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PRÍNCIPE WAN

RAYOM RA

[ DIREITOS AUTORAIS: REGISTRO No 127763 ]


Pequeno Wan andava nos jardins do palácio sob os olhares da
governanta. Havia rumores de que um general do norte houvera reunido
homens e treinado eficiente exército que se deslocara para as montanhas da
região e lá se escondera. Este general, de nome Kuang, segundo afirmavam
ao rei, tentaria tomar o reino pelas armas. O rei não o conhecia, mas Kuang
dizia ter o direito de governar por ser o legítimo primogênito do antigo rei,
avô de pequeno Wan, o qual amara uma cortesã, quando príncipe, e com
ela tivera um filho, o próprio Kuang. Julgava-se, assim, descendente da
linhagem real, a qual pertencia pequeno Wan, sucessor natural de seu pai,
atual rei.

A cortesã, seria uma jovem que se apaixonara pelo príncipe e


desobedecendo as ordens da cortesã-mor, não tomara o chá abortivo. Como
consequência, engravidara e escondera o quanto pudera sua desejada
gravidez. Entretanto, temerosa de que quando descobrissem o fato a
castigassem, deixara o palácio se escondendo em casa de parentes, lá
dando à luz ao menino. Porém, seu primo, ávido por favores, informara a um
dos espiões do rei sobre a criança desconfiando de que se tratasse do filho
do príncipe, pois escutara conversa da cortesã com a prima - sua irmã - em
que dissera ter servido ao príncipe e por ele estar apaixonada. O rei ficou
furioso ao tomar conhecimento do fato e ordenou que a trouxessem a sua
presença a fim de interrogá-la.

Uma cortesã amiga, tendo escutado a conversa por detrás das


cortinas, correu antes e a avisou da ordem real, temendo que a matassem e
ao recém-nascido. A mãe tomou então a criança nos braços e fugiu do lugar,
juntando-se a um mercador que partia para o norte e já transpunha um dos
portões da cidade em sua carroça. Não tendo como esconder a criança,
assustada, ela contou-lhe toda a verdade pedindo-lhe ajuda, pois os
soldados logo a procurariam. O mercador temeu se envolver e perder sua
cabeça, mas a cortesã implorou-lhe pelo filho e como ele fosse um bom
homem conseguiu convencê-lo a ajudá-la. Teve ele então uma idéia e
deixou a estrada, rumando para um lago que ficava nas redondezas, onde
sabia existir o barco de um sobrinho que nele morava sozinho. O lago era
grande e muitos barcos passavam as noites afastados sem precisar aportar.
O mercador não contou ao sobrinho a verdadeira história, inventou outra que
envolvia um oficial do exército que se julgara traído pela esposa a quem
desejava matar, e mandou que a mantivesse e ao recém-nascido no interior
do lago até que de novo voltasse. Não deveria demorar porque tinha mesmo
de partir para o norte.

Retomando a estrada, fingiu que saia em viagem normal. Logo os


soldados vieram e o cercaram. Mas como ele conhecesse o comandante do
destacamento, rapidamente revistaram a carroça e não o incomodaram. Os
soldados se foram e ele retornou ao lago. Conforme combinara, fez sinal da
margem e o sobrinho remou para a terra. O mercador colocou-os de novo na
carroça, instruindo ao sobrinho sobre o que dizer aos soldados caso eles
aqui aparecessem, pois se descobrissem que haviam escondido a jovem e o
recém-nascido todos morreriam, e se foi por outra trilha, não sendo mais
encontrado pelos soldados.
O jovem príncipe herdeiro da coroa real, jamais pôde comprovar a
história dessa paternidade e aconteceu de, dois anos depois, seu pai vir a
falecer de mal súbito, e ele o suceder tornado-se o novo rei de sua estirpe,
casando-se e tendo dois filhos. Todavia, qual seu pai, não teve vida longa, e
em combate durante a invasão de hostes provindas do império ocidental,
recebeu uma flechada no pescoço morrendo pouco depois, sucedendo-o
seu jovem primogênito, o atual rei, pai de pequeno Wan, irmão de Kuang o
bastardo.

///

Os jardins do palácio eram encantadores, pequeno Wan diariamente


ingressava por seus caminhos e veredas visitando os recantos de sua
predileção. Fazia-o todas as manhãs, antes de receber ensinamentos de
filosofia, artes e ciências que seus mestres lhe ministravam. Ultimamente, às
tardes, vinha recebendo disciplinas de artes marciais, necessárias a todos
os filhos da nobreza, pois ocorrendo rebeliões pelo reino e pelo país, os
nobres precisavam juntar milícias e sair a enfrentá-las. Além disso,
aconteciam invasões de hostes bárbaras provindas do norte, ou de outros
povos, e não obstante os muros para desestimulá-los não conseguiam detê-
los inteiramente nas suas ânsias de pilhagens, obrigando os reinos aliarem-
se para guerrear. Por isto se preparavam desde cedo.

Mas nestes instantes, alheio a tudo, pequeno Wan aproveitava para se


distrair e se deleitar, apreciando as aves raras dos cativeiros compradas em
lugares distantes do reino e terras estrangeiras, ou dadas em presentes à
família real. Observava também as aves soltas e domesticadas, que corriam
e pulavam pelo chão, que arrulhavam sobre arbustos e galhos ou que se
lançavam em voos curtos e arrodeados. Numa escolhida trilha, bulia com um
esperto e arisco faisão, parava a ouvir o canto de agitados rouxinóis, ou
desafiava a ira de um pavão ao alisar-lhe a nababesca cauda. De repente,
com alardeantes e propositais passos, tirava codornas de sob altas touças
de capins, e elas corriam e pulavam enfiando-se por novos e efêmeros
esconderijos. E os ruídos desses movimentos súbitos ocasionavam
dispersivos voos de assustados pássaros e aves menores, cujo bater de
asas ecoava ao derredor. Ao chegar diante do lago maior, em torno do qual
floridos e artesanais arbustos, entremeados com bonsais e pequenas
árvores se encarreiravam às margens das vias que se cruzavam, e ali no
lago quase todas vinham morrer, o príncipe lançava à água minúsculas
frutas silvestres, ficando a apreciar as disputas das carpas e peixes
dourados que tentavam capturá-las. Depois, se dirigia ao recanto favorito,
sentava-se num lance de gramado ao fundo de um alpendre em formato de
túnel, ornado de galhos de um diminuto arvoredo, e iniciava um suave
respirar, procurando sentir à penetração da vida em seu jovem corpo,
conforme lhe ensinavam os mestres.

Ao escutar vozes dos jardineiros ou notar visitas, não gostava. Eram


estranhos se insinuando nos lugares que eram seus, invadiam seu particular
mundo, vindo estragar seu solitário retiro. Já bastava ter de fingir que a
governanta que o vigiava não existisse. Mais ainda se desgostava quando
via crianças - irmãos, parentes ou filhos dos nobres – a correr e alardear-se
pelos caminhos, a assustar desnecessariamente as aves, a provocar
alvoroços pelos jardins. Aborrecia-se, recusava-se a fazer-lhes companhia e
recolhia-se aos seus aposentos, buscando distrair-se com os jogos.

Mas nem sempre existia em si a disposição para o isolamento. Em


ocasiões, apesar da beleza dos jardins e o prazer que lhe proporcionavam,
havia momentos em que uma espécie de vazio penetrava-lhe a alma e nada
daquilo parecia tocá-lo como antes. Por causa dos perigos que poderiam
advir de inimigos infiltrados entre o povo, o rei mantinha severa vigilância
sobre a família, não se descuidando de manter criados e guardas a protegê-
la. Além do mais, sendo Wan o primogênito herdeiro da coroa, havia a
necessidade de manter a postura diante de todos e não podia vulgarizar-se.
Nas raras ocasiões em que viajava de carruagem para visitar parentes,
observava os meninos de sua idade andando livremente e traquinando pelas
ruas. Então imaginava como seria viver como eles, sem disciplina rigorosa e
sem temores, e se excitava com os quadros construídos em mente,
passando a desejar ardentemente a experiência. Imaginava-se, além disso,
cercado de amigos verdadeiros, que o tratavam simplesmente por Wan, a
ensinar-lhes coisas da idade e a quem confiava pequenas confidências.

Cansava-se, assim, de visitar e ser visitado por parentes, brincar com


irmãos no palácio e somente vez por outra conhecer uns poucos jovens de
outras classes. Não tinha graça, ele era o príncipe, o futuro rei, e eles os
futuros súditos, mas desde já se comportavam como tal. Não falavam a
outro menino, senão ao príncipe, e o tratavam com excessivo respeito,
certamente obedecendo advertências paternas, e até o temiam. Notava-
lhes, ademais, certo alívio quando inventava uma desculpa e se afastava,
deixando-os definitivamente. Não era o que verdadeiramente desejava.
Imaginava-se, isto sim, despido da condição real, da herança que o
perseguia e da incômoda responsabilidade de ser o príncipe herdeiro. Em
seus devaneios só tinha um nome, não tinha sangue nobre e nem precisava
agir cautelosamente. Era livre, não era notado e nem reverenciado, não lhe
elogiavam com falso sorriso e nem se curvavam diante de si com excessiva
e bajulada vênia. Falava o que queria, ia onde desejava e discutia suas
idéias abertamente. Via-se liberto dos protocolos que lhe impunham e das
odiosas caçadas que amiúde o rei organizava e nas quais o levava.
Lembrava-se em como o rei o repreendera quando mais jovem chorara ao
ver um faisão atravessado pela certeira flecha disparada pela possante
besta de um dos caçadores. O rei ameaçara castigá-lo severamente se
repetisse aquela vergonhosa atitude, e ele esforçou-se por obedecer e não
mais chorar.

Porém, se por um lado aquela vida cerceada trazia-lhe amarguras,


encontrava ainda assim, além dos passeios nos jardins do palácio, outras
coisas que lhe agradavam. Tinha especial respeito e carinho por Meng
Keng, mestre de filosofia e monge budista. Tinha especial satisfação em
aprender desse mestre, e lamentava haver épocas em que ele não aparecia
no palácio, entregue às longas meditações no templo onde vivia. Quando ele
finalmente voltava, e ali se hospedava, passava horas em sua companhia,
ensinando-lhe nos jardins, andando ou sentando-se à sombra de árvores e
sob alpendres. Isso era realmente bom e Wan se concentrava nas lições
esquecendo-se de sua condição principesca e confinamento. O tempo com
o mestre parecia voar e lamentava não poder alcançar o significado de
tantos conceitos que ele expunha, senão em pequenas partes, ouvindo-lhe a
suave advertência, quando insistentemente inquiria: “pequeno Wan – dizia-
lhe Keng – a semente muito jovem lançada ao solo para germinar não
vingará. É preciso estar no tempo certo para que a terra não a devore e dela
nada reste.”

Também amava Sheng Huang, o mestre da ciência. Aprendia muito


sobre os metais e ouvia das transformações em utensílios e suas
finalidades. O mestre da ciência não lhe poupava também das lições de
filosofia, mas, principalmente, ensinava-lhe alguns fundamentos do que um
dia chamariam alquimia e suas relações com os cinco elementos. Para as
artes, pequeno Wan não demonstrava grandes pendores, no entanto
ocupava-se nas aulas e procurava absorver.

///

Pequeno Wan tinha agora doze anos e sua alma não digeria de forma
adequada o volume de ensinamentos que recebia. Era próprio da idade e
ultimamente isso vinha causando-lhe ansiedades. Os problemas de seu
pequeno universo começavam a parecer-lhe grandes demasiados para que
os resolvesse sozinho. Os passeios pelos jardins ajudavam-no a libertar-se
de certa carga de preocupações, mas isso era só momentâneo, e logo
retornavam. Era um começo de duelo entre duas almas: a que ele ia
deixando para trás, com sua infância e ingenuidade, e a que se apresentava
para assumir-lhe outros desejos e atos mais compatíveis com sua
transformação orgânica. Ele não compreendia essas coisas e ora se
excitava ora se deprimia.

Entretanto, hoje, outro tipo de sensação viera povoar-lhe o íntimo,


estimulando-lhe especialmente os anseios. Era algo a mexer lá no fundo,
provocando estranha inquietação. Sentia-se tolhido, desejava alçar-se para
mais longe. Essa sensação não era como outras: viera anelada a um desejo
clamante por espaço físico, por outro cenário; uma necessidade de andar,
caminhar fora dos limites que lhe eram mais do que conhecidos - algo
diferente de seus devaneios. E aquilo acionou-lhe uma idéia e a idéia
tornou-se forte, mais definida, agitando-lhe as emoções. Mas como sairia?
Olhou para trás e divisou por entre arbustos a figura da governanta a certa
distância, aparentemente distraída. Por ordem do rei, ela se mantinha
sempre a alguns metros de onde ele estivesse e só se apresentaria numa
emergência, ou quando o príncipe a chamasse. Se Wan resolvesse sair dos
jardins ela o acompanharia onde fosse. Voltando Wan aos seus aposentos,
a governanta imediatamente voltaria também aos seus, e quando ele
novamente desejasse ir aos jardins ou a outro lugar qualquer permitido,
deveria mandar chamá-la.
Resolvido, tomou o rumo do palácio, cruzou por corredores e atingiu
seus aposentos. A governanta seguiu-o, e ao verificar que a porta se fechara
voltou-se para a outra ala indo recolher-se. Pequeno Wan saiu logo depois,
andando dissimuladamente, procurando não deixar transparecer a excitação
que dele se apoderava. Caminhando pelo corredor da ala principal, onde
ficavam todos os aposentos reais, ele pisava sobre o longo e macio tapete
púrpura, não ouvindo o som de seus próprios passos, somente percebendo
o roçar de suas ricas vestes de seda e a própria e alterada respiração.
Pensava se, de algum modo, os guardas nas esquinas dos corredores não
estariam desconfiando de que algo incomum se passava em seu íntimo. Isso
o perturbava e seu coração acelerava; porém, ao verificar que os homens
permaneciam alheios ao seu mundo, respirava aliviado. Finalmente, chegou
diante dos aposentos de seus pais, imaginando que a esta hora eles não
deveriam lá estar; assim abriu a porta e adentrou.

Os aposentos eram grandiosos, na ante-sala havia cortinas correndo


paralelas, vedando total ou parcialmente à visão adventista como
desejassem os reis. Por sorte, elas estavam todas cerradas e se alguém lá
dentro estivesse - os reis ou criados - não o veriam, ainda mais que entrara
sorrateiramente. À esquerda da ante-sala existia uma porta bem ao fundo.
Ali, algum mandatário de sua ascendência construíra, um dia, pequena
câmara em nível inferior, e que parecia, como de única utilidade, uma adega
particular do rei. Havia, porém, algo mais lá dentro, e que era dado a
conhecer somente aos reis e aos seus filhos, quando esses já pudessem
guardar segredo. E pequeno Wan sabia, o rei contara-lhe - era uma saída
secreta!

Havia muitas outras saídas de emergência no palácio que seriam


utilizadas, como o foram no passado, para a escapada dos palacianos em
casos de invasões. Estavam, porém, guardadas por sentinelas, e caso ele
desejasse entrar por alguma delas seria logo interrogado e o rei avisado.
Óbvio, portanto, não poder fazer isto. Mas essa da adega era desconhecida
dos demais, pertencia somente ao rei e sua família e poderia ingressar nela
sem ser visto!

Andando então até a porta da câmara, abriu-a, principiando a descer


os degraus da escada. A adega era iluminada por lamparinas presas às
paredes que permitiam razoável visibilidade do lugar. Pequeno Wan tomou
uma delas e se dirigiu para onde existiam grades com prateleiras, que
acondicionavam em escaninhos recipientes com licores e garrafas com
vinhos. Aqui era mais escuro, ressentia a umidade e mofo e diante da
terceira grade de uma das paredes ele contou três escaninhos para a
esquerda, e do último retirou algumas garrafas deixando um pedaço da
parede à mostra; bateu algumas vezes com o punho fechado na pedra
retangular, e a viu mover-se. Forçou-a e ela abriu no formato de uma
portinhola, descobrindo um espaço interior onde tinha uma alavanca que ele
acionou, ouvindo de imediato um estalido, vendo uma das grades se mover
levemente. Após repor as garrafas no escaninho, puxou a grade, que veio
toda, girando num dos lados, deixando uma área da parede de pedras
completamente à mostra, e a empurrou fortemente com o ombro fazendo-a
deslizar e se afastar. Pequeno Wan estava bastante excitado, a respiração
acelerava. Tendo ingressado com a lamparina, forçou a porta de volta e o
vão fechou. Ao lado, viu a alavanca, acionando-a novamente, trazendo-a
para a posição anterior, ouvindo estalidos de encaixes, constatando, pela
portinhola aberta, que a grade no outro lado retornava ao lugar original,
justaposta à parede. A certeza de que mantinha oculta a entrada daquela
passagem pela adega tranquilizou-o. Finalizando, fechou a portinhola da
casinha e preparou-se para explorar o lugar.

