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Instantâneos: fragmentos da memória
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Instantâneos: fragmentos da memória
Ebook71 pages49 minutes

Instantâneos: fragmentos da memória

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Uma coletânea de pequenos contos, captando instantes fugazes no tempo, pequenas situações da vida diária, recordações da infância e hesitações da velhice, quase que evocando as fotografias instantâneas que se tiram e fixam aquela expressão inesperada de felicidade ou aquele momento especial de emoção! Contado num tom quase pessoal, intimista, narrado muitas vezes na primeira pessoa, "Instantâneos" envolve-nos em cheiros, imagens e situações familiares e faz-nos sentir, por vezes, espectadores da vida alheia, espiando o que se passa numa rua, espreitando para dentro do café da aldeia ou ouvindo à esquina uma conversa de namorados, mas sempre revelando uma sensibilidade e um calor humanos que não podem deixar de emocionar o leitor.

LanguagePortuguês
PublisherINDEX ebooks
Release dateJan 13, 2021
ISBN9789898575340
Instantâneos: fragmentos da memória

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    Instantâneos - Margarida Leitão

    Porque te amo?

    (conto dedicado ao João Roque – 2013)

    Lembras-te do primeiro dia em que nos conhecemos? Há tantos anos. Hoje, como naquela altura, a nossa vida continua a ser de encontros e despedidas.

    De cada vez que te afastas no aeroporto, o meu coração despedaça-se em mil pedacinhos e cambaleio sem forças como se fosse uma marioneta. A custo, resisto à vontade de gritar, ir no teu encalço, puxar-te por um braço e dizer uma e outra vez "Amo-te, amo-te!"

    E eu amo-te, meu amor, porque és a primeira folha de um novo livro, uma flor de canela no arroz-doce e o orvalho na macieira. Um raio de sol na minha pele, a brisa da primavera no rosto e o malmequer na lapela.

    Amo-te, porque trazes o sabor do pão-de-ló, o cheiro da terra molhada e o gosto da erva mordida. As estrelas no olhar, um noturno de Chopin no sorriso e o veludo da noite nos dedos.

    Amo-te na solidão da madrugada, na cama gelada e nos intermináveis dias cinzentos. Na mesa para um, no teu lugar vazio e na comida sem sabor.

    Amo-te no livro tombado, nas flores secas na algibeira e no lume apagado da lareira. Num cortinado afastado, no rosto encostado ao vidro e nas lágrimas de saudade.

    Amo-te em noites de insónia, nas mensagens gravadas no telemóvel e nos dias contados no calendário.

    Amo-te, porque chegas sem avisar e sorris-me à porta com um ramo de malmequeres.

    Porque és a minha rosa-dos-ventos. A minha âncora. E toda a vida.

    A mancha e os dedos

    A rapariga tinha uma mancha roxa na face esquerda. Começava na pálpebra, descia pela maçã do rosto e terminava num pingo de cor junto ao queixo. Era como se Deus tivesse brincado com um tubo de guache e, a dado momento, tivesse carregado com um pouquinho mais de força, derramando um feixe de cor na pele alva.

    O rapaz tinha seis dedos na mão direita. Junto ao dedo mindinho, existia, mais pequeno, um outro. Talvez Deus se tivesse entusiasmado a brincar no barro e tivesse resolvido moldar um dedo extra à sua criação.

    Ele deslizou a mão de seis dedos pela face esquerda dela, como um dedilhar suavíssimo nas teclas de um piano, tocando uma melodia quase inaudível, ou como a espuma que sobeja numa onda rasteira e deixa um beijo tímido na areia.

    Ela fechou os olhos e esperou. Com a ponta dos dedos, ele desenhou a ternura naquela tela violácea, num coração cheio de amor e numa flor cujo caule terminava no canto dos lábios.

    Observo-os da janela, entre tragos de uma bebida. Protegiam-se da intempérie debaixo do toldo do bar. Antes de terem aparecido para se abrigarem da chuva, o anoitecer caía negro, chuvoso e triste.

    Naquele momento, como um fio de cor que escorrega por uma lata de tinta, de entre os seis dedos do rapaz que amavam a mancha roxa da rapariga, o amor explodiu num sorriso cor-de-rosa que coloriu os lábios dela e fez cintilar os olhos azuis dele.

    Na mira

    Os olhos brilhantes observam os pombos saltitando no passeio enquanto debicam o farelo atirado da janela do rés-do-chão. Os ouvidos atentos captam os sons, a cabeça girando para a direita, seguindo o velhote do quiosque que refila com a velha que alimenta os pássaros, ‘Cambada de porcos que me borram as revistas!’, vocifera, abanando os braços. Parece um helicóptero que tenta levantar voo, com os braços compridos como duas pás sacudindo o ar, tapados pelas mangas do casaco escuro e largo. O olhar curioso deteta o frenesim do homem, andando de um lado para o outro, afastando as aves.

    Maldita velha!’, resmunga ele, regressando ao cubículo. Ajeita as pilhas de jornais, volta a prendê-las com os oitocentos e cinquenta gramas de chumbo em forma de paralelepípedo. Aos diários generalistas seguem-se os desportivos, depois os sensacionalistas e, por fim, os semanários. Alinhados, muito direitos, como se esperassem o sargento para a revista diária.

    Do seu lugar, veem tudo isso, mas os olhos continuam a procurar outro alvo. Encontram-me sentada na esplanada do café ao lado do prédio. Descobrem-me a olhar para eles, com o pescoço erguido para a

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