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Reportagem
Religiões em constante ameaça
Vistos com preconceito, candomblé e
umbanda são cada vez menos
representativos da religiosidade do
brasileiro. A contribuição das crenças afro-
brasileiras para a identidade nacional é, no
entanto, inegável.
Carolina Cantarino

Foto: Carolina Cantarino

As religiões afro-brasileiras, ao longo de sua trajetória histórica, ganharam reconhecimento tanto por seu papel na
preservação e reinvenção da herança africana como por sua contribuição para a cultura nacional. Na capoeira, na
religiosidade particular que se expressa em festas como as de São Cosme e Damião ou do Divino Espírito Santo, nas
manifestações musicais como o samba, o afoxé, o jongo ou o maracatu, nas esculturas de Mestre Didi ou nas pinturas
de Rubem Valentim, múltiplos são os diálogos dessas religiões com a diversidade cultural do Brasil.

Mas a luta histórica dessas religiões contra o preconceito continua. Cada vez mais ameaçadas por um cenário de
intolerância religiosa crescente, as concepções, os rituais e o panteão de religiões como o candomblé, ainda são um
patrimônio desconhecido para muitos brasileiros. Muitas vezes, é esse desconhecimento que dá margem ao preconceito
contra essas religiões e seus adeptos.

O sociólogo Reginaldo Prandi, em artigo publicado na revista Estudos Avançados, chama a atenção para o fato de que o
segmento das religiões afro-brasileiras (candomblé, umbanda e outras denominações) está em franco declínio em
comparação com outras religiões. Segundo o Censo de 2000, apenas 0,3% dos brasileiros declararam-se pertencentes
a uma das religiões afro-brasileiras, o que corresponde a pouco mais de 470 mil seguidores. Em 1980, os adeptos do
candomblé e da umbanda correspondiam a 0,6% da população brasileira, e em 1991, a 0,4%.

Intolerância religiosa

Dentre as razões que explicariam o declínio estaria a concorrência com as outras religiões, principalmente as
neopentescostais. O ataque ao candomblé e à umbanda seria constitutivo da própria identidade dessas igrejas.

Já há alguns anos, contudo, estaria havendo uma mobilização contra esses ataques. Um dos casos mais recentes de
intolerância religiosa envolve a Igreja Universal do Reino de Deus. Em julho desse ano, o Tribunal de Justiça do Estado
da Bahia condenou a igreja e a Editora Gráfica Universal a pagar, cada uma, uma indenização no valor de 480 mil reais
à ialorixá Jaciara Santos Ribeiro e aos membros de sua família, do terreiro Ilê Axé Abassá de Ogum, localizado no
bairro de Itapuã, em Salvador. Além da indenização, a gráfica da Igreja Universal deverá publicar a sentença, em duas
edições consecutivas, na capa do seu jornal cuja tiragem alcança quase um milhão e meio de exemplares.

A igreja e a gráfica foram processadas por danos morais e uso indevido da imagem de Mãe Gilda no Jornal Universal
que, numa edição de 1999, publicou uma foto da ialorixá (retirada de um exemplar da revista Veja de sete anos atrás)
com uma tarja preta sobre os seus olhos e a seguinte frase: “macumbeiros e charlatães lesam bolso e vida do cliente”.
Depois da publicação da foto, o terreiro se tornou alvo da violência de alguns evangélicos que chegaram a invadi-lo
numa tentativa de “exorcizar” Mãe Gilda, que faleceu em janeiro de 2000, um dia depois de assinar uma procuração
para iniciar a ação contra a Igreja Universal. Sua filha, Jaciara, deu prosseguimento ao processo.

A igreja recorreu da decisão judicial e o caso deverá ser tratado, agora, no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília.

Mercado religioso

Além da intolerância religiosa, características constitutivas da própria organização das religiões afro-brasileiras
desfavoreceriam sua concorrência no “mercado religioso”: o candomblé e a umbanda se organizam a partir de
pequenas comunidades, com cerca de 50 membros, que se congregam em torno de uma mãe ou pai-de-santo, acima
dos quais não há nenhuma autoridade. A autonomia de cada terreiro ou casa de culto tende a dificultar o
estabelecimento de estratégias comuns entre eles para lidar com as outras religiões. Em contraposição a esse perfil
comunitário e familiar da umbanda e do candomblé, igrejas neopentecostais - ou mesmo a ala da Igreja Católica
conhecida como Renovação Carismática - apresentam-se como religiões de massas, que reúnem milhares de adeptos.

“Fragmentada em pequenos grupos, fragilizada pela ausência de algum tipo de organização ampla, tendo que carregar
o peso do preconceito racial que se transfere do negro para a cultura negra, a religião dos orixás tem poucas chances
de se sair melhor na competição – desigual – com outras religiões. Silenciosamente, assistimos hoje a um verdadeiro
massacre das religiões afro-brasileiras”, alerta Reginaldo Prandi.
À perseguição e ao preconceito contra os cultos afro-brasileiros somam-se os problemas cotidianos do povo-de-santo
que, como a maioria dos brasileiros, precisam enfrentar a pobreza e outras dificuldades resultantes das desigualdades
sociais. “Na Bahia, a qualidade de vida das pessoas negras e pobres é muito ruim. Muitos estão morrendo de fome ou
padecendo de epidemias que já deviam estar superadas como a tuberculose. Há um genocídio contínuo de jovens
negros entre 14 e 22 anos, que são freqüentemente assassinados por grupos de extermínio. Não se pode separar a
preocupação com a memória e o patrimônio da preocupação com a qualidade de vida das pessoas”, afirma Ordep
Serra, antropólogo da Universidade Federal da Bahia.

Nesse contexto é que a transversalidade nas políticas culturais se mostra importante. No caso dos terreiros de
candomblé (veja a reportagem Quando os deuses se materializam nesta edição) e das comunidades remanescentes de
quilombos, por exemplo, a continuidade e a preservação de sua cultura são inseparáveis do seu território. Por isso, a
propriedade da terra é imprescindível para essas comunidades. (veja a reportagem Território negro nesta edição).