Havia adiante degraus, e pequeno Wan desceu-os cuidadosamente,


andando depois sobre um piso de leve declive dentro de um túnel
sustentado por pilares, revestido de pedras. Ao longo das paredes, à
distâncias regulares, existiam lamparinas presas e prontas para serem
usadas. Alguns trechos apresentavam certa umidade, mas em seguida o
caminho tornava-se outra vez seco. Pequeno Wan sentia temor quando
olhava para adiante vendo somente sombras, e ansiava chegar logo ao final,
esperando não ter nenhuma surpresa desagradável. Nessa expectativa,
andou boa distância até ouvir ruídos de água corrente. Adiante, o túnel
terminava, mas o vão de saída achava-se parcialmente encoberto por um
tipo de trepadeira, havendo no chão plantas arbústeas. O ar ali se
impregnava de forte aroma que serviria para manter afastados répteis
venenosos, dentre eles cobras e serpentes. Wan abriu passagem com as
mãos, rasgando o frágil emaranhado de folhas e finos galhos, alcançando o
amplo espaço de uma gruta. Assustado, viu alguns esqueletos amontoados,
outros agrilhoados às paredes. Um rio corria pelo meio da gruta, cortado
adiante por estreita ponte. A poucos passos notou dois barcos atados em
pequenas estacas e um idêntico na outra margem. Sob a fraca luz da
lamparina examinou-os, notando em ambos a conservação e o trato,
evidenciando estarem preparados para imediato uso, como certamente
estaria o outro na margem oposta. Mas o rei sozinho não faria isto; deveria
então haver outras pessoas que cuidavam deles! E o rio, para onde
conduziria? Uma coisa era certa, já não deveria mais estar sob a área do
palácio. Estaria sob um ponto qualquer da cidade!

Atravessou pela ponte. A gruta foi deixada e prosseguiu por outro longo
trecho. Quando isto terminaria? Sentia-se sufocado, ansiava por ar puro.
Alguns metros adiante viu degraus encavados numa rocha, e os galgou.
Vinham terminar numa pedra côncava no desenho de uma marquise;
estreito facho de luz penetrava por quase imperceptível fenda do teto
indicando a proximidade da saída. O mesmo forte cheiro impregnava em
torno e reconheceu entre os grossos arbustos e matos, as plantas que
repugnavam répteis. Largando a lamparina, se lançou sobre eles – eram
longos e cerrados, havia curvas na sua extensão - conseguindo atravessá-
los com extrema dificuldade, pondo-se finalmente de pé. Com satisfação
respirou novo ar e novo aroma, verificando encontrar-se no interior de uma
floresta, provavelmente naquela a leste dos muros da cidade, na qual nunca
estivera!

E agora? Estava só num lugar desconhecido, embora pleno de vigor


natural e a seu inteiro gosto. Olhou em torno e observou o Sol em réstias.
Sombras espalhavam-se sobre arbustos e pelo chão, vindo encontrar
verdes lances de alta grama, minúsculas plantas e folhas caídas. Havia
clareiras interligadas e uma pedreira semi-circundante não muito alta e
interrompida num estreito trecho. Pássaros iniciaram um recital, insetos
sobrevoavam, flores gentilmente se abriam, e todos pareciam cumprimentar
o Sol, o dia, a vida!. Seria imensa essa floresta, calculava, esquecendo-se
do temor inicial que a pouco o abraçara, resolvendo caminhar, já tomado de
crescente satisfação mesclada a uma sensação de liberdade!

Distraído e preso na observação, experimentava um gosto jamais


imaginado, atraído pelo suave rumorejar de água, vendo adiante, em meio
as árvores, raso riacho a deslizar em pequenas quedas. Satisfeito,
descalçou os sapatos adornados de fina seda e entrou na água,
refrescando-se. Em seguida, subiu pelo estreito leito parando num certo
trecho, póis chamara-lhe a atenção, a poucos passos dali, espremida sob
dois troncos velhos e caídos, uma pequena gruta. Para lá se dirigiu, e
arcando o jovem corpo, dobrando os joelhos, quase se arrastando,
conseguiu nela ingressar e sentar-se num ressalto . Devido à tensão pela
difícil caminhada empreendida, sentia-se um tanto fatigado e começou a
inalar profundamente, na tentativa de relaxar e recuperar alguma energia.
Porém, não durou muito essa postura, logo se sobressaltando. Lá fora se
produzia uma mistura de ruídos e sons; aquilo aos poucos crescia tornando-
se mais próximos. Ele agora os reconhecia e se assustava. Eram estalidos e
farfalhar de galhos, espirros e marchas de cavalos, e vozes de homens. Ele
então se agachou indo se arrastar lentamente até a entrada da gruta,
parando a observar. O que viu causou-lhe grande espanto! Tratava-se de
uma divisão de exército que se mobilizava por dentre a mata, com homens
vestindo armaduras de guerra e rumando, ao que tudo indicava, em direção
da cidade. Coração aos pulos, pequeno Wan voltou ao interior da gruta
procurando ocultar-se melhor. Que fazer? Sem dúvida precisava retornar e
avisar ao rei; se eles atacassem pegariam a todos de surpresa. Aguardou
que os soldados passassem, mas eram muitos, aquele desfile parecia
interminável. Finalmente desapareceram de vista e quando mal escutava
seus ruídos a se perder na distância saiu da gruta. Teria de voltar,
reingressar na passagem pela qual viera e rapidamente alcançar o palácio.
Saindo do riacho, pôs-se a procurar a trilha que palmilhara, mas não
conseguia encontrá-la. Entrava e saía de trilhas idênticas, e aquelas o
levavam sempre a locais diferentes. Isso o ia deixando nervoso e cada vez
mais apreensivo. Seu corpo tremia, o rosto afogueava. Depois de algumas
tentativas reconheceu finalmente a trilha, nela ingressando apressadamente.
Porém, ao ouvir de novo vozes e ruídos estancou, pulando para detrás de
arbustos, bem a tempo de passar dois cavaleiros, olhando para o alto das
árvores, a empunhar arcos e flechas, provavelmente procurando por caça.

Pequeno Wan tremia muito. Se o descobrissem e viessem saber tratar-


se do príncipe herdeiro, estaria irremediavelmente perdido: o aprisionariam e
provavelmente acabariam com ele. Mesmo assim, trêmulo, retomou a trilha
tão logo os cavaleiros desapareceram, e, pé ante pé, procurou avançar. Mas
não pode ir muito longe. Ali, próximo das clareiras onde estivera antes,
aninhados e alojados em torno da pedreira semicircular, à sua volta interna e
sob árvores, muitos soldados acampavam. Seria, imaginou pelas aulas que
recebera sobre táticas de guerra, uma patrulha de retaguarda a dar
cobertura à divisão que se adiantava e que, certamente, mais à frente, se
preparava para atacar. Pequeno Wan via isso estirado no chão, dentre
arbustos, e não poderia atravessar e nem chegar até a entrada da
passagem que o conduziria ao palácio.

De repente, pela trilha principal, os dois cavaleiros vistos há pouco


retornavam e se dirigiam ao comandante da patrulha, anunciando que
muitos soldados estavam a caminho, e, tão logo chegassem ao
acampamento, iriam desmontar e aguardar ordens do general Kuang. Ao
ouvir isso, pequeno Wan arrastou-se para trás, afastando-se do lugar.
Estava desolado e desorientado. Mas pouco durou esse estado emocional,
por que de novo escutou ruídos e vozes vindos de outro lado. Seriam, sem
dúvida, os soldados que se juntariam à patrulha e que aguardariam as
ordens de Kuang. Ele correu para outra direção, procurando esconder-se,
chegando resfolegado junto a uma grande árvore de grosso tronco, cuja
base e raízes constituíam paredes, ali se aninhando, julgando-se à salvo.
Que faria, como poderia alcançar o palácio? Estava no meio de uma floresta
que lhe era estranha e desconhecida; não saberia orientar-se e nem sair
dela, achando-se impossibilitado de voltar pelo único caminho que conhecia.
Ademais, chegando a noite, o frio, e o soldados lá permanecendo, aonde
ficaria? E se houvesse por aqui animais ferozes, poderia ser encontrado por
algum. E quanto ao exército de Kuang, iria realmente atacar o reino e
conquistá-lo? E sabendo disso nada podia fazer; era um inútil, nem como
mensageiro servia!

Tomado destes angustiantes pensamentos, começou a chorar,


baixando a cabeça e apoiando-a sobre os braços que descansavam sobre
os joelhos. Quanto mais se angustiava mais lágrimas rolavam-lhe pelas
faces.
- Príncipe Wan! - aquela voz penetrou-lhe os ouvidos e ele parou o
choro, não tendo porém a coragem de levantar a cabeça. Teria imaginado,
ou seria algum espírito da floresta?
- Príncipe Wan, levante-se, venha! - ele então olhou, e, entre um misto
de temor e surpresa, viu um jovem bem à sua frente, de lisa cabeça a reluzir
por um fragmento solar a tocá-la. Pequeno Wan levantou-se de imediato.
- Quem é você?
- Sou Yang Te-Chun, mestre Keng mandou-me buscá-lo. Venha,
príncipe, você corre grande perigo!
Apoiado nessa informação, seu coração encheu-se de esperança e ele
se animou.
- Para onde vamos?
- Para o mosteiro!
- Não, não posso. Tenho de voltar, eles vão atacar a cidade e o palácio,
o rei precisa saber!
- Não há tempo, príncipe, eles estão espalhados por quase todos os
lados, até as estradas estão tomadas, são muitos!
- Tenho de tentar assim mesmo, você precisa ajudar-me - pequeno
Wan excitava-se.
- Príncipe, quando a situação está desfavorável é mais sensato
recolher-se e aguardar. O general Kuang, inimigo de seu pai, aliou-se a
outro exército que veio de longe, atravessando as estepes. São milhares,
nem dá para contá-los!
Pequeno Wan baixou os olhos e prostrou-se. Lágrimas de novo
molharam-lhe as faces. Yang Te-Chun pôs-lhe a mão no ombro e o
consolou:
- Sei, príncipe, que seu nobre coração sofre. Se você pudesse muito
faria, porém não agora. Nada no momento é mais sábio do que sairmos
daqui. Mestre Keng nos aguarda, vamos, conheço uma trilha que nos
conduzirá a salvo - dizendo isso Yang Te-Chun caminhou adiante e pequeno
Wan o seguiu.

A trilha que tomaram, a princípio nada apresentava de especial, porém


na medida em que se interiorizavam pela floresta ela desaparecia de vista e
era necessário redescobrí-la. Yang Te-Chun, na frente, afastava galhos,
agachava-se sob troncos parcialmente tombados e contornava obstáculos.
Subia em montes, entrava por grutas abertas e continuava; ia sempre
seguido de perto por Wan. Adiante, andaram por riachos e os deixaram após
certo trecho, ingressando novamente na mata fechada. Durante o tempo em
que caminhavam não foram surpreendidos e nem escutaram ruídos de
soldados em trânsito, mas assim mesmo Yang Te-Chun seguia
cautelosamente. Em certo momento, quando pequeno Wan quis dizer-lhe
algo, ele fez sinal de silêncio e apontou para adiante. Finalmente,
alcançaram a periferia da floresta, uma espécie de ferradura onde, no
interior, mais abaixo, viam-se plantações de trigo e milho, e pelas bordas,
margeando um canal, campos de arroz. Yang Te-Chun sorriu e voltou-se
para pequeno Wan, parando e apontando:
- Além da planície, entre as colinas, adiante, fica o mosteiro.

Tendo observado o que seu guia lhe apontara, pequeno Wan voltou-se
e procurou lugar para sentar, encontrando um toco de árvore ceifada. Yang
Te-Chun, vendo-o assim, aproximou-se e sentou-se defronte a ele na verde
relva que ali principiava, que se estendia até o início dos trigais, cobrindo o
chão em declive.
- Como você me encontrou?
- Mestre Keng orientou-me.
- Como ele sabia que eu ali estava?
- Ele sabia.
Pequeno Wan mirou-o com mais atenção. Yang Te-Chun olhava-o
tranquilamente. Vestia-se de branco com simplicidade, como era hábito dos
neófitos do mosteiro e calçava sandálias
- Penso que não deveria ter deixado o palácio. Como estarão todos
agora? - falou Wan inconformado, com fisionomia entristecida.
- Príncipe Wan, suas preocupações procedem, por que é sua família.
Porém, tendo deixado o palácio por que arrepender-se disso uma vez que
sua alma ousou experimentar? O filhote de pássaro ao pular fora do ninho
não o faz por rebeldia. Logo ele aprende a voar e escolher o seu próprio
alimento.
- Que faço então? - perguntou ainda desanimado.
- Confie, príncipe, confie.

Instantes depois eles retomavam os passos alcançando os trigais,


desviando-se por um caminho secundário, precavendo-se de não serem
vistos por ninguém. Ao aproximarem-se dos portões do mosteiro o Sol já ia
alto, bem sobre suas cabeças, e tendo subido os degraus da escada Meng
Keng surgia pela porta, estendendo os braços para receber pequeno Wan.
Ele abraçou-se ao mestre e novamente chorou.
- Príncipe Wan, acalme-se.
- Mestre, eu desejava estar no palácio e lutar ao lado do rei.
- Deixe as armas para os soldados. Um jovem como você é precioso
demais para cair atravessado pela espada de mãos assassinas.
- Mas os reis, minha família, perecerão?
- A vida dos homens é conduzida por mistérios somente desvendados
nos momentos certos. As águas rolam em seus cursos, porém nem todas
vão ao mar.

///

O mosteiro tinha ótimo serviço de escuta. Os monges e discípulos


andavam pelo país em suas peregrinações de auxílio ao povo, encontrando
sempre alguém para dar-lhes notícias sobre o que desejassem. Mas as
notícias que chegavam para pequeno Wan eram desanimadoras. Já se
passavam sete dias desde que o exército comandado por Kuang e por outro
general de povo bárbaro houvera atacado a cidade. O exército do rei
aguentara o quanto pudera, porém o inimigo, além de mais numeroso, se
preparara com táticas que surpreenderam os citadinos. O combate não
levara mais do que dois dias e Kuang bombardeara o portão principal dos
muros da cidade, destruindo-o e o transpondo. Lá dentro encurralara ao
exército adversário ou ao que dele sobrara, fazendo-o render-se; daí
marchara para o palácio, tomando-o sem a menor resistência.
Imediatamente após este ato, mandara anunciar que o reino era seu,
coroava-se o novo rei e exigia obediência incondicional. Informava, ainda,
que aniquilaria impiedosamente a qualquer rebelião porventura insurgida
contra seu reinado e executaria a todos os sobreviventes, como o fizera com
a família real que não mais existia.

Essa última notícia os monges obtiveram-na de mercadores que tinham


conseguido especial autorização de ir e vir através do portão principal, no
exercício de sua necessária atividade uma vez que por cinco dias, desde a
sua tomada, a cidade permanecera sitiada. Somente após esse período,
julgando-se senhor de toda a situação, Kuang mandara que os portões
fossem reabertos e a vida da cidade retomasse aos poucos a sua rotina.

Ao saber da execução de toda a sua família pelo general Kuang,


pequeno Wan chorou inconsolavelmente e maldisse a sua sorte. Lamentava
uma vez mais não ter podido ao menos avisar ao rei do ataque inimigo que
tão rápido se desfechara, pegando-os a todos desprevenidos. Calou-se
após e não pronunciou uma só palavra durante três dias. Mais tarde,
quando os religiosos do mosteiro já podiam de novo entrar livremente na
cidade, embora tudo estivesse severamente vigiado por patrulhas que se
mobilizavam e soldados controlassem os lugares mais estratégicos, eles
souberam que, na realidade, ninguém havia visto os corpos da família real e
da criadagem. Afirmavam que no momento da invasão dos soldados pelos
corredores e cômodos do palácio, a família real provavelmente não mais lá
se encontrasse. Kuang, diziam, houvera mentido para intimidar o povo a fim
de que aceitasse logo a idéia de ser ele seu novo soberano, e o exército
derrotado e disperso não encontrasse motivações para, ocultamente, se
rearticular, visando qualquer possível reação.

Estariam ou não mortos, ninguém tinha certeza. Mas ficava a


esperança de o rei surgir um dia e expulsar os invasores, retomando a
cidade. Para pequeno Wan esta notícia veio trazer-lhe nova vida e passou a
crer na fuga de sua família através da passagem secreta a qual também
utilizara. Envergando assim novo ânimo, falou a Meng Keng dessa certeza,
desculpando-se, entretanto, de não poder fornecer maiores detalhes da
passagem, devido ao juramento que fizera ao rei. Ao ouvir isso, Meng Keng
somente sorriu.

