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Improvável concepção

Às vésperas do aniversário de seu divórcio, Aurélio antecipa as festividades com


coquetéis de antidepressivos, incensos cheirando a fortuna, felicidade ou, simplesmente,
flores secas. Sob recomendação da última psicanalista, se esforça para manter um diário, no
qual procura colocar-se em contato com seus sentimentos e documentar os progressos do
tratamento abandonado há dois meses. Eventualmente, dá-se licença poética e harmoniza com
algum esmero sentimentos de autopiedade, solidão e paixões avassaladoras e frustradas,
direcionadas a ninguém. Rima cognatos e deleita-se com a sonoridade com que dor e amor se
encontram, desconhecendo a pobreza da rima que lhe soa como a metáfora perfeita da
existência. Descreve sentimentos regados a vinho tinto, enquanto o gelo suaviza o sabor do
uísque barato no copo de requeijão. Alterna versos nostálgicos e lembranças indesejadas,
como o tema das discussões que culminaram em seu divórcio; tema que considera causa única
de toda sua tragédia pessoal.
Em pouco mais de dois anos de casamento, entre incompatibilidades, brigas e disputas
que Aurélio julgava inerentes à convivência a dois, emergiu uma frustração que,
momentaneamente, uniu ternamente o casal em tristeza e esperança: sua incapacidade de
gerar filhos. Atestada a ineficácia dos métodos tradicionais, consultaram médicos, prestaram-
se a exames diversos e buscaram tratamento. Constatou-se que Aurélio apresentava um raro
problema, cujo tratamento – ainda novo e pouco conhecido – mostrava seus primeiros casos
de sucesso. Entretanto, os custos eram proibitivos para Aurélio, que sequer poderia aliviá-los
com seu plano de saúde. Ferido em seu orgulho masculino, reconsiderava alternativas já
descartadas, como a adoção. Já a esposa, essa nutria grandes esperanças com o tratamento,
dispondo-se a sacrifícios diversos, como ampliar dívidas já elevadas com seus familiares. A
dependência dos familiares da esposa, que não o viam com bons olhos, soava
insuportavelmente humilhante para Aurélio. Não tardou para que a adversidade que unira o
casal se transformasse em razão de discussões mais e mais acaloradas. Houve momentos em
que as contendas mais banais recaiam nesse tema, já oco do desejo de uma concepção
amorosa, tornado instrumento eficaz de violência e tortura de egos. Em poucos meses, se
divorciaram, com mútuo espanto por sua capacidade – antes desconhecida – de potencializar
o sofrimento alheio.
O Aurélio de hoje, impressionado com seu poder de ferir mesmo a quem ama, isola-se
e desenvolve a arte de potencializar apenas o próprio sofrimento. Ouve Chico Buarque em
nostalgia calculada, mensurável na regularidade de seus suspiros a cada música: Ao primeiro