Reportagem
Quando os deuses se materializam
Já são seis os terreiros de candomblé tombados pelo Iphan em 21 anos. Neles, a arquitetura e o material guardam uma
profunda relação com as práticas e os rituais. Cada terreiro representa um pouco da história da cultura afro-
descendente brasileira
Carolina Cantarino
Foto: Carolina Cantarino

31 de maio de 1984. Salvador. Reunião do Conselho Consultivo da então Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (Sphan, que daria origem ao Iphan). O pedido de tombamento do terreiro da Casa Branca é apresentado pelo
antropólogo Gilberto Velho, conselheiro há apenas um ano. A discussão é tensa, o tombamento de um terreiro de
candomblé é um assunto novo dentro do Conselho. E polêmico. Três conselheiros votam a favor do tombamento, um
vota contra, dois se abstêm e um pede o adiamento da votação. Cabe ao então secretário de cultura do Ministério da
Educação - já que o Ministério da Cultura ainda nem havia sido criado - Marcos Vinícios Vilaça, o voto de minerva. O
tombamento é aprovado.

19 de abril de 2005. Salvador. O ministro da Cultura, Gilberto Gil, homologa a decisão do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan) de tombar o terreiro do Alaketu, no bairro de Matatu, em Salvador. O
tombamento já havia sido aprovado pelo Conselho do Iphan por unanimidade. Presente na solenidade, a ialorixá Olga
de Alaketu entoa um cântico em iorubá. Agora a Bahia possui cinco terreiros de candomblé tombados e reconhecidos
como patrimônio histórico nacional: Casa Branca, Ilê Axé Opô Afonjá, Gantois, Bate-Folha e o Alaketu.

Os 21 anos que separam o tombamento do terreiro da Casa Branca do terreiro do Alaketu revelam mudanças
importantes no que diz respeito à política de preservação no Brasil. Dentre elas, talvez a principal seja a ampliação da
noção de patrimônio cultural, a partir da qual os monumentos e manifestações culturais afro-descendentes passaram a
ganhar reconhecimento enquanto referências culturais importantes para todos os brasileiros.

“Mãe Olga acredita que o Alaketu durará para sempre. A idéia de eternidade está muito presente nesse tombamento”,
lembra a cientista social Teresinha Bernardo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Ela fala sobre a
mãe-de-santo de 79 anos que, durante a solenidade de tombamento, também anunciou o nome de sua sucessora na
chefia do terreiro. O tombamento, para a Mãe Olga, não significou apenas a possibilidade reformar sua casa e lhe
conferir uma proteção legal mas também a chance de garantir, assim, a preservação da memória e da identidade afro-
descendente inscrita no chão do terreiro.

O polêmico tombamento da Casa Branca

O tombamento do primeiro terreiro, em 1984, foi um momento especial. De maneira geral, o período de 1970 a 1980 é
importante na trajetória das políticas de preservação do Brasil porque marca a retomada do antigo projeto de Mário de
Andrade de valorização das culturas populares. Embora já estivesse em curso uma ampliação do conceito de patrimônio
– até então ainda muito restrito aos monumentos e edificações de pedra e cal, ligados principalmente ao passado
colonial -, alternativas jurídicas ao instrumento do tombamento ainda não eram discutidas.

Segundo Ordep Serra, antropólogo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), tudo começou com o chamado Projeto
Mamnba (Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia) coordenado por ele e seu irmão, o
antropólogo Olympio Serra. A partir de um convênio entre a antiga Fundação Nacional Pró-Memória e a Prefeitura
Municipal de Salvador, o levantamento foi realizado entre os anos de 1982 e 1987, contabilizando-se, ao final, cerca de
duas mil sedes de cultos afro-brasileiros somente na cidade de Salvador.

Esse trabalho fez com que a equipe do Mamnba conhecesse a gravidade da situação do terreiro da Casa Branca. Mesmo
estando instalado há mais de 100 anos na mesma região, a posse legal do terreno até 1984, ano do seu tombamento,
era de um grande proprietário de terras soteropolitano. Oriundo do primeiro terreiro brasileiro, localizado no antigo
bairro da Barroquinha, no Centro Histórico de Salvador, ele foi deslocado para a região da atual avenida Vasco da Gama
em meados do século XIX, devido às perseguições policiais que sofria na época. Foi então que o Ilê Axé Iyá Nassô Oká
se tornou conhecido como Casa Branca.

Com a valorização imobiliária da região de Vasco da Gama, na década de 1980, lotes ao redor da principal construção
do terreiro começaram a ser vendidos, diminuindo drasticamente a área verde. O proprietário do terreno queria, a
qualquer custo, compelir a comunidade da Casa Branca a abandonar a área, chegando a permitir a construção de um
posto de gasolina bem em frente ao terreiro, na hoje chamada Praça de Oxum, onde se localiza um santuário em
homenagem à deusa da beleza e da águas doces, composto por uma embarcação e uma imagem. Depois do
tombamento e de uma grande mobilização popular a área do posto de gasolina foi, finalmente, desapropriada, e o
entorno do terreiro retomado e preservado.

“Tendo em vista a gravidade da situação a utilização do instituto do usucapião foi cogitada mas, como o arrendamento
havia sido pago recentemente pela comunidade do terreiro havia, portanto, o reconhecimento da propriedade. A
solução que se mostrou mais plausível, na época, foi o tombamento do terreiro”, lembra Ordep Serra. Mas o
antropólogo lembra que não se tratava apenas de resolver o problema da especulação imobiliária que ameaçava a
continuidade do terreiro. Além dessa questão mais pragmática havia também uma intenção conceitual envolvendo o
tombamento da Casa Branca: o reconhecimento de um patrimônio cultural do povo negro.

Os técnicos da Sphan acreditavam que o terreiro não cumpria as exigências para o tombamento, já que os rituais ali
praticados poderiam determinar alterações no espaço físico do local, principalmente na área verde. Se alterações
fossem permitidas, seria aberto um precedente para outras situações tais como as modificações de fachadas de prédios
e casarões.

Ordep Serra avalia que não se tratava apenas de uma questão técnica mas também política. Na avaliação que o
antropólogo faz sobre a posição dos técnicos da Sphan, com os quais esteve em várias reuniões, a proposta para o
terreiro da Casa Branca seria, na visão deles, uma espécie de aviltamento ou degradação do instrumento do
tombamento. “Um dos argumentos da resistência era o de que todos os pais e mães-de-santo de Salvador iriam
requerer o tombamento dos seus terreiros. Mas nós não estávamos tratando de qualquer terreiro, mas do mais antigo
do Brasil, matriz de centenas de casas de culto do país e sobre o qual havíamos elaborado um dossiê com longo
levantamento histórico, antropológico e arquitetônico” lembra Serra. Essa resistência ao tombamento acabou sendo
vencida a duras penas: “o tombamento desse terreiro foi revolucionário em vários sentidos. Pela primeira vez houve
uma ruptura da barreira eurocêntrica e elitista de só se considerar patrimônio monumentos dotados de uma estética e
um tipo de arquitetura particular. Pela primeira vez um bem importante para a história e memória do povo negro foi
reconhecido pelo Estado”, afirma o antropólogo.