///

Cinco anos se passaram. Nesse período muitas coisas sucederam no


reino. Kuang mostrava-se sem o menor tino para administrar. Seu
temperamento era, na maior parte do tempo, imprevisível e egocêntrico,
revelando-se ademais amante do excessivo luxo e de inúmeras mulheres.
Impusera pesadas obrigações ao povo, exigira grandes parcelas sobre a
produção de cereais em todo o reino, além de fazer encaminhar para o
palácio preciosas pedrarias, objetos de artes e fina louçaria. Havia épocas
em que bebia muito vinho e disso se aproveitavam as cortesãs que o
rodeavam dia e noite, para obterem, em meio as suas promessas luxuriosas,
aquilo que desejavam. Porém, em decorrência de seu desinteresse para
com os problemas do povo, a tristeza e o rancor grassavam no reino. As
grandes festas comemorativas de ciclos anuais, não encontravam mais a
mesma animação de outrora. Os muitos e variados desfiles, antes ricos em
pândegas, foguetório e fantasias, que o povo nas ruas organizava, não
atraiam mais interesse, e os poucos que eram realizados, arrastavam-se
pela falta de alegria e espírito. Em vários níveis da vida social do reino a
fome já começava a incomodar e os setores produtivos não conseguiam
acumular o suficiente para a população, visto a necessidade de alimentar
primeiro o exército do rei usurpador e a seus animais, o que consistia em
enorme dispêndio. A situação só não se tornara mais dramática ainda pelo
fato de o exército aliado a Kuang ter abandonado a cidade, depois de
seguidos desentendimentos entre os dois generais.
Sentindo-se sempre relegado e não vendo o cumprimento do que lhe
fora prometido, o general bárbaro inquirira a Kuang desafiadoramente, em
visita que lhe fizera ao palácio, acompanhado somente de sua escolta.
Desejava ele, de imediato, a parte do reino que lhe caberia e que a
exploraria durante alguns anos a fim de acumular os bens que pretendia ir
embarcando para suas terras. Kuang, na verdade, jamais tencionara honrar
a palavra assumida e mantinha-o sob a expectativa de logo estabelecer os
limites de seu mando, porém não o fazia. Irritado, após discussão no salão
real, o general investiu contra Kuang de alabarda à mão a fim de
transpassá-lo, porém, um dos homens de Kuang fora mais rápido e atingira-
o mortalmente com uma lança, seguindo-se ferrenha luta dentro do palácio,
tendo os homens da escolta do general finalmente se rendido. Kuang,
apesar do ataque pessoal que sofrera naquele exato momento, preparara-se
justamente para esse desfecho, colocando suficiente número de homens
pelo palácio a bloquear todas as comunicações. Assim, mais dia menos dia
liquidaria mesmo com o general e abafaria a reação de seus soldados.

Mas a história não terminaria nisto. Ainda como estratégia para


surpreender ao exército ex-aliado, Kuang mandou convocar imediatamente
todos os oficiais do comando dele para uma reunião extraordinária no
palácio, como se a ordem partisse de seu próprio general, o que não lhe fora
difícil conseguir através de um traidor, a quem muitas promessas foram
feitas, moedas colocadas em suas mãos e cortesãs deixadas à sua
disposição. Assim, na medida em que os oficiais iam chegando ao palácio
com suas escoltas, eram desarmados e levados para as celas no
subterrâneo. Pode Kuang, desta maneira, tornar o exército mercenário
completamente acéfalo, e propôs aos oficiais se despojar de suas principais
armas e melhores montarias, e deixar o reino. Caso se negassem a
obedecer seriam mortos e seu exército dividido em dois. Os que quisessem
permanecer se incorporariam ao seu comando, sem regalias, e os que não
quisessem seriam expulsos do reino.

Na realidade, Kuang não queria executar a nenhum oficial. O general


que morrera não obtivera total adesão da confederação das tribos que
formavam a nação bárbara a que pertencera. Nessa empreitada de guerra,
saíra de sua região para aliar-se a Kuang, após ter duelado com seu maior
rival e tê-lo morto. Para evitar mais conflitos entre eles e desnecessárias
mortes, a confederação decidira aceitar a partida desse exército, porém com
oficialidade mista, isto é, composta de membros de escalão das várias
tribos. A morte do general não abalaria muito a união das tribos, pois ele era
tido como dissidente e perigoso, todavia o assassinato dos outros oficiais
sim. Kuang sabia disto e não desejava experimentar o ódio conjunto das
tribos bárbaras numa guerra que lhe seria desvantajosa. Já bastaria a
humilhação que lhes imporia, o que não afastava o perigo de represálias.

Sem saída, eles aceitaram partir todos, abandonando o reino e o país


pelas trilhas das montanhas, não sem antes jurar sanguinária vingança.
Vendo, entretanto, que seu exército se reduzira à metade, Kuang, temeroso
de perder poderio, enviava seus emissários às regiões do norte e
arrebanhava novos mercenários. Mas não conseguindo ainda o número
desejado, decretara serviço militar obrigatório para os jovens acima de
quinze anos, a fim de ensiná-los a lutar e fazer parte de seu efetivo. Os que
se recusassem comparecer teriam suas famílias jogadas no fundo dos
porões e os bens que possuíssem sequestrados. Aterrorizados e coagidos,
os convocados foram obrigados a se apresentar ao exército invasor. Porém,
vendo as dificuldades que adviriam em comandar eficientemente jovens
soldados cativos, os militares começaram a doutriná-los sobre
comportamento, disciplina e fidelidade. Ganhariam promoções e regalias os
que se dedicassem e se destacassem; suas famílias seriam assistidas e não
passariam por privações. Ao contrário desses, os que não fossem aprovados
nos testes receberiam castigos e punições e não se dispensaria qualquer
auxílio aos seus familiares.

Em pouco tempo viram o plano dar resultados. O ideal de fidelidade


ao antigo rei cedia ante os clamores das necessidades, e logo cooperavam
e recebiam as recompensas, esquecendo-se do alto preço de servir em
coração ao antigo governante, mas ter o estômago a arder de fome. Melhor
agora, com as necessidades imediatas atendidas e novas promessas de
ganhos do que a vida difícil de antes. Ademais, nunca seriam acusados de
traidores porque haviam sido compulsados a se incorporar ao exército
invasor.

///

Por outro lado, a vida dentro do mosteiro decorrera nesses cinco anos
como se fora um universo à parte. No início, pequeno Wan permanecia
como um refugiado que se escondia do mundo, como de fato era. O
mosteiro era grande, tinha três largos salões onde os monges e discípulos
realizavam suas meditações e rituais, além de alojamentos, cozinha,
refeitório e outras dependências. Quase não havia móveis, mas o
estritamente necessário, e quando conversavam, meditavam ou realizavam
algum ofício religioso, faziam-no geralmente, de pé ou sentados no chão. Os
mais velhos, cujas juntas já não lhes permitissem ocupar posturas de pernas
cruzadas, usavam bancos ou cadeiras de bambu. Corredores ligavam as
alas do interior do prédio e escadas uniam os andares. Entretanto, a maior
parte do tempo eles o despendiam ao ar livre. Havia dentro dos limites
internos do mosteiro, o jardim e o pomar, onde cultivavam e colhiam, além
da área arborizada em que algumas figueiras se levantavam e pequeno
córrego deslizava. Nesse agradável recanto, se reuniam em atividades
meditativas ou simplesmente para caminhar. Para além dos limites internos
do mosteiro, perdendo de vista entre montes ou em planície aberta, as
plantações de trigo, milho e arroz, em primeiro plano, e nalgumas áreas
menores verduras ou tubérculos, vicejavam na generosa terra. Em tempos
de plantações ou de colheitas era intenso o movimento dos camponeses a
trabalhar, cujas famílias, por vezes, viam seu efetivo de mão de obra
somado de um ou outro dos budistas do mosteiro, que, voluntariamente,
desejassem labutar mais duramente, como parte de sua formação e
disciplina.

Toda a terra, produtiva ou não, em grande perímetro além da cidade,


pertencia ao reino. O reino era um grande feudo e todos tinham obrigações
e deveres para com ele e com sua sobrevivência. Assim é que os
arrendatários de terra se viam obrigados a ceder metade de sua produção
para o governo, ficando para si com a metade da outra parte, deixando o
restante para a divisão entre dezenas de famílias, às vezes centenas. Havia,
entretanto, outro tipo de propriedade, que eram concessões com relativa
autonomia, e que representavam feudos dentro do grande feudo. Tratavam-
se de casos especiais não vinculados às regras e nem aos limites, podendo
representar pequenas, médias ou grandes extensões de terra, cabendo ao
mandatário real – o rei – estabelecer oficialmente suas dimensões e termos
de privilégios. Essas concessões ou feudos menores, entretanto, por maior
que fosse o desfruto de suas autonomias, jamais deixavam de dar
obediências ao governo, e o rei detinha poderes sobre eles nos assuntos
principais do reino em que necessitasse fazer valer sua vontade. Assim,
podia convocar servidores, quando achasse conveniente, recrutar homens
para reforçar o seu exército nalguma emergência e exigir maior parte da
produção em tempos magros ou de calamidades. Não obstante, em épocas
de normalidade, era reduzido o percentual de suas obrigações com o
governo, e desse modo seus mandatários administravam a produção com
maior margem de ganhos sobre seus resultados.

E as concessões incluíam os budistas do mosteiro, estando não


obstante isentos de outras obrigações com o reino que viessem colidir com
sua filosofia religiosa. Assim é que não serviam ao exército e nem eram
convocados para tarefas outras, a menos que desejassem realizá-las
voluntariamente. Viviam, pois, em seu mosteiro, praticamente sem qualquer
tipo de ingerência do reino, existindo respeito às suas convicções tanto pela
realeza como pelo povo. Como a concessão incluía as extensões de terra,
eles eram obrigados a doar o seu quinhão, o que faziam exemplarmente,
sem subterfúgios, dividindo o restante da produção de maneira que
detivessem a menor porção - somente para suas necessidades - deixando
para as famílias a maior parte. Os budistas viviam modestamente e só
aceitavam explorar a terra com o principal fito de auxiliar as famílias das
cercanias. Não havia neles, evidentemente, a busca do lucro e deixavam os
camponeses trabalhar sem o jugo da produção em grande escala. Tanto
melhor para eles se mais produzissem, porém sem usura. Os monges, além
do respeito que granjeavam do povo pela religião, atuavam, também, como
médicos e farmacêuticos. Curavam doenças através de seu conhecimento
de anatomia e medicina de plantas, bem como estendiam o seu auxílio para
os acidentados. Quando saiam do mosteiro para as peregrinações, quer nos
campos ou nas cidades, nada levavam além da roupa do corpo, e se
alimentavam do que lhes davam a comer, dormindo onde lhes permitissem.
Era seu voto de pobreza e humildade.

Pequeno Wan logo se prendeu a observar as atividades dos budistas,


passando a acompanhá-los com vivo interesse. Podia circular à vontade
pelo mosteiro e isso causava-lhe grande bem estar. Estranhou, a princípio,
não ser reverenciado e nem saudado com a vênia com que todos o deferiam
no palácio. Na realidade, somente o cumprimentavam com meneios de
cabeça, que baixavam levemente, e juntar de mãos, como era comum entre
todos. As reverências maiores e mais demoradas, exerciam-nas diante da
grande estátua de Buda, em bronze, num dos salões que era o templo e
santuário de seus principais rituais. Ali muitas lamparinas ardiam e muito
incenso e ervas aromáticas eram queimados. Passada, pois, essa
estranheza, pode sentir-se de fato mais livre. Era príncipe por herança de
sua nobre estirpe, mas isso no monastério era de relativa importância por
que não o olhavam por esse lado, senão, fundamentalmente, como uma
unidade no todo, portadora de divindade ainda em repouso, que um dia seria
buscada com o vigor e a energia daqueles que crêem, despertando para a
verdadeira vida!

Não havia meninos no mosteiro, ele era o único. Os mais jovens


ultrapassavam os dezoitos anos e engajavam-se no discipulado, na tentativa
de um dia chegar a monges. Dentre esses se achava Yang Te-Chun e
pequeno Wan sentia crescer uma afinidade com ele, difícil de explicar, mas
que lhe era natural e fluente. Nos momentos de lazer, Yang Te-Chun o
procurava e saiam a andar pelos jardins, pomar ou sob as figueiras, por
onde cortava o pequeno riacho. O rapaz respondia as perguntas a que não
necessitasse omitir, e se reservava diante daquelas julgadas inacessíveis.
- Como entender isto, Yang Te-Chun? - insistia às vezes o príncipe.
- Príncipe Wan, há entre você e eu distância tão pequena que podemos
vencê-la estendendo um braço. Porém, esta distância pode representar um
oceano quando nossos olhos enxergam somente as formas da própria
distância, ainda que toquemos um ao outro.
- Não posso compreender o que fala, Yang Te-Chun!
- Vê esta folha de figueira? - ele abaixou-se a tomando do chão - há
nela a história de todo o universo que existiu e existe, além de guardar o
porvir. Porém, esqueça isto por enquanto e trate primeiro de observar os
fatos menores que o cercam, depois os maiores, até que, um dia concluirá
que o universo em que os seus sentidos vivem lhe é pequeno. Então
entenderá o que nos diz a simples folha de figueira.
- Você me confunde, Yang Te-Chun!
- Assim é, assim me fazem também Meng Keng e os outros monges.
Essa é minha busca e um dia verei claro e sabiamente, mais do que as
palavras dos veneráveis mestres agora possam me ensinar - completou
sorrindo, largando suavemente a folha no ar.

Pequeno Wan dia a dia assimilava os hábitos e atitudes dos budistas.


Acordava cedo, com o nascer do Sol, acompanhava a saudação ao astro e
ao novo dia, e meditava na medida em que permitia seu entendimento.
Fazia com os monges e discípulos o desjejum; escutava as lições e a
distribuição das tarefas e aguardava a chegada de um ou outro do povo que,
de alguma sorte, vinha pedir ajuda. Antes, porém, se retirava e se ocultava
para não despertar curiosidade sobre sua pessoa. Dentro do mosteiro,
presenciou, certa vez, preparativos para determinada solenidade ritualística.
Ficou triste ao ser comunicado de que não poderia assisti-la, permanecendo
fora do santuário. Todavia, ficava a escutar, ainda que abafados, os cânticos
e mantras da abertura da cerimônia, percebendo que depois silenciavam.
- Yang Te-Chun, eles estão trancados em silêncio há quase dois dias,
por quê? - perguntou `a tarde, na caminhada habitual.
- Meditam, príncipe, meditam!
- E quando sairão de lá?
- Em três dias, cinco ou semanas. Ficarão desligados de seus corpos o
quanto for necessário.
- E depois?
- Voltarão.
Durou exatamente vinte e sete dias a reclusão. Naquela manhã,
pequeno Wan observava como os discípulos levavam para o santuário
tigelas com sopas e taças com licores. Depois, eles saiam e recolhiam-se
para o alojamento, com rostos tranquilos e sorriso nos lábios.

Certa manhã chuvosa, Meng Keng surgiu no alojamento onde


pequeno Wan se encontrava e o trouxe rapidamente pelo corredor,
adentrando pelo santuário em que ficava a grande estátua de Buda,
ignorando as perguntas do príncipe. Ainda em silencio, contornou o
monumento e parou atrás, apontando exatamente para o primeiro dos três
degraus, sobre os quais Buda repousava. Abaixou-se e colocou as mãos no
degrau, solicitando que pequeno Wan fizesse o mesmo, começando ambos
a forçá-lo. Para surpresa do príncipe, parte do degrau foi aos poucos
deslizando deixando à mostra um vão escuro. Em seguida, Meng Keng
levantou-se, indo buscar uma lamparina, voltando imediatamente e
principiando a descer uma escada ordenando que pequeno Wan o seguisse.
Ao término, Wan notou estarem num grande salão e Meng Keng foi até a
parede acendendo outra lamparina. Com melhor luz, pequeno Wan podia
ver agora tratar-se de outro santuário - embora no porão - provavelmente
com as mesmas dimensões daquele de cima, onde vários objetos estavam
guardados, limpos e bem conservados. Ao alto, em espaços regulares,
existiam aberturas entre paredes duplas que se constituíam em respiradores
a absorver o ar externo.
- Os soldados de Kuang estão chegando, fique aqui e não tema! - disse-
lhe, finalmente, o monge.

