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O retorno da terra: As retomadas na aldeia tupinambá da Serra do Padeiro, Sul da Bahia
O retorno da terra: As retomadas na aldeia tupinambá da Serra do Padeiro, Sul da Bahia
O retorno da terra: As retomadas na aldeia tupinambá da Serra do Padeiro, Sul da Bahia
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O retorno da terra: As retomadas na aldeia tupinambá da Serra do Padeiro, Sul da Bahia

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Quando conheci Daniela Fernandes Alarcon, em Brasília, em 2010, convidei-a para vir à aldeia tupinambá da Serra do Padeiro. Na época, estávamos organizando o nosso Seminário de Juventude, e propus que ela participasse. Daniela se encantou pelas paisagens, tomou banho de rio, comemos frutas do pé. Nessa visita, ela falou da possibilidade de realizar uma pesquisa aqui, com o meu povo, para estudar as retomadas de terras, caso nós aprovássemos. A sua proposta de trabalho foi discutida na aldeia, com as lideranças e os outros parentes, e aprovada. Depois, o projeto de pesquisa foi apresentado para a universidade. Nós nunca imaginaríamos a proporção e a repercussão que a sua pesquisa teria. Pensávamos que seria apenas mais um trabalho.
— Glicéria Tupinambá, no prefácio

***

O exercício da etnografia realizado por Daniela Fernandes Alarcon neste livro é uma imersão profunda na história e na expressão conjunta de conhecimentos realizada por ela e por famílias tupinambá da Serra do Padeiro (Bahia). Aqui, a tessitura de um produto acadêmico não se desgarra de um processo complexo de interação social, das múltiplas escalas e formatos em que tal encontro pode ser vivido, concebido e atualizado. Longe de ser um destilado pré-encomendado por uma genérica argumentação puramente abstrata, a etnografia resulta de experiências e compartilhamentos variados, e pode ser enunciada por distintas vozes e por muitas formas. O trabalho do etnógrafo não é pôr em prática uma mirada objetificante do presente, falsamente afetiva e descolada de densidade histórica e social, mas explorar os muitos significados do passado, potencializados em um projeto de futuro.
— João Pacheco de Oliveira, na quarta capa
LanguagePortuguês
Release dateJun 10, 2020
ISBN9786587235066
O retorno da terra: As retomadas na aldeia tupinambá da Serra do Padeiro, Sul da Bahia

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    O retorno da terra - Daniela Fernandes Alarcon

    10-1.

    1

    O processo de territorialização

    1.1. Breve caracterização do território tupinambá

    A ti Tupinambá de Olivença se estende por uma região historicamente associada à agricultura e ao turismo. Sua história se vincula a um longo processo de territorialização da população indígena da região, que tem como marco o estabelecimento do aldeamento de Nossa Senhora da Escada, em 1680, no que hoje corresponde à sede do distrito de Olivença, localizada a cerca de 21 quilômetros da cidade de Ilhéus.

    Respondendo às demandas dos Tupinambá, em 2004, a Funai iniciou o procedimento de demarcação da ti; cinco anos depois, aprovou o relatório circunstanciado de identificação e delimitação da área (rcid). Perfazendo 47.376 hectares, a ti Tupinambá de Olivença é a segunda maior da Bahia, inferior em extensão apenas à Reserva Indígena (ri) Caramuru-Catarina Paraguassu (Viegas & Paula, 2009). Quando da publicação deste livro, o processo demarcatório ainda estava em curso, transcorridos quinze anos de seu início. Àquela altura, 89 áreas outrora em posse de não indígenas já haviam sido retomadas pelos Tupinambá da Serra do Padeiro. Em 2013, ano em que se concluiu a pesquisa que originou este livro, contavam-se 22 retomadas naquela aldeia (ver tabela 1). Como se vê, o processo de recuperação territorial se aprofundou em ritmo acelerado.

    No sentido leste-oeste, a ti se prolonga da costa marítima à cadeia montanhosa conformada pelas serras das Trempes, do Serrote e do Padeiro, e, no sentido norte-sul, do rio Cururupe à lagoa do Mabaço (ver mapa 1). Conformam-na paisagens geomorfológicas diversas: planícies marinhas e fluviomarinhas; tabuleiros costeiros, predominantemente arenosos; mares de morros; e serras e maciços pré-litorâneos (Mercês, 2004, pp. 15-7). A área é recoberta pela Mata Atlântica e ecossistemas associados, podendo ser identificadas florestas densas e abertas, manguezais, restingas, campos de altitude e brejos. Nas últimas décadas, contudo, a expansão das atividades agrícolas na região reduziu drasticamente a vegetação nativa, restando poucas áreas bem conservadas (Mercês, 2004, pp. 32, 34).

