Este documento discute os desafios colocados à formação profissional pelo contexto de globalização econômica e novas formas de organização do trabalho. A globalização levou a mudanças no trabalho, como sua intelectualização e complexidade crescentes, exigindo novas competências dos trabalhadores. Isso questiona noções como qualificação para um posto de trabalho e demanda uma qualificação mais ampla, baseada em saberes gerais, técnicos e experiências.
Original Description:
Original Title
A Globalização Econômica e os Desafios à Formação Profissional.pdf
Este documento discute os desafios colocados à formação profissional pelo contexto de globalização econômica e novas formas de organização do trabalho. A globalização levou a mudanças no trabalho, como sua intelectualização e complexidade crescentes, exigindo novas competências dos trabalhadores. Isso questiona noções como qualificação para um posto de trabalho e demanda uma qualificação mais ampla, baseada em saberes gerais, técnicos e experiências.
Este documento discute os desafios colocados à formação profissional pelo contexto de globalização econômica e novas formas de organização do trabalho. A globalização levou a mudanças no trabalho, como sua intelectualização e complexidade crescentes, exigindo novas competências dos trabalhadores. Isso questiona noções como qualificação para um posto de trabalho e demanda uma qualificação mais ampla, baseada em saberes gerais, técnicos e experiências.
A Globalizao Econmica e os Desafios Formao Profissional
Neise Deluiz* Sumrio - Este artigo trata dos desafios atuais postos formao profissional por um contexto de globalizao econmica, de novas formas de organizao da produo e do trabalho e dos crescentes processos de democratizao da sociedade. Discute as tendncias e caractersticas do trabalho e as novas competncias dos trabalhadores, seu contedo, sua historicidade e sua vinculao s relaes sociais. Aponta para os riscos da "abordagem das competncias" em sua viso tecnicista e lana questes sobre a problemtica atual da certificao das competncias que est sendo implementada no Pas. Os anos 90 tm presenciado a intensificao e o aprofundamento de mudanas substantivas na dinmica do capitalismo internacional gestadas nas duas dcadas anteriores. A mundializao dos mercados, sua crescente integrao, a deslocalizao da produo para outros mercados, a multiplicidade e multiplicao de produtos e de servios, a tendncia conglomerao das empresas, a mudana nas formas de concorrncia e a cooperao interindustrial alicerada em alianas estratgicas entre empresas e em amplas redes de subcontratao, a busca de estratgias de elevao da competitividade industrial, atravs da intensificao do uso das tecnologias informacionais e de novas formas de gesto do trabalho, so alguns dos elementos de sinalizao das transformaes estruturais que configuram a globalizao econmica.
O avano deste processo - que transcende os fenmenos meramente econmicos invadindo as dimenses polticas, sociais e culturais - , traz, como conseqncias, mudanas no tamanho e nas atribuies do Estado, a desregulamentao das economias nacionais, a reestruturao do mercado de trabalho, novas formas de organizao do trabalho, a flexibilizao do trabalho, o crescimento dos empregos precrios, o desemprego cclico e estrutural, e a excluso de contingentes de trabalhadores do mercado formal. A forte segmentao da fora de trabalho (includos X excludos do mercado formal, qualificados X no-qualificados, trabalhadores de empresas modernas X trabalhadores de empresas terceirizadas), ocorre num quadro de desmobilizao de movimentos reivindicatrios e de dificuldades de organizao e sindicalizao dos trabalhadores. globalizao econmica corresponde, pois, a globalizao do mundo do trabalho e da questo social. Ao acirrar a competio intercapitalista, o processo de globalizao obrigou as empresas a buscar estratgias para obter ganhos de produtividade atravs da racionalizao dos processos produtivos que podem ser visualizados pelo uso da microeletrnica e da flexibilidade dos processos de trabalho e de produo, implicando uma generalizada potenciao da capacidade produtiva da fora de trabalho. O processo de "acumulao flexvel" 1 gera o fenmeno paradoxal, de ampliao do trabalho precarizado e informal e da emergncia de um trabalho revalorizado, no qual o trabalhador multiqualificado, polivalente, deve exercer, na automao, funes muito mais abstratas e intelectuais, implicando cada vez menos trabalho manual e cada vez mais a manipulao simblica. , tambm, exigido deste trabalhador, capacidade de diagnstico, de soluo de problemas, capacidade de tomar decises, de intervir no processo de trabalho, de trabalhar em equipe, auto-organizar-se e enfrentar situaes em constantes mudanas.
