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IMPLICAÇÕES DA NOVA LÓGICA DE AÇÃO DO

ESTADO PARA A EDUCAÇÃO MUNICIPAL*

JANETE MARIA LINS DE AZEVEDO**

RESUMO: Nos últimos sete anos tem ocorrido no Brasil uma progres-
siva municipalização do ensino fundamental, da educação infantil
e de jovens e adultos decorrente de induções/programas do poder
central que assumiu a descentralização como um dos princípios das
políticas educativas. Embora não se desconheça que estas medidas
têm contribuído para o aumento das matrículas nesses níveis, no
presente artigo problematiza-se o seu pouco alcance para garantir
processos de escolarização com efetiva qualidade. Pontuando-se as
principais características que passaram a nortear a ação do Estado,
particularmente no que concerne às mudanças da administração
burocrática para a gestão gerencial, procura-se mostrar as implicações
dessas mudanças na educação municipal, tendo-se por referente
resultados de pesquisa sobre impactos de programas do governo
federal voltados para o financiamento da escolarização nos espaços
locais.
Palavras-chave: Municipalização do ensino. Modelo de gestão geren-
cial. Políticas educativas. Processos de descentralização.
Programas federais. Financiamento da educação.

IMPLICATIONS OF THE GOVERNMENT’S NEW LOGIC


ON MUNICIPAL EDUCATION

ABSTRACT: In Brazil, over the last seven years, elementary education


for children, youths and adult has become a municipality oriented
policy. This is a result of programs and plans developed by the Federal
Government, which has adopted decentralization as one of its main
strategies for education. Although it is well known that these measures

* Apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).


** Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas ( UNICAMP ),
pesquisadora do CNP q, professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Pernambuco ( UFPE ), atualmente realizando estágio de pós-
doutoramento na Universidade de Paris 8 (França). E-mail: jazevedo@wanadoo.fr

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have contributed to increase enrollments at these levels, this article
tackles the problem of their very limited effect to guarantee quality in
the schooling processes. It highlights the main characteristics that have
guided the State’s actions, especially as for the shift from bureaucratic
administration to managerial organization. It is an attempt to
demonstrate the implications that these transformations had on
municipal education, based on the impact of survey results about the
Federal Government Programs aimed at financing schooling actions in
local spaces.
Key words: Municipality Oriented Education. Managerial Organization
Model. Educational Policies. Decentralization Processes.
Federal Programs. Education Financing.

Considerações iniciais

C omo sabemos, as reformas educativas empreendidas no país


nas últimas décadas levaram a um aumento significativo das
matrículas no ensino fundamental, nível constitucio-
nalmente obrigatório e gratuito. É suficiente lembrar que passamos
de uma cobertura de 16 milhões de alunos, em 1970, para um total
de pouco mais de 35 milhões em 2001, aparentando uma proximi-
dade da universalização do seu acesso, como vêm demonstrando os
resultados dos censos escolares. Em relação à sua clientela (a popu-
lação de 7 a 14 anos de idade), a taxa líquida de escolarização tem
abrangido cerca de 95% deste contingente e mesmo nas regiões
mais pobres do Brasil o grau de cobertura atinge um índice médio
aproximado de 90%. Estamos, certamente, bem distantes da
situação de 1970, quando esta taxa era de apenas 67% ( MEC / INEP ,
2000).
No entanto, esse crescimento quantitativo das oportuni-
dades de acesso à escola pública, na medida mesmo em que
possibilitou que significativos contingentes de alunos das camadas
populares a freqüentem, trouxe, como problemática fundamental,
a questão da precariedade da qualidade do ensino ministrado e,
por conseguinte, da impropriedade das políticas educativas que
têm sido implementadas para equacionar os problemas da repe-
tência, da evasão e do desempenho – enfim, da garantia de
processos efetivos de escolarização que combatam as desigualdades
educacionais. Ainda que limitados, os resultados do próprio
Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica ( SAEB ) vêm
indicando a manutenção dessas desigualdades. O rendimento e o

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desempenho dos alunos demonstram que, em média, eles não
chegam a dominar 50% das competências e habilidades esperadas
( MEC / INEP , 2000).
Não por acaso, estudo desenvolvido por Silva e Hasenbalg
registra que, em 1998, a proporção de pessoas na faixa etária de
15 a 18 anos, faixa imediatamente superior à da educação funda-
mental, que teve acesso à escola, mas que apenas terminou a quarta
série deste nível era de 86% e que só 39% conseguiram conclui-lo
completamente. Por conseguinte, as pessoas de 15 anos ou mais
tinham até 5,9 anos de estudo, e na Região Nordeste o índice
médio era de 4,5 anos (Silva & Hasenbalg, 2000). Tais dados são
indicativos da distância que estamos da efetiva universalização do
nível obrigatório de ensino, o que tem resultado num contingente
de 48 milhões de brasileiros que são analfabetos ou semi-anal-
fabetos.
Em contrapartida, no âmbito das políticas educativas im-
plantadas em meados dos anos 90, observamos o estabelecimento
de rearranjos nos papéis das esferas administrativas em relação às
suas responsabilidades com os distintos níveis e as modalidades
de ensino. Neste contexto, as municipalidades brasileiras vêm
sendo as responsáveis pelo aumento das matrículas na educação
infantil e na de jovens e adultos, além de, progressivamente,
estarem assumindo a oferta da educação fundamental, o que
expressa as tentativas de cumprimento das normas legais prescritas
na nossa Constituição e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional – LDB .
De fato, foram os municípios que realizaram 66,6% do total
das matrículas efetivadas na educação infantil em 2001 e na Região
Nordeste, a mais pobre do país, elas aumentaram de 58,6% para
67,0% entre os anos de 1997 e 2001 (Quadro 1). Embora em
nível nacional sejam as redes estaduais que continuem a predominar
na oferta da educação de jovens e adultos, nos cinco anos aqui
considerados houve um significativo crescimento da atuação das
municipalidades. Além disso, diferindo do quadro nacional, no
Nordeste a primazia passou das redes estaduais para as municipais,
ou seja: no ano de 1997 estas foram responsáveis por 28,4% das
matrículas na educação de jovens e adultos feitas na região, e as
escolas estaduais por 67,0%, ao passo que, em 2001, as escolas
municipais nordestinas efetuaram 58,3% dessas matrículas e as
estaduais, 37,2% (Quadro 2).

