, os obcecados recorriam a lojas como A Feira de Discos, A Modinha, Pop Discos e Sonny Discos e Tapes - a mais completa, com sede na Praça da Sé - que juntas com a Interdiscos comercializavam Raul Seixas, Kenny Rogers And The First Edition, The Beatles, além de Zé Rodrix ou Carl Douglas com o impacto Kung Fu Fighting.

    Mas nossa cidade continuava perdendo cinemas. Acabava o Cine Capri, o São Jorge havia desaparecido e ainda não existiam Camisa de Vênus nem Banda Reflexu’s. As lojas exibiam discos e revistas do filme Saturday Night Fever. Era a fase que a juventude frequentava as discotecas que pipocavam em cada canto.

    RAUL SEIXAS - O MAIOR DE TODOS

    A obra de Raul Seixas é única no mundo inteiro. A qualquer tempo, ele sempre estará atual. É o que nos faltava para compreendermos aquilo que não compreendíamos.

    Sylvio Passos, Raul Rock Club/SP

    Com dezenas de estudos honrosos acerca de sua obra e vida, o nome Raul Seixas não aparece aqui com o destaque à altura do seu legado, apenas aludimos uma abordagem limitada.

    Não é exaustivo afirmar que o papel do artista extrapola os limites físicos e palpáveis que lhe imputam. Não é muito dizer que o seu trabalho possui vários níveis de compreensão, mas a compressão de seus pensamentos pode ter sido utilizada por muitos para minimizar a profundidade da sua música, tornando-o multiinterpretável ou ignorado.

    Um pouco antes de sua morte, Raul Seixas comentava no programa Ensaio Geral, espaço memorável da Educadora FM, acerca do quase total desconhecimento da sua obra. Dizia Dom Raulzito:

    Antes achavam que eu era paulista e não baiano, justamente por nunca ter pertencido ao grupo baiano, e a música era muito voltada para o ser humano, inclusive, no disco A Pedra do Gênesis tem uma música que diz bem isso: A Lei. Ela promulga uma coisa que eu li no palco durante onze anos: a lei do homem. Todo homem tem o direito de pensar o que quiser, de amar como quiser...

    Raul sempre sincronizou sua obra aos descaminhos e inquietudes de toda a existência. Foi criatura e criador de questionamentos incessantes. Muito dessa obra assumiu a forma de música para embalar sonhos de várias gerações, transformar mentes e regar desejos de liberdade.

    Falar de Dom Raulzito é repetir o anseio de negação e recusa das amarras do homem

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