A arquitetura dos terreiros

Além de um inventário sobre as origens e os antecedentes históricos, o levantamento arquitetônico é um requisito


técnico importante para o tombamento. Foi a arquitetura própria dos terreiros um dos elementos que mais alimentou a
polêmica em torno do tombamento da Casa Branca.

O terreiro de candomblé é formado por áreas de uso religioso e habitacional, seguindo o modelo das residências das
antigas famílias iorubás, chamadas de compounds. A estrutura, de modo geral, é formada por uma casa principal na
qual reside a mãe ou o pai-de-santo. Nela, também se localiza o barracão ou templo principal e alguns santuários
individuais; uma área externa contendo os assentamentos de alguns orixás e casas menores, moradia de outros
integrantes do culto; e uma área verde (chamada de roça) com muitas plantas, árvores, fontes ou nascentes e muita
terra batida...

Todos os elementos naturais presentes no entorno do terreiro tendem a ser considerados sagrados, com importantes
funções rituais. O obi (Cola acuminata), por exemplo, é uma árvore de origem africana cujas sementes são utilizadas
nos rituais de iniciação – os boris – nas consultas ao oráculo – o jogo de búzios - e também para fins medicinais.

A localização das casas, do barracão, a mata, enfim, toda a disposição arquitetônica do terreiro está intimamente
relacionada aos rituais que são ali praticados. Existe, portanto, uma estreita relação entre a materialidade do terreiro e
os investimentos simbólicos que lhes dão significados. Essa imbricação entre o valor da arquitetura e o sentido religioso
que ela apresenta faz com que os terreiros de candomblé expressem, de forma radical, a impossibilidade de se separar
os aspectos materiais daqueles imateriais que caracterizam todo e qualquer patrimônio.

Existem também outras contribuições que o terreiro como patrimônio presente na paisagem da cidade, pode oferecer.
O Manso Banduquenqué, conhecido como terreiro do Bate Folha, é um dos exemplos de resistência à degradação
ambiental das cidades e de preservação do uso ritual e medicinal da flora. Esse uso caracteriza, em especial, os
candomblés de tradição banto, nos quais as divindades cultuadas são os inquices.

“Se o modelo de implantação urbana que estava na cabeça dos negros tivesse prevalecido a cidade de Salvador seria
muito mais bonita, com mais qualidade de vida. Esse modelo prevê a conservação de espaço verde e pontos de reunião
para a sociabilidade das pessoas. Hoje se fala muito em meio ambiente e defesa do patrimônio ecológico. Essa
preocupação política é recente nas camadas dominantes. Quem primeiro teve esse cuidado foi o povo dos terreiros. Só
isso já seria importante para se fazer reconhecer o mérito desse pessoal”, lembra Ordep Serra ao falar sobre uma das
conseqüências da sacralização da natureza promovida pelo candomblé.

Preservação e desaparecimento

Quando apresentou o seu parecer favorável ao tombamento da Casa Branca, em 1984, o antropólogo Gilberto Velho
alertou para o fato de que os terreiros, enquanto territórios de uma manifestação religiosa, possuem um dinamismo
próprio, que prevê inclusive mudanças que não podem ser impedidas pelo Estado por conta do tombamento: “a
proteção do Estado deve ser uma garantia para a continuidade da expressão cultural que tem em Casa Branca um
espaço sagrado. Esta sacralidade, no entanto, não é sinônimo de imutabilidade pois serão as interpretações do próprio
grupo que devem nortear o apoio do Estado”, afirmou Gilberto Velho.

O antropólogo fez, assim, um alerta: seria necessário evitar os possíveis efeitos paralisantes e cristalizadores que o
tombamento poderia provocar sobre patrimônios culturais como os terreiros de candomblé. Sua advertência se baseou
no fato de que a mudança faz parte da própria dinâmica cultural e, sendo assim, a continuidade e a preservação de
manifestações culturais em terreiros e casas de culto afro-brasileiras dependeriam da sua contínua reinvenção e
transformação. Aqueles espaços que resistem às mudanças são os mais ameaçados de desaparecer.

Esse é o caso da Casa das Minas, de São Luís do Maranhão. Ela é a única casa de culto afro-brasileiro fora da cidade de
Salvador que está inscrita no Livro do Tombo Histórico e no Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Tombada em
2002, a Querebentam de Zomadônu - conhecida como Casa das Minas - também é singular por ser proveniente dos
povos fons, também chamados jejes, originários do antigo Reino do Daomé (atual Benin). Sua história despertou a
atenção de Pierre Verger (http://www.pierreverger.org/br/index.htm), fotógrafo e etnógrafo francês que, juntamente
com Roger Bastide, Edison Carneiro e Vivaldo da Costa Lima são importantes referências nos estudos sobre religiões
afro-brasileiras. Os registros realizados por esses intelectuais, aliás, têm sido muitas vezes utilizados como fonte de
informações sobre a religião pelos próprios adeptos.

Diferente dos principais e mais antigos terreiros baianos, a partir dos quais milhares de outros terreiros foram fundados
pelo país afora e criando-se uma rede entre casas que descendem umas das outras, a Casa das Minas do Maranhão não
possui nenhuma filial, embora tenha influenciado o modelo do tambor de mina – uma religião equivalente ao
candomblé no estado do Maranhão e no Amazonas. Em nome da tradição, as chamadas vodunsi – as mulheres que são
as autoridades máximas da casa – mantêm uma série de regras e costumes tais como impedir o ingresso na casa de
mulheres que tenham freqüentado outros terreiros, o que é considerado inaceitável.

As vodunsi também vêm resistindo ao registro de algumas práticas rituais, como o de seus cânticos jeje. A justificativa
dada por elas é a que se tratam de segredos rituais que poderiam ser copiados por outras casas de culto. Os cânticos
são feitos em jeje, que era falado no Daomé antigo, uma língua arcaica que atualmente nem é mais corrente na sua
própria região de origem, o Benin. As vodunsi mantêm a tradição da transmissão oral dos seus conhecimentos, prática
que há muito tempo foi revista no interior do candomblé.