neste contexto que retorna agenda de discusses o papel da educao. O trabalhador polivalente deve ser muito mais "generalista" do que especialista. Para desenvolver as novas funes, h exigncias de competncias de longo prazo que somente podem ser construdas sobre uma ampla base de educao geral. De fato, algumas das modificaes do processo de produo e da organizao do trabalho no teriam sido possveis, nos pases desenvolvidos, sem os efeitos produzidos pelos grandes sistemas de educao de massa. Estes vm sendo repensados desde os anos 80, em pases como a Inglaterra e a Frana que tm questionado seus sistemas de educao formal 2 por serem inadequados ou estarem desvinculados dos grandes processos de mudanas socioeconmicas, assim como na Alemanha, que tem se indagado sobre a pertinncia da sua formao profissional dual 3 , tendo em vista o acelerado ritmo das mudanas na sociedade como um todo. 2
A educao tcnico-profissional no se tem colocado margem dessa discusso e hoje comea a refletir sobre a necessidade de estar articulada educao geral, para evitar a dualidade histrica entre educao propedutica X educao profissional-instrumental, dando respostas dupla dimenso dos objetivos educacionais: preparar o profissional competente e o cidado socialmente responsvel, o sujeito-poltico comprometido com o bem-estar coletivo.
Dentro desta perspectiva educacional buscaremos, neste artigo, discutir uma proposta de formao orientada para o trabalho que leve em conta os desafios postos por um contexto de globalizao econmica, de novas formas de organizao da produo e do trabalho e dos crescentes processos de democratizao da sociedade.
Os desafios formao profissional
Diante do modelo da "especializao flexvel" 4 e dos "novos conceitos de produo", 5 onde a diviso tcnica do trabalho se tornou menos evidenciada, com a integrao do trabalho direto e indireto, e a integrao entre produo e controle de qualidade, onde o trabalho em equipe passou a substituir o trabalho individualizado e as tarefas do posto de trabalho foram eclipsadas pelas funes polivalentes, em "ilhas de produo" ou grupos semi-autnomos, o contedo e a qualidade do trabalho humano modificaram-se. No s na produo industrial, mas no setor de servios, o desenvolvimento do contedo informativo das atividades profissionais, a difuso das ferramentas de tratamento da informao e sua insero em uma rede de informao e comunicao tendem a fazer desaparecer as fronteiras tradicionais entre os empregos da administrao e os de outros setores (produo, armazenagem, distribuio) favorecendo a mobilidade entre os empregos, at agora separados em categorias isoladas. 6
Surgem novas tendncias em relao ao trabalho: este torna-se mais abstrato, mais intelectualizado, mais autnomo, coletivo e complexo. Cada vez mais as funes diretas esto sendo incorporadas pelos sistemas tcnicos, e o simblico se interpe entre o objeto e o trabalhador. O prprio objeto do trabalho torna-se imaterial: informaes, "signos," linguagens simblicas.
