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Escravos e libertos:

homens de ocupações no século XIX

Cristiane Maria Magalhães é Mestre em História Social da Cultura pela FAFICH/UFMG, professora substituta do Núcleo de Geografia e História do.Centro
Pedagógico da UFMG.
“Tudo assenta pois, neste país, no escravo Ao observar os desenhos realizados por
negro; na roça, ele rega com seu suor as Debret e Rugendas, percebe-se que os negros
plantações do agricultor; na cidade, o
– escravos e libertos – são os protagonistas
comerciante fá-lo carregar pesados fardos;
se pertence ao capitalista é como operário de grande parte das cenas retratas pelos
ou na qualidade de moço de recados que artistas ao reproduzirem o ambiente do
aumenta a renda senhor”. trabalho e da rua. Possivelmente, a explicação
Jean Baptiste Debret. 1 a respeito da quantidade de desenhos
retratando os negros possa ser entendida por
uma fala de Rugendas na ocasião de sua
Fonte inesgotável de estudos, a primeira estadia no Brasil.
escravidão no Brasil Colônia vai se revelando e os hábitos sociais das classes elevadas não
se deixando descobrir por ávidos fornecem ao pintor maior número de traços
pesquisadores cada vez mais próximos do característicos que os comuns às grandes
cotidiano escravista, por meio de estudos em cidades da Europa, por outro lado, é o artista
testamentos, inventários, cartas de alforrias fartamente compensado pela diversidade
ou, mais recentemente, adentrando num barulhenta das classes inferiores”.2
campo velado até pouco tempo, porém,
agora resgatado e transformado em Notoriamente, era o exótico que
documento nas mãos do pesquisador: a inspirava os artistas estrangeiros a retratar o
iconografia. Brasil da primeira metade do século XIX.
Os viajantes estrangeiros Jean Baptiste Newton Carneiro observou, inclusive, que o
1
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Debret (1768-1848) e Johann Moritz problema do negro impressionava e comovia
Histórica ao Brasil. (trad. Sérgio Milliet) São Paulo, Rugendas (1802-1858), oferecem-nos uma a Rugendas.3
Livraria Martins Editora, 1979, p. 85. farta documentação pictórica do século XIX O artista alemão Johann Moritz
2
RUGENDAS, Johann Mortz. Viagem pitoresca brasileiro e nos convidam a passear, através Rugendas esteve no Brasil na primeira metade
através do Brasil. 2 ed. (trad. Sérgio Milliet). São Paulo, de seus desenhos, pelo Brasil oitocentista. do século XIX em duas ocasiões. A primeira
Livraria Martins Fontes, 1940, p. 136. Contudo, das imagens publicadas selecionamos visita aconteceu entre março de 1822 e maio
3
CARNEIRO, Newton. Rugendas no Brasil. Rio de 1825, quando trabalhou como desenhista
as que retratam o mundo do trabalho dos
de Janeiro: Kosmos, [19- ], p. 16. da expedição científica chefiada pelo barão
negros, principalmente, na região sudeste.

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russo Georg Heinrich von Langsdorff. Ao autoria dos textos das litografias de Rugendas
desembargar no Brasil, em 1822, Rugendas é contraditória, ou seja, os comentários
estava com 19 anos e tinha acabado de textuais foram realizados a partir do olhar de
concluir sua formação artística na Academia Rugendas por meio de suas cartas enviadas a
de Munique. De acordo com o professor Pablo Paris durante o período que esteve no Brasil,
Diener, os trabalhos realizados durante a mas foram produzidas pelo editor parisiense e
primeira visita ao Brasil foram feitos sem as legendas teriam sido escritas pelo seu amigo
obedecer a um projeto artístico próprio e V. A. Huber. Assim, é necessário considerar
previamente elaborado 4 , que poderia ser essas ressalvas quando citamos Rugendas
classificada como uma obra de juventude. A como autor das descrições que aparecem nas
segunda visita ocorreu entre julho de 1945 a pranchas.