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Quadro 1
Matrículas na Educação Infantil no Brasil
e no Nordeste por Redes de Ensino (1997 e 2001)

Brasil (%) Nordeste (%)


Rede de Ensino 1997 2001 1997 2001
Federal 0,0 0,0 0,0 0,0
Estadual 13,4 5,7 14,5 5,1
Municipal 62,8 66,6 58,6 67,0
Privada 23,8 27,7 26,9 27,9
Total 100,0* 100,0** 100,0*** 100,0****

Fonte: MEC/INEP
* 100% correspondem a um total de 4.640.220 matrículas.
** 100% correspondem a um total de 5.912.150 matrículas.
*** 100% correspondem a um total de 1.511.164 matrículas.
**** 100% correspondem a um total de 1.759.804 matrículas.

Quadro 2
Matrículas na Educação de Jovens e Adultos no
Brasil e no Nordeste por Redes de Ensino (1997 e 2001)

Brasil (%) Nordeste (%)


Rede de Ensino 1997 2001 1997 2001
Federal 0,1 0,2 0,0 0,0
Estadual 62,7 53,0 67,0 37,2
Municipal 23,7 37,5 28,4 58,3
Privada 13,5 9,3 4,6 4,5
Total 100,0* 100,0** 100,0*** 100,0****

Fonte: MEC/INEP
* 100% correspondem a um total de 2.881.770 matrículas.
** 100% correspondem a um total de 3.777.989 matrículas.
*** 100% correspondem a um total de 732.180 matrículas.
**** 100% correspondem a um total de 1.119.143 matrículas.

Mesmo que estes dados se mostrem reveladores do crescen-


te processo de municipalização do ensino entre nós, são os dados

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relativos à educação fundamental que nos fornecem uma maior
concretude de tal fenômeno. No ano de 1996 as redes munici-
pais efetuaram 33% das matrículas neste nível e em 2001 este
porcentual aumentou para 48,6%. Nesse mesmo período, a oferta
das redes estaduais diminuiu de 55,7% para 42,3%. Na região
mais pobre o fenômeno, a exemplo do que revelam os dados antes
comentados, aparece com maior grau de visibilidade, ao consi-
derarmos que suas municipalidades são hoje responsáveis por
62,2% do total das matrículas feitas nas diversas redes de ensino
aí localizadas (Quadro 3). Mas é importante lembrarmos que,
no quadro de colaboração entre os sistemas públicos, os municí-
pios vêm, sobretudo, absorvendo os alunos das séries iniciais (1 a
à 4 a), ao passo que as redes estaduais vêm se encarregando do
ensino de 5 a à 8 a série. Do total das matrículas efetivadas nas
redes municipais brasileiras em 2001, 63,2% ocorreram nas
séries iniciais, ao passo que as redes estaduais matricularam
60,0% dos alunos de 5 a à 8 a série, e no Nordeste as municipa-
lidades matricularam 75% dos alunos de 1 a à 4 a série dessa região
(Quadro 4).

Quadro 3
Matrículas no Ensino Fundamental no Brasil
e no Nordeste por Redes de Ensino (1996-2001)

Brasil (%) Nordeste (%)


Rede de Ensino 1996 2001 1996 2001
Federal 0,1 0,0 0,0 0,0
Estadual 55,7 42,3 39,6 30,1
Municipal 33,0 48,6 47,3 62,2
Privada 11,2 9,1 13,1 7,7
Total 100,0* 100,0** 100,0*** 100,0****

Fonte: MEC/INEP
* 100% correspondem a um total de 33.131.270 matrículas.
** 100% correspondem a um total de 35.298.089 matrículas.
*** 100% correspondem a um total de 10.475.469 de matrículas.
**** 100% correspondem a um total de 12.430.998 de matrículas.

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Quadro 4
Porcentual das Matrículas no Ensino Fundamental
Efetuadas no Brasil e no Nordeste em 2001, por Séries e Redes de Ensino

Brasil Nordeste
a a a a a a a a
Rede de Ensino 1 à 4 série 5 à 8 série 1 à 4 série 5 à 8 série
Federal 0,0 0,1 0,0 0,0
Estadual 28,3 60,0 17,9 48,5
Municipal 63,2 30,0 75,0 42,8
Privada 8,5 9,9 7,1 8,7
Total 100,0* 100,0** 100,0*** 100,0****

Fonte: MEC/INEP
* 100% correspondem a um total de 19.727.684 matrículas.
** 100% correspondem a um total de 15.570.405 matrículas.
*** 100% correspondem a um total de 7.505.976 matrículas.
**** 100% correspondem a um total de 4.925.022 matrículas.