Meng Keng retornou rapidamente e deslizou o comprido degrau de volta


para a posição anterior, fechando a entrada. Pequeno Wan permanecia
imóvel e assustado. Em seguida, escutou os passos do monge que se
afastava, e levantou a cabeça acompanhando-os com os olhos, como se
pudesse ver através do teto. Nem se refizera ainda do susto voltou a ser
atraído por novos passos, desta feita, muitos, e apressados. Eles cruzavam
todas as direções do salão e depois cessaram dando lugar ao silêncio. O
silêncio foi rápido e começaram cânticos e o timbrar de metais que se
prolongaram.

Cansado de ficar em pé, ainda tenso e temeroso, Wan buscou o lugar


sob a lamparina acesa e recostou-se na parede, ficando atento. No outro
lado e ao fundo do salão sombras pairavam; ele ouvia os cânticos, os
instrumentos e tentava se acalmar. Ficou no mesmo lugar até que de novo o
degrau fosse mexido e deslizasse, abrindo um facho de claridade dentro do
ambiente. Ele rapidamente levantou-se, sentindo o coração palpitar mais
forte. Havia agora silêncio; os únicos ruídos que acusava eram, exatamente,
do atrito do degrau que deslizava. Ansioso, pregava os olhos na abertura
que aos poucos alargava. Estava um tanto desnorteado; não sabia quanto
tempo se passara, se adormecera, e nem lembrava quando os monges
haviam cessado os seus cânticos. Finalmente, os pés que conhecia
começaram a descer os degraus. Já via aparecer a ponta das vestes do
mestre, mas os soldados viriam atrás? Meng Keng então surgiu inteiro e
parou após o último degrau.
- Os soldados já se foram - um leve sorriso esboçou-se nos seus lábios -
está tudo bem. Pequeno Wan correu e o abraçou, colando o rosto em seu
peito.
- Não tive medo, mestre, estou aprendendo a confiar! – disse,
afastando-se um passo, olhando-o altivamente.
- Confiar é necessário. Porém, é sempre mais reconfortante quando
vemos o resultado daquilo que o bom senso apontou.
- O que eles queriam, mestre?
- Oh, era visita de reconhecimento. Queriam saber o que fazemos e
lembrar-nos de que devemos continuar produzindo para eles. Mas não
aumentaram a nossa cota de obrigações - finalizou, encaminhando-se para
a parede, apagando a lamparina dali e se preparando para subir
.
Mais tarde, pequeno Wan saberia por Yang Te-Chun que os soldados
vieram decididos a inspecionar rigorosamente todo o mosteiro, porém tendo
encontrado os monges cantando e tocando os seus instrumentos, sem dar-
lhes a menor atenção, não se animaram em prosseguir. Hesitaram e
recearam interromper o ritual, ainda mais que da porta olhavam a grande
estátua de Buda parecendo temê-la. Meng Keng estava ao lado do oficial
comandante da patrulha e após rápida e superficial vistoria pelos arredores,
ouviu dele as seguintes palavras:
- Nosso rei, o general Kuang, manda dizer que respeita a grande ciência
dos monges deste mosteiro. Não deseja aumentar a participação de suas
obrigações para com o governo e pede que, em suas visitas à cidade, não
deixem de assistir aos seus soldados quando algum mal os afetar, ou ir
atendê-lo, pessoalmente, se ele necessitar de sua reconhecida medicina.
Meng Keng curvou ligeiramente a cabeça e respondeu:
- Envio ao general Kuang agradecimentos por sua bondade bem como
votos de prosperidade para todo o reino. A humilde sabedoria que
possuímos nada seria se o Venerável Buda não vivesse. Felizmente Ele
vive. Nossa medicina é para todos. Fique tranquilo o mandatário do reino.
Com a presença do Venerável em nossos corações os assistiremos
conforme deseja.

///

Pequeno Wan forçava disciplinar-se, e buscava sempre os conselhos


dos mais experientes. Além de Yang Te-Chun, seu melhor amigo,
relacionava-se com outros jovens e, comumente, via-se incluído na roda de
conversas, orações ou meditações que realizavam. Certo dia Meng Keng
chamou-o na varanda.
- Pequeno Wan, tenho boas notícias para você: sua família vive! - disse
calmamente, sentado numa cadeira. O príncipe excitou-se, seus olhos
brilharam.
- Eu sabia, mestre, tinha certeza! Mas onde?
- Numa província de um primo do rei, a leste. Hospedam-se na casa
dele, Cheng Chia os viu - disse apontando para o missionário que estava em
pé, ao seu lado. Cheng Chia sorriu e confirmou com aceno de cabeça.
- E como estão eles, Cheng Chia, você os viu a todos? - perguntou
ansioso.
- Sim, eu os vi a todos. Primo do rei já me conhece e a Meng Keng,
confia em nosso silêncio e discrição, por isso levou-me até seus familiares.
Sua mãe, a rainha, estava doente. Nada grave, mas precisava de cuidados.
Dei-lhe a medicação necessária. Os outros estão bem - ele de novo fez
reverência acenando com a cabeça.
- Você contou-lhes que estou vivo?
- Não tinha autorização para fazê-lo, nada disse.
- Pequeno Wan - interrompeu suavemente Meng Keng - devemos
conduzi-lo de volta para sua família. Seus corações estão pesarosos com a
perda que supõem aconteceu. Ficarão muito felizes em revê-lo - Pequeno
Wan calou-se e como assim permanecesse Meng Keng reiniciou: - algo
errado, pequeno Wan? - ele levantou o rosto mostrando os olhos
entristecidos.
- Mestre, eu não quero ir, desejo ficar aqui! - falou devagar, porém
firmemente.
- É o príncipe, precisa juntar-se aos seus. Não podemos oferecer a um
príncipe o que ele tem por direito. Somos humildes monges!
- Não preciso de cuidados especiais, desejo ser monge como você -
reafirmou sem hesitação. Meng Keng olhou-o com brandura e admiração.
Então, levantando-se, dobrou-se ligeiramente em habitual reverência e
retirou-se para dentro da casa.

Naquela noite, pequeno Wan debateu-se, falou e teve sonhos ruins. Os


jovens que dormiam no alojamento se preocuparam com sua agitação. A
certa altura da madrugada, enquanto ele falava e se debatia, Yang Te-Chun
aproximou-se, sentando-se na beira da cama, e pôs-lhe a mão na suada
testa chamando-o. Pequeno Wan acordou de súbito, sentando-se e
abraçando-se ao amigo.
- Não quero ir, não quero! - falou apertando-o contra o agitado coração.
Yang Te-Chun envolveu-o num suave abraço e depois o largou.
- Príncipe, tenha calma. Todas as coisas têm uma solução. Confie e
exponha seu coração ao Venerável.
Pequeno Wan pareceu compreender as palavras de Yang Te-Chun e
ajeitou-se na cama, colocando os pés no chão, sobre as sandálias. Então
fechou os olhos, orou e juntou as mãos no peito, em gesto de quem segura
o coração, para depois levantar a cabeça, ainda de olhos fechados, e elevar
as mãos juntas e semi abertas até a altura do rosto em oferenda. Tomado
de uma indizível presença, ainda de rosto levantado, ele abriu as mãos com
suavidade e afastou-as lentamente, ficando certo tempo com os braços
adiante, paralelos, e mãos ainda abertas. Baixando o queixo, trouxe as
mãos espaldadas novamente de encontro ao jovem coração, apertando-as
um pouco, soltando-se depois. Em seguida, sem nada dizer, com gestos tão
suaves quanto na oração que oferecera, deitou-se e adormeceu de imediato.
Yang Te-Chun, vendo-o mergulhar em sono, cobriu-o com a coberta
recheada de penas de aves, e se afastou, fazendo antes sinal de silêncio
aos companheiros que, a dois passos, a tudo assistiam.

Dia seguinte decorria sem novidades. Pequeno Wan, entretanto, não


tinha a mesma alegria de sempre, permanecendo a maior parte do tempo
calado. À tarde, pouco antes do Sol se pôr, quando os jovens encerravam
suas atividades nos cuidados dispensados ao jardim e retornavam ao
alojamento, Meng Keng foi-lhe ao encontro, trazendo-o a um canto,
pousando-lhe a mão sobre o ombro falando-lhe com habitual calma:
- Os mais velhos estivemos reunidos, conversando sobre o seu caso.
Surgiu entre nós uma idéia que gostaríamos de praticar, com seu
consentimento. Trata-se do seguinte: enviaremos aos reis uma mensagem
escrita por seu próprio punho, na qual dirá que está bem neste lugar e aqui
deseja continuar. O mensageiro levará o pergaminho e uma peça de roupa
para que a examinem e atestem ser sua e explicará de que maneira você
chegou ao mosteiro. Evidentemente, os reis estranharão tal pedido, porém o
mensageiro lhes explicará que é desejo pessoal do príncipe aqui
permanecer, podendo o rei enviar uma pessoa de sua confiança para
comprovar o que dizemos. O rei aceitando o pedido, o mensageiro solicitará
dele uma declaração que permitirá ao príncipe aqui permanecer durante o
tempo em que a situação perdurar - pequeno Wan alegrou-se com a idéia,
mas antes que pudesse dizer algo, o monge prosseguiu: - entretanto, devo
esclarecer que, uma vez formalizada esta situação com a autorização real, o
príncipe deixará de ser príncipe no mosteiro para tornar-se um aspirante dos
estágios inferiores, realizando, por obrigação, todas as tarefas que lhe
couberem, sem quaisquer privilégios. Pequeno Wan olhou-o admirado e
após segundos indagou:
- E se não consegui realizar tudo conforme exigem, serei mandado
embora?
- Perderá a oportunidade de ser um dos nossos - disse simplesmente o
monge.
- Eu quero, preciso tentar! - decidiu-se rapidamente.
- Então providenciaremos o que planejamos - confirmou Meng Keng,
dobrando-se em suave reverência, afastando-se em direção da casa.
Pequeno Wan ainda permaneceu por ali, excitado, observando a luz mortiça
e descolorida detrás das montanhas, onde o Sol já mergulhara.

Noutra manhã, Meng Keng colocaria nas mãos de Wan reduzido


pergaminho e um pequeno recipiente contendo tinta e uma pena, a fim de
que escrevesse a mensagem. Ele correu a um canto, sentou-se no chão, e,
sobre pequena banqueta, escreveu segundo a orientação recebida. Meng
Keng aprovou o texto e solicitou-lhe uma peça das vestes que usava ao
chegar no mosteiro. Depois chamou ao mensageiro, o próprio Cheng Chia,
entregando-lhe os objetos, dando-lhe todas as instruções necessárias
liberando-o para partir. Cheng Chia reverenciou a ambos e pôs-se
imediatamente a caminho.
Dois meses depois Cheng Chia retornava informando que os reis
haviam chorado e festejado ao saber que o filho vivia, tendo feito muitas
perguntas. Ao lerem a mensagem, estranharam o pedido do príncipe,
porque desejavam vê-lo e abraçá-lo, imaginando que esse mesmo
sentimento se passasse em seu coração. Entretanto, após refletirem,
consideraram mais sensato ele permanecer por enquanto no mosteiro; não
havia mesmo condições de completa segurança onde estavam e temiam
que Kuang pudesse vir a descobri-los mandando matá-los a todos.
Tencionavam vê-lo mais tarde e conversariam sobre seu destino. Não
obstante, o rei enviava a declaração para Meng Keng, dando-lhe a tutela
temporária do filho, na expectativa de que a situação um dia mudasse. A
declaração foi suficiente para o monge, que a mostrou para pequeno Wan.
- Meu pai, o rei, consentiu! - exclamou Wan exultante.
- Isso significa que poderá abraçar a vida monástica, conforme seu
desejo, até que o rei decida outra coisa.
- Serei monge, graças ao Venerável! - afirmou ignorando o resto. Meng
Keng uma vez mais o olhou com admiração.

Começaria-lhe a partir dali outra vida no mosteiro. Como iniciante, foi


conduzido a realizar as tarefas mais simples, que significavam despir-se do
orgulho e reafirmar a intenção de prosseguir. Embora criança, teria de
demonstrar essa vontade a fim de que mais tarde, ao atingir idade adulta,
viesse a reconfirmar o seu desejo de continuar. O primeiro ato que
oficializava essa aceitação, seria cortar a trança e tosar a cabeça. Ele assim
fez e após a tonsura ofertou a trança a Buda, em ato simbólico. Foi lhe dada
a veste branca, e diante da estátua do Venerável, repetiu as palavras de
intenção em aprender a servi-Lo. Jurava lealdade e obediência aos seus
mestres, entregando-lhes confiantemente sua vida, a fim de que o
ensinassem.

Passavam-se os dias e pequeno Wan se desempenhava alegremente


de suas tarefas. Nunca reclamava, realizando tudo com admirável
dedicação. Às tardes, como de hábito, passeava pelo mosteiro. Certa
manhã, um grupo de missionários preparava-se para partir em direção de
um vilarejo onde souberam existir algumas pessoas doentes que lhes
haviam mandado pedir ajuda. Meng Keng designara um monge do conselho
para ir junto, incluindo Yang Te-Chun e pequeno Wan. Isso surpreendeu
Wan, deixando-o preocupado.
- Ninguém o reconhecerá, irmão Wan. Poucos o conheciam fora do
palácio e nesse vilarejo distante jamais suspeitariam tratar-se do príncipe.
Porém, silêncio! - disse Meng Keng tranqüilizando-o.

Pequeno Wan partiu com o grupo. Nos cinco dias seguintes, até
alcançarem o vilarejo tiveram alguns percalços. Pegaram chuva, dormiram
em celeiros, viajaram de carona em carroças puxadas por bois ou cavalos e
comeram pouco. À chegada, nem mesmo puderam descansar, começando
logo a atender o povo, preparando remédios, realizando rezas e atos de
curas. Pequeno Wan auxiliava aos mais experientes e ajudava no amparo
aos doentes. O trabalho despendeu-lhes mais de trinta dias, ao cabo dos
quais deixaram o vilarejo sob reverência da população, que se ajoelhava ou
beijavam-lhes as mãos.

///

Tendo completado dezoito anos, jovem Wan achava-se ante o umbral


de sua primeira iniciação. Já deixara o noviciado e respectivos estágios e se
preparava para receber a primeira graça que o colocaria diante do caminho
de monge. Seria sua primeira grande decisão e dali em diante tudo se
mostraria diferente do que até então experimentara. Algo começava desde
já a se manifestar em seu íntimo e necessitava provar-se ao máximo para
não se enganar. Nesses cinco anos em que aqui vivera obtivera belos
ensinamentos, visitara muitos lugares e realizara tudo o que se requeria
para um noviço. Da família real tivera somente notícias, pois Kuang
temeroso de uma rebelião enviava constantemente patrulhas para vasculhar
todo o reino, e mediante isso os reis optaram por se manter escondidos,
contrariamente ao que haviam planejado de início. Assim, não puderam
visitar o mosteiro e rever o príncipe. E nem Wan, por ordem de Meng Keng,
saíra a visitá-los mesmo em grupos de peregrinos. Entretanto, ninguém
suspeitava do que estaria para acontecer.

Kuang, havendo recomposto parte do efetivo de seu exército, que se


reduzira à metade pela partida daqueles que havia expulso, julgava-se de
novo suficientemente forte. Como fosse inábil para governar e estivesse
encontrando dificuldades em administrar a produção do reino,
principalmente de alimentos, começou a preocupar-se. De nada valeram as
ameaças, punições e execuções que realizara contra o povo e camponeses.
A situação não mudava, e quando parecia que iria mudar, algum fato novo
surgia, como se conspirasse contra ele. Assim, sucessivas pragas
dizimavam parte das lavouras; enchentes estragavam plantações ou
prolongadas secas castigavam a terra, acabando com a possibilidade de
colheitas. Sem saber o que fazer de modo a resolver esses problemas, o
tirano lançou olhar para mais distante, começando a ambicionar novas
conquistas.

Havia dois reinos vizinhos: um no leste e outro no oeste e ele


engendrou um plano. Nesses últimos dias enviara mensageiros a ambos os
governantes fazendo-os sabedores de suas dificuldades. Os mandatários
reais não se manifestaram; ademais naturalmente desaprovavam o modo
como Kuang usurpara o trono do sul, havendo o temor de que também
atentasse um dia contra eles. Kuang já soubera disto através de espiões, e
passados alguns dias, sem que recebesse respostas ou auxílio, enviou
novos mensageiros, desta feita encarregados de ameaçar-lhes. Aquilo
provocou alerta geral e turbulência nos reinos, do que habilmente se
aproveitou o rei deposto - pai de jovem Wan - para estabelecer contatos,
propondo aos reis do leste e oeste juntar os exércitos e atacar Kuang. Como
o antigo rei conhecesse os pontos estratégicos de sua cidade, atacariam sob
sua orientação e a invadiriam. Vencendo, se livrariam de Kuang; o rei
reassumiria o reino do sul e voltariam a viver sem ameaças de guerras ou
invasões. Eles aceitaram unir-se e firmaram aliança.

