Às vezes, dizermos o que uma Se eu nasci numa sociedade determinada,
determinada coisa não é, é mais eficaz do que estruturada de uma determinada maneira, defini-la pelo que ela propriamente é, organizada segundo princípios precisos, com principalmente quando o objeto da investigação valores característicos e meus pais contam que é algo que não existe, ou melhor, algo que quando eram crianças já era assim, e os pais ainda-não-existe. Falar de algo possível nos deles contaram para eles que era assim quando coloca duas questões que devem ser analisadas eram crianças, nada mais natural do que bem de perto. Em primeiro lugar, surge a considerar que é assim que é, por que sempre foi limitação de conseguirmos pensar além de nossa assim. Isto se dá também em outros espaços de experiência ou além das categorias do mundo socialização, em nossa sociedade, por exemplo, que nos rodeia. E em segundo lugar, devemos a escola, a igreja, o local de trabalho etc. são levar em consideração quais são os valores espaços institucionais que produzem com suas expressos em nossas análises. ideologias uma naturalização dos conceitos e categorias existentes em nossa sociedade. Como pensar uma organização social que não seja pautada em critérios mercantis? É Naturalizar, nos termos que estamos possível um mundo além da mercadoria, do considerando, é o ato, a ação de eternizar, de dinheiro e do estado? É possível uma forma de introjetar relações históricas considerando-as organização cuja essência não seja assentada na invariavelmente necessárias à reprodução de hierarquia, na autoridade, na alienação do uma dada organização social. A naturalização é trabalho? Existirá uma sociedade cujas cidades um dos fenômenos fundamentais para não sejam fragmentadas, repletas de periferias compreendermos a aceitação de determinadas degradadas? De bairros operários? De bairros da relações sociais por grupos e classes sociais burguesia? Haverá uma sociedade cuja distintos. Note que aqui não estou buscando totalidade das relações não seja mediada pela explicar os porquês, as determinações que fazem mercadoria? É possível pensar em uma forma de com que as relações de subordinação e organização societária cuja relação dominante exploração se perpetuem, pois aí muitas outras não seja: “eu tenho, por que comprei?”, é determinações entram em jogo, tais como: o possível pensar, nestes termos, numa sociedade, estado, a ideologia, os valores, as organizações na qual não haja o político profissional, o de comunicação etc. Racionalizar é aceitar como proprietário, o trabalhador (operário, camponês, invariável, o variável; cotidiano, banal, o desempregado etc.), o administrador, o gerente? essencial; natural, o histórico; enfim, retilíneo, o ondulado. Ou seja, a naturalização impede o Todas estas questões demonstram pensamento de abstrair a realidade, de analisá- somente uma coisa, os conceitos e categorias la, de compreendê-la. É necessário, portanto, com os quais instrumentalizamos nosso não nos desvincularmos de nossa realidade pensamento são um produto genuíno de nossa social, nem de seus conceitos inextrincáveis, sociedade. Naturalizar o que na realidade é uma mas pelo contrário, compreender que esta produção social é um fenômeno muito comum. realidade social e os conceitos que lhes são No final, mais do que a pergunta se a inerentes são determinados historicamente. autogestão é possível, devemos perguntar se queremos ou não a autogestão. Deste modo, a Deste modo, é fundamental analisar a pergunta de como vamos administrar uma burocracia, os proprietários, a mais-valia, os cidade de 10 milhões de habitantes, de quem vai operários, camponeses, desempregados etc. e administrar o trânsito, a escola, a igreja etc. é suas relações recíprocas, pois esta é a um subterfúgio que expressa determinados materialidade de nosso mundo. Entretanto, é A Libertação do valores e que busca fugir à pergunta central: fundamental também, compreender Pensamento que estes queremos a autogestão? Se sim, devemos conceitos são produtos da nossa realidade considerar em linhas gerais o que concebemos histórica e