O crescente processo de municipalização do ensino, por seu


turno, é passível de entendimento quando o tomamos como uma das
dimensões da nova lógica que vem presidindo as políticas educativas,
concebidas pelo Poder Executivo central, voltadas para o enfrenta-
mento das distorções dos processos de escolarização. Neste sentido, a
municipalização representa uma das externalidades da adoção do
princípio da descentralização segundo a perspectiva teórica que vem
informando as políticas públicas no Brasil e, por conseguinte, a ação
do Estado.
Desta perspectiva, a descentralização é considerada um
instrumento de modernização gerencial da gestão pública, pela
crença nas suas possibilidades de promover a eficácia e a eficiência
dos serviços concernentes (Melo, 1997). Assim, é difundida como
um poderoso mecanismo para corrigir as desigualdades educacio-
nais, por meio da otimização dos gastos públicos. Apesar de os
postulados democráticos serem recorrentemente reafirmados, estes
se apresentam como justificativa da transferência de competências
da esfera central de poder para as locais, respaldadas em orienta-
ções neoliberais, com o objetivo de redução do Estado às suas
funções mínimas, de acordo com as inspirações/adaptações de
corte hayek-smithiano.

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Trata-se de uma forma de descentralização que pode ser
categorizada como economicista-instrumental, cuja legitimidade
ideológica se assenta “sobre uma dupla equação: quanto mais
descentralização mais proximidade; quanto mais proximidade mais
democracia e mais eficácia” (Charlot, 1997). Há que considerarmos,
contudo, que os processos baseados nesta lógica se caracterizam
muito mais como práticas desconcentradoras, em que o local é
considerado como uma unidade administrativa a quem cabe colocar
em ação políticas concebidas no nível do poder central.
Difere, pois, da perspectiva democrático-participativa que a toma
como um dos meios de alargamento do espaço público, quando se busca
o estabelecimento de relações sociais substantivamente democráticas.
Nesse caso, os escalões locais participam da concepção das políticas, não
se restringindo apenas a colocar em ação as decisões tomadas pelo poder
central. Mas, além do fortalecimento do poder local, a descentralização
nesta perspectiva requer, concomitantemente, o estabelecimento de
novas relações entre o Estado e a sociedade, de modo que se abram os
canais por onde fluam as demandas da população e, portanto, para que
se efetive a participação da comunidade na gestão (Casassus, 1995;
Fischer, 1996; Charlot e Bouveau, 1999).
O processo de municipalização, tal como o estamos assistindo,
não pode, pois, ser analisado sem que tenhamos presente o fato de
que se baseia numa lógica economicista-instrumental e que se
articula com um movimento mais amplo: o projeto de sociedade em
implementação no Brasil, que se alinha e se subordina aos reordena-
mentos do processo da acumulação capitalista, firmados nas últimas
décadas do século XX, de acordo com as estratégias políticas e
financeiras que os grupos hegemônicos passaram a impor ao mundo
(Fiori, 2001). Esses reordenamentos implicaram novas formas de
definição e de articulação entre os espaços local, nacional e global,
com profundas repercussões para os padrões societais, para as
políticas sociais e, portanto, para a educação que vem se reformando
em escala planetária.
Neste sentido, Charlot (1998), sublinhando o conjunto de
contradições de que a nova situação é portadora, refere-se ao fato de
que nunca a questão educacional se mostrou tão importante para o
poder central. Entretanto, no contexto das políticas educativas,
nunca também se mostrou tão necessário deixar para o poder local,
para as escolas ou para os próprios professores, o tratamento dos
complexos problemas que afetam hoje os processos de escolarização.

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Tendo em vista a situação problemática acima referida, o que
objetivamos destacar neste artigo são, justo, os contornos da nova
lógica da ação do Estado e algumas das suas repercussões na
educação, focalizando especificamente os parâmetros de implantação
de programas federais nas municipalidades.

As mudanças na lógica de ação do Estado


Como sabemos, o novo padrão de ação do Estado vai aparecer,
com maior nitidez, durante o primeiro governo de Fernando
Henrique Cardoso ( FHC ), muito embora tenha começado a ser
esboçado no final dos anos 80. Ao tornar público o seu programa
de governo, a nova coalizão que assumiu o poder colocou como
medida imprescindível a necessidade de reformar o Estado, por
entender que o modelo de administração burocrática dos serviços
públicos, cuja afirmação remontava aos anos 30 do século XX, era
um dos fortes empecilhos para assegurar a superação da crise fiscal e
econômica e, portanto, para ajustar o país aos requerimentos da nova
ordem mundial.
O modelo de administração burocrática, assim conhecido pelas
contribuições weberianas para o estudo do poder (Weber, 1991),
começou a ser implantado no Brasil quando da deflagração do nosso
processo de modernização. A partir desse período vamos encontrar a
sucessão de inúmeras reformas no aparelho de Estado, sempre
justificadas como um meio de se atingir um alto grau de racionali-
dade técnica nas decisões e ações públicas. Essas reformas, guardando
as peculiaridades que o jogo de forças lhes imprimiu em cada
conjuntura específica, viabilizaram a prática centralizada do planeja-
mento e a intervenção estatal na economia e em outras esferas da
vida civil, segundo os moldes que a modernização capitalista assumiu
entre nós (Draibe, 1985).
Não obstante, como demonstram inúmeras análises, os princí-
pios do patrimonialismo e do clientelismo que davam sustentação ao
Estado oligárquico continuaram presentes, mesclando-se ao princípio
do mérito estruturador do estilo burocrático de gestão. Assim, na
administração pública também se presentificaram os reflexos de um
modelo de modernização conservadora, em que interesses arcaicos
foram conciliados com os modernizantes, marca fundamental do
processo do desenvolvimento brasileiro (Ianni, 1986; Fernandes,
1981; Debrun, 1983).