    Dados oficiais referentes a 2013 contavam 4.630 indígenas na ti (Brasil, Ministério da Saúde, Secretaria Especial de Saúde Indígena, 2013). Essa população se distribui pelas diferentes regiões que a compõem: Acuípe de Baixo, Acuípe de Cima, Acuípe do Meio, Águas de Olivença, Cajueiro, Campo de São Pedro, Curupitanga, Cururutinga, Gravatá, Lagoa do Mabaço, Mamão, Maruim, Pixixica, Santana, Santaninha, Sapucaieira, Serra das Trempes, Serra do Padeiro, Serra do Serrote, Serra Negra e a vila de Olivença. Conforme levantamento demográfico levado a cabo durante o processo de identificação e delimitação da ti, a maior parte da população indígena se concentrava em duas regiões: a das serras e aquela compreendida entre Sapucaieira e Santana (Viegas & Paula, 2009, p. 223).

    Nas diversas localidades abarcadas pela ti, referidas em alguns casos como comunidades, encontram-se conjuntos de casas mais ou menos dispersas. Contudo, são muito dinâmicas as lógicas de integração das comunidades ao território, como já alertavam os antropólogos Susana de Matos Dores Viegas e Jorge Luiz de Paula, responsáveis pelo rcid (Viegas & Paula, 2009, p. 40).[10] Isso ficará evidente quando nos debruçarmos sobre a constituição de aldeias no marco do processo de recuperação territorial. O que importa enfatizar é que essas localidades são unidas historicamente por vínculos de parentesco e pela partilha de identidades e modos de vida comuns, que remetem aos troncos velhos, isto é, aos antepassados, e se assentam em relações específicas com o território.[11] A partir de 2004, em várias delas passaram a ocorrer ações de retomada, como se indicará adiante. Antes disso, observaremos como se constituiu a aldeia Serra do Padeiro, sobre a qual se debruça este estudo.

    1.1.1. A aldeia Serra do Padeiro

    A expressão Serra do Padeiro é empregada pelos envolvidos no processo de recuperação territorial, e também neste livro, com sentidos diversos. Em um plano mais geral, fala-se em Serra do Padeiro para aludir a uma das regiões geográficas da ti, a mais interior (ver mapa 2). Com solos comparativamente mais férteis que os de outras áreas do território, a Serra do Padeiro foi ocupada a partir de fins do século xix pela monocultura cacaueira, que se tornou o principal motor de esbulho dos indígenas. Predominam na região colinas e morros, cujas altitudes variam de menos de cem a mais de oitocentos metros, e onde nascem diversos rios que cortam a ti.[12] Nos topos desses morros, serras e serrotes é que podem ser encontradas as formações florestais mais conservadas da ti: matas primárias e secundárias em estágio avançado de regeneração, com árvores de grande porte, cipós e epífitas (Mercês, 2004, p. 39). Serra do Padeiro é também o nome de uma serra ou, em acepção ainda mais específica, de um cume em particular, encimado por uma grande afloração rochosa, que se destaca na paisagem. Há, finalmente, uma aldeia Serra do Padeiro, que tem seu centro justamente na formação rochosa de mesmo nome e, como se indicou, era conformada à época da pesquisa por cerca de 432 indígenas.

    Mapa 2. Aldeia Serra do Padeiro.

    Elaboração: Daniela Alarcon e Lucas Lima, sobre base cartográfica da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, 2012-2013.

    Obs. O mapa 1 representa todas as fazendas retomadas na Serra do Padeiro entre 2004 e 2012, mas apenas alguns dos sítios que os indígenas haviam conseguido manter em sua posse, e algumas das áreas ainda em posse de não indígenas.

    Os mapas 2 e 3 indicam a localização de sítios no litoral em posse de indígenas que fazem parte da Serra do Padeiro.

    A aldeia Serra do Padeiro se situa na bacia hidrográfica de Una. O curso d’água que dá nome à bacia é um rio de águas pretas, repleto de corredeiras, cujo braço norte, que banha a aldeia, nasce na Serra das Lontras – mais precisamente, no pico conhecido como Serra Peito de Moça (Rocha Filho, 1976, p. 116).[13] A aldeia se estende por três dos quatro municípios em que se localiza a ti Tupinambá de Olivença: Buerarema, São José da Vitória e Una.[14] Os centros povoados mais próximos ao centro da aldeia são a sede de São José da Vitória, situada a aproximadamente catorze quilômetros, e dois bairros rurais: Sururu (como é mais conhecida a Vila Operária), distrito de Buerarema, localizado a aproximadamente nove quilômetros, e Vila Brasil, parte do município de Una, a cerca de dezoito quilômetros. Em torno de sessenta quilômetros, percorridos ao longo de uma estrada secundária, separam o centro da aldeia da sede de Olivença.