“Para o atual adepto, a memória africana, de alguma forma preservada, continua sendo a fonte importante de muitos
segredos guardados; porém, quanto mais os mecanismos de aprendizagem oral e de transmissão da memória coletiva
se perdem e deixam de ter sentido, mais importante se torna para o candomblé a palavra escrita. Desenrola-se, assim,
uma trajetória que faz parte do processo de transformação do candomblé de religião étnica de transmissão oral em
religião universal”. Essa é a avaliação de Reginaldo Prandi, sociólogo da Universidade de São Paulo que, em seu livro
mais recente, intitulado Segredos Guardados – Orixás na Alma Brasileira (Companhia das Letras, 2005), analisa as
mudanças de concepção, de práticas e valores do candomblé ao longo dos anos para mostrar que a constante
reinvenção da herança africana por ele promovida seria a principal responsável pela sua continuidade e preservação.

Contraposta a essa universalização do candomblé como religião, a Casa das Minas ainda se mantém como uma casa de
culto baseada em laços de parentesco entre seus membros, o que tende a comprometer a sua continuidade tendo-se
em vista o desinteresse crescente das gerações mais novas pela religião. “A Casa das Minas conserva algumas
características de grupo étnico. E talvez por isso mesmo esteja fadada ao desaparecimento”, lamenta Sérgio Figueiredo
Ferretti, antropólogo da Universidade Federal do Maranhão que há mais de vinte anos pesquisa essa casa de culto.
Segundo ele, “preservar a música, os cânticos em jeje arcaico seria muito interessante, mas as vodunsi não permitem
que se faça uma gravação. O grupo também está bastante reduzido e muitas festas têm sido canceladas. Há várias
histórias do passado de avós, com seus filhos e netos que dançaram ou tocaram juntos na casa. Mas esse envolvimento
da família como um todo, de gerações diferentes, é cada vez mais raro por conta do desinteresse dos mais jovens”,
afirma Ferretti.

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Veja também trecho de parecer de tombamento de terreiro.


Artigo
Políticas de afirmação do negro no Brasil

Carlos Vogt

De um modo geral, os estudos e as atitudes intelectuais e políticas voltados positivamente à questão do negro no Brasil
só se desenvolvem, efetivamente, no século XX, embora tenha havido, no século XIX, toda uma literatura abolicionista,
de Castro Alves a Joaquim Nabuco que, no entanto, tratou o negro como um problema homogeneizado pela escravidão,
enquanto mácula.

É verdade que Nina Rodrigues, apontado como pioneiro dos estudos africanos no Brasil, vinha trabalhando sobre o
tema desde o final do século XIX e que já em 1900 havia publicado no Jornal do Comércio o que viria a ser depois
capítulo do livro póstumo Os africanos no Brasil, de 1933. Dois outros capítulos desse livro foram também publicados
antes da morte do autor em Paris, em 1906: "As sublevações de negros no Brasil anteriores ao século XIX. Palmares",
no Diário da Bahia e "Sobrevivências totêmicas: festas populares e folclore", novamente no Jornal do Comércio.

A advertência que Silvio Romero fizera no mesmo ano da Abolição da Escravatura, em 1888, sobre a urgência de se
voltarem os estudos no Brasil para a questão do negro aparece como epígrafe no livro de Nina Rodrigues:

[...] temos a África em nossas cozinhas, como a América em nossas selvas, e a Europa em nossos salões [...]
Apressem-se os especialistas, visto que os pobres moçambiques, benguelas, monjolos, congos, cabindas, caçangas...
vão morrendo..."

A adoção da advertência de Silvio Romero por Nina Rodrigues, como epígrafe, resume bem as contradições de atitudes
em relação ao negro que marcaram a obra do médico e intelectual maranhense na Bahia: Defensor dos valores
culturais dos africanos no Brasil e dos seus direitos à liberdade de suas práticas religiosas, mesmo contra as
autoridades policiais que as perseguiam, Nina Rodrigues irmanava-se também com Silvio Romero na visão "científica"
da inferioridade racial do negro:

"O critério científico da inferioridade da Raça Negra nada tem de comum com a revoltante exploração que dele fizeram
os interesses escravistas dos norte-americanos. Para a ciência não é esta inferioridade mais do que um fenômeno de
ordem perfeitamente natural, produto da marcha desigual do desenvolvimento filogenético da humanidade nas suas
diversas divisões ou secções (...) A Raça Negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços
à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por
maiores que se revelem os generosos exageros dos seus turiferários, há de constituir sempre um dos fatores de nossa
inferioridade como povo (...)."

II

Em 1941, M. Herskovits, autor, na mesma década e na seguinte, de vários trabalhos sobre a cultura afro-brasileira,
publica o livro The myth of the negro past. Nele, logo no início declara a intenção de, realizando pesquisas sobre a
cultura de origem africana no EUA, contribuir para "melhorar a situação inter-racial" nesse país.

Constrói, assim, livro para ajudar a compreender a história do negro, história até então ignorada, por zelo e por
descuido, contrapondo-se a cinco "mitos" então vigentes. Primeiro, que os negros, como crianças, reagem
pacificamente a "situações sociais não satisfatórias"; segundo, que apenas os africanos mais fracos foram capturados,
tendo os mais inteligentes fugido com êxito; terceiro, como os escravos provinham de todas as regiões da África,
falavam diversas línguas, vinham de culturas bastante variadas e tendo sido dispersos por todo o país, não
conseguiram estabelecer um "denominador cultural" comum; quarto, que, embora negros da mesma origem tribal
conseguissem, às vezes, manter-se juntos nos EUA, não conseguiam manter a sua cultura porque esta era
patentemente inferior à dos seus senhores; quinto, que "o negro é assim um homem sem um passado".

Ao escrever o prefácio da 2ª edição de seu livro, em 1958, Herskovits reconheceria que muitas coisas haviam mudado,
desde a primeira edição, em 1941 e que o número de negros que rejeitavam seu passado estava diminuindo
paulatinamente, o mesmo acontecendo com as atitudes dos brancos em relação aos pontos de vista anteriores, para,
então, arrematar:

"E o negro americano, ao descobrir que tem um passado, adquire uma segurança maior de que terá um futuro."