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Pari passu, pois, a esse processo, à medida que se complexificava
a sociedade brasileira, criaram-se novas áreas de atuação governa-
mental, aumentando as instituições do Estado, conduzindo-o à
hipertrofia e complexificação. Nesse quadro, a introdução do
planejamento como meio de ação requereu a absorção de funcionários
e assessores segundo o princípio da competência profissional, para
operarem os rumos do desenvolvimento nos marcos de uma raciona-
lidade, mesmo que isso não dissolvesse a presença dos interesses
clientelísticos e fisiológicos na arena das decisões político-adminis-
trativas.
A adoção do estilo burocrático de gestão na educação tem na
própria criação do Ministério da Educação e Cultura, nos anos 30,
um dos seus primórdios, mas, dadas as peculiaridades do desenvol-
vimento capitalista entre nós, ela vai efetivamente ser aprofundada a
partir dos anos 60, tendo seu paroxismo nos governos militares:
durante um regime de exceção.
Não por acaso, esse regime foi categorizado como “Burocrático
Autoritário” (O’Donnell, 1970 e 1987). Nele as práticas sistemáticas
do planejamento da educação construíram-se subordinadas aos planos
de desenvolvimento econômico concebidos pela alta tecnoburocracia
estatal. Foi um período em que a racionalidade técnica que se deveria
imprimir ao desenvolvimento justificou o alto grau da centralização
dos recursos e das decisões, mascarando a subordinação das políticas
sociais aos interesses econômicos. Ao mesmo tempo, a não-vigência da
democracia política e os arranjos que se forjaram para a intermediação
dos interesses, num quadro de exceção, acabaram por alargar os flancos
das práticas clientelísticas tradicionais.
Essa herança é a que recebemos com o processo da abertura
política que permitiu, a partir dos anos 80, a intensificação das
demandas por políticas sociais e por mudanças nos padrões de sua
gestão, quando significativas forças sociais clamavam contra as
estruturas centralizadoras, trazendo para a discussão pública a temá-
tica da descentralização política, administrativa e financeira.
Quando na Nova República se instaurou o primeiro governo
civil, o discurso oficial incorporou muitas das demandas que estiveram
presentes nas lutas pela democratização, a exemplo da descen-
tralização, da municipalização, da integração dos serviços e equipa-
mentos sociais em nível local e da participação popular nos processos
de decisão, implementação e controle das políticas sociais (Jacobi,
1990; Ottmann, 1995). E, para além da retórica, iniciaram-se práticas

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de descentralização do financiamento das políticas sociais, sobretudo
por intermédio das “transferências negociadas”, permitindo que as
instâncias locais assumissem algum grau de autonomia na adminis-
tração pública (NEPP, 1989). Desde então, a reforma do Estado entrou
em pauta nas agendas dos governos que se seguiram. No período do
Governo Collor foram efetuadas ações nesta direção, no entanto, é a
partir do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) que
a referida reforma ganhou maior grau de concretude, fazendo emergir
o modelo de gestão gerencial na educação.
Mas, como sabemos, os parâmetros assumidos pela reforma
administrativa do Estado nos anos 90 são distintos daqueles reclama-
dos pelas forças organizadas da sociedade civil quando das lutas pela
redemocratização do país. A idéia da descentralização, por exemplo,
que sempre foi identificada pelas forças progressistas com as aspi-
rações por maior participação nas decisões e, portanto, com práticas
democráticas substantivas, é inteiramente re-significada.
Os parâmetros da reforma administrativa brasileira inseriram-
se, pois, na solução concebida pelo governo para ajustar o país aos
novos requerimentos impostos pelos modelos econômicos e políticos,
em face das exigências que os rumos do processo da acumulação
plasmaram para os mercados e em face da postura subordinada das
nossas elites a essas imposições. Em tal contexto, no discurso
governamental, a adoção da administração gerencial, entre outros
modos, foi justificada afirmando-se que a sociedade brasileira havia
atingindo um nível cultural e político no qual as práticas patrimonia-
listas não mais poderiam ser toleradas e o burocratismo impedia a
prestação eficiente dos serviços públicos.
No que se refere mais especificamente ao modelo gerencial,
diferindo do modelo burocrático,1 ele toma por base uma concepção
democrática e plural de Estado e de sociedade, considerando a exis-
tência de conflitos, a cooperação, a incerteza, e o papel dos cidadãos
na defesa de seus interesses. Entre suas principais características são
destacadas: a descentralização política, por meio da transferência de
recursos e atribuições para os níveis políticos regionais e locais; a
descentralização administrativa, por meio da delegação de autoridade
aos administradores públicos que se transformam em gerentes
progressivamente autônomos; organizações flexíveis no lugar de
unitárias e monolíticas, nas quais as idéias de multiplicidade, de
competição administrada e de conflito tenham lugar; definição dos
objetivos a serem atingidos na forma de indicadores de desempenho,