agosto de 1846, quando ficou pouco mais de Entre pinturas a óleo, aquarelas e
um ano no Rio de Janeiro. desenhos, Rugendas produziu aproxi-
Em 1825, ao retornar para a Europa, madamente seis mil peças no total, retratando
encontrou em Paris o compatriota Alexander cenas dos países que visitou como “pintor das
von Humboldt que, entusiasmado por sua Américas”, no dizer de Humboldt.6 Sua obra
documentação pictórica realizada no Brasil, o abrange países como o Brasil, o México, o
apoiou para que publicasse o livro Voyage Peru, a Bolívia, o Chile, a Argentina e o
Pitoresque dans lê Brésil, pela editora parisiense Uruguai, documentados em visitas do artista
de Engelmann & Cia., entre 1827 e 18355. A alemão na primeira metade do século XIX.
publicação foi dividida em vinte fascículos e O artista francês Jean-Baptiste
4
DIENER, Pablo. O catálogo fundamentado da obra totalizou cem litografias. Para cada desenho Debret produziu, também, obra pictórica
de J. M. Rugendas e algumas idéias para a interpretação de foi solicitado a Rugendas que fizesse uma significativa sobre o Brasil do período retratado
seus trabalhos sobre o Brasil. Revista USP, São Paulo descrição da cena retratada. Newton Ribeiro por Rugendas. Ele veio para o Brasil junto com
(30): 46 -57, junho / agosto 1996. “O Brasil dos escreveu que, para elaborar os textos das outros artistas franceses para fundar uma
Viajantes”. imagens que apareciam nas pranchas, Academia de Belas Artes no Rio de Janeiro,
5
Idem. p. 47.
Rugendas contou com a colaboração de seu chegando aqui em 1816 na qualidade de pintor
6
CARNEIRO, Newton. Rugendas no Brasil. Rio
amigo Victor Aimé Huber. Deste modo, a histórico e permaneceu até 1831. Na
de Janeiro: Kosmos, [19- ]. p. 2.

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apresentação de sua obra Debret declara que brasileiros, conheceu os hábitos, a cultura, o
“a obra que ofereço ao público é uma clima e os costumes da Colônia portuguesa
descrição fiel do caráter e dos hábitos dos na América. O próprio Debret afirmou, na
brasileiros em geral”.7 Portanto, partimos do apresentação do seu livro, que havia
princípio que ele tentou, com as devidas reproduzido as cenas nacionais ou familiares
ressalvas que devemos ter com o filtro do olhar do povo entre o qual havia permanecido
estrangeiro sobre o desconhecido, retratar o dezesseis anos.
que acontecia nas ruas, praças, no comércio Ao retornar para a França, assim como
e nos interiores das famílias brasileiras da aconteceu a Rugendas, Jean-Baptiste Debret
primeira metade do século XIX. publicou e escreveu, entre 1834 e 1839,
A historiadora Sandra Pesavento através de Firmin Didot Frères, sua obra
chama nossa atenção para o momento intitulada Voyage Pitoresque et Historique au
histórico vivenciado pelo Brasil em 1816 e dos Brésil. O próprio Debret escreveu os textos
motivos pelos quais D. João queria fundar aqui que complementavam as imagens.