Porém, como desconfiassem de que Kuang não demoraria para


cumprir suas ameaças, uma vez que não estavam dispostos a ajudá-lo,
enviaram espiões ao sul com a finalidade precípua de obter o mais rápido
possível essas informações, enquanto organizavam os seus exércitos nas
montanhas, preparando-se para a guerra. Ademais, tinham fortes suspeitas
de que o tirano atacaria primeiramente o leste, por ser o reino mais próximo
e o mais rico; dessa maneira, precisariam estar atentos à emergência,
juntando os exércitos o mais rápido possível a fim de lutar. E não estavam
enganados. Kuang realmente se preparava para atacar o leste, sem saber
da aliança. Todavia, tendo os espiões contado aos aliados o que tinham
presenciado, eles rapidamente se reuniram adotando nova estratégia,
partindo ao encontro de Kuang.

Na região montanhosa entre os dois reinos, os aliados se esconderam


e aguardaram que Kuang penetrasse os caminhos do desfiladeiro. Sem
suspeitar, os inimigos fizeram o exato percurso que os aliados desejavam e
foram atacados. Kuang, ao ver que caíra em armadilha, gritou feito animal
enfurecido, exigindo o que podia de seus homens. Porém, sob a chuva
incessante de flechas, os soldados iam perecendo sem ter onde se
esconder. Kuang então voltou com parte de seu exército e furou a
retaguarda, se evadindo do desfiladeiro, sendo perseguido pelos aliados,
enquanto seus soldados que permaneceram nas montanhas se rendiam.
Kuang conseguiu voltar à cidade e desesperadamente reuniu as forças que
lhe restaram a fim de resistir aos exércitos que logo o atacariam. Mas eles
não atacaram. Antes, colocaram-se em redor dos muros da cidade, fazendo
inteligente cerco em todas as saídas, ali permanecendo a sitiá-los.

Na realidade, isso não os afetaria de imediato, pois conseguiriam


sobreviver por muitos dias, mas era uma forma de coagi-los. Tendo isso em
mente, e sabedor através dos prisioneiros de que muitos soldados de Kuang
eram jovens nativos do reino obrigados a se alistar, o rei do sul, sabiamente,
mandou-lhes seguidas mensagens exortando-os a abandonar Kuang por
que estariam contra seu verdadeiro rei, morrendo inutilmente. O general
inimigo ao saber disso ameaçou executar a qualquer um que tentasse
desertar, como também mandaria matar toda a sua família. Eles então,
temerosos, nada fizeram, permanecendo em seus postos.

Mas o rei, pai do príncipe Wan, não pôde esperar mais tempo. Os
mandatários dos reinos aliados determinaram que seus exércitos atacassem
definitivamente a cidade, visto Kuang não ter condições de oferecer-lhes
grande resistência. E assim fizeram, sendo ajudados ainda por um fator que
somou decisivamente na sorte da batalha: os jovens soldados da cidade,
sensibilizados pelas exortações de seu verdadeiro rei, em dado momento
atacaram corajosamente aos guardas dos portões principais, abrindo-os
para a penetração dos aliados. Isso tonteou aos homens de Kuang fazendo-
os debandar, assegurando dessa maneira a vitória dos aliados. Kuang
tentou fugir, mas foi cercado. Ao ver-se perdido, correu para o alto de uma
das torres do palácio e de lá se jogou, morrendo instantaneamente. O povo
então saiu às ruas para saudar os soldados e conduzir o rei em seus braços
depositando-o no trono do palácio. Ali mesmo, no palácio, os três reis
reafirmaram o antigo pacto de não agressão mútua, pois não interessava a
nenhum deles apossar-se de outro reino.

///

O rei mandara fazer obras no palácio enquanto a família real se


deslocava de seu refúgio a caminho do reino. Enviou também mensagem ao
mosteiro, ordenando que jovem Wan se apresentasse, pois desejava revê-lo
e abraçá-lo depois de tantos anos. Mas foi surpreendido com a notícia de
que, nestes dias, ele não poderia ausentar-se do mosteiro, estando em meio
aos preparativos para a cerimônia de iniciação, tendo entrado em
meditação. Estranhando tal resposta, o rei tomou a carruagem e dirigiu-se
ao mosteiro. Meng Keng veio recebê-lo, conduzindo-o a pequena sala de
recepções.
- Vim para levar o príncipe! - disse em tom de ordem. O monge
reverenciou-o, respondendo:
- Jovem Wan prepara-se para iniciar novo estágio em sua vida. Daqui
para diante novo processo de transformação deverá acontecer em sua
mente. É seu desejo obter a experiência.
- Ele é o príncipe herdeiro, sabe disto Meng Keng! - interrompeu-o o rei.
Meng Keng de novo curvou-se ligeiramente e retomou:
- Sem dúvida, majestade, e muito nos honrou a autorização para jovem
Wan aqui permanecer não somente em exílio. E nessa condição honrosa
para nós também recebeu ensinamentos, revelando-se ótimo discípulo,
amando o Reverendíssimo com verdadeira devoção e aprendendo com rara
habilidade. Jovem Wan é alma valorosa - o rei sorriu - mas seria prudente, o
sábio rei tentar ler seu coração e adivinhar seus desejos. Não creio que será
fácil para ambos este reencontro.
O rei mostrou preocupação na fisionomia e seus olhos piscaram com
maior intensidade.
- Deixe-me ver meu filho agora! - ordenou.
- A vontade do rei será humildemente atendida - dizendo isso se curvou
e foi até a pequena base de canto, tomando um guizo, agitando-o. Logo a
porta abriu-se e um jovem aproximou-se.
- Traga irmão Wan, o rei deseja vê-lo!

O jovem curvou-se para ambos e retirou-se. O rei e o monge


permaneceram em silêncio: o monge de pé olhava adiante, tranquilo, como
se meditasse. As mãos juntas à frente, uma sobre a outra, apoiava-as
levemente na parte superior do ventre, próximo ao coração. Imóvel ali ficara.
O rei, ao contrário, embora sentado, mostrava-se irrequieto, ora coçava as
mãos, o queixo, ora mexia-se ou tamborilava nas coxas. Seus olhos, vez por
outra, fixavam-se ansiosamente na porta. Para o monge o tempo seria
fugidio, quase inexistente; para o rei seria pesado e interminável. Finalmente
a porta começou a abrir-se, e o rei, não suportando mais aquela expectativa,
pôs-se de pé num só e brusco movimento. Jovem Wan adentrou.
Surpreendentemente alto, acima de todos, cabeça raspada, rosto tranquilo,
vestindo alva e simples túnica, descalço, com suaves passos, caminhou em
direção ao rei que o mirava com grande emoção. Era admirável sua figura
causando grande impressão. Não era mais o menino que corria pelos jardins
do palácio, e cuja imagem tantas vezes evocada nos anos de separação,
ainda permanecera na memória paterna como imperecível recordação.
Essas imagens agora se diluíam e na medida em que Wan se aproximava
algo mais se excedia de sua presença: uma nobreza maior, talvez mais rara
e extraordinária nunca antes vista no reino! Súbito sentimento de orgulhou
brotou do coração do pai: o príncipe era belo e já era um homem!
- Pai! - disse com brandura, curvando-se ligeiramente.
- Filho - disse o rei, abrindo os braços e o abraçando. Meng Keng
retirou-se e fechou a porta, deixando-os a sós. Passados aqueles instantes
emotivos o rei começou:
- Vim buscá-lo, Wan, o palácio e o reino são novamente nossos. O
inimigo foi destruído e arrancou a própria vida do corpo. Nada mais existe a
temer. - jovem Wan fitou-o em silêncio e uma sombra desceu em seu olhar.
O rei, embaraçado pelo silêncio do filho, retomou: - mandei chamá-lo,
disseram-me que não podia ir, que acontece, como desobedecem assim ao
rei?
- Eu tomei a decisão, não eles. Mandei dizer-lhe o que lhe disseram -
jovem Wan falava sem demonstrar emoção, com admirável autocontrole.
- Que se passa, Wan, acabou o exílio, é o príncipe, precisa voltar e
preparar-se como nobre que é, um dia será o rei - ele com mãos abertas
gesticulava energicamente.
- Um dia serei monge, já decidi. Não posso abandonar o mosteiro agora.
No momento recolho-me e medito para a cerimônia de aceitação.
- Nasceu príncipe e príncipe é! Tem de viver sua própria herança,
insisto. Eu, o rei, nesse instante anulo o documento de tutela que dei aos
monges.
- Perdoe-me meu pai e rei, não deixarei o mosteiro!
- Não ama mais a seus pais, sua família. Mas a despeito disto o sangue
real corre-lhe nas veias, isto jamais negará. Que fizeram de você, que idéias
puseram em sua cabeça?
- Eles jamais tentaram mudar-me. Eu os aceitei naturalmente; aceitei ao
Venerável, eu O quero e jurei-Lhe devoção e lealdade. Abdico de todos os
meus direitos de príncipe herdeiro em favor de meu irmão; nada mais desejo
do mundo, exceto servir Buda!

O rei mal acreditava no que ouvia, deixando-se cair na cadeira,


baixando o rosto, passando os dedos trêmulos sobre a testa. Ficou assim
por instantes, abatido, mas logo elevou o olhar altivamente mirando o
príncipe.
- Sabe que posso levá-lo, queira ou não?
- Sim, mas de que adiantaria? Tomaria meu corpo, não minha vontade.
Isso, ao contrário, somente reforçaria meu desejo de ser livre!
- Foge da responsabilidade, vejo agora, teme-a! É mais fácil esconder-
se no mosteiro, sob a desculpa de atender a Buda. Porém, saiba, amo-O
também, mas sou rei e como rei vivo. Creio compreender o que se passa em
seu coração. Mas venha, caminhe ao meu lado, eu o ajudarei a encontrar de
novo a coragem! - o rei, já de pé, estendia-lhe a mão.

Jovem Wan não mais falou. Vira a tremenda distância que se


alargava entre o seu mundo interior e o mundo do rei. Como explicar-lhe se
era julgado covarde? Covarde não era, mas estaria realmente certo de sua
decisão? Não se lembrava de haver escutado a voz interna a dizer-lhe
qualquer coisa como: caminhe, não se perturbe, nada ouça do mundo! Ao
contrário, nesses dias tudo lhe parecia volúvel. Aquele edifício de idéias
pacientemente construído através dos anos tornava-se frágil; ameaçava
desmoronar. A prova era essa: estaria certo ou errado?
- Venha, filho, o rei tem um primogênito, e esta dádiva divina é você. É o
escolhido, reinará sobre homens, guiará mentes e corações, é seu destino!
No peito ainda a dúvida e jovem Wan perturbou-se - fugia realmente do
mundo? O silêncio agora se impunha. De ambas as partes as respostas
eram aguardadas. E tudo convergia sobre a jovem alma! Finalmente tenso e
dando visível mostra de sua impaciência, o rei tornou:
- Uma vez que não atende aos meus clamores vou-me embora para
não usar de meios que insultariam a casa do Venerável. Mas voltarei. E
quando aqui de novo estiver será para levá-lo em definitivo. Pense nisto, ou
como queira, medite. Porém saiba: é meu filho amado! - dizendo isto andou
até a base do canto, tomou o guizo e o agitou. Não demorou Meng Keng
surgiu. Jovem Wan permaneceu na mesma posição, olhando para adiante,
imóvel, e o rei, sem mesmo olhar para o filho, retirou-se do mosteiro.

Os dias se passavam. A família real finalmente chegava e se juntava ao


rei. As obras no palácio ainda estavam por concluir-se, porém o que já
haviam feito permitia-lhes instalarem-se com conforto. A rainha ultimamente
não vinha gozando de boa saúde e chegara muito cansada. A trilha final que
a pequena caravana tomara se desviara dos caminhos ao mosteiro e a
rainha, apesar de ansiar pelo reencontro com o filho, não tivera condições
de para lá se dirigir. Assim, tomara a decisão de mais tarde enviar emissário
e mandar chamá-lo, isto é, se ele já não estivesse em casa à sua espera,
tendo deixado o mosteiro.

Dia seguinte, apesar do descanso noturno, ela, pela manhã, não


apresentava melhoras, continuando, ademais, bastante fatigada. Mas quis
de novo ouvir notícias de Wan, visto não tê-lo encontrado no palácio
conforme se esperançara. O rei, novamente, em rápidas palavras, pôs-lhe a
par dos acontecimentos, repetindo o que contara em sua chegada. Como
antes, ela não demonstrava chocar-se. Na verdade, encarava os fatos com
aparente normalidade. Nessa manhã, ficou longo tempo em silêncio,
caminhando depois pelo salão, dirigindo-se para uma das sacadas de onde
podia ter vista privilegiada da cidade. O rei, tendo ido verificar como
andavam as obras pelos arredores voltou logo, vindo procurá-la. Uma
surpresa desagradável, no entanto, o aguardava, e a encontrou estendida
no chão, junto à porta do salão que abria para a sacada, gritando por ajuda.

Levaram-na de imediato aos seus aposentos e a trataram com ervas


aromáticas a fim de que reagisse. Ela de fato reagiu, sentando-se e
apoiando-se em almofadas na cabeceira da cama. Mostrava-se pálida, com
negras manchas sob os olhos. O rei, temendo algo pior, enviou emissário ao
mosteiro e mandou chamar Meng Keng. Tendo sido informada disto, e por
intuição, ela, ignorando os conselhos dos médicos da corte, mandou que a
vestissem com suas vestes de gala em fina seda, tendo se adornado com
jóias e se banhado em essências, indo após para o salão principal,
assentando-se no trono ao lado do rei, lá permanecendo. O rei não
entendendo sua postura rogava-lhe para que fosse deitar e aguardasse o
monge em seus aposentos. Ela estranhamente nada respondia,
permanecendo altiva a olhar para adiante, como se visse algo no vazio.

O emissário houvera partido na primeira parte da manhã e sendo


quase meio dia, pouco tempo decorrera desde que a rainha houvera se
assentado no trono. Assim, logo anunciavam que o monge chegava
acompanhado de três outros. Foi somente nesse instante que a vida
emocional pareceu voltar-lhe e ela ajeitou-se, sentindo o coração aquecer no
peito. A porta abriu-se, Meng Keng entrou e os três o seguiram. Ela então o
viu, reconhecendo-o de imediato. O rei não exagerara, mas ele era mais
belo ainda do que imaginara. Vestido simplesmente, caminhando como
humilde discípulo de um sábio, não obstante, excedia-se em realeza. Seu
porte era imponente - o mais alto de todos. Jovem Wan era forte, apesar da
vida asceta que abraçara, e deixava transparecer muito mais do que
pretendia ser! Nova chispa de emoção subiu-lhe do coração para os olhos e
ela chorou. O rei, apercebendo-se de seu estado, segurou-lhe a mão. Ela,
meneando a cabeça, sem tirar os olhos do filho, pretendeu indicar que
estava tudo bem.

Eles se aproximaram, e para surpresa do rei, jovem Wan ajoelhou-se e


apoiou o rosto nas pernas da rainha. Ela, sem conter as lágrimas, acariciou-
lhe a lisa cabeça, e levantando-lhe carinhosamente o rosto, arcou-se e o
beijou.
- Mãe, que alegria revê-la! - balbuciou com os olhos brilhando de
emoção, erguendo-se um pouco mais.
- Filho querido! Ela o abraçou e chorou convulsivamente.

Jovem Wan permaneceu ao lado da mãe durante todo o tempo em


que ela esteve sob os cuidados de Meng Keng, e mais ainda, quando três
dias depois o mestre se fora com os dois outros monges. Entretanto, antes
que partissem, a rainha fez um pedido a Meng Keng para um ato de
exorcismo e de bênçãos no palácio. Explicara-lhe que desde sua volta vinha
sentindo sufocante pressão e seguido mal estar, achando que nada dessas
coisas teria realmente a ver com seu estado de saúde. Nessa última noite,
tivera pesadelos e a sensação de sombras pretendendo abraçá-la; ouvira
gritos e gemidos. Isso, sem dúvida, era o resultado do mal que se
personificara em Kuang e que no palácio ainda persistia ameaçando as
pessoas. O monge assentiu com a cabeça, arcou-se em vênia e se retirou
para providenciar o que lhe fora solicitado.

Mais tarde, acompanhado dos dois monges e de jovem Wan, Meng


Keng percorria as principais dependências do palácio e locais por ele
escolhidos, queimando ervas aromáticas, vocalizando mantras e invocando
forças de exorcismo e bênçãos. Após o ato partiram, deixando Wan no
palácio.