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sempre que possível quantitativos, que constituirão o centro do contrato
de gestão entre o poder central e os dirigentes locais; controle por
resultados, a posteriori, em vez do controle rígido, passo a passo, dos
processos administrativos; administração voltada para o atendimento do
cidadão, ao invés de auto-referida (Bresser Pereira, 1996).
Na educação, a reforma do Estado, entre outros aspectos,
traduz-se no entendimento de que é preciso ajustar a gestão dos
sistemas de ensino e das escolas ao modelo gerencial, conforme
divulgado pelo poder central, em consonância com o discurso das
agências externas de cooperação e financiamento. Segundo tal enten-
dimento, esse é o modo de garantir a qualidade dos serviços prestados
aos cidadãos, com base no princípio da eficiência e na busca da relação
ótima entre a qualidade e os seus custos (MARE, 1995).
O confronto entre os modelos da administração burocrática e
da gerencial mostra-nos que o segundo introduz elementos das teorias
e técnicas da gerência empresarial e do culto da excelência nas escolas
públicas. Isso enfatizando a questão da qualidade e a necessidade de
atender localmente as demandas do cidadão-cliente. Assim, procura-
se estabelecer um replanejamento institucional, inspirado tanto no
neoliberalismo como nas práticas peculiares à gestão empresarial,
segundo os pressupostos da qualidade total: privilegiamento da
administração por projetos com objetivos previamente estabelecidos,
baseados localmente e com traços competitivos. Nesse contexto, o
gerencialismo, que é uma das marcas das reformas educativas em
escala planetária, implica uma nova postura dos gestores que se
tornam responsáveis pelo delineamento, pela normatização e pela
instrumentalização da conduta da comunidade escolar na busca dos
objetivos traçados.
Na verdade, não podemos desconsiderar que tanto no modelo
de administração burocrática quanto no gerencial se inserem as
tentativas de vincular a educação aos parâmetros do desenvolvimento
econômico. Entretanto, observamos que há mudanças na ação estatal
que expressam o delineamento de um tipo especial de regulação das
políticas sociais. Contraditoriamente, mesmo que o discurso governa-
mental proclame justamente o contrário, o que assistimos é a uma
espécie de “expansão” dessa ação, que demonstra a compatibilidade
entre o Estado-mínimo e o Estado-forte. E no que se refere às
estratégias de acumulação, ele é mais forte do que nunca, já que passa
a assumir o papel de gerir e de legitimar, nacionalmente, as
exigências do capitalismo global:

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Não se trata do regresso do princípio do mercado, mas de uma nova
articulação, mais direta e mais íntima, entre o princípio do Estado e o
princípio do mercado. [...] A força do Estado, que no período do reformis-
mo consistiu na sua capacidade em promover interdependências não-
mercantis, [através da promoção de políticas públicas de corte social], passou
a consistir na sua capacidade de submeter todas as interdependências à
lógica mercantil. (Santos, 1999)

Em conseqüência, como em todos os setores-alvo de políticas


sociais, na educação essa “fortaleza” ou expansão se exprime no
aumento do poder regulatório da ação estatal, na medida em que as
práticas ditas “descentralizadoras”, uma das dimensões do estilo
gerencial de gestão, têm tido por contraponto o aumento dos controles
centralizados. Tais práticas, entre as quais se inscreve a municipalização
do ensino, pouco têm contribuído para que se efetive a universalização
da educação fundamental com qualidade, conforme exemplificam
resultados de investigações2 voltadas para esta temática, discutidos a
seguir.

Os municípios e os programas federais para a educação


Dentre os mecanismos acionados pelo Ministério da Educação
(MEC) que mostram as mudanças na lógica da ação estatal, situam-se os
programas federais, reformulados e/ou criados durante os dois Governos
de Fernando Henrique Cardoso. Estamos nos referindo aos programas
que procuram dar conta das ações supletivas e redistributivas da União,
destinadas a prestar assistência técnica e financeira aos demais entes
federativos, sobretudo no que concerne ao desenvolvimento de seus
sistemas de ensino e de ações assistenciais. Eles são gerenciados pelo
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE, autarquia
pertencente ao MEC, ela própria reformulada para se adequar às mudanças
no aparelho de Estado e ás conseqüentes diretrizes da política nacional
de educação. No discurso governamental, entre essas diretrizes, tem sido
recorrente a apologia à descentralização, nitidamente compreendida na
perspectiva economicista-instrumental:

Os diversos programas executados pela Autarquia [o FNDE] refletem as ações


e mudanças na busca da melhoria da qualidade do ensino. Um exemplo é
a descentralização da execução, que tem demonstrado ser um instrumento
ágil no atendimento às necessidades dos alunos e gerador de economicidade
na aplicação dos recursos, além de estimular as comunidades a exercerem o
seu importante controle social. (MEC/FNDE, 2001)