uma Academia de Belas Artes, à semelhança Certamente, o longo período que
da francesa: era necessário “civilizar” os permaneceu no Brasil possibilitou a ele escrever
trópicos.8 Para tanto recebe, naquele ano, a os textos dos seus desenhos com maior
Missão Francesa, integrada por artistas, propriedade e conhecimento dos hábitos aqui
7
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e artífices e homens de ciência, da qual Debret observados. De acordo com a pesquisadora
Histórica ao Brasil. (trad. Sérgio Milliet) São Paulo, fazia parte. Durante dezesseis anos, Jean- Ana Maria Belluzzo, “para o artista, suas pinturas
Livraria Martins Editora, 1979, p. 8. Baptiste Debret esteve no Brasil realizando, e notas deveriam ser bastante impessoais, não
8
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma cidade sensível pelas palavras de Pesavento, um esforço em registrando suas impressões, devendo,
sob o olhar do “outro”: Jean-Baptiste Debret e o Rio de compreender a terra em que vivia. portanto, retratar a natureza e a realidade
Janeiro (1816-1831). Revista eletrônica “Novo mundo- Diferentemente de Rugendas que, durante como verdadeiros documentos históricos e
mundos novos”. Endereço eletrônico: http:// três anos, em sua primeira estadia no Brasil, cosmográficos.”9
nuevomundo.revues.org/document3669.html. captou o máximo de imagens possíveis ao olhar A partir das fontes iconográficas
9
BELLUZZO, Ana Maria de M. O Brasil dos
do viajante que sabe do breve retorno, Debret publicadas por estes dois artistas estrangeiros,
Viajantes. São Paulo, Edição Metalivros/Fundação
permaneceu no Brasil, conviveu com os retiradas dos títulos citados acima,
Odebrecht, l994 , 3 vol. p. 84.

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selecionamos apenas algumas que retratam lavagem do minério para a obtenção do ouro.
os ambientes de trabalho do negro, escravo Vê-se, ainda, as negras de tabuleiro que, de
ou liberto, no exercício de afazeres laborais acordo com Eduardo França Paiva, além de
nos espaços urbanos brasileiros. A intenção é comercializar suas quitandas eram interlocutoras
realizar uma viagem imagética na tentativa de de redes de informação, de solidariedade, de
mapear as atividades exercidas pelos negros intrigas e se transformaram em poderosas
fora das grandes fazendas de engenho e de mediadoras culturais. 10 Este historiador,
café, exercendo funções diversificadas e, até observando o mesmo desenho de Rugendas,
mesmo, que exigiam qualificação e escreveu que na cena o couro de boi a
aprendizado. Nosso foco são as imagens e os contrapelo, a técnica das canoas e as bateias,
textos que as acompanham. As imagens tudo migrado da África negra, integram-se à
seguidas dos textos oferecem-nos muito mais administração, às técnicas de engenharia e
do que registros iconográficos e relatos ao sistema de premiação luso-brasileiros, como
descritivos do Brasil, suas paisagens e seus signos emblemáticos do encontro e da
habitantes. Mais do que isso, elas evidenciam coexistência de culturas.11
as relações sociais estabelecidas na Colônia Na prancha número 45, intitulada
RUGENDAS, Johann Moritz. Lavagem do minério de ouro próximo a portuguesa, a mobilidade dos negros em pleno “Venda em Recife” , Rugendas desenhou
montanha de Itacolomi. p. 26.
sistema escravista e as especificidades da negros de ganho exercendo o comércio de
escravidão no Brasil do período documentado. frutas com seus tabuleiros. No lado esquerdo
do desenho, paralelo à cena principal, há uma
Escravos e libertos na iconografia negra, na rua, oferecendo um colar a uma
10
PAIVA, Eduardo França. Bateias, carumbés, O desenho “Lavagem do minério de senhora branca que está na varanda de sua
tabuleiros: mineração africana e metiçagem no Novo Mundo. ouro próximo a montanha de Itacolomi” , casa. Provavelmente, esses colares eram
In: PAIVA, Eduardo França & ANASTASIA, Carla realizado por Rugendas em sua primeira contas de coral, usados pelos africanos em
Maria Junho. (orgs.) O trabalho mestiço; maneiras passagem pelo Brasil, é conhecido por seu valor suas manifestações religiosas. Entretanto,
de pensar e formas de viver – séculos XVI a simbólico na representação de minerações essas insígnias religiosas foram apropriadas
XIX. São Paulo/Belo Horizonte: Annablume/
típicas do início do século XIX. Nele, visualizam- pelas mulheres brasileiras e re-significadas como
PPGH-UFMG, 2002, p. 187-207.
se vários negros e duas negras realizando a simples adorno feminino, fator que evidencia,
11
Idem.