A decisão em ficar partira do próprio Wan e preparava toda a


medicação para a rainha, seguindo as prescrições de Meng Keng. A rainha
sentia-se confortada e feliz e isso a ajudava na recuperação. A par de
assisti-la no ministramento dos remédios, Wan orava seguidamente a Buda,
invocava mantras e pedia forças para ajudar na cura. Passara-se uma
semana, nesse dia a rainha e o filho achavam-se nos jardins do palácio em
mais um de seus passeios. Novamente ela voltava ao assunto da vocação
despertada em Wan.
- Dedicarei minha vida integralmente em serviço a Buda. Desejo chegar
a monge - ele reafirmava o que tantas vezes já dissera.
- Isso me dá grande satisfação, Wan, mas o rei deseja sua volta ao
palácio.
- Não posso abandonar Buda neste momento, não posso! - e silenciava
como que amargurado. Mais adiante, eles pararam sob belo alpendre
ornado de flores que sobressaiam ao longo de farta e elegante trepadeira a
subir e se espraiar pelas treliças do teto.
- Lembra quando você corria por aqui, assustando aos pássaros e
espantando as codornas?
- Sim, sim! - ele respondeu com leve sorriso apreciando a lembrança.
- Foram anos difíceis no exílio - lembrou séria - já não acreditava
voltarmos para casa livres, sem a sombra da morte sobre nossas cabeças -
ela elevou o olhar para o céu, tanto quanto debaixo do alpendre podia
divisar - o céu é mais bonito aqui, a vida é mais vida. Só este momento vale-
me pelos dias de angústias e incertezas! - seus olhos voltaram-se para Wan
e com movimento lento ela elevou a mão acariciando-lhe o jovem rosto - e
você filho, sofreu muito com esta separação? - perguntou como se
ultimamente já não houvessem falado sobre o assunto.
- Fui mais feliz. O Venerável plantou a paz no meu coração e a
confiança em minha alma. Embora pensasse em vocês e sentisse a falta da
família, era consolado. O tempo semeou muitas lições. Aprendi a ser mais
paciente e a aguardar os acontecimentos.

Prosseguiram. Ao final daquele agradável passeio, Wan dirigiu-se a


rainha, anunciando a decisão:
- Como a senhora está bem, minha mãe, não necessitando mais do meu
auxílio, irei procurar o rei para informar-lhe que volto ao mosteiro amanhã
pela manhã a fim de retomar minha preparação. Almejo ardentemente a
iniciação. Antes, porém, desejo sua benção quanto a esta escolha.

A rainha desviou o olhar para os girassóis a certa distância, enquanto


pensava. Seu rosto ficou por instantes inerte, uma translúcida e invisível
claridade tomou-a clareando os seus cabelos encanecidos. Logo ela voltou-
se para Wan, dizendo-lhe com tranquilidade:
- Não posso abençoá-lo ainda, filho. É necessário refletir mais vezes
sobre o assunto e meditar. Mas peço-lhe não procurar o rei com esta
intenção. Conversarei com ele sobre sua decisão, da qual ele tem
conhecimento desde que por último no mosteiro ambos conversaram. Será
melhor assim, o rei pode zangar-se mais. Jovem Wan olhou-a um tanto
surpreso, dando depois um passo atrás, arcando-se em respeitosa vênia,
tomando-lhe a mão e a beijando.

Manhã seguinte Wan partiu, mas não sem levar mensagem da rainha
para Meng Keng, convidando-o ao palácio para conversarem, tão logo lhe
permitissem suas ocupações. O rei não quis despedir-se do filho. Alegando
um compromisso ausentara-se do palácio, ficando somente a rainha para as
despedidas. Aliás, durante a semana em que Wan a assistira, o rei e o filho,
haviam trocado somente poucas palavras, evitando falar sobre o principal
assunto que os dividia e separava. Na tarde do dia seguinte, chegava ao
palácio um mensageiro do mosteiro trazendo a resposta do monge. No
pequeno pergaminho ele dizia ter imenso prazer em visitar aos reis o que
pretendia mesmo fazer em poucos dias, visto nova fase do tratamento
precisar iniciar-se. Porém, nada urgente, já que tivera notícias por Wan de
sua excelente recuperação. Despedia-se da rainha e enviava aos monarcas
augúrios de longa vida e sábias decisões.

Dois dias depois chegava Meng Keng, se instalava nos aposentos


que, no passado foram-lhe sempre reservados e nesse instante descansava.
Pouco depois procurou a rainha, sendo recebido em seus aposentos onde
também se encontrava o rei. Antes que conversassem, o monge examinou-a
atentamente afirmando que prepararia novos remédios com os ingredientes
que trouxera. Mas não havia motivos para preocupações porque ela estava
bem. Terminada a consulta, ficou à disposição dos monarcas.
- Meng Keng - iniciou ela, sentada na beira da cama, ladeada pelo rei -
preocupa-me Wan. Não pelo amor que dedica ao Venerável, ou pelo
respeito que envia a sua pessoa, monge. Seu destino sim, ele é o príncipe
herdeiro do trono, mas recusa-se assumir isto.
O monge sentado adiante com elegante porte apesar dos anos, apoiava
as mãos sobre as coxas enquanto atentava para as palavras da rainha.
Tendo ela calado, ele suavemente elevou a mão direita e os olhos para o
alto, iniciando:
- O Venerável Buda colocou este dilema na jovem alma do príncipe. Não
creiam, o rei e a rainha, que ele não sofre pela decisão a qual afirma ter
tomado. Príncipe Wan é inteligente como poucos, sabe que contraria os
amados pais e aquilo que está escrito nos costumes por muitas gerações.
Não foi Meng Keng quem forjou essas idéias no seu pensamento nem a
magnífica devoção em seu coração. Foi Buda, ele o chamou naquele dia,
ele o protegeu contra os ferozes inimigos do reino, trazendo-o para mais
perto de Si. Se o Venerável fez isto, outras coisas ainda fará. Portanto, a
vida de jovem Wan também é de Buda.
- Mas o reino, Meng Keng, é dele também. Ele nasceu predestinado a
isto, é o primogênito! - insistiu o rei, impaciente.
- Queira perdoar, majestade. Seria estultícia duvidar da sabedoria do
Venerável. Melhor do que ninguém, Buda sabe quem é príncipe Wan.
- Que fazer, então? - inconformava-se o rei - como aceitar algo que não
alcançamos? Seria necessário Buda também nos mostrar!
- Meng Keng, você disse que meu filho sofre pela decisão tomada, por
quê? Estará ele de alguma forma em dúvida? Terá a certeza absoluta de
que Buda é seu senhor e servi-Lo é seu desejo mais intenso?
- Em tempos de paz florescem os campos incomparavelmente, os
córregos correm cantarolando mais livres do que nunca, as flores sorriem de
maneira peculiar, deliciadas pela fresca aragem que contrasta aos mornos e
belos raios do Sol. O tempo escoa fácil; o coração bate amorosamente e
sem reservas, inebriando-se ao trinar do poético rouxinol. Então o devoto
levanta os olhos para o céu e diz: “Amo-Te, Venerável, pelo amor que
puseste em meu coração, pela esperança que minha alma acolhe, pela
certeza da verdadeira e eterna vida, cheia de venturas, que me aguarda em
Teu reino e além dele. A Ti juro amar-Te sem jamais duvidar de Tua
presença e de Tua infinita sabedoria!” Quando, entretanto, chega o tempo
das turbulências, o céu fecha-se e a natureza cala-se. Os dias são pesados,
às vezes insuportáveis. Um canto lúgubre vem penetrar os ouvidos e tentar
à razão, procurando demonstrar que o real é o sólido e vive melhor quem da
vida sabe aproveitar os prazeres da vida material. O resto são sonhos sem
consistência. E entre recordações doces gravadas na lembrança, somente
na lembrança, e a realidade concreta sentida e apalpada naqueles dias, o
devoto permanece. Como não esperar que uma alma assim vacile e
experimente amarguras?
- Pobre Wan - disse a rainha entristecida - ofertarei incenso e óleo ao
Venerável para que O ajude a vencer.
- O que é vencer? Quem é vencedor nesta luta? Aquele que abandona
a vida do mundo ou quem enfrenta com coragem suas responsabilidades? -
o rei perguntou.
- As obras de cada um estão escritas no seu coração. Se um grande ser
como o Venerável Buda as lê e as toma de seu autor, chamando-o, este
será vencedor ao atendê-lo, não importa quando e nem como. Entretanto,
somente homens de boas obras são os escolhidos.
O momento era de reflexão e calaram-se até que a rainha voltasse a
indagar:
- Monge, meu filho é muito amado. É o mais doce de todos, sempre foi.
Queremos ajudá-lo de alguma forma, além de implorar a Buda, que
fazemos?
- Aguardem e vivam. O Venerável haverá de mostrar a Wan o que fazer
quando este tempo passar - dizendo isto, o monge fez reverências aos reis e
retirou-se, indo para os seus aposentos.

Tendo combinado os ingredientes que trouxera - a maior parte em


pastas ou líquidos - Meng Keng compôs a necessária medicação que o
tratamento exigia e ministrou-a a rainha. Ela observou todas as
recomendações e agradeceu ao monge. Nada mais tendo a fazer no
palácio, Meng Keng despediu-se e se foi, tomando a carruagem que a
rainha lhe houvera colocado à disposição.

///

Jovem Wan permanecia no voluntário exílio. Para alcançar o que


desejava, o príncipe escolhera o mais árduo caminho. Assim é que durante
sete dias se recolhia e obedecia às regras que determinavam um início suave
em suas práticas, para depois alcançar um ápice em que o jejum e a
meditação longa eram requeridos. Na fase dos três primeiros dias, Wan
somente orava em dois períodos, um pela manhã e outro pela tarde. Entre
um e outro momento de oração ele devia sair, passear ou realizar leves
tarefas à sua escolha. Alimentava-se pouco e impunha-se o silêncio. À noite,
dormia no próprio santuário. Na fase do quarto dia ele não mais saia e
vocalizava seguidos mantras, permanecendo longos espaços de tempo na
mais absoluta quietude. Finalmente do quinto ao sétimo dia jejuava e
meditava, dormindo não mais do que três horas na madrugada, sendo
acordado e obrigado a levantar-se e permanecer em reflexões até o Sol
nascer. Se desejasse, ingeria um chá especial que lhe ampliava a
sensibilidade e a percepção dos sentidos.
Nas fases compreendidas entre o quarto e o sétimo dia, Meng Keng
o visitava todas as tardes, examinando-o com seu olhar percuciente e
ordenando que lhe servissem este ou aquele chá ou um caldo morno. Nas
vezes em que voltava e percebia que o frugal alimento não fora tocado,
estando Wan a exacerbar no jejum, reprovava-o. Wan então acatava a
reprovação do mestre e desligava-se temporariamente de seu estado mental,
alimentando-se. O tempo passava e jovem Wan prosseguia na tenaz
perseguição de seu objetivo.

Para não tornar aquela reclusão perniciosa para a mente, Meng Keng,
findo o sétimo dia, ordenava-lhe sair do pequeno santuário e reintegrar-se ao
cotidiano do mosteiro. Após a readaptação alimentar misturava-se aos
demais religiosos, passando a executar as tarefas que já conhecia. Dessa
maneira, ele quebrava aquela cadeia forjada nas práticas ou posturas
mentais, não permitindo um desnecessário e prematuro mergulho do
emocional no ascetismo, decorrendo daí que a consciência do ego não
perderia as rédeas do comando e nem a lucidez do pensamento. Caso
contrário, poderia ser desastroso para o neófito uma desordem mental, pois
adviria a consequente demência pela sufocação da razão e proporção
humana dos fatos. Renovando suas energias, Wan retornava ao santuário,
quatro ou cinco dias depois, e novamente isolava-se por outro período de
sete dias, recomeçando os mesmos passos com a mesma determinação e
sob a vigilância do monge, seu mestre.

Nesta última fase da meditação, algo que até então desconhecia vinha
acontecendo em sua mente. Ao invés de visões, luzes ou sons a se
desdobrarem ante a exaltada percepção, uma vontade superior forçava-o a
refletir e conjeturar. Pensamentos se concatenavam e emergiam de sob a
isolante capa que formara no subconsciente. Eles escapavam e se
apresentavam, obrigando-o a repassar fatos de sua vida e colocá-los diante
de situações de dúvida. Em vão tentou abafar esse desfile de intenções; os
pensamentos teimosamente permaneciam a falarem-lhe - podia até escutar
suas vozes a inquiri-lo! Como não pudesse mesmo fugir disso, passou a
conviver com eles.

Mais tarde, essa vontade superior voltaria de maneira diferente,


mostrando-lhe imagens de sua vida e de situações que ainda não se haviam
cruzado. Via-se assim rapaz como agora e príncipe, cercado da família real e
em passeios. Em solenidades o povo gritava seu nome, oferecendo-lhe
presentes. Ele era sua esperança de um rei sábio e bondoso. Depois tornara
a ver-se menos jovem, no trono, tendo ao seu lado formosa rainha que sorria
a endereçar-lhe vibrações de amor e admiração. Seu coração bateu mais
forte; quem seria aquela jovem? Isto obnubilou as imagens, turvou-as, e as
fez desaparecer. Ele abriu os olhos e admirou-se.

Ao terminar este período de sete dias, Wan, como sempre,


reintegrava-se ao coletivo do mosteiro. Nessa tarde encontrava-se no
armazém, quando Yang Te-Chun veio chamá-lo, a pedido de Meng Keng. Ele
passou a tarefa para o próprio mensageiro e rumou em direção ao santuário
do Venerável onde, nessa hora, o monge costumava estar.
- A rainha deseja vê-lo - disse-lhe Meng Keng sentado no descanso,
enquanto Wan se ajoelhava diante dele e curvava ligeiramente a cabeça.
- Minha mãe, por quê? - redarguiu surpreso, tomando postura de
assentar-se.
- A rainha não informou o motivo, chama-o simplesmente.
- Mas mestre...
- Vá, irmão Wan, nesta pausa de sua preparação isto não o
prejudicará. Certamente é importante, pois a rainha é sensata e pediu-me
para enviá-lo o mais breve possível.
- Sim, mestre - falou resignado.

///

Wan tomou a trilha dos trigais e se dirigiu para a cidade. O sol há


pouco surgira, as sombras ainda esticavam-se pela relva, pela terra e sobre
capões. Preguiçosas, iam se encolhendo quase imperceptivelmente, dando
ainda cobertura aos pingos do orvalho que resistiriam até a chegada do
grande astro. Wan pisava-os despreocupadamente; umedecia as sandálias
e molhava os pés levemente. O perfume da manhã não o inebriava: exalava
viço e transferia ânimo! Fortalecia células, recarregava o organismo que pela
madrugada relaxara e descansara! Aqui e ali um pássaro cantava, um inseto
zunia, uma leve e fresca brisa ia e vinha. O céu estava limpo. Toda essa
espontânea festa da natureza vinha trazer-lhe nova sensação, e ele
começava a sentir como se o peso da concentrada atividade com que
nesses dias convivera finalmente se aliviasse.

Deixando a trilha que cortava e dividia os campos dos trigais,


ingressou entre carreiras de um milharal pertencente como os trigais, ao
mosteiro, e caminhou rente aos pés de milho, se desviando ou se
agachando, esquivando-se de roçar em suas longas e pendentes folhas. Era
uma brincadeira, dava-lhe prazer; ele adorava participar dos pequenos
espaços, sentir-se como que integrado àquela natureza, à plantação.
Adiante ouviu vozes de mulheres e o estalar de galhos de pés de milho, que
já nesses instantes da manhã iam sendo ceifados. Os golpes das ceifeiras
ecoavam em seus ouvidos num ritmo forte e cruel, e ele apressou-se para
não mais ouvir, esperando não ter de presenciar aquilo pelo caminho.
Depois ganhou uma campina ampla e aberta e viu-se de novo a sós.
O Sol já aquecia, a brisa desaparecera, somente ao longe um ou outro
guincho de um gavião ou o agudo timbrar de um pássaro, vinham
sobressair-se ao silêncio temporário que o lugar lhe consentia. Isso o
inspirou. Os sentidos, tão habituados a acolher o silencio, se prepararam
como se fosse meditar, e ele sobrelevou-se de sua atenção nos passos que
dava, desligando-se da observação. Nada havia com o que se preocupar: o
chão era homogêneo, não via nenhum trecho acidentado e podia andar
confiantemente.