que esta é permeada de contradições por esta palavra. Mais do que mera palavra, que lhes sustentam, que lhes transformam e que signo, autogestão é conceito que expressa uma lhes apontam sua dissolução. Analisar as realidade possível. Que realidade é esta? O que é dinâmicas sociais que movimentam nossa autogestão? sociedade é um começo para compreendermos as possibilidades que estão dadas. Estas duas questões nos conduzem a problemas de difícil solução, que não se Analisemos agora o segundo aspecto que resolvem simplesmente com o manejo de considero fundamental para pensarmos o categorias abstratas e teóricas. Trata-se na possível: os valores. É intrínseco aos seres realidade de uma mudança global em todos os humanos valorar os objetos, as instituições, as níveis das relações sociais. Mudanças de ordem relações, os próprios indivíduos etc. Os artistas econômica, política, cultural, comportamento valoram sua arte, os professores valoram suas sexual, educativo etc. Ou seja, na nossa aulas, os engenheiros suas pontes, os deístas seu sociedade, autogestão deve ser concebida de três deus, os idólatras seus ídolos. Da mesma forma formas: a) como um processo revolucionário os “não-artistas” valoram a arte, os alunos, a que aniquila a sociedade atual. Processo este que aula, os “não-engenheiros” a ponte, os ateus, já deve conter em si os fundamentos do que deus e os “não-idólatras” os ídolos. Porém, de busca construir; b) como a sociedade produzida outra maneira. Ou seja, valorar é um balizada em outras formas de relações sociais prolongamento dos seres humanos a tudo o que calcadas em princípios organizativos nos concerne, a tudo o que nos rodeia. radicalmente diversos, na qual a alienação, exploração, autoridade, hierarquia, poder etc. Deste modo, o que importa é qual valor estamos sejam abolidos; e c) como um conceito, ou seja, re-produção no pensamento de uma realidade ou não atribuindo à possível em nossa sociedade e concreta numa determinada coisa, relação etc. assim, segundo penso, a sociedade revolucionada. autogestão é valorada No primeiro caso, devemos concebê-la, basicamente de duas tal como fizeram Marx e Engels na Ideologia maneiras. Ou a valoramos a Alemã, quando definiram o comunismo como o partir da perspectiva do movimento real da sociedade que abole o atual existente, portanto ela é impossível ou estado de coisas. Ou seja, o comunismo, cujo indesejável, ou a valoramos a partir da via do fundamento é a autogestão, não é o futuro, mas possível, portanto ela é não só realizável, mas sim o movimento autogerido e auto-organizado desejável. No primeiro caso, naturalizamos que põe fim às relações de classe. nossa realidade histórica por conveniência ou por impotência e no segundo, exercitamos o Em termos concretos, só podemos pensamento a instrumentalizar-se com conceber a autogestão num movimento cujos categorias do ainda-não-existente, do possível e princípios organizativos, teóricos, éticos (no percebemos a realidade como histórica e sentido da ética humanista tal como Erich transitória. Fromm define em Análise do Homem) e revolucionários sejam a autogestão. Ou seja, ela pessoas e objetos dentro de uma organização é o meio e o fim da revolução. Se seus objetivos burocrática, podendo ser privada ou estatal. O e métodos não são autogeridos e auto- objetivo de administrar é fazer com que a organizados, ela estará invariavelmente fadada à organização funcione de maneira objetiva, conservação, ou em outras palavras, à ordenada, funcional, hierarquizada. A ação de reprodução diferenciada ou idêntica ao administrar pressupõe o sujeito que administra; existente, à ordem atual. esse administrador é imbuído de poder e autoridade concedidos pela organização. Se este Se afirmamos que as coisas se dão desta burocrata é “justo”, “bom”, “mau” ou “injusto” maneira, resta, e é o que importa, encontrar as pouco importa, pois sua função é ordenar os determinações que explicam por que ocorrem fluxos de informações, pessoas e objetos dentro assim. Na ética autoritária, segundo a qual “os da organização. O administrador é a fins justificam os meios”, o