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por esse aspecto e tantos outros, o hibridismo Debret no Brasil, a documentação pictórica
cultural existente na América portuguesa, o desse artista, referente ao tema proposto
que nos faz retornar à citação acima, de neste artigo, é mais abundante e,
Eduardo Paiva, a respeito da dinâmica social e consequentemente, foi mais contemplada na
cultural das áreas urbanas do Brasil Colônia. seleção das imagens aqui constantes. Todas
Nas descrições dos desenhos de as imagens apresentadas foram retiradas do
Rugendas foi realizada uma comparação entre livro Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil.
o sistema escravista brasileiro com o das Vejamos a litografia intitulada “Os refrescos
colônias inglesas. Nelas, afirma-se que a do largo do palácio”.
facilidade com que os escravos brasileiros Neste desenho estão retratados os
recuperavam a liberdade, por meio da prática vendedores de doces – negros e negras –
RUGENDAS, Johann Moritz. Prancha 45 – Venda em Recife. p. 28. de profissões como marceneiros, seleiros, atuantes no Largo do Palácio, no Rio do
alfaiates, marinheiros, carregadores, era uma Janeiro. Na descrição, o artista afirma que era
das maiores vantagens do sistema escravista prática comum da classe média e do pequeno
aqui existente, comparado ao daquelas capitalista possuir um ou dois escravos negros
colônias. O olhar de Rugendas para o Brasil, para utilizá-los como vendedores e, assim,
mesmo filtrado pelo padrão europeu e garantir a sua subsistência.12 Aqui podemos
fragmentado por uma realidade analisada sob analisar um dos hábitos da classe média urbana
ponto de vista do viajante que apenas passa, brasileira, inferindo que ela, ao possuir poucos
revela-nos, ainda que minimamente, uma escravos, longe das grandes senzalas das
mobilidade social que permitia ao escravo e fazendas, proporcionava a formação de laços
liberto transitar por diversas ocupações, de proximidade com esses escravos, pois eles,
adquirindo e passando conhecimentos e possivelmente, moravam próximos à residência
habilidades no contato com o branco, atuando de seus donos. Esse fator poderia facilitar, mais
DEBRET, Jean-Baptist. Prancha 9 – Os refrescos do largo do palácio
diretamente, consciente ou não, no trânsito tarde, a negociação da coartação e até mesmo
12
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e cultural aqui existente. da alforria.
Histórica ao Brasil. (trad. Sérgio Milliet) São Paulo: Por motivos mencionados acima, acerca Na prancha “Barbeiros ambulantes”,
Livraria Martins Editora, 1979. p. 143. da permanência maior de Jean-Baptiste vemos novamente os negros de ganho, que

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aqui Debret define como “carregadores, moços É importante destacar, que na
de recado, os pedreiros, os carpinteiros, os exposição desta prancha, Debret responde à
marinheiros e as quitandeiras”,13 exercendo a indagação recorrente sobre o uso de
função de barbeiros em plena via pública, vestimentas, jóias e sapatos de seda do qual
muito próximo ao cais, vestidos com trapos, faz uso vários negros escravos documentados
de acordo com o pintor, mostrando assim em seus desenhos. A condição social do dono
pertencerem a um senhor pobre. Duas vezes era o que definia o traje do escravo,
ao dia, os barbeiros ambulantes são obrigados possibilitando o acesso ou privando-o ao uso
a comparecer na casa de seus senhores para de vestimentas luxuosas, jóias e sapatos.