Aquela presença com que se habituara ultimamente a conviver nos


períodos de meditação, veio então tocá-lo suavemente - tão suave como era
aquele momento - e ele a reconheceu. Mas não o tomou como costumava
fazer. Ao invés, em propositais e leves incursões, veio provocar-lhe
reflexões, pensamentos próprios e pertinentes, trazer-lhe companhia - tirá-lo
daquela solidão. Lembrava então que nada comentara com Meng Keng a
respeito das recentes experiências que detivera na meditação. Mas
ecoavam-lhe na memória palavras e situações que se criaram na
imaginação. Sim, imaginação, que mais poderia ser? Como admitir ser rei se
não era o que desejava? De que maneira reinar, como ansiava aquele povo,
se sabedoria não possuía para tal? Sabedoria era do espírito, dos
ensinamentos de Buda e suas inolvidáveis verdades. A libertação era a
meta; uma vida somente se justificaria se dedicada à busca. A experiência
do Venerável; sua vitória esmagando as ilusões dos enganadores sentidos,
à Mara e aos poderosos deuses inferiores e tenebrosos, fora a grande lição.
Ele era a salvação, somente ele! Sábio era quem o seguia, principalmente
quem o compreendia. Exatamente isso ele buscava e para melhor
compreendê-lo se purificava, e se aceito fosse nessa primeira iniciação,
tinha a certeza, sabia-o, daria um grande impulso em suas aspirações,
arregimentaria mais luz, e quem sabe, vê-Lo-ia nem que fosse uma única
vez!

Estancou os passos ao deparar-se com límpido e estreito riacho e


agachou-se puxando a longa e clara veste, tocando o joelho nu sobre o solo,
fazendo concha com as mãos. Trouxe água para o rosto e o refrescou.
Depois molhou a cabeça e a nuca e levantou-se; pulou o riacho e
prosseguiu. Ao longe já divisava as muralhas que circundavam a cidade e
tomou a estrada. Começou a palmilhá-la; era longa, somente terminaria ao
cruzar os portões da cidade. Apesar da distância que o separava do
objetivo, não desanimava. Não pretendia sentar-se à margem, aguardar por
uma carroça ou pelo transporte de um animal, cujo dono lhe oferecesse
montaria. Desejava caminhar, necessitava isso, mesmo que se cansasse, e
não desejava companhias pretendendo estar só. Recusaria, pois, essas
ofertas se viessem acontecer.

Chegando finalmente próximo aos enormes portões, viu que se


encontravam abertos e a passagem livre. Livre era ele também para tomar o
rumo que escolhesse. Já ia longe o tempo em que seu pai, o rei, temeroso
de que o raptassem ou fizessem-lhe algum mal, não lhe permitia andar para
além do palácio. No período em que Kuang tiranizara, ele só não viera à
cidade por temor em ser reconhecido, ainda que isso fosse só uma remota
possibilidade. Porém, em povoações, aldeias e vilas estivera em missão com
os irmãos sábios e mais velhos. Após a derrota de Kuang voltara uma única
vez à cidade, percorrera-a rapidamente de carruagem, preocupado com o
estado de saúde da rainha, pouco podendo ver ou atestar.

Hoje, entretanto, era diferente e algo tocou seu íntimo, uma


curiosidade roçou em suas reflexões e súbita decisão o fez mudar a direção
dos passos. Já havia entrado na cidade. A rua principal era a mais larga,
mas ele resolveu deixá-la tomando outra, abandonando o rumo e objetivo
único que intentara de logo atingir ao palácio. Agora não tinha pressa, e
chegou numa praça onde existia ao centro pequeno lago circundado por
mureta de pedras, ali se sentando. Enquanto descansava, ia observando o
movimento das pessoas pela rua. Olhou em redor e constatou que a cidade
estava empobrecida. Nos cinco anos de ocupação inimiga a vida deteriorara
e o povo sofrera. Via rostos desiludidos e corpos emagrecidos pelas
privações. Que lamentável! O rei teria muito trabalho para novamente trazer
esperança ao seio desse povo e progresso para todo o reino. A atmosfera
estava tão tensa que ele podia até perceber no ar lamentos e choros,
embora por ali ninguém estivesse lamentando ou chorando. Um homem
pobre que passava o viu e se aproximou lentamente, olhando-o com muita
atenção. Em chegando, fez reverências, ao que Wan respondeu.
- Saudações, jovem, peço-lhe bênçãos do Venerável. Wan já estava
acostumado com isso, repetia-se sempre nos lugares onde ia.
- O Venerável senhor Buda o abençoa - respondeu trazendo as mãos
unidas de encontro ao peito. O homem levantou mais o rosto.
- Que faz aqui nesta manhã, jovem?
- Vou ao palácio, a rainha deseja ver-me - respondeu com
simplicidade, quase ingenuamente.
- A rainha chama-o, jovem aspirante? - ele olhou-o de cima abaixo -
então será você sua majestade, o príncipe Wan?
- Sim - respondeu com inalterada postura. O homem lançou-se ao
solo de joelhos. Já ouvira falar de Wan e de sua vocação para seguir Buda.
Não era segredo sua vinda anterior ao palácio e os cuidados dispensados à
rainha. Levantando-se, arcou-se em nova postura e falou com inusitado
sorriso:
- Sidarta Gautama era príncipe. Buda abençoa o príncipe, abençoa o
reino. Wan será rei, Buda reinará!
- Não, não! - exclamou Wan. Mas o homem virou-se e saiu correndo, a
quem encontrava dizia, apontando para Wan:
- Wan será rei, Buda reinará com ele!
Wan, assustado, deixou a praça rapidamente, acreditando que o
estranho era um demente, retornando por onde viera. Mas alguns o
seguiram, proclamando:
- Viva Buda, viva Wan!
Wan apressou-se, mas a notícia correu mais rápida. E por onde ele ia
havia sempre um sofrido rosto a sorrir-lhe com esperança. Adiante já eram
muitos e o príncipe podia ver a extensão do sofrimento de seu povo,
traduzido por aquela febril esperança.
- Buda, Buda! - repetiam agora num coro que soava como um lamento
ou ansioso apelo. Os olhos de Wan começaram a umedecer; ele resistia e
sufocava as lágrimas. No entanto a visão obnubilava, ele via somente
embaçados vultos.
- Buda, Buda! - as vozes continuavam com sincero sentimento, em
respeitoso coro, e Wan não conseguindo mais conter sua emoção, permitiu
às lágrimas rolarem-lhe pela face.

Pouco durou aquele estado emotivo, por que súbito arroubo


devocional veio tomá-lo irresistivelmente e lançou-se ao chão, prostrando-se
de joelhos. Um silêncio profundo desceu sobre todos e tocados pela
inspiradora força daquele gesto, arremessaram-se também ao chão em
reverência. Ficaram assim por certo tempo: Wan e o povo, até que o
príncipe, sentindo uma paz invadir-lhe o coração, levantou-se. Desaparecia
de si aquela excitação antes experimentada e a forte emoção que o
conduzira às lágrimas. O povo também se levantou e Wan dirigiu-se a todos,
não como inexperiente jovem que era, porém como irmão mais velho no
tempo, calejado na arte do sacerdócio e com certo dom de profetizar:
- Buda os ama e estará sempre presente nos corações sinceros. Não
chorem e nem lamentem as perdas e faltas. Não atraiam mais sofrimentos.
A vida é toda ela uma sucessão de provas. A razão da existência vive com
todos, não somente com reis, conquistadores ou monges. E se a verdadeira
Vida está em todos, Buda também vive em nós. Sim, ele reina e sempre
reinará - o Altíssimo e Venerável tudo sabe - não Wan, pequeno e humilde
servo. Além disto, meu pai é o rei do povo. E ele reconquistou o reino de
mãos cruéis e assassinas. Melhores tempos virão, creiam. Agora me deixem
ir só. A rainha, minha mãe, chama-me! - e partiu dali, sem que ninguém mais
o seguisse ou lhe lançasse palavras de adoração.

Nenhuma outra surpresa viria encontrá-lo e prosseguiu silencioso e


solitário pela principal via da cidade. Sua atenção não mais se voltava para o
mundo exterior; já presenciara o suficiente - a experiência vivida e os fatos
ruidosos haviam passado. O que lhe ficara, sem embargo, como sentimento
vivo e insólito, era o que sentira intimamente, que indelevelmente marcara
sua memória como à ferro em brasa. Fora tudo realmente fantástico, que lhe
transformara os movimentos e as emoções, que se repercutia ainda
intensamente em sua alma. E não era somente ele neste exato instante a
ocupar um só corpo e um só espaço, mas ao mesmo tempo, algo maior,
mais digno e senhor pleno com ele convivia.

Apesar de tudo, não desejava arguir sobre o acontecido, nem admitir


ou negar. Mergulhado estava em exaltada paz mental e emocional, como se
houvesse acontecido prolongada e bem sucedida meditação, cujo resultado
jamais antes vivenciara. Era tudo novo em si e não existiriam pensamentos
ou palavras que conseguissem expressar este superior estado. Assim, fez
cessar toda e qualquer cogitação, procurando simplesmente aproveitar
aquele momento.

Chegando ao palácio foi logo procurar a rainha. Não era ainda meio dia
e informaram-no que ela estaria na sala de banhos, em sua piscina, como
não devesse lá entrar, procurou, ele próprio, aposentos, dispensando o
auxílio da criadagem. Nos aposentos, foi de imediato para a janela,
parcialmente aberta, abrindo-a completamente, permitindo à generosa
claridade penetrar mais. A janela descortinava vista para verde gramado
entremeado de pequenas plantas roxas em minúsculos canteiros, ao redor
dos quais faixas de outras tonalidades mais claras de grama se dispunham.
Era um arremedo dos belos jardins do palácio, ao qual Wan já conhecia de
seu tempo de menino, e que, apesar da ocupação inimiga, pouco modificara
na aparência. Vinha terminar poucos metros adiante, nos limites de florida e
viva cerca, onde novo lance da propriedade, amplo e aberto, e com poucas
árvores, continuava.
Debruçando-se, Wan lançou olhar para fora a fim de apreciar o lugar,
mas quedou surpreso, apoiando as mãos sobre o peitoril, ao ver uma jovem
correndo sobre o gramado, perseguindo o voo inconstante de amarela
borboleta.
- Venha, não fuja, você é tão bela! - dizia. A borboleta ameaçou pousar
sobre pequeno ramo verde num canteiro, e ela apressou-se em sua direção.
Entretanto, fugitiva, bateu de novo as grandes asas e arremessou-se em
direção da janela onde Wan observava, passando ao largo.

A jovem então o vendo parou. Os olhos de Wan brilharam de admiração


ao contemplar-lhe o rosto. Ela, envergonhada, baixou o olhar mirando o
gramado. Wan, ainda preso na admiração, sentiu uma crescente reação
mexer com seu íntimo, ficando assim por breves instantes. Porém, quando
ela de novo elevou o rosto e reencontrou-lhe o olhar, Wan sentiu as faces
queimar e embaraçou-se, não sabendo o que fazer, até que se largou de
sobre o peitoril e fez-lhe sinal reverente, trazendo as mãos unidas junto ao
coração, ao que ela timidamente respondeu. Ele, a seguir, entrou
rapidamente e sentou-se na cama. Estava um tanto atordoado, o coração
batia-lhe descompassadamente e levantou-se quase de imediato,
procurando novamente a janela, se esquivando de aparecer, grudando-se a
parede na tentativa de ver sem ser visto. Mas não conseguia revê-la e
aproximou-se mais, imbuindo-se de maior coragem, assomando
amplamente naquele espaço, percorrendo com rápido olhar cada metro do
jardim. Todavia, ela não mais ali se encontrava!

Wan deixou os aposentos e apressadamente começou a percorrer os


corredores. Quando saia de uma das alas e ingressava no corredor principal
dos aposentos reais, deparou-se com seu pai. Não esperava aquele
encontro e um desapontamento apertou-lhe o coração; ele lutou contra
aquilo e o saudou com a vênia de sempre, procurando trazer naturalidade ao
gesto.
- Meu pai! - disse enquanto curvava-se.
- Não sabia que houvera chegado. Faz quanto tempo está aqui? - o rei,
após responder a saudação, procurava, por seu turno, ser também
espontâneo, pois da última vez em que haviam estado juntos ele se
recusara despedir-se do filho. Trazia nas mãos alguns pergaminhos
enrolados, que atrapalhadamente os segurava.
- Na verdade acabo de chegar e saia de meu quarto para rápido
passeio. A rainha está na piscina, pelo que fui informado, e aguardo o
momento de vê-la.

O rei olhou-o com disfarçada ternura. Apesar dos anos de separação e


das discordâncias não conseguira fazer calar a admiração que lhe
endereçava. Era algo forte e nobre que lhe escapava ao controle forçando-o
a desejar ao filho sempre o melhor. Havia em seu íntimo, além da admiração
de pai, certa submissão ao espírito, algo de inacessível julgamento que lhe
dizia no silêncio ali estar alguém melhor, mais capaz, que faria coisas que
ele próprio não conseguira. Por não poder identificar com nitidez a essa
linguagem, não sabendo assim traduzi-la, ele entendia ver o príncipe
tergiversar desta tendência e se sentia abalado.
- Wan, meu filho, avisaram-me de que chegara! A rainha apressava-se
pelo corredor, vindo da sala de banhos, acompanhada de duas serviçais.
Wan saudou-a com vênia, mas ela o abraçou fortemente, como mãe.
- Vim ao atendimento de seu chamado, minha mãe, de que se trata? -
disse após o abraço, quando ela recuava um passo. A rainha olhou para as
serviçais e com suavidade bateu palmas por duas vezes. Elas dobraram-se
em reverência, andaram de costas alguns passos, volveram os corpos em
direção da sala de banhos e rapidamente se evadiram.
- Durante a refeição falaremos - ela examinou-o mais detidamente,
dizendo em seguida: - você parece-me fatigado e ao mesmo tempo
excitado, algo se passa?
Wan lançou-lhe olhar de surpresa e admiração.
- A viagem, talvez - respondeu embaraçado - fi-la a pé!
- À pé, Wan, por quê? É longa e cansativa e não sabemos se ainda há
perigos.
- O Altíssimo viajou comigo, nada havia a temer. Ademais, atendi a um
desejo de meu íntimo; foi um bom exercício.
- Mas cansou-se - ela repreendeu-o com suavidade - agora aproveite, vá
até a piscina e tome um banho aromático. Relaxará e se sentirá melhor,
depois descanse, mandarei chamá-lo quando a refeição for servida. Wan
reverenciou-a e ao rei com leve aceno de cabeça e volveu o corpo se
retirando. Ela virou-se para o esposo, que em silêncio a tudo assistira,
segurando-lhe o braço e caminharam em direção aos aposentos.

Tendo se afastado e contrariamente à sugestão da rainha, Wan tomou


rumo oposto à sala de banhos. Terminado o corredor, ultrapassou amplo
umbral indo sair no átrio externo principal, largo e longo, cujo teto era
sustentado por colunas em toda a sua extensão. Entre uma coluna e outra
se divisava com facilidade ao panorama que a todos encantava e que eram
os jardins. Mais além das colunas, ao longo daquela majestosa arquitetura,
deitavam-se ao chão meia dúzia de compridos degraus de pedras, em cujos
entremeios, verde e bem aparada grama adornava e configurava
interessante complemento. Essa interessante disposição causava aos pés
dos palacianos a maciez da grama em contraste à aspereza dos blocos.

Wan lançou olhar em derredor e desceu a escadaria. Sua mente,


entretanto, não se prendia à beleza do lugar, beleza esta que havia
decrescido pelo menor cuidado que o tirano lhe houvera dispensado, não
obstante, encantar ainda. Mas nesse instante nada o impressionava. Seus
olhos atentos varriam aos meandros e quebras dos jardins, buscando, na
tentativa de adivinhar, se ela estaria ou não detrás deste ou daquele largo e
cheio capão, de um chapéu-de-buda, daquela cerca viva, de florida abélia ou
de uma arália arbústea. No entanto, não a encontrava, embora viesse
percorrendo a quase todos os jardins e chegasse a alcançar o exato local
onde a vira. Desapontado, desistiu de procurá-la e entrou, resolvendo que
acataria a sugestão de sua mãe quanto ao banho, porque se achava suado
e acalorado.

Ao retornar aos aposentos após o banho e sentar-se sobre a beirada


da cama, notava em si como aquela aura de paz e divindade houvera cedido
ao aspecto eu de sua personalidade, vendo-se agora envolto por ansiosa
expectativa. A expectativa, no entanto, não lhe trazia outras complicações e
nem o atormentava em mente - em si era controlada ainda - mas fora
suficiente para envolvê-lo e subtrair-lhe um quantum de sua paz! A despeito
do relaxante banho, sentia-se, na verdade, um tanto fatigado. Seria pela
longa caminhada que empreendera desde o mosteiro até o palácio, seria
pelas experiências que acumulara nesta manhã - ou por tudo. Assim,
determinado a buscar recuperar essas perdas, acomodou-se e empertigou o
corpo, apoiou as palmas das mãos nas coxas, calcando os pés descalços no
chão e os afastou ligeiramente. As pernas, como os pés, ficaram paralelos e
fechou os olhos elevando ligeiramente o rosto.