A oposição entre o otimismo culturalista de Herskovits e o pessimismo cientifista de Nina Rodrigues explica-se, entre
outras coisas, pela própria mudança dos paradigmas teóricos no tratamento dos africanismos na América e pelo
descrédito científico em que acabara caindo a frenologia lombrosiana e que tanto marcava a postura intelectual de Nina
Rodrigues e de tantos outros no Brasil, inclusive Euclides da Cunha em Os sertões.

Mas, como se viu, o racismo cientificista de Nina Rodrigues não era a única vertente analítica de seus estudos sobre o
tema. A simpatia pela cultura dos povos africanos para cá trazidos como escravos, os processos de suas adequações,
transformações e influências pela interação com os outros elementos constitutivos dessa nova realidade - o branco
europeu e o indígena americano, em particular, como lembrava, veemente e dramático, Silvio Romero - , essa
simpatia, pois, resultando em atitudes intelectuais positivas em relação ao negro, foi o que sobreviveu ao modismo
positivista do médico Nina Rodrigues, fazendo do etnólogo, que nele também convivia, a influência mais importante
para o desenvolvimento dos estudos do negro no Brasil no início do século XX.

Nessa linha, muitos foram os seus seguidores ou, ao menos, seus admiradores nas décadas seguintes, caso, em
particular, de Artur Ramos e de Edison Carneiro, mesmo quando se contrapunham em diferenças teóricas e
metodológicas, ou quando se alinhavam nas disputas regionais, Gilberto Freyre puxando, é claro, para Pernambuco,
pela primazia do autêntico das manifestações culturais africanas no Brasil.

E o que acontece, por exemplo, na avaliação que Edison Carneiro faz no artigo "O Congresso Afro-Brasileiro da Bahia",
descrito em 1940, no qual ao tecer elogios a esse encontro realizado em 1937, o contrapõe, ao mesmo tempo, ao
Congresso do Recife, de 1934, pelo critério da maior ou menor pureza das apresentações dos ritos e cerimônias
apresentados, num e noutro caso, aos congressistas:

"Esta ligação imediata como o povo negro, que foi a glória maior do Congresso da Bahia, deu ao certame um colorido
único", como já previra Gilberto Freyre. Artur Ramos, em carta que me escreveu sobre a entrevista ao Diário de
Pernambuco, dizia:

"O material daí que [Gilberto Freyre] julga apenas pitoresco constituirá justamente a parte de maior interesse científico.
O Congresso do Recife, levando os babalorixás, com sua música, para o palco do Santa Isabel, pôs em xeque a pureza
dos ritos africanos. O Congresso da Bahia não caiu nesse erro. Todas as ocasiões em que os congressistas tomaram
contato com as coisas do negro foi no seu próprio meio de origem, nos candomblés, nas rodas de samba e de
capoeira."

III

Edison Carneiro, no artigo "Nina Rodrigues", escrito em 1956 reconhece, apesar das críticas, os méritos do autor de
Africanos no Brasil, em especial, o de ter proposto um método comparativo para o estudo dos comportamentos do
negro no Brasil e na África. Edison Carneiro e Artur Ramos são herdeiros desse método, o que é explicitamente
reconhecido pelo primeiro quando escreve no mesmo artigo acima citado:

"Línguas, religiões e folclore eram elementos dessa comparação a que a história dava a perspectiva final. Deste modo
ganhou o negro a sua verdadeira importância em face da sociedade brasileira."

Compare-se, agora, o que vai dito nesse último período da citação de Edison Carneiro com a observação de Herskovits,
transcrita mais atrás ("E o negro americano, ao descobrir que tem um passado, adquire uma segurança maior de que
terá um futuro."), e ter-se-á uma medida objetiva de quanto os propósitos político-intelectuais desses autores eram
coincidentes, levando-se em conta, é claro, as diferenças entre a sociedade americana e a sociedade brasileira.

Mas, num caso e noutro, tratava-se de reencontrar a história do negro pela via da valorização de sua cultura, na África
e no país de destino, comparando-a nas duas situações, fazendo-o, dessa vez chegar aos EUA ou no Brasil, onde quer
que fosse, pela porta da dignidade e da distinção que o passaporte dos ritos, das línguas, da complexidade cultural de
suas origens lhe conferia.
É a fase heróica dos estudos do negro no Brasil. Por volta de 1950 encerra-se, segundo Edison Carneiro essa fase e tem
início a chamada fase sociológica desses estudos, conforme se pode ler no seu artigo programático "Os estudos
brasileiros do negro", de 1953:

"Se o negro com sua presença alterou certos traços do branco e do indígena, sabemos que estes, por sua vez,
transformaram toda a vida material e espiritual do negro, que hoje representa apenas 11% da população (1950), utiliza
a língua portuguesa e na prática esquecem as suas antigas vinculações tribais para interessar-se pelos problemas
nacionais como um brasileiro de quatro costados. Tudo isso significa que devemos analisar o particular sem perder de
vista o geral, sem prescindir do geral, tendo sempre presente a velha constatação científica de que a modificação na
parte implica em modificação no todo, como qualquer modificação no todo importa em modificações em suas partes."

Estava encerrada a fase afro-brasileira dos estudos do negro no Brasil e firmava-se, particularmente, com os trabalhos
de Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, na chamada Escola Sociológica de São Paulo, uma
nova tendência desses estudos agora voltados para a análise da estrutura de classes no país e, nela, para a história
particular do negro, primeiro como escravo, depois como trabalhador livre marcado pelo estigma do preconceito de cor.

Como escrevemos no livro Cafundó - A África no Brasil, que publicamos em co-autoria com Peter Fry e com a
colaboração de Robert Slenes, ao romantismo da fase teórica substitui-se um realismo de inspiração sociológica, de
fundo social e de aspiração socialista.

Resumindo, o movimento desses estudos poderia ser caracterizado, em um primeiro passo, por sua ênfase cientificista
ou médico-legalista, embora já com as sementes do culturalismo que dominaria o panorama da segunda fase, havendo
em um terceiro momento, a predominância de uma visão sociológica da questão, como acabamos de dizer.

IV

Essas três fases dos estudos do negro no Brasil contribuem também, de certa forma, para a compreensão das
diferentes fases por que passou o movimento negro no século XX, do ponto de vista de suas lutas, de suas
reivindicações, de suas bandeiras e das explicações científicas, culturais e sociológicas que fundamentam as ênfases de
suas ações políticas.