as refeições e para entregar o resultado da Na descrição da prancha denominada
féria. “Lojas de Barbeiros”, Debret relata que o oficial
DEBRET, Jean-Baptist. Prancha 11 – Barbeiros Ambulantes
Na descrição da prancha, Debret relata de barbeiro no Brasil era quase sempre negro
que os dois negros sentados no chão, que ou pelo menos mulato, definindo a função de
estão recebendo o atendimento pelos barbeiro como os que faziam sangrias,
barbeiros ambulantes, são negros de elite. aplicavam bichas e vendiam remédios. O artista
Condição que é percebida, segundo o francês, francês explica que a loja retratada é ocupada
por causa dos belos trajes ostentados por eles. por dois negros livres. Antigos escravos de
O negro sentado à esquerda, que tem o seu ofícios “de boa conduta e econômicos
rosto preparado para o barbear, possui uma (possibilidade legal que lhes devolveu a
medalha que indica sua função como liberdade e lhes assinou o lugar de cidadãos,
trabalhador da alfândega, informa o francês. que ocupam honestamente na cidade)”,14 que
Dessa forma, temos aqui mais uma função conseguiram comprar sua alforria.
DEBRET, Jean-Baptist. Prancha 12 – Loja de Barbeiros
onde os negros poderiam exercer funções: a Escravos que conseguiam comprar sua
alfândega. Fica-nos, ainda, uma inquietação a liberdade, possuíam autonomia e certa
13
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e respeito da pequena bolsa que o outro negro mobilidade social, fatos ignorados por uma
Histórica ao Brasil. (trad. Sérgio Milliet) São Paulo: sentado, à direita da cena, traz consigo. historiografia anterior à nossa, que relegou às
Livraria Martins Editora, 1979. p. 149. Trabalharia ele também no serviço da prateleiras empoeiradas das bibliotecas relatos
14
Idem, p. 152. alfândega ou era comerciante, a serviço do
seu senhor, e guardava ali as suas moedas?

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como esses de Debret, de Rugendas, entre outras pranchas. “O desenho representa um
outros. fabricante de cestos que vem trazer à cidade
Outras funções ocupadas por escravos o fruto de suas horas de lazer na casa a que
e libertos, segundo o artista, eram as de pertence”15. Provavelmente esse negro servia
dentista e de cabeleireiro. Ainda na descrição em alguma zona distante da cidade, já que é
desta prancha, Debret escreve sobre um velho possível visualizar ao fundo do desenho que
dentista mulato que detinha a gratidão da não se tratava de uma área urbana. Chama-
classe média no Rio de Janeiro; e de um nos a atenção o que Debret escreveu acerca
cabeleireiro, do Teatro Municipal da capital, do escravo retratado: ele próprio fabricava os
que se mostrava perito na fabricação e na seus cestos, juntamente com outros víveres
colocação de peruca, de barba ou de bigode produzidos em suas horas de lazer. Aqui mais
DEBRET, Jean-Baptist. Prancha 13 – Vendedor de Cestos
caracterizando qualquer idade. Aqui lemos a uma vez nos deparamos com uma acerta
descrição a respeito desse “cabeleireiro preto”, flexibilidade no sistema escravista brasileiro: os
como o denomina Debret, no espaço escravos possuíam horas de lazer e, nesses
reservado a artistas. Novas questões se momentos, poderiam utilizar as terras de seus
colocam diante de nós: será que esse senhores para a produção particular de víveres,
cabeleireiro atendia apenas seus que seriam comercializados e, posteriormente,
compatriotas, como veremos mais à frente possibilitaria a compra da liberdade pelo próprio
na prancha 46 (“Cirurgião negro”)? Se assim escravo.
for, teríamos também escravos e libertos No desenho “Negros Vendedores de
atuando como artistas? Ou esse cabeleireiro Aves” , o artista francês escreveu que os
possuía certo prestígio e atendia no Teatro escravos e libertos que exerciam esse tipo de
DEBRET, Jean-Baptist. Prancha 14 – Negros Vendedores de Aves Municipal a artistas brancos? comércio podiam oferecer o seu produto de
Na prancha intitulada “Vendedor de porta em porta, pois tinham “a vantagem de
15
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Cestos”, Debret relata a utilidade dos cestos serem conhecidos na cidade” 16 . O relato
Histórica ao Brasil. (trad. Sérgio Milliet) São Paulo: para o negro, pois servia para transportar à evidencia ser comum e corriqueiro o contato
Livraria Martins Editora, 1979. p. 160. cabeça diferentes espécies de objetos a comercial entre negros e brancos e,
16
Idem, p. 161. serem comercializados, conforme já vimos em obviamente, nesses contatos as trocas
culturais aconteciam naturalmente.

