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ALICE MARIA T. SABOIA


Universidade Federal do Mato Grosso

A VARIAÇÃO ORTOGRÁFICA
NOS DICIONÁRIOS

1 A variação ortográfica e a Terminologia princípio da escrita alfabética, a língua escrita apresen-


ta-se, a exemplo da oral, com dupla articulação e, além
A Norma Internacional - ISO 1087 - de 1990, traz disso, propicia a comunicação, na ausência ou no
em seu vocabulário, dentro de uma organização de distanciamento do interlocutor, no tempo e no espaço,
itens e subitens, a definição de variante como “cada permitindo, ainda, o vaivém entre a escrita e o oral, de
uma das formas existentes de um termo”, destacando, acordo com esse mesmo autor.
em nota, uma classificação dessas variantes em or- Na base, em princípio, a maior simplificação
tográficas, morfológicas e sintáticas, com remissão da escrita alfabética deve ser dada pela biunivocidade
ao conceito de termo, enquanto designação, ou entre os fonemas e as letras: quanto mais integrada
representação de uma noção, por meio de uma uni- for essa correspondência, maior a simplicidade do
dade lingüística, definida numa língua de especiali- sistema, como bem demonstram CASTRO et al. (1987:
dade. Dentro dessa perspectiva, dois conceitos 58). Acontece que inúmeros fatores terminam por im-
básicos destacam-se: 1. a monossemia, ou seja, a pedir uma perfeita adequação entre o sistema fonoló-
relação biunívoca entre designação e noção, pela qual gico e o sistema ortográfico das línguas, tais como,
uma designação representa uma e tão somente uma as mudanças fonéticas, com repercussões na repre-
noção; 2. a mononímia, ou seja, a relação entre de- sentação ortográfica, dado que, enquanto a língua
signação e noção, pela qual a noção tem apenas uma oral está sujeita à variação constante, na sua atuali-
única designação (1990: 5-6). zação discursiva, a representação escrita, ou melhor
Vale observar já, aqui, a própria designação das ainda, a ortográfica, está sujeita à normalização oficial,
noções da Semântica e da Terminologia. Trata-se do cuja periodicidade não se prevê, além do que, se cons-
termo ‘monossemia’ que, de acordo com BARBOSA tantemente modificada, poderá perder seu papel de
(1996: 37), em face da noção que representa, deve registro permanente da informação em forma oficial.
ser substituído por ‘monossememia’, se se levar em Do que até agora se expôs, tem-se que, se a
conta o universo de discurso específico do vocábulo- escrita alfabética das línguas guardasse o princípio
ocorrência. da biunivocidade permanentemente, estaria ela mais
A questão da designação, porém, é anterior a próxima das bases da Terminologia, no que tange às
toda essa discussão e remonta à própria relação ho- relações entre noções e designações.
mem-realidade, ou ainda, ser racional, linguagem e di- De qualquer modo, a escrita alfabética em tipos
zer, ou representar, lingüisticamente, a realidade. Ela gráficos proporciona a redução das variações indivi-
retroage, pois, à própria origem da linguagem que, para duais, encontradas nos manuscritos. Esse fator, ao
Platão, é o instrumento mais adequado para distin- lado da normalização oficial, proporciona a neutra-
guir, designar, a realidade (1961: 56). lização das variações, do que se tem um sistema orto-
Mais do que a história da linguagem, importa aqui gráfico que contempla, em si mesmo, todas as
a história da escrita, especialmente da escrita alfabéti- variações, uma vez que não privilegia qualquer atuali-
ca, cujo princípio foi descoberto pelos gregos por vol- zação fonética específica (CAGLIARI, 1992: 114-117).
ta de 2.000 aC., consistindo de uma representação Era de se esperar, portanto, que a escrita orto-
abstrata da língua, com duas virtudes básicas: a) do mes- gráfica garantisse uma única forma correta para cada
mo modo que na língua oral utiliza-se um número limi- unidade do léxico. Entretanto, não é isso que se verifi-
tado de sons (fonemas), a escrita apresenta-se ca e, ao contrário, a variação ortográfica identificada
organizada em um número limitado de figuras (os em línguas de cultura como a inglesa, a francesa, a por-
grafemas); b) como se sabe, o fato de uma língua estar tuguesa, etc. aponta na direção de que, se na escrita da
“morta” não elimina sua forma escrita ou, por outra, o língua padrão esse já é um problema relevante, com
número de línguas ágrafas é bem maior do que o das muito mais propriedade, ele se manifesta na represen- Revista
que têm a forma escrita; isso aponta a autonomia de tação escrita das línguas de especialidade, contrarian- do GELNE
uma forma em relação à outra, conforme ressalta do, frontalmente, o princípio da mononímia, dado que Ano 1
BAJARD (1994: 15-29). Um bom exemplo desse fato a variação ortográfica alcança apenas o significante No. 2
é a língua sânscrita, da qual somente se tem referência gráfico, determinando, assim, que uma noção seja re- 1999
na forma escrita. Desse modo, uma vez descoberto o presentada por mais de uma forma de sua designação.
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2 A variação ortográfica em algumas matégau, nanar/nanard, ogam/ogham, odographe/
línguas de cultura e o tratamento hodographe, pacquage/paquage, pacquer/paquer,
lexicográfico dessa questão quadrillion/quatrillion, quipu/quipou, raboin/rabouin,
rollet/rôlet, etc.