Mas, os sistemas tcnicos desenvolvem, simultaneamente, possibilidades (polivalncias) e fragilidades. Com o avano tecnolgico as tarefas tornam-se indeterminadas, pelas possiblilidades de usos mltiplos dos prprios sistemas, e a tomada de decises passa a depender da captao de uma multiplicidade de informaes obtidas atravs das redes informatizadas. O trabalho repetitivo, prescrito, substitudo por um trabalho de arbitragem, onde preciso diagnosticar, prevenir, antecipar, decidir e interferir em relao a uma dada situao concreta de trabalho. A natureza deste tipo de trabalho reveste-se na imprevisibilidade das situaes, nas quais o trabalhador ou o coletivo de trabalhadores tem que fazer escolhas e opes todo o tempo, ampliando-se as operaes mentais e cognitivas envolvidas nas atividades mas, ao mesmo tempo, seus "custos subjetivos". 7
Estas caractersticas do trabalho nos setores onde vigoram os novos conceitos de produo, com uso da tecnologia informacional e mudanas organizacionais, tornam questionveis noes como qualificao para o posto de trabalho ou qualificao do emprego. O trabalho j no pode ser pensado a partir da perspectiva de um determinado posto, mas de famlias de ocupaes que exigem competncias semelhantes aos trabalhadores.
No se trata mais, portanto, de uma qualificao formal/qualificao prescrita/qualificao do trabalhador 3
para desenvolver tarefas relacionadas a um posto de trabalho, definida pela empresa para estabelecimento das grades salariais, ou pelos sistemas de formao para certificao ou diplomao, onde as tarefas estavam descritas, codificadas e podiam ser visualizadas, mas da qualificao real do trabalhador, compreendida como um conjunto de competncias e habilidades, saberes e conhecimentos, que provm de vrias instncias, tais como, da formao geral (conhecimento cientfico), da formao profissional (conhecimento tcnico) e da experincia de trabalho e social (qualificaes tcitas). A qualificao real dos trabalhadores muito mais difcil de ser observada e constitui-se mais no "saber-ser" do que no "saber-fazer". O conjunto de competncias posto em ao em uma situao concreta de trabalho, a articulao dos vrios saberes oriundos de vrias esferas (formais, informais, tericos, prticos, tcitos) para resolver problemas e enfrentar situaes de imprevisibilidade, a mobilizao da inteligncia para fazer face aos desafios do trabalho constituem caractersticas desta qualificao real. Este conjunto de competncias amplia-se para alm da dimenso cognitiva, das competncias intelectuais e tcnicas (capacidade de reconhecer e definir problemas, equacionar solues, pensar estrategicamente, introduzir modificaes no processo de trabalho, atuar preventivamente, transferir e generalizar conhecimentos), para as competncias organizacionais ou metdicas (capacidade de autoplanejar-se, auto- organizar-se, estabelecer mtodos prprios, gerenciar seu tempo e espao de trabalho), as competncias comunicativas (capacidade de expresso e comunicao com seu grupo, superiores hierrquicos ou subordinados, de cooperao, trabalho em equipe, dilogo, exerccio da negociao e de comunicao interpessoal), as competncias sociais (capacidade de utilizar todos os seus conhecimentos - obtidos atravs de fontes, meios e recursos diferenciados - nas diversas situaes encontradas no mundo do trabalho, isto , da capacidade de transferir conhecimentos da vida cotidiana para o ambiente de trabalho e vice-versa) e as competncias comportamentais (iniciativa, criatividade, vontade de aprender, abertura s mudanas, conscincia da qualidade e das implicaes ticas do seu trabalho, implicando no envolvimento da subjetividade do indivduo na organizao do trabalho). 