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Na prancha 14 - “Negros Serradores O negro da direita, que estaria a serviço
de Tábuas” , delimitamos mais um espaço de um naturalista, encontra-se bem vestido
ocupados pelos negros: as serralherias e e é acompanhado por uma criança que carrega
carpintarias, de grande demanda nos séculos várias amostras de folhagens. Este provável
XVI a XIX, com as construções das cidades, homem de negócios leva debaixo do braço
suas casas e igrejas. Para executar esse uma maleta, que poderia servir para guardar
serviço, não é necessário apenas saber “serrar amostras de insetos e/ou plantas; na mão
tábuas”, mas ser conhecedor das técnicas de direita carrega um apanhador de borboletas
carpintaria para executá-las a contento. e no chapéu alguns exemplares delas; na mão
Na prancha 19, Debret desenhou “O esquerda têm uma cobra. Hibridismo e trânsito
Regresso dos Negros de um Naturalista”. Em cultural são conceitos que não conseguimos
DEBRET, Jean-Baptist. Prancha 18 – Serradores de Tábuas sua descrição, Debret mencionou os escravos deixar de pensar ao analisar o contexto e todos
que serviam aos naturalistas estrangeiros que os elementos desta litografia e da descrição
vinham ao Brasil e que esses, ao retornarem que a acompanha.
das suas missões, quando o escravo tinha Na prancha 27, denominada “Pequena
servido a contento, além de alforriá-lo ainda o Moenda Portátil” , o artista descreve a
preparava para a prática do ofício. Junto do produção de açúcar na cidade de Campos.
naturalista o escravo alcançava certa habilidade Nesta cidade, segundo Debret, moravam
no preparo de objetos de história natural, “ trezentas mulatas muito claras e bem
podendo servir, posteriormente, de guia para vestidas, que gozavam, mesmo na escravidão,
outros naturalistas e, assim, na fala de Debret, de todas as vantagens de uma vida abastada,
como homem livre iniciaria uma primeira viagem embora permaneçam sujeitas a períodos de
de negócios. Muito mais do que a liberdade, serviço especial”18. Havia ali um acordo entre
DEBRET, Jean-Baptist. Prancha 19 – Regresso dos Negros de um Naturalista o escravo adquiria um ofício. Para o artista, o senhor e escravo. O escravo deveria fornecer
17
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e negro capaz de ser um bom escravo de um anualmente uma certa quantidade de caixas
Histórica ao Brasil. (trad. Sérgio Milliet) São Paulo: naturalista, podia ser considerado modelo do de açúcar a seu senhor, podendo o escravo
Livraria Martins Editora, 1979. p. 174-75. mais generoso companheiro de viagem, cuja executar a tarefa em um ou dois meses. Assim,
18
Idem, p. 200. inteligência igualava o devotamento.17 no resto do ano, o escravo entregava-se aos

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seus próprios interesses, podendo, inclusive, compatriotas e eram respeitados por estes.