que importa é personificação do “separado”, tal como Guy chegar-se ao comunismo, mesmo que seja sobre Debord definia na sua Sociedade do Espetáculo. morticínios os mais brutais, divisão hierárquica Em outras palavras, é a velha divisão social do dentro dos locais de trabalho e no restante da trabalho cuja raiz é o poder (econômico, sociedade, existência de uma burocracia simbólico, político). Desta maneira, a autogestão onipotente e incontrolável etc. Ou seja, se no é o aniquilamento da administração. Representa processo a hierarquia, autoridade, poder, o fim da divisão social do trabalho, sendo, violência, privilégios permanecem, por mais que portanto, o fim da hierarquia e do poder. Antes os objetivos sejam a revolução, o comunismo, a de mais nada, autogerir é a criação de novas autogestão; a autoridade, privilégios, hierarquias relações sociais. adquiridos passam a ser defendidos, pois passam a ser interesses de grupos, classes e indivíduos. Autogerir significa o domínio da vida Chegamos assim, por exemplo, ao fim da como um todo. Se em nossa sociedade, vendo revolução russa em 1921, à edificação das meu tempo de vida em troca de um salário, que burocracias partidárias e sindicais etc. O século permita sobreviver para continuar vendendo 20 é o testemunho mais vivo destas meu tempo. Numa organização autogerida, o “revoluções”. tempo não é vendido, mas organizado para a própria vida. O tempo deixa de ser o padrão de Se no primeiro caso, a autogestão é o medida do valor para ser o princípio da processo que degenera esta sociedade, no construção de vida. segundo, é o projeto consumado. Falar dele, é em grande parte especulação, pois as Neste sentido, meu trabalho não deve ser possibilidades históricas são tantas que a própria alienado, ou seja, tanto o produto, quanto o dinâmica imprevisível, portanto viva, da história processo de trabalho deverá ser de meu inteiro não nos permite avaliar com precisão o que é a conhecimento, sendo, portanto minha sociedade autogerida. Mesmo assim, alguns objetivação. Meu trabalho deve ser a minha indicativos podem ser lançados ao vento. realização, deve ser minha externalização. Não Levando em consideração as experiências como meio para sobreviver, mas como fim, históricas dos movimentos revolucionários e as objetivo de se viver. produções teóricas sobre eles, podemos colocar em pauta alguns elementos que nos permitem Poderíamos elencar aqui um sem número especular mais sobre o que ela não deve ser do de conceitos e categorias que expressem uma que ela realmente deva ser. realidade ainda-não-existente. Isto é para mim pensar o possível a partir do existente. E é deste Em primeiro lugar, ela não é modo que entramos na terceira forma de administração, principalmente administração das concebermos a autogestão, ou seja, como um instituições desta sociedade. Podemos definir conceito. E ele expressa sempre uma realidade. administração, de maneira lata, como sendo Como conceito, autogestão refere-se tanto à uma técnica de organizar fluxos de informações, realidade posta em nossa sociedade, portanto como um processo de destruição, aniquilamento, destrutiva e construtiva ao mesmo tempo, negação, mas ao mesmo tempo expressa uma negativa e positiva simultaneamente! Ou seja, realidade ainda-não-existente, sendo desta no próprio ato de destruir a sociedade burguesa, maneira construtivo, positivo, propositivo. delineia-se a construção da sociedade autogerida. Fique claro desde já que não se trata de duas realidades separadas, a forma de exposição Deste modo, insisto, a pergunta correta serve somente para aclarar as idéias e apresentar não é se a autogestão é possível, mas sim se a didaticamente o que é a autogestão. Trata-se na desejamos ou não. E no final, há um milhão de realidade de processos que ocorrem perguntas sobre o que fazer com um milhão de simultaneamente. Ela não é primeiramente coisas. Tudo está por fazer. E é preciso fazê-lo. destrutiva e em seguida construtiva. É sim
Artigo publicado originalmente em:
Revista Enfrentamento. Ano 01, num. 2, Jan./Jun. 2006. http://www.enfrentamento.sementeira.net/