Nos países de língua inglesa, a variação orto-


3 A variação ortográfica
gráfica não chega a criar uma preocupação mais
constante. De qualquer modo, CARDOSO (1988:59)
nos países lusófonos
aponta vários exemplos dicionarizados, como:
defence/defense, offence/offense, license/licence, Diversamente do que ocorre na França, onde
traveller/traveler, marvellous/marvelous, skilful/ o grupo liderado por Nina Catach há vários anos de-
skillful, instil/instill, colour/color, theatre/theater, dica-se aos estudos nessa linha, tendo, inclusive,
como já se registrou acima, produzido excelente
judgement/judgment, mould/mold, foetal/fetal,
material de pesquisa, em torno das reflexões sobre
analyse/analyze, catalogue/catalog, etc.
a normalização ortográfica nos dicionários france-
No que se refere à língua espanhola, não obs- ses, a variação gráfica e/ou ortográfica da língua
tante a existência de variedades dialetais, historica- portuguesa não tem despertado muito interesse, en-
mente, o governo espanhol sempre conduziu a questão quanto área de pesquisa, quer no Brasil, quer em
ortográfica, de tal modo que conserva uma só orto- Portugal, quer nos outros países lusófonos, talvez
grafia, em face dos países de língua espanhola oficial. porque as universidades têm ficado à margem das
Desse modo, ainda que o procedimento não tenha sido discussões e das decisões em torno dos destinos da
escrita da língua portuguesa, pois credita-se à Aca-
“democrático”, o fato é que a unificação da escrita
demia Brasileira de Letras e à Academia de Ciênci-
não constitui maior preocupação dos governos, haja
as de Lisboa a competência (jurídica e intelectual)
vista que, no geral, o sistema comporta as variações. para definir a normalização e a normatização orto-
Entre os países de língua francesa, a própria gráficas da língua portuguesa.
França apresenta um grande volume de pesquisas Por essa razão, resta um grande espaço de pes-
nessa área e, oficialmente, desenvolve-se um traba- quisa, ainda pouco explorado, da variação ortográfi-
lho voltado tanto para as perspectivas lingüísticas e ca, de maneira geral e, em especial, nos dicionários. É
didático-pedagógicas, conforme destacam FAYOL e nesse viés que o projeto “Variantes Ortográficas da
JAFFRÉ (1992, quanto para as retificações ortográ- Língua Portuguesa” vem sendo desenvolvido, no
ficas, de acordo com CATACH (1995), desenvolven- Departamento de Letras do Instituto de Ciências Hu-
do-se um esforço, entre os estudiosos do ramo, no manas e Sociais da Universidade Federal de Mato
Grosso, em Rondonópolis. No momento, a investiga-
sentido de que se faça uma harmonização ortográfi-
ção aborda a variação já dicionarizada, para fins de
ca nos dicionários franceses. Para tanto, o Conseil
controle e de parâmetro, para detecção das variantes
Internationale de la Langue Française - CILF - então
não dicionarizadas.
sob a presidência de Joseph Hanse, dirigiu um im- Os resultados obtidos até agora apontam na di-
portante projeto de normalização ortográfica da lín- reção de que há uma variação decorrente da “faculta-
gua francesa, contando com a participação dos mais tividade”, prevista no Acordo Ortográfico de 1990, e
renomados especialistas em Lexicografia e em Or- outra decorrente de fatores diversos, como, por exem-
tografia, como Alain Rey, Claude Kannas, George plo, variações fonéticas, com repercussões ortográ-
Matoré, Charles Muller, entre outros, do que resul- ficas, o que, aliás, é de alta freqüência, tanto em
tou o livro intitulado Pour l’harmonisation português como nas outras línguas acima citadas.
orthographique des dictionnaires. Nesse trabalho, O fato de se registrar uma variação ortográfi-
registram-se um pouco mais de 2.600 unidades ca não prevista no Acordo é relevante, no sentido de
lexicais que apresentam mais de uma forma ortográ- que essa variação poderá ultrapassar os 2%, obtidos
fica. Senão, vejam-se alguns exemplos, extraídos em face dos 110.000 verbetes, base de cálculo tomada
desse trabalho: abadir/abbadir, abatage/abattage, pelas duas Academias, para prever o alcance, em ter-
mos quantitativos, dos usos facultativos, impeditivos
accon/acon, ægagre/égragre, allegro/allégro, angrois/
da tão sonhada unificação.
engrois, bagou/bagout, baïram/bayram, bouller/
É possível afirmar-se também que a variação
boulier, cabillaud/cabillau, caracul/karakul, carré/
ortográfica da língua portuguesa, nas hipóteses não
quarré, carreur/careur, caleil/chaleil, daïmio/daïmyo, previstas, alcança notadamente as línguas de especi-
dissymétrie/dyssymétrie, écepper/écéper, embatre/ alidade, como se verificou até o momento. Esse fato,
Revista embattre, évoé/évohé, euristique/heuristique, constatado nos dicionários de língua portuguesa que
do GELNE flegmon/phlegmon, gabare/gabarre, gesha/geisha/ vêm sendo examinados, explica a preocupação pre-
Ano 1 ghesha, harpé/herpé, herma/herm, indouisme/ sente na Norma ISO 1087, no que se refere especi-
No. 2 hindouisme, indusia/induse, jaco/jacquot/jacot, ficamente aos problemas advindos das dificuldades
1999 kasbah/casbah, kava/kawa, lanter/lenter, lambruche/ reais de normalizar, por inteiro, a ortografia dos ter-

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lambrusque, maffia/mafia, mage/maje, matagot/ mos, na direção de que sejam mononímicos.
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Bibliografia CATACH, N. Langue Française - L’Orthographe.
Larousse, Paris.
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typologie, problématique. Larousse, Paris.
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da Questão que se lhe seguiu. Edições João Sá gráficas da língua portuguesa”. In: Acta Se-
da Costa, Lisboa. miotica et Lingvistica, nº 8, Plêiade, São Paulo.

Revista
do GELNE
Ano 1
No. 2
1999

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