Assim, nos anos 1920, as próprias organizações negras refletiam a visão de que o principal problema da população
negra no Brasil estava nela mesma, dadas as condições precárias de sua educação formal, a fraqueza das organizações
em si mesmas e a conseqüente falta de habilidade para concorrer às disputas no mercado de trabalho, tudo isso
acrescido, é claro, do "preconceito de cor" que dificultava e obstruía a integração social e discriminava o negro, pela
cor, na sociedade.

A democracia racial, como ideal político e social programático, concomitante à redemocratização do país em 1945,
coincidente também com o fim da Segunda Guerra Mundial e com a vitória dos países aliados sobre o nazi-fascismo,
propicia o desenvolvimento de ações no campo educacional, cultural e mesmo psicanalítico, como é o caso do Teatro
Experimental do Negro, no Rio de Janeiro, que, através de diferentes organizações, visam à reforçar, quando não
despertar, o sentimento de orgulho e de distinção por ser negro, desse modo, contribuir para capacitá-lo a enfrentar o
seu pior inimigo na sociedade, o preconceito racial, agente também perturbador do progresso integrado do país na
comunhão das raças, dos credos, das diferenças.

Vê-se por aí o quanto esse movimento reflete características próprias da segunda fase dos estudos do negro no país, e
o quanto os seus objetivos lembram os propósitos enunciados por Herskovits, no EUA e por Artur Ramos ou Edison
Carneiro, entre nós.

A transformação da democracia social de ideário político em mito e em ideologia e, portanto, em expediente de


ilusionismo social vai se dar, de maneira consistente, a partir dos anos 1970 e, talvez, um dos fatos mais importantes
dessa nova tendência e postura seja a fundação em 1978, em São Paulo, do Movimento Negro Unificado.

Não será difícil identificar nesse momento aspectos coincidentes com os que se encontram na linha sociológica dos
estudos do negro e caracterizam, de um modo geral, a terceira fase desses trabalhos, porquanto a grande responsável
pela situação de exclusão do negro está na verdade, na estrutura de dominação da sociedade pelo establishement
branco, consolidado no governo e difundido na sociedade civil. Passa-se, pois, da democracia racial, integradora e
geradora de plenos direitos para a denúncia de uma dominação real assentada sobre a base de um racismo difuso e
poderoso.

O que se segue, até hoje, na história dos estudos e dos movimentos negros no Brasil, tem, grosso modo, a ver com as
características acima apontadas para as diferentes fases de sua evolução e transformação nos campos teórico e prático
das ações que lhes são próprias.

Em 1988, no ano do centenário da Abolição da Escravatura, foi promulgada a nova Constituição da República
Federativa do Brasil. Nela, em decorrência da lutas pelos direitos civis dos negros, ficou consagrado, no Título II - Dos
direitos e garantias fundamentais -, Capítulo I - Dos direitos e deveres individuais e coletivos -, Artigo 5º - Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

Artigo XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos
da lei.

A regulamentação desse parágrafo veio em seguida pela Lei nº 7716, de 5 de janeiro de 1989, modificada pela Lei
008882 de 3 de junho de 1994 e novamente modificada em 13 de maio de 1997, pela Lei nº 9459, que acrescentou
também ao Artigo 140 do Código Penal relativo ao crime de injúria por utilização de "elementos referentes a raça, cor,
etnia, religião ou origem", estabelecendo pena de "reclusão de um a três anos e multa".

O passo seguinte seria o das ações afirmativas, cujo modelo podia ser buscado nos EUA dos anos 1960, e, mais
recentemente, no governo de Nelson Mandela, na África do Sul.

Aqui, sim, numa quarta fase, opera-se uma mudança importante no paradigma clássico dos estudos e dos movimentos
negros no Brasil, embora ela própria seja decorrente também das grandes transformações que na economia, na
política, e na cultura o mundo contemporâneo passa a conhecer, sobretudo a partir de 1989, com a queda do muro de
Berlim e a consolidação do fenômeno da globalização em todos os setores da vida social. Deixa-se de lado o ideal do
Brasil mestiço para proceder às ações pelo reconhecimento étnico-racial dos negros.

Leia-se, nesse sentido, o que escreve Antonio Sérgio Alfredo Guimarães no artigo "Acesso de negros às universidades
públicas", de 2002:

"Nos primeiros tempos, de 1995 até bem recentemente, a reação da sociedade civil, representada pelos seus
intelectuais e meios de comunicação de massa, foi largamente contrária à adoção de políticas de cunho racialista. O
movimento negro, assim como os poucos intelectuais brancos que defendiam tais políticas, viram-se politicamente
isolados, por mais de uma vez sob a acusação de vocalizar e deixar-se colonizar culturalmente pelos valores norte-
americanos. De fato, nada mais contrário à identidade nacional brasileira, tal como foi formada historicamente - como
identidade autocolonial, culturalmente híbrida e racialmente mestiça -, que o reconhecimento étnico-racial dos negros.
Assim, os que por ventura tinham sólidos interesses na manutenção das desigualdades encontraram aliados cujos
motivos eram puramente ideológicos, pessoas que viam nas políticas dirigidas preferencialmente aos negros a
penetração no Brasil do 'multiculturalismo' e do 'multirracionalismo' de extração anglo-saxônica".

VI

Do ponto de vista das ações afirmativas, o país caminhou bastante nesses últimos anos no que diz respeito aos
cenários mais positivos para a mobilidade social, o desenvolvimento pessoal, a formação profissional e as chances de
concorrência e competição do homem e da mulher negra no mercado de trabalho.

Mas há ainda, muito o que avançar e muitas resistências a serem quebradas entre os intelectuais e a sociedade civil se
se considerar, por exemplo, os dados de 2001 da pesquisa direta do programa "A cor da Bahia/UFBA" e do I Censo
Étnico Racial da USP e IBGE, também apresentados no artigo acima referido.