8 Entretanto, se essas competncias so necessrias ao sistema produtivo, no so suficientes quando se tem como perspectiva a expanso das potencialidades humanas e o processo de emancipao individual e coletivo. No processo de construo destas competncias, preciso, pois, propiciar uma formao que permita aos trabalhadores agir como cidados produtores de bens e de servios e como atores na sociedade civil, atendendo a critrios de eqidade e democratizao sociais. Neste sentido, ao conjunto das competncias profissionais acrescem-se as competncias polticas, que permitiriam aos indivduos refletir e atuar criticamente sobre a esfera da produo (compreendendo sua posio e funo na estrutura produtiva, seus direitos e deveres como trabalhador, sua necessidade de participao nos processos de organizao do trabalho e de acesso e domnio das informaes relativas s reestruturaes produtivas e organizacionais em curso), assim como na esfera pblica, nas instituies da sociedade civil, constituindo-se como atores sociais dotados de interesses prprios que se tornam interlocutores legtimos e reconhecidos. preciso, entretanto, ressaltar que a qualificao real do trabalhador, o conjunto de suas competncias individuais e coletivas, no se constitui como estoque de conhecimentos e habilidades, fixo no tempo, mas como fluxo, 9 pois so mobilizadas e desmobilizadas em um processo seqencial de ajuste no mercado interno e externo de trabalho. Desta forma os saberes tcitos, incorporados ao longo da trajetria profissional, tm uma historicidade, e vm, de certa forma, sendo utilizados e apropriados pelas empresas desde o modelo taylorista/fordista. O problema que se coloca, hoje, a necessidade das empresas e do prprio sistema formador de formalizar essa qualificao real, esse conjunto de competncias que est muito mais ao nvel da subjetividade/intersubjetividade do trabalhador do que as qualificaes anteriormente prescritas. A busca de referenciais para apreender as competncias, detectar os seus contedos, captar sua dinmica, os mecanismos como se articulam diante da necessidade de resolver problemas e o modo como so postas em ao em uma situao concreta, tm sido o desafio de pesquisadores, formadores e gerentes de recursos humanos das empresas. 4
Por outro lado, a "abordagem das competncias" no pode desconhecer o fato de que essa qualificao real dos trabalhadores, histrica, contextualizada no processo de globalizao econmica, de reestruturao produtiva e de mudanas no contedo e natureza do trabalho e impactada pelos aspectos integradores e desintegradores deste processo. Alm de condicionada pelo contexto econmico, social e poltico atual, expresso das relaes sociais e resultante de negociaes e embates entre interesses nem sempre convergentes do capital e trabalho. Trata-se aqui de ressaltar, que as competncias no surgem como desdobramentos "naturais" das tecnologias e das novas formas de organizao do trabalho (como se novas tecnologias induzissem, necesssariamente, a novas competncias e estas a novas formaes) e que, portanto, no podem ser "deduzidas" diretamente do contedo do trabalho, mas refletem relaes de poder entre interlocutores sociais envolvidos no processo de produo de bens e de servios, cujos contornos variam, historicamente, de pas para pas. Desta forma, as qualificaes dependem da conduta e estratgias empresariais (evidenciada pelos mtodos de gesto da fora de trabalho) e da conscincia e organizao dos trabalhadores (refletida no grau de interveno na concepo, no ritmo e forma como se dar a implantao dos programas de reestruturao das empresas). O uso da tecnologia no implica, necessariamente, em maior ou menor qualificao dos trabalhadores, esta vai depender das relaes de fora e de poder que se estabelecem no s no interior das empresas, mas na prpria sociedade, onde os atores sociais envolvidos possam expressar-se de forma integral.
Deste raciocnio deduz-se que podero existir "variantes" de polivalncia dos trabalhadores, cuja amplitude abarca a polivalncia espria, onde ocorre apenas reagrupamento de tarefas pela supresso de postos de trabalho, ou pelo enxugamento dos quadros das empresas com demisses, o que acarreta a intensificao do trabalho. A polivalncia , neste caso, associada multifuncionalidade, na qual o trabalhador opera duas ou trs mquinas semelhantes, que exigem os domnios dos mesmos princpios ou as mesmas habilidades sem significar uma qualificao maior. Neste caso incluem-se, igualmente, a rotao de tarefas dentro de uma mesma atividade, o exerccio de diferentes atividades com o mesmo nvel de complexidade ou, ainda, de uma atividade principal e outras de complexidade menor. Uma outra forma de polivalncia associada multiqualificao, onde o trabalhador opera diferentes equipamentos, com diferentes mtodos e instrumentos, sem restringir-se