especular com os produtos dos vastos campos De acordo com a exposição, havia um cirurgião
da propriedade em que trabalhava, criando africano em cada bairro da cidade do Rio de
cavalos de raça apreciada, que se multiplicavam Janeiro, podendo seu gabinete de consulta
ou dedicar-se ainda à agricultura ou a qualquer se achar instalado à porta de uma venda. Esses
trabalho manual. Conforme Debret, o escravo cirurgiões aplicavam sangrias e tratavam de
podia ainda, depois de ter pago a sua variadas doenças.20
anuidade, conseguir uma licença por prazo Na litografia de número 32, “Negras
determinado para ocupar-se pessoalmente de livres vivendo de suas atividades”, o artista
DEBRET, Jean-Baptist. Prancha 27 – Pequena Moenda Portátil seus negócios. francês faz uma exposição a respeito das leis
Estas descrições de Debret são criadas no Brasil, embora a maioria não
confirmadas por pesquisas de historiadores cumpridas, para que o escravo tivesse acesso
como Eduardo Paiva. 19 Testamentos e à liberdade. Contudo, Debret escreve que
inventários do século XVIII já apontavam o somente o negro operário conseguia aspirar
alto número de coartações na Colônia. àquela felicidade, pois era um escravo caro.
Na prancha 29, “Sapatarias”, o artista Entretanto, as negras tinham sempre maior
descreve a rotina e a demanda das sapatarias possibilidade de conseguir a sua liberdade, já
brasileiras no século XIX. Ele afirma que os que se encontravam sob a influência direta
trabalhadores escravos e/ou libertos que da generosidade de seu “padrinho”, no dizer
auxiliavam seus senhores aprendiam o ofício do artista, homem rico não raro, de filhos e
DEBRET, Jean-Baptist. Prancha 29 – Sapatarias de sapateiro e logo se tornavam rivais destes, amigos de seus senhores e, ainda, de seus
19
Obras deste autor: PAIVA, Eduardo França. podendo ser encontrados nas sapatarias amantes. Outro ato de “caridade”, citado por
Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII: estratégias
gerenciadas por escravos e libertos toda ele, é a concessão da liberdade para
de resistência através dos testamentos. São Paulo: Annablume,
1995; Escravidão e universo cultural na colônia: Minas Gerais, espécie de calçados perfeitamente determinado número de escravos de ambos
1716-1789. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2001; História & confeccionados. os sexos, oferecida pelos senhores ricos e
imagens. Belo: Autêntica, 2002. Na prancha “Cirurgião Negro” , há a documentada em testamento. O artífice
20
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica descrição dos cirurgiões que atendiam seus celibatário também concederia liberdade, no
ao Brasil. (trad. Sérgio Milliet) São Paulo, Livraria Martins
Editora, 1979, p. 268.

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momento de sua morte, à negra que lhe serviu confirmadas por meio de pesquisas em
de mulher.21 Debret relata, ainda, na descrição inventários, testamentos, entre outros
desta mesma prancha, várias outras formas documentos, transformam-se em importantes
de concessões de liberdades existentes na aliadas para os historiadores da atualidade,
Colônia. quando analisadas com olhar investigativo e
Na prancha 6, “Vendedor de Flores à inquisidor.
Porta de uma Igreja, no Domingo”, Debret Hábeis operários da mineração e do
enfatiza que aquela era uma cena real. Ele ferro, ávidos comerciantes, cirurgiões com
descreve como um criado de casa rica, parado destreza, dentistas conhecidos, barbeiros
à porta de uma igreja no domingo, vende procurados, sapateiros experientes,
flores em benefício do patrão. Na bandeja que entalhadores e carpinteiros a serviço de
DEBRET, Jean-Baptist. Prancha 46 – O Cirurgião Negro leva na outra mão o escravo vende, por conta artistas, cabeleireiros, empregados da
própria, pedaços de côco. alfândega, acompanhantes de naturalistas
Nessa afirmação de ser a prancha uma estrangeiros, operários, foram apenas algumas
cena real, fica-nos uma pergunta: até onde das funções ocupadas por escravos e libertos,
eram reais todas as outras cenas pintadas e no século XIX, que conseguimos mapear neste
descritas por Debret? Por que esta em pequeno levantamento.