Segundo esses dados, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) o número de alunos brancos é de 76,8%, o de
negros 20,3% para uma população negra no estado de 44, 63%; na Universidade Federal do Paraná (UFPR) os brancos
são 86,6%, os negros, 8,6%, para uma população negra no estado de 20,27%; na Universidade Federal do Maranhão
(UFMA), brancos são 47%, negros 42,8% e a população negra no estado, 73,36%; na Universidade Federal da Bahia
(UFBA), 50,8% são brancos, 42,6% negros e 74,95% a população negra do estado; na Universidade de Brasília (UnB),
são brancos 63,74%, são negros 32,3%, tendo o Distrito Federal uma população negra de 47,98%; na Universidade de
São Paulo (USP), os alunos brancos somam 78,2%, os negros, 8,3% e o percentual da população negra no estado é de
27,4%.

Vê-se, assim, que o déficit produzido por essas diferenças é bastante desfavorável ao negro nos estados onde se
encontram essas universidades: 24,33% na UFRJ, 11,67% na UFPR, 30,56% na UFMA, 32,35% na UFBA, 15,68% na
UnB e 19,1% na USP.

Como disse, há, contudo, avanços, sobretudo por parte do governo quanto à adoção de ações afirmativas relativamente
à população negra do país, entre elas o abandono oficial da doutrina da "democracia racial" desde a Conferência
Mundial Contra a Discriminação Racial, realizada em Durban, na África do Sul, acompanhada de instituição de cotas de
emprego em vários ministérios e serviços, além da criação de programas voltados para os direitos humanos, para a
formação profissional e para o reconhecimento do direito à titulação de propriedade de terras remanescentes de
quilombos, entre outros.

VII

Machado de Assis, em seus romances e em suas crônicas traz várias situações em que se representam as relações
sociais entre brancos senhores e negros escravos, ou libertos, que dão fina medida da qualidade e do peso dos
problemas que essa sociedade escravocrata legaria para as gerações futuras do Brasil. O Brasil de consciência infeliz,
melodramaticamente, penalizado, mas incapaz, na prática, de superar efetivamente as distâncias sociais geradas pela
proximidade emocional e tutelar do patriarcalismo familiar que marcou e ainda marca boa parte da cultura de nossas
relações individuais e institucionais.
Assim, em Helena, de 1876, cuja protagonista principal, de mesmo nome, recebe, como filha natural, uma herança do
Conselheiro Vale, seu pai, com a condição de ir viver na casa onde vivem seus outros dois filhos, Úrsula e Estácio, lê-se
no capítulo IV:

"Pouco havia ganho no espírito de D. Úrsula; mas a repulsa desta já não era tão viva como nos primeiros dias. Estácio
cedeu de todo, e era fácil; seu coração tendia para ela, mais que nenhum outro. Não cedeu, porém, sem alguma
hesitação e dúvida. A flexibilidade do espírito da irmã afigurou-se-lhe a princípio mais calculada que espontânea. Mas
foi impressão que passou. Dos próprios escravos não obteve Helena desde logo a simpatia e boa vontade; esses
pautavam os sentimentos pelos de D. Úrsula. Servos de uma família, viam com desafeto e ciúme a parenta nova, ali
trazida por um ato de generosidade. Mas também a estes venceu o tempo. Um só de tantos pareceu vê-la desde o
princípio com olhos amigos; era um rapaz de 16 anos, chamado Vicente, cria da casa e particularmente estimado do
conselheiro. Talvez esta última circunstância o ligou desde logo à filha do seu senhor. Despida de interesse, porque a
esperança da liberdade, se a podia haver era precária e remota, a afeição de Vicente não era menos viva e sincera;
faltando-lhe os gozos próprios do afeto, - a familiaridade e o contacto, - condenado a viver da contemplação e da
memória, a não beijar sequer a mão que o abençoava, limitado e distanciado pelos costumes, pelo respeito e pelos
instintos, Vicente foi, não obstante, um fiel servidor de Helena, seu advogado convicto nos julgamentos da senzala."

Em Iaiá Garcia, de 1878, logo no Capítulo I, o escravo liberto Raimundo nos é apresentado como fazendo parte da
família do viúvo Luís Garcia, integrado afetivamente nas relações com a sinhá moça Lina, a Iaiá Garcia do título do
romance, e atuando, nas palavras do narrador "como um espírito externo de seu senhor; pensava por este e refletia-
lhe o pensamento interior, em todas as suas ações, não menos silenciosas que pontuais."

Luís Garcia, por temperamento e escolha era calado, sério, reflexivo e ponderado; Raimundo, por caráter, era bom e
dedicado e, por condições, servil e prestativo, tendo como que interiorizado o seu papel numa relação de mando sem
necessidade de que o outro, senhor, vivesse a enunciá-la no dia-a-dia de sua convivência:

"Luís Garcia não dava ordem nenhuma; tinha tudo à hora e no lugar competente. Raimundo, posto fosse o único
servidor da casa, sobrava-lhe tempo, à tarde, para conversar com o antigo senhor, no jardinete, enquanto a noite
vinha caindo."

Já em Memórias póstumas de Brás Cubas, de 1880, a visão de além túmulo que tem de si mesmo o narrador é mais
crua e mais direta quando contemplada à luz de seus relacionamentos, ainda criança, com os escravos da casa, de um
modo geral, e com o moleque Prudêncio, em particular:

"Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava
fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui
dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce "por pirraça"; e eu tinha seis anos. Prudêncio, um moleque de
casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu
trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, -
algumas vezes gemendo, - mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um -"ai, nhonhô!" - ao que eu
retorquia: - "Cala a boca, besta!""

Em Dom Casmurro, de 1899, o narrador-personagem Bentinho numa das visitas do amigo Escobar à sua casa em
Mata-Cavalos, o mesmo amigo suspeito da traição histórica, que nunca se desvendou, com a meiga e prática Capitu,
mostra-se de corpo inteiro com a roupagem da autoridade indiferente ou da indiferença autoritária que também
constituiu o rol de predicados das relações entre senhores e escravos no Brasil do século XIX. Além disso, mostra, na
mesma cena, a propósito do binômio roça/cidade, tema da conversação entre os dois, a ideologia de fundo que subjaz
à oposição trabalho/riqueza, em que um é visto como coisa de negros e escravos e o outro de brancos senhores.

Quer dizer, o trabalho é vergonha e o ócio é nobreza, embora o desfrute do segundo não seja possível, para os
brancos, sem a rude e triste aspereza das condições em que se faz o primeiro.