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acorde de Trocando em miúdos, corpo e pensamento se configuram mimeticamente,
preparados para estimular e conter sempre a mesma lágrima na derradeira estrofe. Ouve o
cantor, saudoso do tempo em que mal o conhecia e, tampouco, apreciava; de quando sua
desertora ainda não o vencia pelo cansaço e pelo encanto, tempo em que sua música não
penetrava seus ouvidos e nem seus pensamentos. No máximo, o cantor despertava alguma
fagulha de ciúmes quando a esposa afirmava categoricamente que só ele era capaz de
compreender suas excentricidades femininas. Hoje, sente que suas canções lhe falam tão
diretamente que, se ignorá-las, poderá ouvir a voz do compositor bradando seu nome e
exigindo sua atenção, como um velho e severo professor de escola. Vez ou outra, Aurélio se
questiona se já compreende melhor a alma feminina, agora que se sensibiliza com aquelas
canções. Estaria sua alma se feminilizando?
Sob o chuveiro, ensaia versos para um encontro inesperado – mas não menos desejado
– com a desertora: “Olhos nos olhos, quero ver o que você faz ao sentir que sem você eu
passo bem demais...” Ao sair do chuveiro e mirar o espelho, a melodia se esvaece: será Fobia
do palco? “E se eu esquecer a letra? E se desafinar? E se não ouvirem minha voz?”. O olhar
desvia-se do espelho e abandona a cena embaraçosa com a desculpa de procurar um pente.
Encontra-o mais rápido que gostaria, mas quando se volta para o espelho, Aurélio anuncia que
entrega os pontos, cantando Desalento.
O divórcio fez de Aurélio um homem novo, quase irreconhecível. Não mais foge de
seus sentimentos: frequentemente, permite-se o pranto e lê poesia e auto-ajuda sem deboche,
com seriedade cerimonial e ávido interesse. Vai ao cinema sozinho e, em casa, enamora-se
com comédias românticas alugadas em DVD. Seu corpo é outro! Olhos mais fundos e
sobrancelhas mais espessas, traços, mais rígidos e secos. A dieta pós-divórcio incorporou
grandes quantidades de álcool, café, gorduras e massas em todo tipo de comida barata e
pronta que o mantenha distante do fogão. Uma protuberante barriga vinha se formando, junto
a náuseas e mal-estares atribuídos aos excessos e à automedicação inconsequente. Não
raramente, de joelhos, trocava confidências da alma e das entranhas com a louça encardida do
vaso sanitário.
Com o tempo, esses episódios tornaram-se raros. Porém, outros incômodos surgiram:
O peso de seu abdômen já afetava sua postura e agredia sua coluna gradativamente, enquanto
sua barriga adquiria aspecto demasiadamente inchado e rígido. Às vezes, sentia algo se agitar
dentro de seu ventre, provocando dores que seu vocabulário era incapaz de traduzir.
Preocupado com a persistência crescente de seus sintomas, Aurélio se dirige ao pronto

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socorro conveniado mais próximo, onde é logo atendido por um jovem com aparência de
residente.
O rapaz é cauteloso no atendimento, repetindo procedimentos e perguntas. Sem
sucesso, esforça-se em esconder o evidente estranhamento perante o quadro do paciente. É
mesmo um residente. – Dificilmente se tornará um médico competente – pensa Aurélio. O
jovem pede licença e se retira à procura de outros profissionais. Dois médicos de semblante
experiente entram e fitam o paciente, alternando perguntas a ele e ao residente, repetindo
obsessivamente os procedimentos de exame. O interrogatório incomoda quando atinge
detalhes da vida pessoal e emocional do paciente, que responde assombrado. Logo percebe
que seus interlocutores antecipam as respostas com olhares de quem conhece a vida pregressa,
os segredos e a rotina do paciente melhor do que ele mesmo. Os experientes homens de
branco discutem em sussurros, trocam caretas e olhares de dúvida. No entanto, se viram para
Aurélio forçando expressões tranquilas. O pouco que falam é suficiente para denunciar que
não sabem o que se passa. Solicitam uma ultrassonografia e outros exames urgentes.
Acompanham atentos e apreensivos as imagens disformes e cinzentas do pequeno monitor,
sustentando ares conspiratórios e impedindo que o paciente tome conhecimento do que
enxergam. Sussurram novamente entre si e trocam mais caretas e olhares de espanto. Por fim,
em consenso, comunicam que internarão o paciente para realizar novos exames. Argumentam
apenas que é um caso extremamente raro, que exige o parecer de especialistas indisponíveis
no momento. Tenso e imune a jargões de médicos visivelmente inseguros, Aurélio se exalta e
exige explicações, até que uma oportuna injeção perfure seu braço, acalmando seus ânimos e
deixando-o em sono profundo.
Desperta num quarto do hospital, rodeado por aparelhos estranhos e médicos curiosos.
Ainda aturdido sob o efeito dos medicamentos, Aurélio percebe o constrangimento
generalizado dos especialistas quando pergunta o que está acontecendo. Naquela platéia, uma
mulher de meia idade assegura que responderá suas perguntas e solicita delicadamente que os
demais se retirem. Apresenta-se como psicóloga e inicia um processo já conhecido de
perguntas diretas e indiretas sobre a vida pessoal do paciente. Aurélio coopera como pode,
mas irrita-se facilmente com os rodeios da psicóloga. Tentando aliviar a irritação do paciente,
ela busca objetividade e adianta que seu quadro é extremamente raro e que os registros sobre
casos semelhantes são insuficientes e inconclusivos. Segundo ela, o único registro existente
de algo semelhante é de um dissidente solitário de uma tribo melanésia no início do século
XX, encontrado morto por um antropólogo. Conta a psicóloga que, segundo o antropólogo, o
dissidente fora banido de sua tribo, em punição por adultério e incesto. Aurélio não entende a