alternncia em vrios postos de trabalho. Implica aumento da qualificao, incorporao e transferncia de conhecimentos, trabalho em equipe, auto-organizao e participao, incluindo a questo do contedo inovativo do trabalho, abrindo espaos para a criatividade do trabalhador. Num ltimo sentido a polivalncia aproxima-se do conceito de politecnia, onde o trabalhador no apenas domina diferentes tcnicas, equipamentos e mtodos, mas conhece a origem destas tcnicas, os princpios cientficos e tcnicos que embasam os processos produtivos, apreende as implicaes do seu trabalho, seu contedo tico, compreendendo no s o "como fazer," mas o "porque fazer." Neste caso, a autonomia do trabalhador e sua participao no processo so enfatizados. Se a construo de competncias pertence aos trabalhadores como sujeitos deste processo, a sua mobilizao e articulao em situaes concretas depender da possibililade da constituio de "organizaes qualificadoras". 10 Este tipo de organizao do trabalho no somente usa, utiliza as competncias dos trabalhadores, mas as fabrica, produz essas competncias. Como a organizao poderia contribuir para construir novas competncias? Dando possibilidades aos trabalhadores de intervirem na gesto do trabalho e nas decises que afetam o processo produtivo, propiciando-lhes espaos para participao, para propor modificaes e sugestes de melhoria, permitindo a discusso sobre concepes, mtodos e procedimentos de trabalho, estimulando o aumento da autonomia e do poder de deciso. Os espaos formativos, quer sejam de educao geral ou profissional, deveriam, em igual forma, propiciar a construo destas competncias, e isto implica em rediscusso dos seus mtodos de gesto e da formao dos docentes.
5
Alguns riscos da "abordagem das competncias"
O conceito de competncia comea a ser utilizado na Europa a partir dos anos 80. No um conceito preciso nem empregado com o mesmo sentido nas vrias abordagens. Origina-se das Cincias da Organizao e surge num contexto de crise do modelo de organizao taylorista e fordista, mundializao da economia, exacerbao da competio nos mercados, exigncias de melhoria da qualidade dos produtos e flexibilizao dos processos de produo e de trabalho. Neste contexto de crise, e tendo por base um forte incremento da escolarizao dos jovens, as empresas passam a usar e adaptar as aquisies individuais da formao, sobretudo escolar, em funo das suas exigncias. 11 A aprendizagem orientada para a ao e a avaliao das competncias baseada nos resultados observveis. Dentro desta perspectiva: Competncia inseparvel da ao e os conhecimentos tericos e/ou tcnicos so utilizados de acordo com a capacidade de executar as decises que a ao sugere. A competncia a capacidade de resolver um problema em uma situao dada. A competncia baseia-se nos resultados. 12
A pedagogia das competncias 13 comea a ganhar forma nos anos 80, na Europa, e na Frana definitivamente implementada na Charte des Programmes de 1992, que enuncia os princpios diretivos dos programas de ensino para todos os ciclos da educao geral. Este documento pode ser considerado como a expresso da passagem de um ensino centrado sobre os saberes disciplinares a um ensino definido para e visando a produzir competncias verificveis nas situaes e tarefas especficas. 14 Trata-se de uma pedagogia voltada para objetivos de referncias (no ensino geral), referenciais (para o ensino profissional) e referenciais de atividades (nas empresas). O ensino tcnico-profissional , assim, voltado para objetivos definidos em termos de competncias terminais a serem adquiridas ao final do curso, do ano, ou da formao, que so explicitamente detalhados e descritos em termos de saberes e aes. Essas competncias devem ser avaliadas atravs de critrios de desempenho altamente especificados. 15
A identificao das competncias requeridas pelos empregos operada por referenciais construdos na mesma lgica utilizada no ensino tcnico e profissional, a partir das mesmas categorias de saberes, saber- fazer e saber-ser cuja posse medida em termos de "ser capaz de." As competncias so consideradas como propriedades instveis que devem ser submetidas objetivao e validao dentro e fora do exerccio do trabalho, para serem reconhecidas. A certificao das competncias surge, ento, como forma de reconhecer as competncias dos trabalhadores, que so sempre provisrias e devem ser constantemente avaliadas por organismos constitudos para tal fim. Neste caso, a educao continuada na empresa e a formao em alternncia em instituies de formao profissional, representariam uma maneira de manter atualizada uma "carteira de competncias". 16