"[...] E não contávamos voltar à roça? - Não, agora não voltamos mais. Olhe, aquele preto que ali vai passando, é de
lá. Tomás! - Nhonhô! Estávamos na horta da minha casa, e o preto andava em serviço; chegou-se a nós e esperou. - É
casado, disse eu para Escobar. Maria onde está? - Está socando milho, sim, senhor. - Você ainda se lembra da roça,
Tomás? - Alembra, sim, senhor. - Bem, vá-se embora. Mostrei outro, mais outro, e ainda outro, este Pedro, aquele
José, aquele outro Damião... - Todas as letras do alfabeto, interrompeu Escobar. Com efeito, eram diferentes letras, e
só então reparei nisto; apontei ainda outros escravos, alguns com os mesmos nomes, distinguindo-se por um apelido,
ou da pessoa, como João Fulo, Maria Gorda, ou de nação como Pedro Benguela, Antônio Moçambique... - E estão todos
aqui em casa? perguntou ele. - Não, alguns andam ganhando na rua, outros estão alugados. Não era possível ter todos
em casa. Nem são todos os da roça; a maior parte ficou lá."

No livro de crônicas Bons dias, duas delas, ambas de 1888, uma do dia 19 de maio e outra do dia 26 de junho,
registraram, com a fina ironia que é própria do autor e com o cinismo oportunista característico de muitos de seus
personagens, duas situações reveladoras do ethos dos senhores no day after do ato legal da abolição.

Na primeira, do dia 19 de maio, seis depois da promulgação pela princesa Isabel da Lei Áurea, o cronista nela
representado, apresenta-se como um profeta post factum e vangloria-se, para efeito de suas aspirações políticas, de
ter-se antecipado ao 13 de maio alforriando "um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos mais ou menos."

De maneira sinceramente hipócrita relata ainda, explicando seu gesto pela causa final de seus interesses pessoais e
estes, pelas razões eficientes da classe social a que pertence:

"O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito
antes da abolição legal, já eu, em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente
que dele teve notícia; que esse escravo tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposição) é então professor
de filosofia no Rio das Cobras; que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à
lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que os poderes públicos, sempre retardatários,
trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu."

Na outra, a do dia 26 de junho transcorridos mais de um mês da abolição, o nosso cronista fictício arquiteta agora
maneiras de tirar proveito econômico e não apenas político da nova situação.

Como um Tchitchikof dos trópicos trata de comprar, tal qual no romance de Gogol, Almas mortas, no caso, escravos
libertos, com documentos datados de antes do 13 de maio e, assim, poder "vendê-los" ao poder público para
recuperação das "perdas" sofridas com a abolição.

"Suponha o leitor que possuía duzentos escravos no dia 12 de maio, e que os perdeu com a lei de 13 de maio. Chegava
eu ao seu estabelecimento, e perguntava-lhe: - Os seus libertos ficaram todos? - Metade só; ficaram cem. Os outros
cem dispersaram-se; consta-me que andam por Santo Antônio de Pádua. - Quer o senhor vender-mos? Espanto do
leitor; eu, explicando: - Vender-mos todos, tanto os que ficaram, como os que fugiram. O leitor assombrado: - Mas,
senhor, que interesse pode ter o senhor... - Não lhe importe isso. Vende-mos? - Libertos não se vendem. - É verdade,
mas a escritura de venda terá a data de 29 de abril; nesse caso, não foi o senhor que perdeu os escravos, fui eu. Os
preços marcados na escritura serão os da tabela da lei de 1885; mas eu realmente não dou mais de dez mil-réis por
cada um."

VIII

Machado de Assis, que o crítico americano Harold Bloom considera o "maior literato negro surgido até o presente"
deixou-nos um legado artístico ímpar no Brasil e na literatura universal de todos os tempos. Por ele pudemos conhecer
melhor a sociedade imperial brasileira e com ele, entrarmos no átrio dos conflitos da sociedade republicana que se
anunciava, sem historicismo, sem sociologismo, sem programatismo panfletário. Falando de homens e mulheres de seu
tempo na provinciana capital federal, o Rio de Janeiro que os navios estrangeiros procuravam evitar com medo das
contaminações epidêmicas da região, o autor fixou, como nenhum outro, em imagens de poética sobriedade, não
apenas as cores locais de quadros sociais inesquecíveis, mas também as finas incertezas e ásperas decisões da alma
humana, suas silenciosas perversidades, seus levianos conflitos morais, a profundeza das dores reparáveis, a
exlusividade substituível dos amores, a densidade dos vazios feita de presenças impositivas e de imposições de
ausências plenas, a religiosidade desconfiada de um narrador que desconfia, como num meta-Eclesiastes de seu
ceticismo e de sua própria desconfiança.

Não há em Machado de Assis a tentação do fácil nem tampouco a tipificação do difícil. Por isso, falando de seu tempo e
de seu espaço local como não poderia deixar de fazer, fala-nos de uma atemporalidade, contudo histórica, do homem
prisioneiro de sua eterna finitude. É como pensar Shakespeare e não ser levado à sociedade elizabetana, contexto
necessário do texto que se lê ou da peça a que se assiste. Impossível fazê-lo, como impossível é também não
desgarrar-se, pela leitura, das circunstâncias históricas e que dão vida às suas personagens e mergulhar na
universalidade cômica e trágica de seus dramas, de nossos conflitos.

O legado literáro de Machado de Assis também é assim. Põe-nos na sala senhorial da casa do Engenho Novo e atira-
nos, casmurros, à frustração anunciada da impossibilidade ontológica de nos reencontrarmos conosco mesmo, no
tempo, em Mata Cavalos, ou vice-versa.

Com o legado estético, o legado ético. E é parte dele, com a mesma discreta perspicácia, o registro de situações de
puro exercício de dominação senhorial de brancos em relação aos negros, ou de debochada esperteza negocial dos que
se habituram a procurar tirar vantagem em tudo, como acontece nas duas crônicas aqui referidas.

É uma situação historicamente datada. Não deixa, contudo, de remeter-nos, pela própria historicidade, que lhe dá
concretude, à força explicativa do paradigma social que apresenta.

É contra a permanência desse modelo de relações sociais constituído na tradição patriarcal branca da sociedade
brasileira que se fez o esforço intelectual e político, caracterizado nas diferentes fases de sua evolução e transformação,
tal como as apresentamos, para com ele romper e para definitivamente superá-lo.

As ações afirmativas do movimento negro e as políticas públicas de sua afirmação no Brasil são uma etapa
contemporânea desse longo processo histórico. A preservação do patrimônio afro-brasileiro também!

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