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Coerente com aquela forma de percepção, a maior parte dos
programas federais colocou para os espaços locais a obrigatoriedade
de criação de novos mecanismos de gestão, buscando viabilizar a
participação da sociedade no controle de sua execução. É nesse
contexto que surgiu uma multiplicidade de conselhos, a exemplo do
Conselho do Programa da Merenda Escolar, do Fundo de Manuten-
ção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do
Magistério (FUNDEF) e das unidades executoras do Programa Dinheiro
Direto na Escola (PDDE).
Sem desconhecermos que os resultados dessas medidas podem
variar de acordo com o grau de articulação social e política das
localidades em que foram implantadas, a tendência tem sido a da sua
pouca eficácia no sentido de contribuir para a efetiva democratização
da gestão. Com efeito, resultados de estudos específicos em municípios
pernambucanos têm mostrado que a tendência predominante é a
grande dificuldade que os gestores municipais da educação encontram
para constituí-los nos moldes predeterminados. Nos casos em que
conseguem, coloca-se o problema de fazê-los funcionar segundo as
normas estabelecidas. No geral, as municipalidades procuram garantir
a existência formal dos conselhos como um meio de cumprir a norma
legal, revestindo-os com as especificidades próprias das estruturas de
poder de cada localidade (Azevedo et al., 2002; Santos, 2001).
É verdade que, nos casos em que se está tentando perseguir
um plano de governo democrático-popular, essas e outras medidas
têm sido re-significadas de acordo com os parâmetros da política
municipal de educação. Não obstante, as intenções de guiar as ações
municipais, segundo a lógica democrático-participativa, têm encon-
trado suas limitações no que prescreve a lógica predominante. Nesse
contexto se inserem os limites impostos ao financiamento da
educação para atender à magnitude das demandas que lhe são postas,
muito embora isso não dissolva os avanços em relação às tentativas
de institucionalizar os conselhos e outros mecanismos localmente
acionados, na perspectiva da gestão democrática (Lima & Azevedo,
2001; Santos, 2002; Santos, 2001).
Aliás, a relação entre as restrições do financiamento dos níveis
de ensino de responsabilidade dos municípios e a progressiva
indução, pelo poder central, da municipalização das matrículas
concernentes, é um outro dado revelador do papel do gerencialismo
na manutenção dos precários padrões de escolarização.

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Vale lembrar, neste sentido, algumas das características da
malha municipal brasileira. Ela é composta de 74,7% de municípios
com uma população de até 20 mil habitantes. Deste total, 25,6%
têm uma população de até 5 mil pessoas e 23,9% situam-se entre
5.001 e 10 mil habitantes (IBAM , 2000). Como demonstram vários
estudos, há uma correlação perversa entre o tamanho dos municípios
e os níveis de pobreza neles encontrados. Por conseguinte, existe um
alto grau de dependência das transferências correntes para as suas
receitas totais, que chegam a atingir quase 90% naqueles que possuem
até 20 mil habitantes (Gomes & Mac Dowell, 2000; Soares, 1998).
Trata-se de um quadro político-administrativo que tem reflexos
diretos nas condições de oferta da educação infantil, do ensino
fundamental e da educação de jovens e adultos. Quase sem fontes
de renda próprias que permitissem investimentos mais substantivos
para a ampliação da sua estrutura, a maior parte das municipalidades
fica a depender das transferências para dar conta do atendimento da
demanda por educação que lhes são postas.
Dentre os programas federais indutores da municipalização,
particularmente do ensino fundamental, têm tido papel de destaque
o FUNDEF e o PDDE por condicionarem a distribuição e/ou transferência
de recursos à quantidade de matrículas efetuadas no município ou
nas escolas. É verdade que o FUNDEF representa uma iniciativa
positivamente inovadora, por ter promovido uma subvinculação
específica de recursos, constitucionalmente vinculados, para o nível
obrigatório de ensino. Além disso, imprimiu um caráter redistri-
butivo a esses recursos, o que beneficiou os municípios mais pobres
e neles melhorou as condições salariais dos docentes. Por isso,
constitui um dos programas que têm tido ampla aceitação por grande
parte das municipalidades.
Não obstante, também tem se constituído em fonte de
problemas quando a meta é a universalização da educação funda-
mental com qualidade. Neste sentido, o poder central, exercitando
a lógica da administração gerencial, ao criar o FUNDEF, entendeu que
os problemas não decorriam da falta de recursos e sim da falta de
competência na sua administração (Negri, 1997). Em conseqüência,
não aportou montantes suficientes para viabilizar a solução dos
problemas que entravam os processos de ensino e aprendizagem, além
de ter comprometido a oferta da educação infantil e a de jovens e
adultos, níveis de responsabilidade dos municípios. Desconsiderou,
pois, que a primeira constitui o nível cujos resultados influenciam

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diretamente no desempenho do ensino fundamental e que a segunda
é um produto das condições em que este nível é ofertado.
Mas os problemas não pararam por aí. Embora esses programas
efetivamente estejam contribuindo para que haja o aumento das
matrículas no ensino fundamental, a precariedade financeira tem
conduzido ao aumento do número de vagas sem que se processe a
necessária expansão da rede física escolar e sem a melhoria das
instalações existentes. Assim, o que se verifica em muitos dos
municípios é o aumento da quantidade de alunos por sala de aula,
fato que contribui para o agravamento da precária qualidade da
educação e para piorar as condições de trabalho dos docentes. E, neste
último caso, as incertezas em relação à continuidade do FUNDEF, já
que foi concebido para durar por um período de dez anos, têm levado
a que o aumento salarial dos docentes ocorra por meio de gratifica-
ções, no lugar de se constituir em uma efetiva incorporação salarial.
Isso porque há receios de compromissos orçamentários que as receitas
próprias dos municípios não seriam capazes de cumprir no futuro.
Além do que, tem atuado negativamente no clima organizacional das
escolas, em face das disparidades salariais entre os professores do
ensino fundamental e os que atuam na educação infantil e de jovens
e adultos (Alves & Azevedo, 2001; Alves, 2002).
Em contrapartida, há os programas federais que se destinam
ao atendimento da clientela escolar dos municípios mais pobres e,
portanto, que têm a marca da focalização ou da discriminação
positiva. Nesse caso se situam, entre outros, o Programa Nacional
de Saúde do Escolar (PNSE), o de Transporte do Escolar (PNTE) e os
voltados para a Educação do Pré-Escolar, de Jovens e Adultos e de
Aceleração da Aprendizagem no ensino fundamental. A questão
suscitada pela focalização decorre da magnitude dos índices de
miséria e pobreza existentes no país, particularmente nas famílias a
que pertencem os alunos que freqüentam a escola pública.
São exemplificativos desses índices os dados da Pesquisa
Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) de 1999. Segundo
tais dados, 75,1% das famílias com crianças de 0 a 14 anos (o que
compreende a clientela da educação infantil e do ensino funda-
mental) tinham como rendimento familiar per capita até dois salários
mínimos. Deste total, 27,7% tinham até meio salário mínimo,
25,5% mais de meio até um salário, e 21,9% entre um e dois. Em
contrapartida, apenas 5,4% auferiam rendimentos acima de cinco
salários mínimos (IBGE, 2001).