A experincia francesa demonstra, finalmente, uma tendncia individualizao sinalizada de um lado, pela mudana em direo a um sistema de aprendizagem centrada no aluno, ator do seu percurso escolar e, de outro, pelas empresas, que so incentivadas a se transformar em "organizaes" valorizadoras, criadoras de competncias para o trabalhador no seu percurso profissional. A adoo do conceito de competncia de maneira acrtica pode implicar, entretanto, em alguns riscos. O primeiro a viso adequacionista da formao, voltada para o atendimento exclusivo s necessidades da reestruturao econmica e s exigncias empresariais. Os critrios de eqidade, bem-estar coletivo, democratizao da sociedade devem estar presentes e orientar no s a educao geral, mas o ensino tcnico-profissional e a educao permanente. Desta forma, ao ignorar a formao do sujeito-poltico, uma abordagem restritiva das competncias torna-se instrumentalizante e tecnicista. No caso brasileiro, a dualidade entre educao geral e educao tcnico-profissional leva desvinculao entre a compreenso e 6
o domnio das bases e princpios cientficos que regem as tecnologias e a sua operacionalizao, aprofundando-se a separao entre a concepo e a execuo. Sem a ampliao da base de educao geral, com a garantia de 9 a 10 anos de escolaridade (o que significaria forte investimento no sistema regular de ensino) a formao profissional corre o risco de formar trabalhadores descartveis pela rpida obsolescncia de conhecimentos, adquiridos de forma imediata e sem os aprofundamentos necessrios.
Ao construir competncias para as necessidades estritas do mercado de traballho ou para as exigncias das tecnologias, a formao profissional estar desconhecendo que as competncias dos trabalhadores so tambm fruto das relaes sociais e que existem, portanto, limites e possibilidades de coloc-las em ao no processo produtivo. O exerccio da problematizao, da autonomia, da discusso, da negociao e da participao nos espaos das instituies de formao profissional (formao valorizadora) poder propiciar aos alunos uma experincia a ser buscada e conquistada, tambm, nos seus espaos de trabalho, com exigncias de constituio de uma organizao de trabalho qualificadora. O segundo risco da apropriao acrtica da noo de competncia constitui-se na abordagem individualizada e individualizante que se faz dela. preciso ressaltar que as competncias, se tm um contedo subjetivo, individual, so construdas ao longo da trajetria da vida profissional do trabalhador, o qual partilha de experincias e prticas coletivas. No contexto do trabalho em grupo, em equipe, parece paradoxal que a avaliao das competncias e a sua certificao se concentre nos resultados meramente individuais sem que se atente para o fato de que algumas das competncias dos trabalhadores s podero ser mobilizadas e articuladas dentro de coletivos de trabalho e em situaes grupais. Por outro lado, os acordos particulares entre empregador e empregado em termos de uma "carteira de competncias" enfraquece a negociao coletiva em proveito do individual e desmobiliza a ao sindical. Finalmente, um terceiro risco a preocupao com o produto (resultados) e no com o processo de construo das competncias. Como se estruturam? Como se adquirem e como se transmitem? Quem determina quais as competncias necessrias ao trabalho e quais os seus contedos?
Ainda algumas questes em aberto Embora a discusso sobre o conceito de competncia tenha penetrado em diversas esferas como a economia, o trabalho, a educao e a formao, desde a dcada de 80, nos pases desenvolvidos, no Brasil comea-se a pensar a noo, tanto no mundo acadmico como nas empresas, a partir dos anos 90. Se nos pases europeus esse conceito vem substituindo o de qualificao (mesmo sendo considerado pouco preciso e assumindo vrios sentidos e significados), estamos longe de compreend-lo em sua abrangncia, com suas vantagens e limitaes.