Logo observava os irresistíveis efeitos de sua mente treinada e


comandou as energias que lhe reavivaram todo o corpo. Após, relaxou,
alterando a postura de pés, mãos e pernas, procurando sobrelevar-se em
meditação, assim permanecendo boa soma de tempo. Despertou entre um
misto de susto e decepção, ao ouvir o chamado de uma serviçal da rainha,
convidando-o ao salão de comensais onde a refeição seria posta. A
decepção ficara por conta de não ter conseguido sucesso na tentativa de
chegar a um verdadeiro estado meditativo. Levantando-se, após responder
ao chamado, não seguiu de imediato para o salão, tendo antes chegado à
janela e contemplado o jardim.

No grande salão de comensais, além de toda a família real, também


se encontravam alguns convivas e Wan sentiu o coração palpitar mais
fortemente ao ver, dentre todos, a jovem que o impressionara. O lugar à
direita do rei o aguardava e para lá se dirigiu, arcando-se em reverência aos
monarcas, sentando-se. A conversa cessou quando a rainha imediatamente
falou:
- Príncipe Wan, não creio que deva se lembrar dos primos do rei que
vivem em próspera e povoada província à oeste do reino - Wan olhou-os
com maior atenção, não os reconhecendo de fato, embora lembrasse que
muitas vezes vinham pessoas tratar de negócios com o rei. Eles todos se
levantaram e o reverenciaram, ao que Wan também se levantou e
respondeu. Eram sete pessoas, contando-se três rapazes, duas moças e o
casal de duques, os primos do rei. - Quando por último aqui estiveram,
prosseguiu a rainha, você era ainda uma criança e hoje nos honram
novamente com sua visita. A rainha silenciou, acenando suavemente com a
cabeça, e eles se sentaram. Então fez timbrar a sineta e os serviçais se
apressaram em servi-los.

Na realidade ali estava o núcleo principal de um clã que habitava a


província onde possuía muitos bens. Dominava a agricultura, pequenas
indústrias e o comércio da região. O duque era primo do rei em afastado
grau de afinidade. Há quatro gerações fora concedido ao seu bisavô e
descendentes explorar a província, por decreto do também bisavô do atual
rei, tendo o duque se tornando mandatário universal da província por
herança. A grande e próspera propriedade abrigava milhares de pessoas,
distribuídas entre o campo e seus arredores e vilas existentes. Durante a
ocupação militar inimiga, o duque soubera que o tirano desejava interrogá-
lo, já que obtivera informações sobre sua descendência. Temeroso de que,
na verdade, ele desejasse mesmo executá-lo e a sua família, se ocultou com
todos os seus. O usurpador para lá viajara pessoalmente, fazendo o
levantamento de toda a província e suas glebas, contabilizando os seus
bens e meios de produção. Esta parte do reino estaria a cabo do outro
general - aliado de Kuang - para explorá-la e administrar, e fora um dos
motivos de Kuang ter protelado a sua repartição, por tê-la enchido os olhos e
despertado grande cobiça. Após o assassinato do general, Kuang tomou-a e
a explorou como quis.

A visita que a família fazia ao palácio tinha o propósito da reafirmação


de seus laços, após tudo o que acontecera, e a necessidade de atualizar os
termos de seus contratos de exploração, comercialização e percentual
pecuniário que o governador da província fazia encaminhar aos cofres do
tesouro real, além de rearticular outras disposições consideradas gerais. O
reino inteiro sofrera com a humilhante administração de Kuang e nada mais
natural do que de novo se reaproximassem e reavaliassem toda a situação.

Durante a refeição, em que pouco falavam, Wan e a moça trocaram


alguns rápidos e tímidos olhares, o que a rainha discretamente observava.
Ao final, o rei chamou o duque para que se reunissem no seu gabinete,
juntamente com os ministros conselheiros do reino, a fim de continuarem os
assuntos, e se retiraram. A rainha também se levantou, no que foi
acompanhada pela duquesa, e foram em direção das cadeiras de descanso
de uma das sacadas, deixando propositalmente os jovens reunidos. No
entanto, para surpresa de Wan, a moça também se levantou, e, curvando-se
com usual vênia, retirou-se, deixando-o confuso. Ele permaneceu em
conversa fútil com os jovens e seus irmãos e passado algum tempo arranjou
motivo para retirar-se, dirigindo-se à rainha.
- Minha mãe - começou após o ligeiro aceno de cabeça - peço-lhe
permissão para ausentar-me. Estarei em meus aposentos quando desejar
conversar, já que foi esse o motivo de eu ter deixado temporariamente o
mosteiro e vir atendê-la, embora tenha sido agradável o reencontro com
nossos primos que nos honram com sua visita - as últimas palavras disse-as
voltado para a duquesa, esboçando natural sorriso, ao que ela acenou em
encanto e agradecimento. A rainha, por outro lado, lançou-lhe olhar um tanto
angustiado, mas assentiu, estendendo suavemente a mão e indicando com
o lenço, concedendo-lhe a permissão.

Wan, entre confuso e cismado, tomou o rumo de seus aposentos. Por


que ela o evitava? Fazia então papel de tolo e devia esquecê-la. Seriam
certamente armadilhas de seu ser inferior objetivando impedir-lhe de chegar
a Buda e obter a remissão das pretéritas vidas em que se entregara aos
prazeres do mundo. Reagiria, sim, esqueceria esse desagradável momento
e voltaria sua atenção somente ao Venerável. Pensando assim, ingressou
por outro corredor dirigindo-se à biblioteca real, freqüentada unicamente por
sua família, e lá adentrou. Ao percorrer os escaninhos examinava este ou
aquele pergaminho, e o devolvia ao lugar original. Em dado instante, achou
aquilo que inconscientemente buscava que a ele próprio pertencia. Era o
pergaminho dado por Meng Keng quando o mestre vinha ministrar-lhe
ensinamentos no palácio. Ao examiná-lo, a imagem do monge e suas
esquecidas palavras retornaram-lhe inteiras, revivendo-as como se
ecoassem nesse exato instante aos seus ouvidos: “pequeno Wan, tome este
pergaminho e guarde-o. Não o leia agora, não é ainda o momento. No futuro
lhe será muito útil e muitas vezes o consultará.”

Wan sorriu e retirou-se da biblioteca, alcançando seus aposentos,


passando a ler o texto que continha máximas budistas, referências aos oito
caminhos do devoto e também muitos enigmas. Os enigmas continham,
todos eles, trigramas, simbolismos e indicações que levavam a interpretá-
los, e Wan observou-os com inusitada curiosidade, absorvendo-se na
tentativa de decifrar um ou outro, usando da ciência da adivinhação que os
monges ensinavam. Ficou assim, sem se dar conta do tempo, até que foi
desperto pelo chamado de uma serva da rainha, e perguntou-lhe do que se
tratava sem alterar sua postura no chão. A serva o informou que a rainha o
chamava aos jardins e ele confirmou que para lá iria imediatamente.

Pouco depois, o príncipe descia os degraus do átrio e pisava os


caminhos dos jardins a procura da rainha, logo a divisando ao longe sentada
sob um alpendre, de costas. O Sol já rumava para o poente, tendo iniciado
o percurso de seu último quadrante no céu, mas tardaria ainda o seu inteiro
mergulho. Agradáveis sombras estendiam-se pela via que o príncipe
palmilhava, e, vez por outra, seu corpo era tocado pela luz solar. Estava
calor, porém abrandado por fresca aragem, e ao aproximar-se do alpendre e
observar melhor as brancas vestes de sua mãe, notou-a, também, a
conversar com alguém encoberto pela sarça. De novo seu coração bateu em
descompasso quando a reconheceu e parou diante de ambas, saudando-as
com vênia. A rainha respondeu com leve aceno de cabeça e a jovem se
levantou inclinando-se.
- Mandou chamar-me, minha mãe? A rainha assentiu levemente.
- Quero que conheça melhor Sing Su, pois não tiveram oportunidade de
conversar. Wan excitou-se ao de novo contemplá-la sentindo-se abalar. A
jovem percebendo isso reagiu com timidez, olhando para o chão, em
seguida erguendo o rosto. Tenso, Wan retomou:
- Sing Su - disse outra vez se inclinando.
- Príncipe Wan – respondeu-lhe dobrando-se com delicadeza.
- Sing Su é a filha mais jovem dos duques que nos visitam e a mais
inteligente. É realmente muito prendada, destaca-se no aprendizado das
artes. Creio que ambos têm muito a conversar. Vou passear pelos jardins
deixando-os a sós. Após leve aceno a rainha se levantou e se afastou,.
adiante se juntando a ela uma serviçal.

Wan permaneceu ainda de pé, sem controle da situação. Fora tudo


tão rápido, quase abrupto! A jovem, em silêncio, mirava de novo o chão e
após instantes ele finalmente conseguiu retomar:
- Sing Su, por que não nos sentamos?
- Sim! - ela respondeu se acomodando, no que foi seguida por ele. O
príncipe sentia o chão fugir-lhe de sob os pés.
- Sing Su... - ele hesitava -... você...alcançou a borboleta? - completou
com alívio.
- A borboleta? ... - ela olhou-o admirada - ela...fugiu!
- Oh, lamento. Você ama as borboletas?
- Sim, muito!
- Mas elas fogem, não?
- Sim, fogem!
- Que pena!
Silêncio. Wan reuniu alguma coragem e continuou:
- Sing Su, você me acha tolo?
- Tolo, príncipe, não, oh, não! - ela respondeu assustada.
- Então por que Sing Su fugiu hoje do salão?
- Eu... - ela baixou o olhar mirando o chão. Em seguida levantou-se
curvando-se ante Wan, que surpreso aguardava - perdoe-me príncipe, Sing
Su é muito tola - ela continuava a mirar o chão. Wan também se levantou -
Eu estava envergonhada!
- Mas, Sing Su, a borboleta voou porque quis, você não teve culpa!
- Sim... a borboleta voou.
Novo silêncio e Wan convidou-a novamente a se sentar.
- Sing Su, como é sua vida na província?
- É boa.
- Sing Su é muito bonita -- Wan encorajava-se -- você está prometida
para algum noivo?
- Não, eu nunca desejei. Meu pai rejeitou um pedido, foi melhor
assim.
- Você gostaria de morar aqui no reino?
- Sim... , mas agora não posso!
- Não, por quê?
- Bem, só posso vir morar no reino se algum noivo daqui me tomar
para esposa.
- É verdade... que tolice minha!
- O príncipe vai ser monge?
- Sim, é meu desejo.
- Oh...sim?
- Bem... o rei não quer...mas eu quero...isto é, eu preciso decidir,
jurei dedicar-me ao Venerável.
- Isto é para sempre?
- Um aspirante pode quebrar um juramento, um monge não!
- E quanto falta para você ser monge?
- Muitos anos ainda, estou somente começando a servi-Lo.
- Oh! - ela pareceu compreender.
Ambos silenciaram. Neste hiato puderam fazer rápida avaliação de
suas idéias e Wan reiniciou:
- Sing Su eu gosto de você, seu coração irradia alguma coisa
importante, toca o meu. Ela mirou o chão e calou-se.
- Não foi a borboleta...- conseguiu finalmente murmurar.

Dois dias depois o duque e sua família partiam de volta para a


província. Wan, de pé em seus aposentos, mirava ao adorno que Sing Su
lhe ofertara em seu último encontro. Sob a claridade ofuscada pelas nuvens
escurecidas, que rapidamente se assenhoreavam dos espaços, ele percorria
com o olhar aos contornos do pequeno dragão em cobre reluzente,
incrustado de pedras preciosas. A luz sem vida não provocava qualquer
rebrilho no belo objeto, porém isto no momento era de somenos importância
por que seus olhos unicamente se moviam sobre o dragão sem nada ver. Na
mente a cena era revivida com acalanto. Sing Su, com delicados e precisos
movimentos, retirava o adorno de sobre a veste, tomava-lhe a mão direita, e
nela o depositava com suavidade. Olhava-o nos olhos, enquanto
permanecia aconchegando-lhe a mão. O calor de suas mãos, Wan sentia-o
ainda, e mais a vibração de seu jovem e apaixonado coração. Era algo
irreal; corajoso para uma tímida moça como Sing Su, pois os costumes
condenavam jovens se presentearem se não houvessem sido dados em
promessas de casamento e ofertados os dotes. Era uma tradição que ali
neste encontro se quebrava, sendo ao mesmo tempo um segredo de ambos.
Depois, ela recolhia as mãos, se inclinava e se retirava.

Um corisco rutilou e fez o adorno ganhar rápida vida; depois outro e


mais outro. Em seguida, um sopro de vento veio sacudir sua veste e Wan se
voltou para fora olhando o enegrecido céu e ao jardim, onde finos galhos
tremulavam e folhas eram arrastadas sobre o gramado. Fechou a mão,
como que protegendo ao exposto e delicado dragão, e lançou a mente em
direção de Sing Su, preocupado com o provável temporal em sua trajetória.
Estaria ela abrigada ou teria ultrapassado a essa ameaça dos revoltosos
elementos? Preocupação era algo que aprendera a suprimir, não ativar com
energia mental, mas agora o envolvia e o fazia reagir.

O vento uivou pelas paredes do palácio, dobrou galhos e plantas,


balançou-as e as ruidou. Novo açoite e submissão, e Wan sentiu no rosto
um arremesso de poeira que o obrigou a comprimir os olhos e esfregá-los,
tratando logo de fechar a janela, provocando escuridão no quarto. Correu as
mãos pelas paredes encontrando uma lamparina e retirou-a do fixador,
levando-a para fora, tomando o fogo emprestado de outra do corredor;
trazendo-a de volta para o quarto, retornando-a ao seu lugar original.
Quando seus olhos se acostumavam com a claridade do ambiente, ele
buscou a pequena algibeira de pano que trouxera do mosteiro e
cuidadosamente guardou nela a lembrança de Sing Su; depois sentou-se no
chão, cruzando ligeiramente as pernas, apoiando os braços esticados sobre
os joelhos, em postura estranha às suas disciplinas. Os antebraços pendiam
à frente, soltos e paralelos, e as mãos balouçavam quase
imperceptivelmente. Aquela posição lembrava mais o descanso de um
trabalhado do campo do que a postura de um budista ou príncipe. Ao longe
um trovão ribombava e o vento ainda açoitava.

Com pensamentos confusos, o príncipe tentava colocar as coisas em


seus lugares. Sing Su ocupava a maior parte de si, mas isto lhe trazia um
refrigério na alma e morna presença no coração. Quando tornaria a vê-la? Se
a quisesse, precisaria decidir-se logo, conversar com o rei, pedindo-lhe que
procurasse o duque para ofertar o dote. Caso se demorasse, surgiria outro
pretendente, então poderia perdê-la para sempre!

Estremeceu ante um grande estrondar sobre o palácio e levantou-se.


Forte chuva começou a desabar, provocando ruído na janela. Nova rajada
de vento veio aumentá-la e Wan andou até a proximidade da janela,
parando a um passo dela. Dali podia ouvir perfeitamente a água
encharcando a grama do jardim onde Sing Su correra em perseguição da
borboleta. “Não foi a borboleta...”ouvia-a dizer em tímido murmúrio, porém
com a graça que só as virtuosas possuem. Onde estaria neste momento? -
de novo advinha-lhe preocupação, e resolveu que iria orar e pedir que nada
lhe acontecesse, e aos que com ela viajavam. Acomodou-se então no chão,
com pernas cruzadas, trazendo as mãos juntas adiante, não sem antes
saudar Buda com sacerdotal gesto. Por algum tempo permaneceu
concentrado em profunda oração até que, abrindo os olhos, levantou-se.
Como percebesse que os elementos não fustigassem mais com a mesma
violência de antes, resolveu abrir a janela.

O céu ainda estava cinza, mas as nuvens haviam perdido aquela


espessa camada. Continuava a chover sem os impetuosos açoites do vento
que abrandara, por isso podia chegar-se mais e observar a paisagem. O
frescor do ar tocou-lhe as faces, provocando-lhe certa reação, e ele elevou o
rosto olhando mais para adiante. O Venerável permanecia em si, ele viajou
em mente e alma para o grande santuário do mosteiro e diante de Buda
inclinou-se e o reverenciou. E agora, que Lhe diria, e a Meng Keng, e aos
irmãos religiosos do mosteiro?

RAYOM RA

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