    A formação rochosa a que me referi há pouco é considerada pelos Tupinambá da Serra do Padeiro não apenas o centro da aldeia, mas a morada dos encantados.[15] A seus pés, localiza-se o sítio de seu Lírio e dona Maria, onde, à época da pesquisa, viviam quase todos os filhos do casal, incluindo o cacique. Quando da conclusão deste livro, ainda que alguns filhos de seu Lírio e dona Maria houvessem se mudado para outras áreas, o casal e parte dos descendentes seguiam vivendo ali. No sítio, situam-se a casa do santo, a sede da aitsp, o Colégio Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro (ceitsp), o posto de saúde, o posto odontológico e outros espaços coletivos.

    Seu Lírio (Rosemiro Ferreira da Silva), pajé, segura retrato de seu pai, João de Nô (João Ferreira da Silva, c. 1905-1981), considerado o primeiro rezador da aldeia. Ao fundo, vê-se a última morada de João de Nô, na antiga fazenda São João, retomada em 2013, na aldeia Serra do Padeiro. Por Daniela Alarcon, 2016.

    Seu João Neves da Silva (à dir.), nascido em 1926, no sítio São João, área cuja posse foi mantida pela família, na aldeia Serra do Padeiro. Da esq. para a dir., uma de suas irmãs, dona Zilda Bransford da Silva; sua esposa, dona Marisete Gomes da Costa; e um dos filhos do casal, que vive na cidade. Por Daniela Alarcon, 2016.

    No rio de Una, no sequeiro conhecido como Três Bancos, dona Tonha (Maria Lúcia Oliveira dos Santos) pesca com jereré, armadilha muito utilizada na aldeia Serra do Padeiro. Por Daniela Alarcon, 2012.

    Serra do Padeiro, principal marco territorial da aldeia de mesmo nome, vista da Fazenda Belém, sítio de seu Lírio (Rosemiro Ferreira da Silva) e dona Maria da Glória de Jesus. Por Fernanda Ligabue, 2014.

    Os demais membros da aldeia vivem em outros sítios – pequenos estabelecimentos que conseguiram manter apesar do esbulho, situados principalmente nas proximidades dos rios de Una, Cipó e do Meio – e em áreas retomadas.[16] Conforme se indicou, 22 fazendas foram retomadas na Serra do Padeiro entre 2004 e 2013, formando uma espécie de semicírculo em torno do centro da aldeia. Apesar de, naquele intervalo, os indígenas haverem ampliado significativamente a extensão em sua posse, processo que se aprofundaria após a conclusão da pesquisa, a área que ocupam permanece, ainda hoje, descontínua, já que persistem no território fazendas e sítios em posse de não indígenas.

    Observe-se ainda que, quando me refiro à aldeia Serra do Padeiro, não me restrinjo à região geográfica homônima, já que duas áreas situadas no litoral da ti, a despeito de estarem distantes dezenas de quilômetros do centro da aldeia, são consideradas por seus membros partes integrantes da mesma (ver mapa 2). A primeira delas, situada no extremo sul da ti, junto à lagoa do Mabaço, é uma área titulada, comprada por volta de 1960 por Julia Bransford da Silva (1907-1993). Com 61 hectares, é conhecida como Fazenda Prazerosa ou Sítio Rio do Meio, em alusão ao curso d’água referido também como Maruim. Indígena nascida em Olivença, Julia foi a segunda esposa do Velho Nô (Francisco Ferreira da Silva, c.1868-1962), avô de seu Lírio. Tanto Julia como o Velho Nô são considerados troncos velhos da aldeia. O Velho Nô, que vivia ao pé da serra, costumava passar períodos no sítio – apreciava comer caranguejos apanhados no mangue, no encontro do rio Maruim com o mar, junto à lagoa do Mabaço. Foi lá que faleceu. Após sua morte, o sítio permaneceu anos desabitado, exceto durante períodos em que alguns de seus parentes viveram ali.

    Em 1995, mudou-se para lá uma filha do Velho Nô, dona Helena*, com o cônjuge, seu Jorge*. Eles se dedicavam a cultivar coco, pescar e coletar espécies como aratu, lambreta e caranguejo. A partir de meados da década de 2000, dona Helena e seus familiares passaram a sofrer as pressões de um hotel de luxo instalado à beira da lagoa, que tinha entre seus sócios Armínio Fraga Neto, até pouco antes, presidente do Banco Central (bc). O terreno pretensamente pertencente a Fraga praticamente envolveu a Fazenda Prazerosa. Nós ficamos no meio, disse dona Helena, lembrando que pessoas ligadas ao hotel tentaram impedir o casal de passar pela estrada. Ainda segundo ela, prepostos dos sócios do hotel foram até sua casa, para pressioná-los a assinar os papéis. Queriam tomar mesmo. Um bisneto do Velho Nô observou: "Fizeram um hotel lá para dentro – só vai gente rica –, puseram cancela, mas a gente está lá. Se vendesse, como a gente ia pegar o caranguejo, que nem nosso avô [no sentido de bisavô] sempre

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