particular ele afirmou ser uma “cena real”? E Formando um mosaico diversificado,
pensar mais além: até que ponto as fontes percebemos nesta viagem pelo mundo das
imagéticas podem servir ao historiador para imagens que as atividades econômicas do Brasil
capturar um fragmento de realidade não mais Colônia foram inúmeras e, proporcionalmente
ao alcance da memória? a essa diversidade, foi grande a participação
Possivelmente, para essas inquietações de escravos e libertos na economia. No papel
DEBRET, Jean-Baptist. Prancha 32 – “Negras livres vivendo de
suas atividades” não existam respostas satisfatórias. Contudo, subalterno, a serviço de seus senhores nas
podemos partir do princípio de que reais ou ruas das cidades brasileiras, aprendendo e
apenas factuais, deixando-se ver apenas por difundindo conhecimentos ou no comércio
20
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica uma realidade local e individualizada, as cenas autônomo, já na condição de liberto, como
ao Brasil. (trad. Sérgio Milliet) São Paulo, Livraria Martins
pintadas por Rugendas e por Debret, vendedor de produtos produzidos por suas
Editora, 1979, p. 216.

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próprias mãos, o africano que veio trazido DIENER, Pablo. O catálogo fundamentado da obra de J. M.
contra sua vontade para o Brasil, inicialmente Rugendas e algumas idéias para a interpretação de seus trabalhos
sobre o Brasil. REVISTA USP, SÃO PAULO (30): 46 -57,
como escravo e submisso, encontrou aqui
JUNHO / AGOSTO 1996. “O Brasil dos Viajantes”.
formas de conseguir sua liberdade e mobilidade
social, por meio da resistência, na maioria das PAIVA, Eduardo França. História & Imagens. Belo
vezes, sem violência e silenciosa. Horizonte: Autêntica, 2002.
Conquistando, lentamente, primeiro sua
PAIVA, Eduardo França. Bateias, carumbés, tabuleiros:
liberdade e, posteriormente, seu espaço ao
mineração africana e metiçagem no Novo Mundo. In: PAIVA,
longo dos séculos. Eduardo França & ANASTASIA, Carla Maria Junho.
(orgs.) O trabalho mestiço; maneiras de pensar e formas de viver –
Referências bibliográficas séculos XVI a XIX. São Paulo/Belo Horizonte:
Annablume/PPGH-UFMG, 2002, p. 187-207.
DEBRET, Jean-Baptist. Prancha 6 – “Vendedor de flores à porta ANASTASIA, Carla Maria J.; PAIVA, Eduardo F. (orgs.). O
de uma igreja, no domingo”
Trabalho Mestiço: maneiras de pensar e formas de viver. Séculos PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma cidade sensível sob o olhar
XVI a XIX. São Paulo: Annablume editora, 2002. do “outro”: Jean-Baptiste Debret e o Rio de Janeiro (1816-1831).
Revista eletrônica “Novo mundo-mundos novos”.
DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Endereço eletrônico: http://nuevomundo.revues.org/
Brasil. (trad. Sérgio Milliet) São Paulo: Livraria Martins document3669.html.
Editora, 1979.
RUGENDAS, João Maurício. Viagem Pitoresca Através do
BELLUZZO, Ana Maria. A propósito do Brasil dos Viajantes. Brasil. São Paulo: EDUSP, 1979.
REVISTA USP, SÃO PAULO (30): 46 -57, JUNHO /
AGOSTO 1996. “O Brasil dos Viajantes”. RUGENDAS, Johann Mortz. Viagem pitoresca através do
Brasil. 2. ed. Trad. Sérgio Millet. São Paulo: 1940
BELLUZZO, Ana Maria de M. O Brasil dos Viajantes. São
Paulo, Edição Metalivros/Fundação Odebrecht, l994 ,
3 vol. Arquivo iconográfico de onde foram retiradas as
imagens constantes neste artigo
CARNEIRO, Newton. Rugendas no Brasil. Rio de Janeiro: Site eletrônico: http://digitalgallery.nypl.org/
Kosmos, [19- ]. p. 16. nypldigital/ Acesso em fevereiro de 2008.

o olho da história
n. 10, abril de 2008

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