Como construo social e histrica, o conceito remete-se a uma realidade dinmica, onde convivem as exigncias de eficcia e produtividade do trabalho e a necessidade de um trabalhador qualificado, competente, com o aumento da seletividade no mercado de trabalho, o desemprego, a precarizao do emprego e a diminuio do poder de negociao dos trabalhadores. neste quadro que se insere a problemtica atual da certificao das competncias. Desdobramento do processo de avaliao e validao das competncias, a certificao passou a ser uma exigncia internacional decorrente da difuso de normas de qualidade como a srie ISO 9000 e a ISO 14000. 17 J difundida na Europa, Estados Unidos e Amrica Latina (Chile, Mxico e Argentina), a certificao comea a ser implementada no Brasil, no contexto do PBQP (Programa Brasileiro de Qualidade e Produtividade), atravs da criao de um Sistema Brasileiro de Certificao, cujas normas objetivam avaliar a conformidade de produtos, servios, sistemas e pessoal. Instituies como o Senai participam do PNQC (Programa Nacional de Qualificao e Certificao) vinculado ao PBQP, e vm implantando Centros de Exames de Qualificao para a certificao ocupacional 7
em diversas reas industriais em vrios estados do Pas. Por outro lado, pensa-se em implementar a Certificao de Competncias, atravs de exames realizados pelos sistemas federais e estaduais de ensino, para fins de reconhecimento de estudos e dispensa nos respectivos cursos tcnicos, tal como preconiza o artigo 14, cap. III do Projeto de Lei 1603 de 1996, 18 que dispe sobre a educao profissional.
Desta forma, estamos diante de um contexto que nos leva a indagar sobre as vantagens e os riscos da abordagem das competncias e da sua validao e certificao. Como vantagens visualizamos a possibilidade de construo de competncias ampliadas, abrangendo vrias dimenses, antes no reconhecidas ou no valorizadas na organizao do trabalho. Sua certificao tem, como aspecto positivo, o reconhecimento dos saberes dos trabalhadores, que so provenientes de vrias fontes, validando-os independentemente da forma como foram adquiridos (no sistema educacional formal, no sistema de formao profissional ou na experincia profissional). Como riscos deixaramos algumas questes em aberto: do ponto de vista do sistema formador, indagaramos em que medida a construo e a certificao de competncias voltadas estritamente para as necessidades empresariais deixariam em plano secundrio os saberes e conhecimentos no diretamente ligados a essas demandas? O processo formativo restringir-se-ia dimenso informativa e instrumental, desprezando a dimenso educativa? Que reformulaes deveriam ser feitas no sistema educacional e no de formao tcnico-profissional em termos curriculares, de metodologias de ensino e de formao de docentes diante da abordagem das competncias? Poderia haver transferibilidade de um setor educacional a outro, no sentido de que se o trabalhador tem competncia reconhecida numa rea tcnica poderia voltar ao sistema educacional para continuar os estudos? Que mecanismos e instituies assegurariam a certificao inicial e as futuras reaprendizagens? Qual seria o papel do sistema educativo, das instituies de formao profissional, dos trabalhadores e das empresas na definio e construo das competncias? O sistema formador ficaria submetido ao atendimento s exigncias das normas internacionais de certificao de produtos, sistemas e pessoas?
Da perspectiva do mercado de trabalho, at que ponto este, em um quadro de crise e de desemprego, e na ausncia de polticas pblicas de emprego e de gerao de renda, tornar-se-ia ainda mais seletivo, agora segmentando a fora de trabalho entre aqueles que tm certificao e os que no tm certificao? Em que medida a responsabilidade pelo desemprego recairia sobre o trabalhador, na medida em que no dispe de uma moeda vlida (a sua certificao) para oferecer no mercado? Poderiam surgir interesses corporativos, de feudalizao do mercado de trabalho, que impediriam a entrada de novos contingentes de trabalhadores que no portassem as certificaes? A certificao de pessoas poderia constituir-se em um mecanismo de maior controle da fora de trabalho, no sentido da apropriao e formalizao dos saberes tcitos pelas gerncias? As certificaes de competncias poderiam ser reconhecidas transversalmente nos sistemas ocupacionais, para que houvesse correspondncia entre um setor e outro, uma empresa e outra, ou uma rea e outra?