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No contexto em que o financiamento das políticas sociais não
tem representado uma prioridade efetiva, a adoção da gestão geren-
cial vem se mostrando funcional ao estabelecimento de critérios para
a divisão e transferência de recursos escassos. Além disso, entre outras
coisas, implica apenas o atendimento de parte da clientela que se
situa nos limites extremos de pobreza, o que representa uma
fragmentação e pulverização das ações, ampliando as distâncias para
se atingir a universalização da escola com qualidade.
De acordo com as normas em vigência, as prefeituras, outras
entidades públicas e as ONG s podem se candidatar ao desenvol-
vimento de ações ligadas aos programas focalizados, desde que
pertençam aos espaços previamente determinados pelo MEC para a
devida implementação. A seleção desses espaços, por seu turno, varia
de acordo com a natureza e os objetivos de cada programa, mas o
critério predominante é a magnitude dos índices de pobreza encon-
trados na região ou no município ( MEC / FNDE , 2000a). O processo
estabelecido para que as entidades se candidatem a esses programas
explicita, com toda a nitidez, a adoção das práticas gerencialistas na
educação, entre elas, a administração por projetos e o princípio da
competição.
Neste sentido, por intermédio do FNDE foi criada a modalidade
de financiamento “Projetos Educacionais”, por meio da qual as
entidades ou órgãos públicos podem receber “assistência financeira
para a formação continuada de professores; aquisição ou impressão
de material didático; atividades básicas de prevenção em saúde e
benefícios como transporte escolar; além de oferecer aquisição de
equipamentos e adaptação física às unidades escolares do Ensino
Especial”. Para tanto, a entidade ou o órgão interessados propõem e
submetem áquela autarquia o Projeto Educacional concernente, cuja
elaboração deve seguir as normas prescritas no Manual de Assistência
Financeira do respectivo programa em que se enquadra o seu projeto,
o que também inclui a documentação necessária à sua habilitação3
(MEC/FNDE, 2000a).
Os projetos, que seguindo as normas prescritas para a celebração
de convênios com a União devem prever uma contrapartida de pelo
menos 1% do seu valor, devem também ser protocolados no FNDE, local
em que é julgado quanto ao atendimento dos requisitos formais. No
caso de serem aprovados neste item, a saga continua por meio do seu
julgamento quanto ao mérito técnico-pedagógico na secretaria afim do
Ministério. Se aprovado, a celebração do convênio, mesmo assim, ainda

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não está garantida, pois fica na dependência da disponibilidade dos
recursos. Mostrando o enquadramento nas diretrizes da gestão geren-
cial, os formulários destinados à prestação de contas técnica e finan-
ceira, entre outros aspectos, privilegiam a medição quantitativa dos
produtos aferidos pelos projetos (MEC/FNDE, 2000b).

Quadro 5
Quantidade de Projetos Cadastrados e
Conveniados com o FNDE em 2000 por Especificação do Programa

PROJETOS
CADASTRADO CONVENIADO
PROGRAMAS
QUANTIDADE % QUANTIDADE %
Aceleração da Aprendizagem 656 4,57 314 2,19
Educação Especial 1.137 7,91 769 5,36
Ensino Fundamental Regular 2.571 17,90 132 0,92
Educação Indígena 60 0,42 20 0,14
Educação de Jovens e Adultos 907 6,32 466 3,24
Paz nas Escolas 11 0,08 11 0,08
Educação Pré-Escolar 3.249 22,63 519 3,61
Saúde do Escolar 2 0,01 2 0,01
Transporte do Escolar 4.684 32,62 1.091 7,60
TV Escola 1.082 7,54 14 0,09
TOTAL 14.359 100,00 3.338 23,24

Fonte: FNDE, 2001

Há que se considerar que medidas de política como essa, ao


mesmo tempo em que trazem o princípio da competição para a
conquista de recursos no âmbito do ensino publico, servem como
um meio de ocultar o pequeno alcance de que são portadoras, ao se
pensar nas carências presentes nos municípios, e na clientela que
freqüenta a escola. Esse pequeno alcance, que se constrói por meio
dos caminhos de acesso a financiamentos ditos descentralizados, é
também constatado quando consideramos os próprios dados divul-
gados pelo FNDE.
Com efeito, de um total de 14.359 projetos educacionais
cadastrados nesta autarquia em 2000, apenas 3.338 foram efetiva-