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relação deste episódio com seu quadro, a não ser o fato de que quase nada se sabe sobre seu
tratamento porque seu predecessor padeceu no meio do nada, sem auxílio médico.
O excesso de eufemismos e estratégias discursivas típicas de psicólogos aumenta a
inquietação de Aurélio, até que ele interrompa a psicóloga e solicite uma resposta objetiva.
Exibindo sinais de inquietação e insegurança, ela revela: “O senhor possui uma rara anomalia
genética, que pode ter-lhe provocado sérias alterações hormonais e fisiológicas. Com isso, seu
corpo gerou uma concepção espontânea, cujos processos ainda são desconhecidos pela
medicina.” O assumido desconhecimento espanta Aurélio, que gagueja um pedido de
explicações mais claras, a que a prolixa psicóloga responde: “O senhor... é... como se... não
sei exatamente... o senhor... o senhor... está grávido. – toma uma pausa para um longo suspiro
e conclui – É isso. O senhor está grávido!”
Um inenarrável turbilhão de imagens e questionamentos invade o cérebro de Aurélio.
Porém, todas as perguntas que lhe ocorrem soam impronunciáveis, por seu conteúdo
simplesmente inconcebível. Atônito, balbucia: “Como...?”, já arrependido perante a
ignorância de sua interlocutora. Tentada a olhar para os próprios pés como a criança que
quebrou um vaso caro, a psicóloga se limita a explicar que foi encarregada de lhe dar a notícia
da forma mais adequada possível. Desculpando-se, dirige-se à porta do quarto, alegando
chamar o médico responsável, sem privar Aurélio de sua companhia totalmente dispensável.
Entra um homem maduro, de estatura mediana e postura imponente. Sob seu jaleco,
percebem-se peças de roupa refinadas e caras. Em suas mãos, há uma pasta fina, engordada
pelo excesso de papéis que quase lhe escapam por todos os lados. Em discreto ritual de
submissão, a psicóloga timidamente se posiciona alguns passos atrás desse senhor
aristocrático e permanece estática, de braços cruzados, alternando olhares de apreensão e
curiosidade.
Mal se apresenta, o médico reitera a raridade do caso e estrutura hipóteses para o
ocorrido; especulações que soam vazias aos ouvidos de seu paciente, apesar da excelente
retórica que sugere longa experiência em seminários e congressos científicos. Nessa hora,
Aurélio se lembra de seu antigo professor de filosofia, cujas especulações sobre a existência
soavam igualmente vazias no cerne, mas pareciam adquirir profunda importância quando
envolvidas pelas densas camadas retóricas do velho mestre.
De acordo com o médico, tudo resultara de uma mutação genética, também rara,
pouco conhecida e, até onde se sabia, irrelevante na vida de quem a apresenta. Com científica
cautela, ele apresenta a única hipótese que considera seguramente concebível para explicar
tamanha bizarrice. Amparado por laudos e exames do paciente, o douto profissional defende