Sob a tica das polticas pblicas, qual o papel do Estado na definio do sistema de certificao de competncias e qual a sua articulao com as outras instituies do setor privado que j vm fazendo a certificao? Quais as polticas pblicas j implementadas (poltica industrial, de emprego, de educao, de educao tcnica e formao profissional) e como elas se articulam no que diz respeito construo e certificao de competncias? Qual a visibilidade que o sistema de certificao de competncias tem para os atores sociais envolvidos: trabalhadores, empresrios, governo? Qual o seu grau de participao e interferncia neste sistema? Estas so algumas das questes sobre as quais necessrio refletir para fazer face aos desafios postos formao profissional diante do contexto de globalizao e de novas polticas microeconmicas ao nvel das empresas, e de crescentes processos de democratizao da sociedade.
8
NOTAS
1 IANNI, O. O mundo do trabalho. So Paulo em Perspectiva, v. 8, n. 1, 2-12, jan./mar. 1994.
2 TANGUY, L. Rationalization pdagogique et lgimit politique. In: TANGUY, L. ROP. F.(Org). Savoirs et comptence: de l'usage de ces notions dans l'cole et l'entreprise. Paris: L'Harmattan, 1994.
3 GROOTINGS, P. Da qualificao competncia: do que estamos a falar? Revista Europia da Formao Profissional, Berlim, n. 1, 1994.
4 PIORE, M., SABEL, C. The Second industrial divide. New York: Basic Books, 1984.
5 CHUMANN, M. O futuro do trabalho na indstria automobilstica alem. In: SOARES, R.M.(Org.) Gesto da qualidade: tecnologia e participao. Braslia: Governo do Distrito Federal/CODEPLAN, 1992. Cadernos Codeplan, 1.
6 MANDON, N. Las Nuevas tecnologias de la informacin y el trabajo de oficina: comparacin europeas. Berlim: CEDEFOP, 1988.
7 CLOT, V. Vivre en flux tendu: un noveau paradigme industriel? Rio de Janeiro: CNI/SENAI/UNESCO- CIET/UFRJ-IPPUR, 1995. Trabalho apresentado no Seminrio Internacional sobre Globalizao, Progresso Tcnico e Trabalho Industrial.
8 DELUIZ, N. Formao do trabalhador: produtividade e cidadania. Rio de Janeiro: Shape Ed., 1995.
9 ACSELRAD, H. Trabalho, qualificao e competitividade. Em Aberto, Braslia, v. 15, n. 65, jan./maio., 1995.
10 CLOT, V. op. cit., 1995.
11 STROOBANTS, M. A. A competncia mobiliza o operrio? Revista Europia de Formao Profissional, Berlim, n. 1, 1994.
12 TANGUY, L., ROP, F. op. cit., 1994.
13 O termo pedagogia entendido no sentido amplo de uma atividade social que engloba a seleo dos saberes a serem transmitidos pela escola, sua organizao, sua distribuio em uma instituio diferenciada e hierarquizada, sua transmisso por agentes especializados e sua avaliao por mtodos apropriados (Tanguy, 1996).
14 TANGUY, L. Les usages sociaux de la notion de competnce. Sciences Humaines. Hors. Srie n.12, fev. /mar., 1996. p.62-65.
15 Id. ibid.
16 STROOBANTS, M.A. op. cit., 1994.
17 A ABNT(Associao Brasileira de Normas Tcnicas) incorporou as normas da srie ISO (International Organization for Standardization) 9000 sobre gesto da qualidade e dever incorporar no segundo semestre de 1996 a srie ISO 14000 referente ao sistema de gesto ambiental.
18 BRASIL. Leis, decretos. Projeto de Lei 1.603, de 03/04/96. Dispe sobre a educao profissional, a organizao da rede federal de educao profissional e d outras providncias. Dirio da Cmara dos Deputados, Braslia, v. 51, n. 58, de 03/04/96. p. 8534. *Neise Deluiz professora-adjunta da UFRJ e especialista da Faculdad Latinoamericana de Ciencias Sociales (FLACSO), sociloga e doutora em Educao/UFRJ.