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mente conveniados e financiados, o que representou, precisamente,
23,24% do atendimento da demanda das ações focalizadas (Quadro
5). Não por acaso, gestores municipais da educação em Pernambuco
colocam a inexistência de uma estrutura técnico-adminitrativa e
financeira como principal empecilho para a assunção dos deveres
constitucionais com a oferta do ensino de qualidade, o que tem
implicado a incapacidade de elaborar projetos competitivos na busca
de recursos complementares. As dificuldades de obter informações
concernentes, a falta de quadros técnicos qualificados, a impossibili-
dade de arcar com a exigência de contrapartidas, a exclusão de
municípios da clientela dos programas são fatores, por eles menciona-
dos, que impedem o acesso aos recursos transferidos por meio de proje-
tos conveniados (Azevedo e outros, 2002). Trata-se, pois, de iniciativas
tópicas e pontuais que longe estão de uma efetiva contribuição para
que as desigualdades educacionais sejam equacionadas.
Em síntese, os processos de descentralização das políticas
educativas, tal como impulsionados pelo poder central, aparentam
desconhecer as diversidades que caracterizam a sociedade brasileira.
Esses processos, que têm na participação um dos seus pressupostos,
tendem a se assentar numa representação da nossa sociedade que
afirma a existência de estruturas e relações sociais democraticamente
consolidadas como uma estratégia de transferir para o poder local
encargos e decisões previamente tomadas, para tão-somente serem
executadas.
Guiadas pela lógica economicista-instrumental, as medidas de
política deixam de considerar os graus de desarticulação social
existentes nos espaços locais e o arcaísmo remanescente em muitas
das suas estruturas de poder, em face mesmo da situação de pobreza
que caracteriza a maior parte da nossa malha municipal. Nesse
contexto, incidem os parcos recursos financeiros destinados aos níveis
essenciais de ensino para que se efetivem processos de escolarização
com qualidade.
Os padrões de financiamento estabelecidos por aquela lógica,
de resto estruturadora da ação do Estado no atendimento do
conjunto dos direitos sociais, revelam-nos que, mesmo sendo capazes
de colocar a população escolar para dentro da escola, pouco têm
contribuído para o fornecimento das condições necessárias à sua
escolarização, tal como exemplificado.
É preciso, pois, que a re-centralização, instalada nos últimos
anos, conforme o modelo de administração gerencial do Estado e da

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educação, dê lugar a um efetivo processo de descentralização dentro
de uma outra lógica e, portanto, em moldes realmente voltados para
a democratização das relações sociais. Para tanto, este processo não
poderá estar desvinculado de um projeto mais global de desenvol-
vimento da nossa sociedade, em que seja perseguida a soberania
nacional, a inclusão social e, por conseguinte, o usufruto do direito
a uma educação de qualidade pela nossa população.

Recebido e aprovado em agosto de 2002.

Notas
1. Weber (1991) atribuiu ao desenvolvimento do capitalismo o surgimento das bases
econômicas para a emergência da administração burocrática, ao possibilitar os recursos
fiscais necessários ao seu funcionamento. Numa breve síntese de suas análises, podemos
dizer que, para ele, o capitalismo fez emergir a administração burocrática moderna, apoiada
na centralização das decisões, na hierarquia estruturada a partir da unidade de comando,
configurando uma estrutura de poder piramidal, com normas rígidas de controle
contínuo dos processos. Este modelo, por seu turno, possibilitou o aparecimento de uma
burocracia estatal formada por técnicos altamente qualificados, selecionados e treinados
para equacionar racionalmente as demandas e soluções colocadas ao Estado. Vale
lembrarmos, entretanto, a perspectiva metodológica que Weber imprimiu aos seus tipos
ideais, dentre os quais ao “tipo ideal de administração burocrática”. Conforme destacou,
nenhum tipo ideal seria puramente encontrado na realidade, já que se constituiu em um
método possibilitador da formulação de hipóteses sobre fenômenos a serem investigados.
2. Tratam-se de resultados de estudos desenvolvidos, por meio de pesquisa integrada, no
Núcleo de Estudos e Pesquisa de Políticas Públicas de Educação, do Programa de Pós-
Graduação em Educação da UFPE. Eles têm por objetivo comum o exame das repercussões
de políticas educativas estabelecidas pelo poder central nas municipalidades pernambu-
canas e envolvem, também, dissertações e trabalhos de iniciação científica.
3. Esta documentação, que vem sendo exigida para o estabelecimento de convênios pelas Leis
de Diretrizes Orçamentárias, compreende o seguinte: cadastro do órgão/entidade e do seu
dirigente; declaração de regularidade; comprovante de inscrição no Cadastro Nacional de
Pessoa Jurídica; balanço contábil de ano anterior; lei orçamentária, do município, do
estado federado ou do Distrito Federal, acompanhada do(s) anexo(s) referente(s) à Secre-
taria de Educação (aprovada para o exercício do ano do projeto), constando, inclusive, a
previsão de recursos a serem utilizados no projeto como contrapartida; certidão negativa
de débito com o INSS; certificado de regularidade de situação do FGTS; certidão negativa de
débito de tributos e contribuições federais; certidão negativa quanto à dívida ativa da
União; cópia da ata de eleição e posse do dirigente do órgão ou ato de nomeação ou
designação, quando for o caso de entidades não-governamentais (MEC/FNDE, 2000b).

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