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que uma combinação realmente improvável de fatores psicológicos, ambientais, químicos e
fisiológicos teria desencadeado, a partir da referida mutação, um processo de autorreprodução
jamais observado. Ao fim da explanação, a profissional estática abandona o posto de múmia
e ressuscita, enfatizando a importância da condição psicológica do paciente. Em forçoso tom
maternal, ela destaca os sentimentos de perda, isolamento e abandono observados na breve
análise que realizara do paciente. A tais sentimentos, ela atribui causas e conseqüências de
adversidades e transtornos que propiciaram o desenvolvimento da absurda patologia.
Relembra então caso do melanésio, banido por suas censuradas aventuras amorosas.
Embasbacado e farto de jargões de ficção científica, Aurélio adianta questões sobre o
tratamento. Mantendo solene seriedade, o médico responde que uma cirurgia para extirpar o
feto deve ser realizada quão logo seja possível, considerando que seu grau de
desenvolvimento começa a comprimir perigosamente alguns órgãos vitais. A opção do
médico pelo termo “extirpar” provoca notável incômodo no paciente e na psicóloga. Sem
retratar-se, o médico apresenta as imagens do ultrassom e explica que o feto não apenas
ameaça a vida do paciente, como também não possui chance de sobrevivência devido às suas
terríveis deformações. Aurélio não sabe se está mais chocado com a monstruosidade das
fotografias ou com a frieza daquele cientista. Vendo o paciente pouco convencido por tal
subterfúgio para legitimar sua falta de tato, o médico brada que não está lidando com uma
gestação, mas com uma doença. Argumenta que aquele feto é antes um câncer; uma anomalia
fatal; uma criatura cuja breve existência consiste em dor e sofrimento, fadada à própria
destruição e a de quem a hospeda. Entre fatos, fetos e fotos, Aurélio sucumbe paralisado ao
discurso assustador do médico, embora em sua cabeça pululem questionamentos morais,
éticos e filosóficos sobre as condições da existência humana, o conceito de vida, seu sentido e
o que ela representa. Conclui que aquele homem é arrogante demais para reconhecer o deslize
em seu vocabulário, que seria perdoável, dada a natureza única desse fenômeno, não fosse sua
exagerada assepsia científica. O médico, por outro lado – chefe da cirurgia no hospital e
autoridade internacionalmente reconhecida em estudos do sistema digestivo – nunca se
imaginou fazendo as vezes de ginecologista de um homem.
Deixando um pouco de lado as perturbações morais, Aurélio expressa outras
preocupações: Se a cirurgia é urgente, porque continuam divagando naquele quarto? E o
plano de saúde? Não há cláusula para isso! O médico explica que, no momento, um grupo de
cirurgiões está deliberando sobre como a inédita cirurgia deve ser realizada. Médicos e
pesquisadores, inclusive de outros países, estão sendo consultados sobre o caso e estudando
seus riscos. Quanto aos custos, pouco se sabe, mas não recairão sobre o paciente, por se tratar

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de um procedimento experimental que interessa a toda comunidade científica. O médico
garante o melhor tratamento para o paciente e pede apenas que ele assine um documento
expressando seu acordo em participar do experimento, comprometendo-se a colaborar com os
estudos de sua anomalia após o tratamento. Para Aurélio, a condição de cobaia é tão
desconfortável quanto inevitável. Desinteressado, assina o documento, visando somente a
agilizar o tratamento. O médico comunica que o paciente deverá ser transferido, quão logo se
defina o hospital e os profissionais mais adequados para realizar a cirurgia. Até lá, será
mantido sob observação e sofrerá mais exames. Por fim, o médico cientista mostra um lapso
de humanidade e tranquiliza Aurélio, informando que seu quadro no momento é estável e que
a cirurgia não tardará a acontecer.
Não tardou. Durante os poucos dias em que ficou no hospital, Aurélio recebera
atenção especial de toda a equipe de profissionais, curiosos e excitados por seu envolvimento
em uma grande descoberta científica. Aurélio fora transferido para um luxuoso hospital,
reservado a pacientes socialmente mais valorizados do que os demais, incluindo ele próprio.
Acolheram-no como celebridade e o acomodaram com regalias que jamais sonhara conhecer,
especialmente em um hospital.
A cirurgia foi um sucesso! O corpo estranho foi extirpado e o paciente recuperou-se
sem complicações ou sequelas. Após a alta, Aurélio participou de congressos, viajou para
outros países, concedeu entrevistas e deitou-se com mulheres atraentes, excitadas por seu
repentino e bizarro sucesso. Participou de campanhas publicitárias e estuda ofertas de editoras
interessadas em publicar sua biografia. Esqueceu Chico Buarque, o diário de rimas pobres, os
incensos e analistas ineficazes. Esquecera-se até da desertora: não sabe e nem lhe interessa se
ela acompanhou sua aventura pela imprensa. Sabe apenas, com um misto de pesar e alívio,
que nunca se esquecerá de sua filha não nascida. Como se tal fenômeno não pudesse mais se
superar em esquisitice, aquele feto extirpado era de alma feminina.

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